Isonomia para os negros brasileiros: as ações afirmativas como instrumento para alcançar a igualdade material

Resumo: Os negros brasileiros são vítimas de racismo, discriminação e desigualdades que se iniciaram com a diáspora, e a consequente imigração forçada para o nosso país, e perduram até os dias atuais. Acontece que somente após cem anos da abolição da escravatura, com a Constituição republicana de 1988, o Estado brasileiro passou a reconhecer oficialmente as mazelas sofridas histórica e culturalmente pelos negros e busca gradativamente corrigi-las. O principal instrumento para igualar o negro no sentido substancial e extirpar o racismo tem sido a instituição de ações afirmativas (nomenclatura originada nos EUA). Por isso, visamos neste estudo, tratar a respeito dos elementos fundamentais das discriminações positivas (nomenclatura de origem europeia) e discutir as principais espécies que são institucionalizadas legalmente por nosso país (ex.: comunidades quilombolas, inclusão na rede de ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” e o Estatuto da Igualdade Racial). Adotamos na pesquisa o método de abordagem dedutivo, pois partimos de uma concepção geral de ações afirmativas para compreendermos os mecanismos específicos instituídos no plano concreto em nosso país. As metodologias de pesquisa empregadas para a sua elaboração são a histórica, a sociológica, a filosófica e a monográfica.[1]

Palavras-chave: desigualdade – racismo – ações afirmativas

Resumen: Los negros brasileños son víctimas del racismo, discriminación y desigualdades que empezaron con la diáspora, y la consecuente inmigración forzada para nuestro país, y continúan hasta los días de hoy. Ocurre que sólo después de cien años de la abolición de esclavatura, con la Constitución republicana de 1988, el Estado brasileño reconoció oficialmente las injusticias sufridas histórica y culturalmente por los negros y busca gradualmente su corrección. El principal instrumento de igualación del negro en el sentido substantivo y de extirpar el racismo en Brasil son las acciones afirmativas (nomenclatura originada en los E.E.U.U.). Por esto, buscamos en nuestra investigación, tratar al respecto de los elementos fundamentales de las discriminaciones positivas (nomenclatura de origen europea) y discutir las principales especies que son legalmente institucionalizadas en nuestro país. Utilizamos para la elaboración del texto el método de abordaje deductivo, pues partimos de una concepción general de las acciones afirmativas para comprender los mecanismos específicos creados en nuestro país.  Como métodos de investigación utilizamos el histórico, sociológico, filosófico y monográfico.

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Palabras-clave: desigualdad – racismo – acciones afirmativas

INTRODUÇÃO

O   princípio da igualdade é resultado de um longo processo histórico que se inicia na Grécia antiga e culmina nas modernas constituições escritas a partir do século XVIII. Ocorre que em inúmeros textos constitucionais, como o brasileiro, por exemplo, o princípio é inserido apenas considerando o seu aspecto formal, isto é, destacando que todos os indivíduos são iguais perante a lei. Em que pese a indiscutível relevância dessa concepção, ela possui um viés liberal pelo qual as pessoas são “abandonadas a sua própria sorte”, visto que apenas lhes garante a proteção e a isonomia perante a lei, descurando-se que o processo de igualação dos homens passa muito longe da mera representação gráfica de um texto legal. A maior prova da existência de um abismo entre a igualdade formal ou legal e a igualdade substancial ou material é a situação inferiorizada que os negros suportam desde a imigração forçada até a atualidade. Os afro-brasileiros continuam, em sua esmagadora maioria, alijados do direito à regularização das comunidades quilombolas, dos principais postos de trabalho, do ingresso no ensino superior público, sem mencionar o racismo e o preconceito que continuam vitimando-os diariamente[2]. Salientamos que neste texto especificamente não abordaremos a questão das cotas raciais nas universidades públicas, pois pretendemos descrever as principais ações afirmativas efetivamente formalizadas no plano normativo do ordenamento jurídico brasileiro. O presente texto se dividirá em quatro partes: introdução; em seguida, apresentaremos as ações afirmativas como mecanismo de instrumentalização do princípio da igualdade (histórico no Brasil, conceito, objetivos, critérios de aplicação e modalidades); no terceiro item, abordaremos a respeito das principais discriminações positivas de promoção do princípio da igualdade para os negros no país; e, por fim, traremos nossas conclusões reafirmando a necessidade de ampliação e fortalecimento dos direitos dos afro-brasileiros.

