As disputas e as possibilidades jurídicas da terra e da propriedade na América Latina

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Bárbara Luiza Ribeiro Rodrigues[1]

Resumo: O presente trabalho objetiva analisar as disputas políticas e jurídicas envolvendo o conceito “propriedade”, o qual se apresenta bastante, dinâmico e demandado entre os diversos sujeitos que compõem o corpo social latino-americano, notadamente entre os indivíduos que exigem a propriedade privada individual e os sujeitos coletivos, como comunidades tradicionais e, também, como movimentos sociais de luta pela terra. Como lente de leitura do objeto delineado, optou-se pelo método científico dedutivo, ademais, utilizou-se da pesquisa bibliográfica e a análise dos resultados da pesquisa foi qualitativa. Nesse sentido, importa registrar que as ideias de propriedade são diversas e a sua configuração jurídica dominante é histórica. Essa reflexão se aprofunda ainda mais quando se verifica como o Estado interpreta e soluciona tais conflitos. Tal papel interpretativo deve ir além de se verificar a norma e as dogmáticas que foram construídas ano após ano para arquitetar uma racionalidade moderna de exploração da terra. Ao contrário, deve alcançar a complexidade da interpretação judicial na resolução dos conflitos coletivos por acesso à terra.

Palavras-chave: Direito à propriedade; Sujeitos coletivos; Conflitos ecológicos distributivos.

 

Abstract: The present work aims to analyze the political and legal disputes involving the concept of “property”, which is quite dynamic and demanded among the various subjects that make up the Latin American social body, notably among individuals who demand individual and private property. collective subjects, as traditional communities and also as social movements fighting for land. As a reading lens of the outlined object, the deductive scientific method was chosen, in addition, bibliographic research was used and the analysis of the research results was qualitative. In this sense, it is important to note that the ideas of property are diverse and their dominant legal configuration is historical. This reflection deepens even more when it is verified how the State interprets and resolves such conflicts. Such an interpretive role must go beyond verifying the norm and the dogmatics that were built year after year to architect a modern rationality of land exploitation. On the contrary, it must reach the complexity of judicial interpretation in the resolution of collective conflicts over access to land.

Keywords: Right to property; Collective subjects; Distributive ecological conflicts.

 

Sumário: Introdução. 1 A invenção jurídica ocidental do direito de propriedade. 2 Das terras ocupadas por sujeitos coletivos e suas possibilidades jurídicas. 3 Ações políticas e jurídicas coletivas para a disputa por direitos na arena judicial. Considerações Finais. Referências.

 

Introdução

O presente trabalho objetiva analisar as disputas políticas e jurídicas envolvendo o conceito “propriedade”, o qual se apresenta bastante, dinâmico e demandado entre os diversos sujeitos que compõem o corpo social latino-americano. Nesse sentido, importa registrar que as ideias de propriedade são diversas e a sua configuração jurídica dominante é histórica.

Cabe destacar as transições jurídicas do conceito eurocêntrico de propriedade: no direito antigo, estava relacionado ao direito romano que tem a propriedade privada como absoluta e sagrada, com vistas ao culto aos deuses lares, ilimitada, portanto, sobre as coisas; no direito medieval, era vinculado ao sistema de vassalagens e aos laços de fidelidade que ligavam os senhores ao rei, no qual o direito de propriedade era mais frágil e relativo; já no direito moderno, houve uma retomada da absolutização do direito romano de propriedade, não mais relacionado ao caráter divino do bem, mas, sim, com vistas a proteger o direito liberal individual face a quaisquer investidas, inclusive do próprio Estado Nacional; todavia, no século XX, houve a funcionalização da propriedade privada, relativizando-a e tendo como referência o cumprimento da função social, isto é, o direito de propriedade deixa de ser absoluto e passa a ser acompanhado pela obrigação de dar à propriedade uma função social – ainda que de caráter liberal, relacionada à produtividade (TRECCANI, 2018).

Todavia, como supramencionado, a disputa pelos espaços, notadamente pelo território, envolve outros sujeitos que fogem à lógica eurocêntrica, os quais se organizam e formam a sua identidade coletivamente. Propõe-se, assim, a refletir sobre as formas latino-americanas de acesso à terra e aos recursos naturais, praticadas pelos povos e comunidades tradicionais. Pode-se ir além, ver a propriedade fora da lógica do capitalismo, fora da sua formatação moderna e liberal. O distanciamento do conceito terra, e sua aproximação como mercadoria, distorce o próprio conceito do que seria alimentação e vida. Tal limitação jurídica e, por vezes, até mesmo teórica, leva a déficit na compreensão de que o acesso à terra por comunidades tradicionais oportuniza o acesso à alimentação em quantidade e qualidade nutricional necessária.

Ademais, é oportuno analisar os embates entre o monismo jurídico e o pluralismo jurídico, haja vista que tais compreensões representam as disputas realizadas entre os sujeitos que possuem projetos de vida, de sociedade e de Estado antagônicos. Por isso, inclusive, os sujeitos coletivos ocupam os mais diversos espaços, inclusive os institucionais, como é o caso da arena judicial. Assim sendo, a ocupação dos imóveis rurais é a principal estratégia dos integrantes dos movimentos sociais do campo para trazer à tona o debate acerca da concentração e utilização da terra no Brasil. Os litígios pela terra, portanto, expõem os conflitos ecológicos distributivos de maneira a reproduzir a terra como uma simples mercadoria, podendo livremente ser regulada e manipulada pelo capital (MARTÍNEZ-ALIER, 2004).