1 AÇÕES AFIRMATIVAS NO DIREITO BRASILEIRO

Iniciamos nossos comentários concernentemente às ações afirmativas procurando entender por que é tão relevante tratar delas no processo de inclusão, ressignificação e fortalecimento do papel do negro na sociedade brasileira. Para isto, introduziremos o debate com alguns comentários do Ministro Joaquim B. Barbosa Gomes, do Supremo Tribunal Federal, acerca da relevância da temática para o povo brasileiro (Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 05 fev. 2012):

“O tema é de transcendental importância para o Brasil e para o direito brasileiro, por dois motivos. Primeiro, por ter incidência direta sobre aquele que é seguramente o mais grave de todos os nossos problemas sociais (o qual, curiosamente, todos fingimos ignorar), o que está na raiz das nossas mazelas, do nosso gritante e envergonhador quadro socialou seja, os diversos mecanismos pelos quais, ao longo da nossa história, a sociedade brasileira logrou proceder, através das mais variadas formas de discriminação, à exclusão e ao alijamento dos negros do processo produtivo conseqüente e da vida social digna. Em segundo lugar, por abordar um tema nobre de direito constitucional comparado e de direito internacional, mas que é, curiosamente, negligenciado pelas letras jurídicas nacionais, especialmente no âmbito do Direito Constitucional.”

A partir das palavras introdutórias do autor, evidencia-se que a discussão sobre as ações afirmativas é crucial para a autorreflexão da sociedade deste país, desmistificando a ideia de que somos uma grande democracia racial, na qual brancos, negros, índios e mestiços possuem iguais chances e direitos de um pleno desenvolvimento como seres humanos. Acrescenta-se ainda que o enfrentamento do tema do racismo e da desigualdade estrutural da sociedade brasileira foi, até meados da década de 1990, praticamente olvidado pelos doutrinadores e estudiosos do direito constitucional pátrio.

1.1 Desenvolvimento histórico das ações afirmativas no Brasil

As ações afirmativas foram instituídas inicialmente nos EUA e tiveram seu auge nas décadas de 1960 a 1990. A partir de então, elas foram criadas e executadas em inúmeros países no mundo. No Brasil, o tema das ações afirmativas precisa ser compreendido de uma forma ampla, considerando os estudos históricos, sociológicos e antropológicos relativamente à questão racial[3]. Por um longo tempo, os cientistas dessas áreas classificavam a sociedade brasileira como uma espécie de democracia racial, em virtude da grande miscigenação existente. Podemos citar, como um exemplo clássico da construção dessa teoria da democracia racial, o histórico trabalho de Gilberto Freyre, “Casa Grande & Senzala”, publicado originalmente em 1933.

Na década de 1960, a UNESCO financiou pesquisas desenvolvidas por sociólogos brasileiros, como, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e Florestan Fernandes, e esses começam a questionar se realmente existe a tal “democracia racial brasileira”. A conclusão a que chegaram foi no sentido de que no Brasil existe um racismo dissimulado, que se esconde por detrás da utopia de uma democracia racial. Diferentemente do que ocorre nos EUA, a discriminação baseia-se no fenótipo, e não na ancestralidade. A partir da década de 1970, os estudos acerca do racismo em nosso país se ampliaram e detectaram expressões que não mais se relacionavam com a situação de escravidão. O racismo se transformava numa concepção de verdadeira supremacia racial dos brancos em face dos negros. O assunto permaneceu sem discussão durante o regime militar, até que, sob a influência da Constituição de 1988, o Estado brasileiro reconheceu a situação de exclusão da população negra e iniciou um novo diálogo com ela. Podemos citar como exemplo desse novo olhar, o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que concedeu aos remanescentes das comunidades quilombolas o direito de terem suas propriedades legalizadas e reconhecidas: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, as ações afirmativas entraram de vez na agenda política brasileira. Em 1995, foi criado um grupo de trabalho com o escopo de valorização da população negra. A discussão da temática se intensificou com a participação do país na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, que aconteceu na África do Sul, no ano de 2001. Ainda no mandato de FHC, entrou em vigência o Decreto n.° 4.228, de 13 de maio de 2002, que criou o Programa Nacional de Ações Afirmativas no âmbito da administração pública federal, e a Lei n.° 10.558/2002, que tem por finalidade estabelecer o Programa Diversidade na Universidade no âmbito do Ministério da Educação.

O governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu continuidade ao processo de implementação de ações afirmativas, criando a Secretaria Especial para a Promoção da Igualdade Racial. Esse órgão governamental modificou o sistema do financiamento estudantil, assim como transformou numa realidade o PROUNI, que tem previsão específica de vagas para indivíduos da raça negra. No ano de 2003, o Conselho Nacional de Educação estabeleceu as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira. Em julho de 2009, foi aprovado o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR), que tem como escopo realizar políticas de ação afirmativa visando a reduzir as diferenças raciais que afetaram, durante toda a história brasileira, os indivíduos pertencentes às etnias negra e indígena. No mês de julho do ano de 2010 foi sancionado pelo presidente Lula o “Estatuto da Igualdade Racial”, Lei n.º 12.288, fruto do projeto do Senador Paulo Paim, do PT.  Em nosso ponto de vista, o Estatuto da Igualdade é a principal legislação brasileira, depois da abolição da escravatura em 1888, a oferecer uma quantidade tão volumosa de direitos e garantias aos negros do nosso país[4]. Apesar dos enormes ganhos trazidos pelo Estatuto, ele foi omisso por não ter aprovado a política de cotas raciais nas universidades públicas.

Já na vigência do governo Dilma Rousseff, no seu primeiro pronunciamento público, a ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) Luiza Barros manifestou-se amplamente favorável às cotas para os negros na administração pública, porém nenhuma iniciativa foi tomada para a formalização delas nas instituições do sistema de ensino superior público federal. Apesar dessa omissão ainda não sanada, houve uma importante conquista apresentada pela ministra no mesmo pronunciamento, que foi a adoção de cotas para negros no concurso público para o ingresso na carreira diplomática (Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/01/luiza-bairros-defende-cota-para-negros-em-todas-pastas.html>. Acesso em: 08 jan. 2011).

1.2 Definição, Objetivos, Critérios de Aplicação e Modalidades das Ações Afirmativas

Atualmente são muitos os pesquisadores que estudam o tema das ações afirmativas, por isso encontraremos várias conceituações concernentes ao assunto. Como nosso escopo é o de conhecer as principais iniciativas legalmente instituídas pelo Estado brasileiro, faremos a opção por apresentar o conceito legal trazido no art. 1°, parágrafo único, inciso VI da Lei n.° 12.288/2010, que as definiu como sendo: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”. Essa definição legal deixa claro, que as ações afirmativas podem ser implementadas pelo Estado e pela iniciativa privada, portanto a inclusão e o desenvolvimento dos grupos beneficiados por elas não podem ser restritos a programas oriundos do poder público. Deve existir envolvimento de todo o corpo social para que as discriminações positivas tenham uma vigência temporária e se corrijam definitivamente as distorções historicamente construídas.