Nesse contexto, esses conflitos coletivos pela terra são o ponto de partida para se analisar o papel do Estado, como agente mediador e solucionador de conflitos, e a efetividade do arcabouço normativo fundiário. A reflexão crítica a ser feita perpassa a dinâmica capitalista moderna de produção em grande escala, a lógica agrária contemporânea, assim como princípios que relacionam à formação societária e aqueles que lutam pelo acesso à terra (MILANO; PETRELLA; PULHEZ, 2021).

Oportunamente, cumpre registrar que, como lente de leitura do objeto delineado, optou-se pelo método científico dedutivo (GUSTIN; DIAS, 2006), o qual parte de uma premissa geral para uma conclusão, também, geral. No tocante aos instrumentos técnicos para coleta de dados da pesquisa (GIL, 2008), utilizou-se da pesquisa bibliográfica, que é a pesquisa elaborada com base em material já publicado, incluindo livros, revistas, jornais, teses e dissertações, etc. Esse tipo de pesquisa foi utilizado para que fossem observados, compreendidos e, quiçá, superadas as teorias e os conceitos já formulados sobre a temática, notadamente por meio da análise da realidade social. Ademais, registra-se que, em relação à forma de abordagem do problema investigado, a análise dos resultados da pesquisa foi qualitativa.

 

1 A invenção jurídica ocidental do direito de propriedade

A organização jurídica dos Estados Nacionais modernos se deu por meio do Direito Constitucional, que é produto das revoluções burguesas do século XVIII.

Nesse contexto, dois foram os institutos jurídicos privilegiados por essa nova lógica jurídica: o contrato e a propriedade privada. Destaca-se, inclusive, o caráter absoluto da propriedade, expresso no Código Napoleônico de 1804 e, especialmente, o caráter sagrado/divino, presente na Constituição portuguesa de 1822[2].  Essa proteção absoluta e inviolável decorre do direito romano.

Nesse sentido, o professor Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho, na obra “A Função Social da Terra”, diferencia a terra da propriedade. Na obra, o autor trata da terra, diferenciando-a de propriedade. Terra é algo concreto, aquilo em que pisamos, onde se planta, onde se colhe, enfim, onde a personalidade humana se desenvolve. A propriedade tem outro sentido. É, apenas, uma abstração criada artificialmente pelo homem, muitas vezes por uma folha de papel chamada registro ou título. Desde a introdução o autor já propõe que, na verdade, o que tem função social é a terra e não a propriedade (MARÉS, 2021).

Partindo dessa premissa, compreende-se como a propriedade foi construindo sua noção ao longo da história ocidental. Assim, percebe-se que Igreja e capitalismo foram dois aliados muito importantes para que a dominação do homem sobre a terra e a acumulação de riquezas se concretizasse. Além disso, também houve a contribuição de filósofos, cientistas políticos e outros pensadores para afirmar que a propriedade era um direito. Alguns negavam sua origem natural, como São Tomás de Aquino, mas outros como Voltaire e John Locke reafirmavam a legitimidade da propriedade (MARÉS, 2021).

A formação da propriedade em Portugal e no Brasil também é explicada, principalmente por meio dos conceitos de sesmarias. No Brasil, a temática do genocídio dos índios também é citada, mas pela perspectiva da alienação do indígena com sua terra, ou seja, a separação forçada em razão da atividade do colonizador. Desse modo, a leitura da obra “A função social da terra” traz a consciência de que a colonização separou dos índios aquilo que eles tinham de mais sagrado, a terra, para substituí-la por um conceito criado pela civilização europeia, a propriedade (MARÉS, 2021).

Com a Constituição brasileira de 1891, as elites locais passaram a dispor da terra devoluta e outorgavam títulos e esses eram emitidos sobre terras ocupadas por camponeses, negros, índios que mantinha sua subsistência e conseguiam viver bem com aquelas terras. De posse dos títulos de propriedade, com milícia privada ou pública, armadas agressivas e violentas, vinham expulsar os posseiros que ali cultivavam e dedicavam sua própria vida, então as guerras camponesas refletiam apenas como uma resposta a essa violência. No entanto, mesmo com a diversas conquistas realizadas por esses movimentos, não há que se falar em uma criação de um pedido de uma reforma agrária, sendo que na verdade eles não precisavam dela, haja vista que tinha terra, ali trabalhavam, produziam e eram felizes. O que se presenciava ali era o respeito com ao direto a vida, a cultura e a dignidade. Esse povo que lutou e defendeu seus territórios foram além de penalizados com as guerras, também pelo Estado que não perdoava e promoveu perseguição e morte aos que, no campo, se insurgiram contra a cruel divisão de terras (MARÉS, 2021).

Com a chegada do século XX, mesmo sob forte repressão, esses movimentos demandaram por uma proposta agrária que passava a ser de mudança, e não apenas de manutenção da posse da terra, consequentemente gerando revolta na elite que passou a se valer também além da repressão militar e policial de propositura de mudanças nas estruturas jurídicas da propriedade da terra. Ademais, no século XX, tratou-se do Estado de Bem-Estar Social que partia de uma maior preocupação com o cidadão, fornecendo-lhe, ao menos em tese, educação, saúde, amparo na velhice (seguridade e previdência) social, e trabalho digno. Essa conjuntura apresenta as Constituições mexicana, de 1917, e alemã, de 1919, como inovadoras quanto aos direitos sociais fundamentais. Todavia, essa preocupação estatal por refundar-se e por constituir novos direitos, segundo Carlos Marés, era meramente uma nova faceta do capitalismo que teve de se adaptar aos movimentos sociais que emergiam no século XX, inclusive forjando uma obrigação do sujeito para com o direito de propriedade, por meio da função social da propriedade (MARÉS, 2021).

A princípio, a função social da propriedade era confundida com a mera produtividade da terra. Sendo assim, a terra que era produtiva, atendia uma função social, porque “a terra ociosa não servia ao capitalismo”. Esclarecendo isso, Carlos Marés traz apontamentos sobre como a função da propriedade foi tratada em diferentes países como no México (afastou o instituto e possibilitou o uso coletivo da terra), Bolívia (intervenção no direito à terra que não estivesse sendo usada ou que tivesse dimensão exagerada), Venezuela e Colômbia (reconheceu o direito de a sociedade recuperar a terra descumpridora de sua função social, sem pagamento de indenização) (MARÉS, 2021).

Especificamente em relação ao contexto brasileiro, Carlos Marés (2021) ensina a respeito do desenvolvimento da propriedade no país e sobre os principais diplomas jurídicos que trataram sobre o tema, como o Estatuto da Terra, o qual registrou os requisitos liberais para o cumprimento da função social: a) favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivam.

Sabendo o que é função social no Brasil, o autor classifica três tipos de propriedade: a) aquela que atende o uso adequado às funções sociais; b) aquela que não atende um ou mais requisitos acima dispostos; c) aquela que além de atender às funções sociais, ainda é bastante produtiva. Aponta-se consequências distintas para cada uma delas. No caso da primeira, pode haver desapropriação, mas a indenização deve ser paga em dinheiro. Na segunda, deve haver desapropriação e a indenização deve ser paga em títulos da dívida pública da União. Na terceira, não há que se falar em desapropriação, mas em incentivo. Percebe-se que a desapropriação acaba por premiar aquele que não dá a sua terra uma destinação de acordo com os fins sociais, porque ele recebe um pagamento pela terra e poderá investir esse dinheiro em outras coisas e, até, em outra terra. Então, o instituto jurídico de Direito Público, desapropriação, mantem a máquina capitalista funcionando, com vistas à manutenção das desigualdades socioeconômicas, jurídicas, ambientais, etc., construídas pela lógica eurocêntrica (MARÉS, 2021).

Em síntese, apesar da confusão entre função social e produtividade, uma reflexão mais aprofundada sobre a primeira permite compreender a função socioambiental da terra como regra, como princípio e como instrumento de luta.

Como regra, o prof. Marés, no livro “A Função social da terra”, mostra que:

 

“Para combinar com os compromissos de eliminar desigualdades sociais e regionais, a Constituição não poderia repetir a velha propriedade privada do Código de Napoleão, absoluta e acima de todos os outros direitos. A propriedade privada teria que ser desenhada como uma consequência dos novos direitos coletivos à vida, ao fim das desigualdades e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, introduzindo nela uma razão humana de existência, vinculando-a em todos os lugares que reconheçam como direito à função social, especialmente em relação à terra. É tão insistente a Constituição que se pode dizer, fazendo eco ao Professor colombiano Guillermo Benavides Melo, que no Brasil pós 1988 a propriedade que não cumpre sua função social não está protegida, ou, simplesmente, propriedade não é. Na realidade quem cumpre uma função social não é a propriedade, que é um conceito, uma abstração, mas a terra, mesmo que não alterada antropicamente, e a ação humana ao intervir na terra, independentemente do título de propriedade que o Direito ou o Estado lhe outorgue. Por isso a função social é relativa ao bem e ao seu uso, e não ao direito. A desfunção ou violação se dá quando há um uso humano, seja pelo proprietário legitimado pelo sistema, seja por ocupante não legitimado. Embora esta concepção esteja clara por todo o texto constitucional, a leitura que tem feito a oligarquia omite o conjunto para reafirmar o antigo e ultrapassado conceito de propriedade privada absoluta. A interpretação, assim, tem sido contra a lei”. (MARÉS, 2003, p. 115-116).

 

De acordo com a Constituição brasileira de 1988, a função social é cumprida com o atendimento simultâneo, dos requisitos de I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (BRASIL, 1988).

Assim, há proprietários que não cumprem a função socioambiental de suas terras (o que, em regra, não deveriam ser proprietários) e há não-proprietários que a cumprem, tendo em vista que a função socioambiental se dá relação ao bem e ao seu uso.