O ministro do STF, Joaquim Barbosa (Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 05 fev. 2012) explica claramente os objetivos das ações afirmativas, e traz alguns aspectos que merecem ser apreciados. Como ponto de partida, entender o que foi exposto por ele, é mister compreender que as ações afirmativas redefinem a concepção de igualdade, demonstrando que ela não deve ser concebida unicamente pela ideia da proibição de tratamento desigual dos indivíduos perante a lei (igualdade formal ou negativa). A sua incidência no plano concreto depende de o Estado e a sociedade promoverem a aceitação da diversidade e o pluralismo como forma de transformar conceitos e costumes de discriminação estabelecidos no inconsciente e consciente coletivo de nosso povo (igualdade material ou positiva).

A aceitação da diversidade ocorrerá se conseguirmos atingir com êxito as seguintes metas que o ministro expôs: i) excluir da sociedade a ideia de supremacia e subordinação de uma etnia sobre a outra: enquanto houver neste país a visão de que os indivíduos de cor branca são superiores intelectualmente e culturalmente aos negros, e por isto esses devem aceitar de maneira passiva o vigente modelo de hierarquia social, nunca haverá uma igualdade nas relações sociais e econômicas; ii) a exemplaridade de determinadas espécies de ações afirmativas: algumas espécies de ações afirmativas, como, por exemplo, as cotas no ensino superior ou nos concursos públicos, criarão aquilo que Joaquim Barbosa denomina por “personalidades emblemáticas”. Segundo o Ministro do STF: “(…), elas constituiriam um mecanismo institucional de criação de exemplos vivos de mobilidade social ascendente” (Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 05 fev. 2012). Isso seria muito importante, porque funcionaria como um instrumento de motivação para que maior quantidade de jovens e outras pessoas pertencentes aos grupos excluídos procurassem o processo educativo para alcançar a possibilidade de uma mobilidade econômica e social. Além disso, essa exemplificação auxiliaria na eliminação das barreiras artificiais conhecidas pela expressão inglesa “glass ceiling”[5], implantando a diversidade e ampliando a representação dos grupos discriminados; iii) reconhecimento oficial da discriminação: ao contrário do que os críticos às discriminações positivas defendem, o reconhecimento estatal do racismo e o emprego de mecanismos de igualação social não criam uma sociedade racial. Quando o Estado se presta a tomar tal atitude, ele informa à sociedade a existência de um comportamento social anterior e culturalmente aceito que não pode permanecer vigente. Por isto, é mister entender que o reconhecimento oficial não cria o racismo nem rompe com a ideia de multiculturalismo que uma sociedade deve possuir. O seu fundamento principal é sair da posição de neutralidade e de defesa de uma mera igualdade formal para assumir uma postura de promoção da verdadeira igualdade material, na qual todos os cidadãos de um país tenham oportunidades em igualdade de condições; iv) correção da discriminação pretérita: esse é um objetivo derivado do anterior, pois, ao reconhecer oficialmente o racismo, o Estado afirma que o problema não é recente, expressando que aqueles grupos discriminados suportam as consequências desse comportamento por um longo lapso temporal. Na situação específica dos negros, tais efeitos são por eles suportados a partir do processo de imigração forçada da África para o Brasil, mantendo-se inalterados desde então; v) corrigir a distribuição injusta dos recursos públicos: ao distribuir os recursos públicos igualitariamente sem observar quem são os beneficiários, o Estado reforça o processo discriminatório e excludente. Um exemplo dessa situação é o ingresso de estudantes em universidades públicas no qual o mérito é o seu principal fundamento. O Estado delimita o orçamento para as instituições de ensino superior com o objetivo de financiar para parte da população brasileira a possibilidade de estudar gratuitamente. Ocorre que, como o dinheiro investido não é capaz de beneficiar a todos indistintamente, as universidades públicas precisam criar filtros, cujo principal exemplo é o vestibular. Nesta “corrida” pelas vagas nas instituições públicas, aqueles de condições econômicas mais favorecidas obtêm a maioria dos lugares disponíveis nos cursos de maior visibilidade (ex.: Medicina, Odontologia e Direito), deixando aos indivíduos dos grupos socialmente inferiorizados (ex.: negros e índios) as vagas remanescentes em cursos de menor projeção social (ex.: História, Geografia e Pedagogia).

Essa lógica é absolutamente injusta e fere de morte o princípio republicano de que as instituições públicas de ensino são abertas para todos. Os negros, em sua esmagadora maioria, cursam o ensino fundamental e médio em escolas públicas, enquanto um percentual significativo dos brancos estuda em escolas particulares. No momento do ingresso no ensino superior, a lógica absurdamente se inverte, permitindo que os indivíduos, na sua maioria brancos, oriundos do ensino privado ingressem nas universidades públicas, excluindo os negros do processo educativo superior ou obrigando aqueles que desejam cursar uma graduação a entrar nas faculdades privadas, seja através do PROUNI ou FIES, seja pagando com seus próprios recursos.

Quais são os critérios para a utilização das ações afirmativas? Para apontá-los utilizaremos novamente as lições trazidas pelo Ministro Joaquim Barbosa (Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 05 fev. 2012), que os delimita tendo como escopo atender os requisitos exigidos para a obtenção da igualdade material:

“Aliado a isto, a legislação infraconstitucional deve respeitar três critérios concomitantes para que atenda ao princípio da igualdade material: a diferenciação deve (a) decorrer de um comando-dever constitucional, no sentido de que deve obediência a uma norma programática que determina a redução das desigualdades sociais; (b) ser específica, estabelecendo claramente aquelas situações ou indivíduos que serão “beneficiados” com a diferenciação; e (c) ser eficiente, ou seja, é necessária a existência de um nexo causal entre a prioridade legal concedida e a igualdade socioeconômica pretendida”. (grifos nossos)

Por fim, as ações afirmativas, como será demonstrado no item 3, não se resumem às políticas de cotas. Concretamente previstos pela legislação brasileira estão o reconhecimento e titulação das comunidades quilombolas e o estudo da história da África e do papel dos negros na formação da sociedade brasileira, promovendo o autorreconhecimento e o desenvolvimento da autoestima das pessoas pertencentes a essa etnia. Além destas modalidades previstas normativamente, outras poderiam ser as iniciativas a serem tomadas, como, por exemplo, a instituição de métodos de preferência ou sistema de bônus para a entrada no serviço público ou nas universidades e o incentivo fiscal (ex.: isenção ou redução de alíquotas de tributos) para estimular a iniciativa privada a contratar pessoas pertencentes aos grupos beneficiados.

1.3 Fundamentação Constitucional das Ações Afirmativas

Após a exposição do histórico e das noções mais relevantes acerca das ações afirmativas, mister se faz compreendermos se há em nossa Carta Constitucional o supedâneo para a implementação delas no plano infraconstitucional. Antes de qualquer análise, esclarecemos que a Constituição de 1988 em nenhum dispositivo utilizou o vocábulo “ações afirmativas”. Porém a ausência da sua menção expressa não significou a inexistência de sua previsão no texto constitucional. É fundamental tecer esta explicação, pois as vozes contrárias à sua implementação no direito brasileiro utilizam o argumento de que, como o legislador não usou, no diploma de 1988, a expressão ações afirmativas, elas não teriam sido recepcionadas. Com a devida venia, essa interpretação tem como condão fazer tabula rasa em relação às várias disposições constitucionais que estabelecem claramente hipóteses de discriminações positivas.

Antes mesmo de iniciar o texto constitucional, o preâmbulo da Constituição de 1988 prevê a possibilidade e legitimidade de aplicação de medidas discriminatórias corretivas. O texto do preâmbulo expõe nitidamente que o Estado Democrático de Direito República Federativa do Brasil deve assegurar os direitos individuais e sociais, com o fim de se alcançar a igualdade-justiça, e a aplicação conjunta delas é vital para a construção de uma sociedade fraterna, pluralista, e, principalmente, sem preconceitos.