A discussão sobre a função social é, também, centro principiológico da própria existência da propriedade brasileira, especialmente, a partir da Constituição de 1988. Ora, a propriedade privada é um instituto jurídico inserido dentro de um contexto social e, por isso, deve ser funcionalizado positivamente para que tenha sentido.

Ademais, como ressalta Carlos Marés de Souza Filho,

 

“Pode-se ver com clareza que a ideia da função social está ligada ao próprio conceito do direito. Quando a introdução da ideia no sistema jurídico não altera nem restringe o direito de propriedade, perde efetividade e passa a ser letra morte. Embora embeleze o discurso jurídico, a introdução ineficaz mantem a estrutura agrária íntegra, com suas necessárias injustiças, porque quando a propriedade não cumpre uma função social, é porque a terra que lhe é objeto não está cumprindo, e aqui reside a injustiça. Isto significa que a função social está no bem e não no direito ou no seu titular, porque uma terra cumpre a função social ainda que sobre ela não paire nenhum direito de propriedade ou esteja proibido qualquer uso direto, como, por exemplo nas terras afetadas para a preservação ambiental: a função social é exatamente a preservação do ambiente” (MARÉS, 2003).

 

É evidente que, ao longo da estruturação fundiária brasileira, tal princípio gera grandes tensões, tendo em vista que “informa, direciona, instrui e determina o modo de concepção jurídica de todo e qualquer princípio e regra jurídica, constitucional ou infraconstitucional, relacionada à instituição jurídica da propriedade” (FRANÇA, 1999).

E mais, considerando tal princípio como um conceito normativo, exige do seu aplicador um exercício hermenêutico constitucional que dê sentido material à situação em litígio, de acordo com os demais princípios constitucionais, em especial, os da dignidade da pessoa humana e da justiça social, como ensina Marcos Alcino Torres (2010):

 

“A função social é um destes conceitos que amorfo e impreciso, ajusta-se, amolda-se, como o direito à realidade social de seu tempo. Há necessidade de sensibilidade e argúcia do operador para dar a real eficácia que o princípio reclama, sob pena de manter-se na moldura do quadro que espelha realidade ultrapassada.

Se consequência nenhuma tiver, é a função social um princípio inativo, sem utilidade, o que corresponderia a um contra-senso para um princípio que tem como objetivo a funcionalização de um instituto”.

 

Dessa forma, o referido autor acrescenta que a

 

“A solução passa necessariamente pelo confronte de um direito que, na questão, interessa a seu titular pelo aspecto patrimonial (propriedade, sem função social), cuja fundamentalidade, nestas circunstâncias, deve ser considerada apenas formal (não substancial) e um direito (a posse, com função social) que interessa a seu titular diante da possibilidade do atingimento de necessidades vitais (moradia/trabalho) que tem no cumprimento da função social sua fundamentalidade substancial, o que indica merecer proteção em detrimento daquele meramente formal” (TORRES, 2010).

 

Pode-se ir além, compreender e vivenciar a propriedade fora da lógica do capitalismo, fora da sua formatação moderna e liberal. É a isso que se propõe os sujeitos coletivos, os quais têm outras lógicas de se relacionar com o território e com a terra.

 

 

2 Das terras ocupadas por sujeitos coletivos e suas possibilidades jurídicas

O professor Dr. Girolamo Domenico Treccani, na obra “Propriedade Coletiva das Populações Tradicionais Brasileiras e os Uso Civici na Itália”, propõe-se a refletir sobre possíveis convergências entre as formas latino-americanas de acesso à terra e aos recursos naturais, praticadas pelos povos e comunidades tradicionais, e as experiências em curso há séculos na Europa, em que grupos sociais conseguiram o reconhecimento do uso coletivo de seus territórios, como é o caso do usi civici, na Itália (TRECCANI, 2018).

Além disso, Treccani (2018) abordou as imposições jurídicas europeias à América Latina, desde a colonização, momento em que os colonizadores invisibilizaram os ordenamentos jurídicos preexistentes à invasão, instituindo, a partir de então, o monismo jurídico, por meio da modernidade e da colonialidade do poder e do saber[3]. Ocorre que a lógica eurocêntrica de invisibilização dos sujeitos socioculturalmente diversos perdeu forças no contexto do globocentrismo[4] e oportunizou a emergência de novos direitos, notadamente em função das reivindicações dos povos e das comunidades tradicionais por reconhecimento e por redistribuição – esta última relacionada, especialmente, com a proteção dos territórios ocupados, os quais se constituem e se realizam por meio de uma identidade coletiva.

Assim, o supracitado autor destaca que o conceito legal de “propriedade” ganha novos sentidos, dados pelos povos e comunidades tradicionais, os quais incorporam relações com a terra, como posse tradicional, propriedade coletiva, contratos de uso, que são mais importantes do que a ideia clássica de propriedade e seus títulos definitivos de propriedade individual, pois o que é importa é a segurança jurídica para viabilizar o uso tradicional/cultural da terra, com exclusividade, e dos demais recursos naturais. Essa situação, conforme o autor citando Deborah Duprat, provoca uma virada paradigmática no âmbito do direito, pois insere, nas disputas jurídicas, os direitos coletivos e as demandas territoriais, rompendo com a lógica moderna da propriedade privada individual liberal e passando à compreensão da terra enquanto espaço de coletividades, sociabilidades, de pertencimento – inconcebível, até então, para o direito estatal, razão pela qual se cria uma situação de injustiça social a ser superada (TRECCANI, 2018).