Em relação ao texto constitucional propriamente dito, no inciso III do art. 1° consta, como um dos fundamentos do Estado brasileiro, a proteção da dignidade humana. Em uma leitura neoconstitucionalista, a preservação da dignidade da pessoa tem como função servir de apoio para as demais formas de proteção do indivíduo. Dessa forma, somente se poderá falar no efetivo zelo da dignidade humana em relação às pessoas pertencentes aos grupos socialmente e economicamente excluídos se o Estado, em conjunto com a sociedade, modificar seus paradigmas, permitindo que eles consigam alcançar verdadeira mobilidade social. Ainda dentro do Título I, que trata dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, destacamos o art. 3°, nos seus incisos I, III, e, principalmente, o IV, que trazem como objetivos fundamentais de nosso país: “I- construir uma sociedade livre, justa e solidária; (…) III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. (grifo nosso)

No título dos Direitos e Garantias fundamentais, o caput do art. 5° menciona duas vezes a palavra igualdade, que em nosso entendimento aparece no seu duplo sentido (formal e material): Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, (…)”. Também no art. 5°, mais especificamente no seu inciso I, o legislador constituinte define a igualdade de gênero ao dizer que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. O art. 6° delimita os direitos sociais, cuja natureza de direitos de segunda geração depende, para a sua concretização, que o Estado atue de forma positiva para que eles possam ser implementados: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

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Para encerrar, podemos ainda citar como dispositivos constitucionais que apresentam a permissibilidade de ações afirmativas para instituí-los, os seguintes artigos:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XX – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;

XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;

XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência;

Art. 37 (…)

VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

III – função social da propriedade;

V – defesa do consumidor;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Art. 68 ADCT. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.”

Esses são alguns dispositivos constitucionais que demonstram a permissibilidade constitucional para a criação de ações afirmativas, pois garantem a alguns grupos desfavorecidos as benesses para que alcancem o pleno desenvolvimento humano, social e econômico.

2 AS AÇÕES AFIRMATIVAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE DOS NEGROS NA ATUALIDADE

2.1 A situação das comunidades quilombolas na legislação pátria

A partir do que foi discutido até o presente momento, verificamos que os negros brasileiros são vítimas de racismo, discriminação e desigualdades que somente após cem anos da proclamação da abolição da escravatura, com a Constituição Republicana de 1988, o Estado brasileiro passou a reconhecer oficialmente e busca gradativamente corrigir. O principal instrumento para a igualação do negro no sentido substancial e extirpar o racismo como temos visto até o momento é a instituição de ações afirmativas. A primeira espécie que passaremos a comentar relaciona-se à proteção das comunidades quilombolas (art. 68 ADCT – CR 1988). Antes de adentrar o tema especificamente, salientamos que até esse último texto constitucional o Estado brasileiro ainda não havia reconhecido tais comunidades, o que nos tornava um dos poucos países do mundo ocidental a não tê-lo feito, além de demonstrar como historicamente o desrespeito e o preconceito em relação aos negros marcou e marca a sociedade brasileira. Assim expõe o art. 68 do ADCT: “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Podemos afirmar que o texto do suprarreferido dispositivo legal é muito importante, pois através dele a questão quilombola ingressou na agenda política nacional, fazendo com que o Estado, e principalmente a sociedade brasileira, descobrisse a existência desses grupos sociais que nunca deixaram de existir no plano concreto, mas foram totalmente ignorados pelo poder público por mais de um século. Outro dado relevante é o de que o texto constitucional permitiu às comunidades a possibilidade de seu reconhecimento conceitual e também territorial, pois, se antes de 1988 muitas delas não compreendiam sua verdadeira significação, passaram a partir daí a procurar o seu reconhecimento formal junto aos órgãos governamentais responsáveis pela sua execução. Ocorre, entretanto, que o art. 68 ADCT apresentou uma visão histórica e retrógrada das comunidades remanescentes de quilombos, que até os dias atuais tem criado dificuldades e acalorados debates para definir o que elas são. Os pesquisadores mais progressistas do tema no país afirmam que o legislador constitucional estabeleceu o referido texto calcado numa concepção cristalizada de quilombo, resgatando a ideia histórica do fenômeno, não acompanhando a evolução de seu significado nos cem anos subsequentes à abolição da escravatura.