Dentre as estratégias possíveis para enfrentamento dessa situação, cita-se os instrumentos de proteção de direitos humanos, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e as decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, as quais representam uma requalificação profunda do direito de propriedade, marcada opor um conteúdo eminentemente latino-americano (TRECCANI, 2018). Dentre essas práticas jurídicas diversas, aprofunda-se o olhar acerca das terras de uso coletivo dos povos e comunidades tradicionais da América Latina e dos bens coletivos já reconhecidos na Europa, os quais, segundo o autor, tem a mesma matriz jurídica. Treccani (2018) passa a discorrer sobre os “usos cívicos”, os quais devem ser considerados como formas heterogêneas de utilização coletiva do território.

Tais formas vêm do passado (remete-se, inclusive, aos sistemas comunais europeus, os quais foram golpeados com o cercamento dos campos, conforme ensina o historiador Edward P. Thompson, especialmente nas obras “Costumes em Comum” e “Senhores e Caçadores”) e permitem o uso coletivo de bens imóveis públicos ou particulares relativos ao direito de caça, de pastagem, à pesca destinada a sobrevivência, ao corte de madeira. Esse uso deve ser pautado na conservação de tradição local que determina o uso dos recursos naturais conforme regras definidas pela coletividade e baseadas nessa e na solidariedade.

A condução de uma análise sobre a fronteira guarda diversas particularidades, seres e espaços entrelaçados que induzem a denotar momentos de forte expansão por meio da apropriação da terra e de se conceber a terra como mercadoria. É na fronteira que as contendas por terra iniciam e é no contexto desses conflitos que o modelo agrário brasileiro foi forjado, a partir dos diversos sentidos que são atribuídos ao conceito de propriedade, que segundo Treccani (2018), constitui-se enquanto categoria diversa, dinâmica e necessariamente em disputa.

É diante disso que a visão de propriedade de Treccani rememora uma reflexão de ruptura da propriedade individual, clássica, entrelaçada em conceitos europeus antigos e medievais para contemporaneidade. Não é só perceber um conceito propriedade dinâmico, diverso e em disputa, mas também perceber como tal significado advém de uma experiência europeia que dificulta e prejudica a construção da relação coletiva com o território no contexto da América Latina.

Pode-se ir além, ver a propriedade fora da lógica do capitalismo, fora da sua formatação moderna e liberal. O distanciamento do conceito terra, e sua aproximação como mercadoria, distorce o próprio conceito do que seria alimentação e vida. Tal limitação jurídica, e por vezes até mesmo teórica, leva a déficit na compreensão de que o acesso à terra por comunidades tradicionais oportuniza o acesso à alimentação em quantidade e qualidade nutricional necessária.

Considerando essas relações entre os sujeitos e os espaços, as professoras Dra. Rebecca Lemos Igreja e Dra. María Teresa Sierra, na obra “Pluralismo Jurídico e Direitos Indígenas na América Latina: fundamentos e debates”, analisam o pluralismo jurídico sob uma perspectiva teórica e política com vistas a compreender as relações estabelecidas entre o Estado e os povos tradicionais, especificamente os povos indígenas na América Latina. Nesse sentido, elas destacam a necessidade de se reconhecer a diversidade dos sistemas de justiça indígena (os quais são baseados em lógicas próprias, com suas cosmogonias e cosmovisões, e que concebem as práticas de justiça a partir de uma visão integral do direito fortemente ligada ao mundo sobrenatural e ao espaço territorial que a sustenta), sua validade no mundo contemporâneo e suas interações com as legislações nacionais e internacionais (as quais impactam no fortalecimento e na recriação do próprio direito – oficial e não-oficial, este produzido pelas comunidades tradicionais) (IGREJA; SIERRA, 2020).

Ademais, as autoras refletem sobre os novos contextos sócio-políticos latino-americanos, marcados pela ampliação do neoliberalismo no continente e pelo fortalecimento das redes políticas conservadoras, inclusive com a ascensão de governos autoritários de extrema-direita. Em relação ao primeiro fenômeno, registraram que as conquistas históricas de reconhecimento jurídico das identidades sociais diversas (destaca-se a teoria constitucionalista multicultural de Raquel Yrigoyen Fajardo) tiveram seus fundamentos jurídicos minados em função da lógica do capital, resultando na destituição dos territórios indígenas e de seus recursos naturais de maneira autorizada pelos Estados Nacionais, cujos poderes estão reequipando suas estruturas hierárquicas para renovar as exclusões e reafirmar as subordinações, ou de forma ilegal, como por meio do garimpo e do desmatamento. Outro resultado, este decorrente do segundo fenômeno analisado pelas autoras, constitui-se na restauração de lógicas neocoloniais enfrentadas pelos povos indígenas, como a discriminação, o racismo, o desrespeito à sua forma de vida, à sua língua, a falta de assistência à saúde e de condições dignas de sobrevivência (IGREJA; SIERRA, 2020).