Atualmente, o Estado brasileiro ainda expõe midiaticamente uma imagem de atraso e absoluta estagnação dos quilombos, porém ele próprio, através da Fundação Cultural Palmares (corresponsável junto com o INCRA pela certificação, reconhecimento, demarcação e titulação), reformulou o conceito dessas comunidades, conforme se verifica expressamente no art. 2° da Portaria n.° 98, de 26 de novembro de 2007, que as define da seguinte forma: “Para fins desta Portaria, consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com formas de resistência à opressão histórica sofrida”.

A partir dessa nova concepção de quilombo que acompanha o moderno pensamento antropológico, político e jurídico do assunto, é possível observar que, para reconhecimento atual dos quilombos, eles devem possuir três traços fundamentais: a autoatribuição; uma trajetória histórica comum dentro de um território determinado; e a resistência a um processo histórico de opressão. O esclarecimento destas características é relevante, pois desmistifica, que para ser reconhecida hoje como um quilombo, é necessário que a comunidade seja uma sequência ou oriunda da mesma linhagem das comunidades fundadas na vigência do período escravocrata. Outra falsa concepção existente é a de que os quilombos se baseiam primordialmente na manutenção de uma propriedade fundiária, descurando-se de que o principal elemento constitutivo é o autorreconhecimento, baseado numa trajetória histórica comum, que tem como marco precursor o processo de discriminação e desrespeito. Por último, é mister compreender que os quilombos não se resumem a organizações situadas exclusivamente no campo, visto que atualmente verificamos a existência de comunidades em bairros de inúmeras cidades brasileiras, como, por exemplo, em São Paulo-SP, Salvador-BA e Uberlândia-MG.

Em que pese essa conceituação moderna transmitir a intenção de que a presença das características destacadas seja o suficiente para o reconhecimento das comunidades, percebemos que no mundo real o efetivo reconhecimento pelo Estado brasileiro é extremamente burocrático. Há uma “inversão” do ônus da prova, entendendo-se que em princípio nenhuma comunidade é quilombola, devendo aquelas que assim se considerarem comprovar ao poder público a sua existência, quando, ao contrário, como comunidades historicamente constituídas, deveria o Estado de ofício conceder-lhes a certificação e outorga do título.

2.2 As Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que incluíram nos currículos oficiais da rede de ensino a obrigatoriedade da temáticaHistória e Cultura Afro-Brasileira e Indígena

As Leis n.° 10.639/2003 e 11.645/2008 são exemplos de implementação de ações afirmativas no plano educacional. O primeiro texto legal teve como escopo determinar que nas instituições de ensino básico e médio, públicas e particulares, fosse inserido o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira. Essa alteração na Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira foi fundamental no sentido normativo, pois possibilitou aos negros e indivíduos oriundos de outras raças, etnias ou cores conhecer a cultura e a história dos povos africanos em sua origem, com vistas a permitir uma visão de mundo fora do eurocentrismo científico, que predomina em relação aos conteúdos e conhecimentos ofertados. Por sua vez, a Lei n.° 11.645/2008 ampliou normativamente o estudo dos conteúdos insculpidos pela Lei n.° 10.639/2003, incluindo a história e a cultura dos povos indígenas.