Tais fenômenos se interrelacionam, retroalimentam-se e culminam em retrocessos de direitos conquistados por esses “novos sujeitos de direitos”[5], o que exige resiliência desses povos para o fortalecimento das lutas indígenas e para a rediscussão dos princípios que orientam suas demandas por reconhecimento, redistribuição e participação paritária – cujas categorias sintetizam o conceito integrado de justiça social, sistematizado por Nancy Fraser, ao cotejar as contribuições de Axel Honneth e de Charles Taylor.

Nesse sentido, as autoras ressaltam que um dos espaços de luta pela defesa dos direitos desses povos é a arena judicial, na qual o monismo jurídico – que reconhece, apenas, a justiça do Estado e que serve para legitimar a dominação e a subordinação de outros povos marcados por processos históricos de colonização e de profundas desigualdades – e o pluralismo jurídico – utilizado como ferramenta para o desmantelamento do monopólio do Direito Moderno, recolocando em debate essas outras formas de Direito – disputam interesses individuais e coletivos, visões de mundo e projetos de sociedade, muitas vezes, antagônicos (IGREJA; SIERRA, 2020).

 

3 Ações políticas e jurídicas coletivas para a disputa por direitos na arena judicial

A ocupação dos imóveis rurais é a principal estratégia dos integrantes dos movimentos sociais do campo para trazer à tona o debate acerca da concentração e utilização da terra no Brasil. Miguel Carter (2010) denomina tal ação de ativismo público ou ativismo popular, por meio da qual os movimentos sociais pressionam o governo para a efetivação da distribuição de terra, através das políticas de reforma agrária. Deve-se ressaltar que o resultado de tais atividades pelos movimentos sociais, como função e alcance social, é produto de uma equação/cenário político/social, que envolve desde “os recursos mobilizadores disponíveis ao movimento (humanos, materiais e de ideias) como as oportunidades políticas de ação (tolerância do regime, a capacidade do Estado, a instabilidade das elites, a disposição do governo, os aliados políticos e a atenção pública)” (CARTER, 2010).

A atividade e atuação de grupos, como o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), tem promovido pressões sociais, transversalmente ao ativismo público, para negociações estatais para acesso à terra. Esse ativismo público busca atrair a atenção pública, conduzir a construção de políticas de Estado por meio de influência, negociação e de um repensar sobre ideias, preceitos e ações da comunidade (CARTER, 2010). Habitualmente, esses movimentos empregam uma série de retóricas que serão usadas em ações coletivas, passeatas, audiências públicas, ocupações de terras e de prédios públicos. Um dos desdobramentos dessas ações são os conflitos coletivos pela terra, os quais representam uma demanda constante dos sujeitos usurpados: o acesso à terra, corolário da sobrevivência.

A atividade e atuação de grupos, como o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), tem promovido pressões sociais, transversalmente ao ativismo público, para negociações estatais para acesso à terra. Esse ativismo público busca atrair a atenção pública, conduzir a construção de políticas de Estado por meio de influência, negociação e de um repensar sobre ideias, preceitos e ações da comunidade (CARTER, 2010). Habitualmente, esses movimentos empregam uma série de retóricas que serão usadas em ações coletivas, passeatas, audiências públicas, ocupações de terras e de prédios públicos. Um dos desdobramentos dessas ações são os conflitos coletivos pela terra, os quais representam uma demanda constante dos sujeitos usurpados: o acesso à terra, corolário da sobrevivência.

Assim,

 

“As ocupações de terras como forma de ativismo público são caracterizadas por escolhas racionalmente condicionadas a interpretação que os movimentos fazem da legitimidade do latifúndio no Brasil. As escolhas das terras a serem ocupadas não obedecem a um único objetivo e plano no Brasil, dependendo em muitos aspectos das regiões e dos grupos que atuam em cada estado da federação. Nas mais diversas localidades do Brasil, onde se estruturam os conflitos são escolhidas grandes propriedades de empresas agrícolas, terras suspeitas de grilagem, que não cumprem a função social, que exploram de forma predatória os recursos naturais, que estão sobre controle de empresas que dominam tecnologias peculiares de exploração da agricultura, enfim, as ocupações de alguma forma se relacionam com a forma como os movimentos camponeses compreendem o seu direito a terra ou entendem que o Estado não cumpre a legislação que define os parâmetros da Reforma Agrária, desta forma, a ocupação para além de chamar a atenção da sociedade para o problema agrário ou direcionar a desapropriação de terra a ser executada pelo estado, procura estabelecer um diálogo com a sociedade e com o estado sobre a necessidade da organização de um outro padrão agrário no Brasil, que atenda os interesses dos camponeses, mas também conduza a um sistema agrícola e social de distribuição da terra entendido como mais justo” (TARREGA; et al., 2012).

 

Essas disputas se dão nos mais diversos espaços, inclusive institucionais, como no Judiciário, o qual se vê, por este prisma, obrigado a dialogar com experiências diferenciadas de relação com a terra e de legitimação da propriedade (TÁRREGA; MAIA; FERREIRA, 2012). Aqui, o Judiciário, ao aplicar, por exemplo, a teoria subjetiva de Savigny, rememora toda construção realizada pela fronteira (FARIA, 1992). Nesse sentido, historicamente, o processo de medição, o delimitador de fronteiras, longe de resolver as disputas por limites, passou a acirrá-los, transformando-se em uma luta constante de interpretações institucionais acerca do direito à terra (MOTTA, 1998). Diante disso, caberia ao Judiciário o papel de mediador de conflitos e solucionador das controvérsias (FARIA, 1989; CAMPILONGO, 1989; SADEK, 2010) que criam obstáculos ao acesso à posse.

Para tanto, faz-se necessária a busca de compreensão interpretativa institucional sob duas peculiaridades: a) a interpretação revela o interior da dualidade que rege as teorias da posse de que opõe sujeito e objeto; b) esta interpretação coloca o homem como o centro e reproduz a lógica da terra como mercadoria (BELCHIOR, 2017). Nesse sentido, cabem as palavras de Peter Häberle sobre a interpretação, em um exercício de pensar a política institucional: “quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelos menos por co-interpretá-la” (HÄBERLE, 1997). Essa interpretação institucional personificada pelo Judiciário proporcionará uma perspectiva jurídico-cultural, não só do texto, ou da própria história do acesso à terra, mas também as retóricas de sobrevivência dos homens e mulheres do campo.

A interpretação judicial e os seus limites devem levar a uma reserva de consistência, que é a exigência de expor argumentos persuasivos e convincentes, do acerto da interpretação judicial (STRECK, 2003). A atividade judicial não é só convencer a sociedade que realizou a decisão mais acertada, para além disso, subsistirá a todo momento a responsabilidade da jurisdição, que municia, em geral, a última palavra a respeito de hermenêutica jurídica sobre os conflitos coletivos pelo acesso à terra.

Nessa perspectiva, as ocupações de terras pelos movimentos sociais se dão justamente para questionar esse direito: ora, se a terra não cumpre a sua função socioambiental e, muitas vezes, a propriedade dessa é destrutiva, qual o sentido desse direito, em uma sociedade democrática que busca a eliminação das desigualdades, um meio ambiente saudável e equilibrado, soberania alimentar (num contexto de patenteamento da vida) e justiça social?

E a resposta do Estado para essas ações estratégicas é uníssona, conforme percebemos de uma das decisões de reintegração de posse encontradas na Pesquisa citada: “a inviolabilidade da propriedade está garantida na Constituição Federal e a proteção ao direito de propriedade está assegurado nos Códigos Civil e de Processo Civil, razão pela qual a liminar há que ser deferida”[6].

E quando muito, percebendo a função socioambiental como princípio que, nas palavras de Vladimir França (1999), “informa, direciona, instrui e determina o modo de concepção jurídica de todo e qualquer princípio e regra jurídica, constitucional ou infraconstitucional, relacionada à instituição jurídica da propriedade”, tem-se decisões como a do Magistrado da Vara Especializada em Direito Agrário do Mato Grosso:

 

“Versam os autos, inequivocamente, sobre conflito coletivo estabelecido em torno da posse de imóvel rural.

A matéria em questão desafia, como já observado na mais atualizada doutrina e mais competente jurisprudência, uma reflexão fundada prioritariamente nos preceitos constitucionais, dentro daquilo que hoje já se conhece como o movimento de constitucionalização do direito.

Assim, as exigências constitucionais que dizem respeito ao direito de propriedade, direito inequivocamente fundamental – já não só de caráter individual, mas social – impõem uma leitura da lei civil sob as luzes e de acordo com a Constituição. Nessa esteira, exsurge a questão da função social da propriedade, que, intrínseca ao exercício do direito de propriedade, salutarmente contamina o consectário da posse que lhe diga respeito.

Não há, pois, como se discutir, na atualidade, qualquer questão possessória sem ferir, por natural, o atendimento ao requisito essencial da função social. Mais que rima, mostra-se como solução das questões possessórias que ocupam a Vara de Conflitos Agrários e parâmetro que norteia os debates possessórios.

Data vênia a entendimentos contrários mostra-se insubsistente qualquer argumento residente na perspectiva de que as questões sociais sejam matéria de polícia. Hoje, mais do que nunca, as questões sociais são de responsabilidade do Estado, por todos os seus órgãos constitutivos. Assim, a questão agrária, bem além de ser “problema do governo” (Poder Executivo), é também questão afeta ao Poder Judiciário.

Ora, a Constituição dispõe regras e, mais que regras, princípios que norteiam a vida dos cidadãos e orientam a atuação do Poder Público, seja por que órgão for. Assim, diz-se que na propositura de um pleito possessório deva o autor declinar e comprovar que no exercício da sua posse preenche os requisitos legais que a Constituição sintetizou na expressão “função social”.

É certo, no entanto, que em ações como a presente não se mostra razoável exigir uma prova completa, exaustiva, desse requisito para o fim de atender ao pedido de concessão liminar. Mas isso não isenta o autor da ação em ao menos indicar que tal se dá. (grifo nosso)

 

Veja, como não se pode exigir prova completa e exaustiva do cumprimento da função socioambiental terra, se a fundamentalidade do direito de propriedade está justamente no uso que o indivíduo faz sobre esse bem? Percebe-se, dessa forma, que o Judiciário está sendo instrumentalizado na proteção de direitos individuais, através de instrumentos legais inadequados, tendo em vista que se protege, notoriamente, o direito de propriedade privada da terra (MARÉS, 2003), em detrimento de direitos coletivos como questiona os movimentos sociais de luta pela terra.

Por isso que a função socioambiental é um instrumento de luta: nesse contexto decolonial, a função socioambiental da terra é uma forma de empoderamento popular para questionar as violências físicas e epistêmicas perpetradas pela Modernidade e, no contexto latino-americano, pela colonialidade, que legitima e autoriza determinados sujeitos sociais a falar, possuir bens, produzir/impor conhecimento, criar normas jurídicas e sociais; enquanto outros sujeitos são subalternizados e autorizados a obedecer (LANDER, 2005).

 

Considerações Finais

Os litígios pela terra expõem os conflitos ecológicos distributivos de maneira a reproduzir a terra como uma simples mercadoria, podendo livremente ser regulada e manipulada pelo capital (MARTÍNEZ-ALIER, 2004). O capital, por sua vez, fomenta a individualidade e privilegia o titular da propriedade, busca o acúmulo de terras e, por consequência, o aumento de riquezas nas mãos de quem já muito detém.

Nesse sentido, a tutela da terra, sob a perspectiva funcional para a sociedade sai da esfera do individualismo de proprietários de terra e se revela como interesse social, onde é dada uma função à terra, e ela ganha posição de um bem que deve ser pensado e utilizado em prol da sociedade (MARÉS, 2010). É o pensar na terra fora da lógica do capital, como forma de vida e de sobrevivência, que os campesinos têm apresentado demandas constantes pela efetivação da prática e pela transformação da realidade de acesso à terra.

Nesse sentido, um dos espaços de luta pela defesa dos direitos desses povos é a arena judicial, na qual o monismo jurídico – que reconhece, apenas, a justiça do Estado e que serve para legitimar a dominação e a subordinação de outros povos marcados por processos históricos de colonização e de profundas desigualdades – e o pluralismo jurídico – utilizado como ferramenta para o desmantelamento do monopólio do Direito Moderno, recolocando em debate essas outras formas de Direito – disputam interesses individuais e coletivos, visões de mundo e projetos de sociedade, muitas vezes, antagônicos (IGREJA; SIERRA, 2020).

Essa reflexão se aprofunda ainda mais quando se verifica como o Estado interpreta e soluciona tais conflitos. Esse papel interpretativo deve ir além de se verificar a norma e as dogmáticas que foram construídas ano após ano para arquitetar uma racionalidade moderna de exploração da terra. Ao contrário, deve alcançar a complexidade da interpretação judicial na resolução dos conflitos coletivos por acesso à terra.

 

Referências

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LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Trad. Por Júlio César Barroso Silva. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

 

MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Fabris, 2003.

 

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[1] Graduada em Direito (2011), Mestra em Direito (2014) e Doutorado em Direito em andamento (2022-), pela Universidade Federal de Goiás. Professora efetiva do curso de graduação em Direito da Universidade Estadual de Goiás, campus Sul – sede Morrinhos/GO, e da Faculdade Metropolitana de Anápolis. [email protected]

[2] Reproduz-se o conteúdo da primeira parte do art. 6º da Constituição portuguesa de 1822: “A propriedade é um direito sagrado e inviolável, que tem qualquer Português, de dispor à sua vontade de todos os seus bens, segundo as leis”.

[3] A colonialidade se trata de um fenômeno histórico, que se estende até dias atuais, e é muito mais complexo que o colonialismo, consistindo na articulação planetária de um sistema de poder ocidental que perdura até hoje (conforme ensina Aníbal Quijano). Esse sistema está embasado em um discurso de inferiorização de grupos humanos, de lugares, de saberes, de subjetividades e abarca não apenas a imposição de uma forma de economia, mas dimensões ontológicas (colonialidade do ser) e epistêmicas (colonialidade do saber), conforme se depreende das leituras de Walter Mignolo, Santiago Castro-Gómez, dentre outros autores decoloniais.

[4] Refere-se a conceito trazido por pensadores decoloniais, como Fernando Coronil e Arturo Escobar, os quais provocam à reflexão da superação do imperialismo eurocêntrico para uma perspectiva pós-desenvolvimentista provocada pela globalização.

[5] O conceito “novos sujeitos de direitos” tem sido pensado e (re)construído criticamente pelos teóricos do Novo Constitucionalismo Latino Americano, com vistas a dar visibilidade aos povos e às comunidades tradicionais, enquanto sujeitos protagonistas dos seus processos históricos e das suas lutas jurídicas. Nesse sentido, são as contribuições de autores como Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega; Rebecca Igreja; Fernando Dantas; dentre outros.

[6] Processo n. 125/2009, com decisão proferida pela juíza Edleuza Zorgetti Monteiro da Silva, da Comarca de Cuiabá.

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