Sobre tais textos legais, é mister tecer alguns comentários. Inicialmente cumpre destacar que, em ambos os textos legais, na nova redação do art. 26-A da LDB o legislador apenas mencionou expressamente os níveis fundamental e médio de ensino. Porém, na epígrafe de ambas as leis, o legislador diz que os conteúdos devem ser inseridos no currículo oficial da rede de ensino não determinando os seus níveis, o que leva a crer que a exigência também se estende ao nível superior. Um exemplo que pode ser citado é a criação, pela Pró-Reitoria de Graduação da Universidade Federal de Uberlândia (PROGRAD-UFU), da Comissão interdisciplinar n.° 1.132/2010, com o fulcro de desenvolver ações para incluir, nos projetos pedagógicos dos cursos de graduação, disciplinas vinculadas ao ensino das relações étnico-raciais. Sob o ponto de vista legal, o Estado brasileiro teve o mérito indiscutível de criar a abertura de visão, permitindo não só aos estudantes em geral conhecer outros polos de conhecimento diferentes do europeu/estadunidense, mas também aos próprios negros brasileiros tomar ciência da importância da sua raça e cultura, que na maior parte das vezes é relegada a um plano secundário.

Ocorre, entretanto, que a implementação destes conteúdos tem encontrado inúmeras dificuldades no plano concreto. Isso se deve, por um lado à resistência oriunda de uma concepção racista de que a história da África e o papel dos negros na formação social brasileira não têm nada a acrescentar ao conhecimento dos estudantes brasileiros e, por outro, à carência de recursos humanos, pois não há profissionais suficientemente capacitados para ministrar tais conteúdos. Mas os problemas não terminam aí. Nas discussões realizadas pelos membros da comissão instituída pela UFU, há uma enorme preocupação de que a obrigatoriedade do ensino de tais conteúdos possa transformar essas disciplinas em algo parecido ao antigo Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB), que era obrigatório e que causava uma grande repulsa nos discentes pela sua origem à ligada ditadura militar e a pouca contribuição à formação intelectual.

Conclusivamente, pode-se dizer que, apesar de todos os problemas elencados, o estudo da África, da contribuição dos negros para formação da sociedade brasileira e também das relações étnico-raciais pode significar, se realmente for implementado, um reconhecimento e o início de uma nova visão dos cidadãos afro-brasileiros, começando pelas gerações diretamente atingidas por essas iniciativas.

2.3 A Lei n.° 12.288/2010 – O Estatuto da Igualdade Racial

A Lei n.° 12.288/2010, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, instituiu o Estatuto da Igualdade Racial e alterou algumas leis relativas à proteção racial. Ela se divide em quatro títulos, que tratam respectivamente sobre: I- Disposições Preliminares; II- Dos Direitos Fundamentais; III- Do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial; e IV- Disposições Finais. Infelizmente não poderemos abordar todo o texto legal, em virtude de seu vasto conteúdo, por isso daremos ênfase apenas aos assuntos pertinentes à nossa pesquisa.

O Estatuto da Igualdade tem como concepção o reconhecimento oficial pelo  Estado brasileiro do racismo e visa a garantir à população negra brasileira: a igualdade de oportunidades, a tutela dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos, além de combater a discriminação e outras formas de manifestação da intolerância racial (art. 1°, caput). Outro ponto forte desse diploma legislativo é a apresentação de uma série de conceitos (art. 1°, parágrafo único) objetivando elucidar o próprio texto em relação às suas questões mais relevantes. O referido parágrafo único traz os conceitos de discriminação racial ou étnico-racial, desigualdade racial, desigualdade de gênero e raça, população negra, políticas públicas e ações afirmativas. Para não se correr o risco de desvirtuar o sentido de qualquer dos termos apresentados, far-se-á sua reprodução conforme estabelece o dispositivo supracitado:

“I discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;

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II desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;

III desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais;

IV população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;

V políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais;

VI ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”.

Apenas a título de esclarecimento, entendemos extremamente salutar por parte do legislador a definição do que é a população negra, incluindo nela elementos importantes, como a autodeclaração do indivíduo como um componente classificatório e, também, que são considerados como negros aqueles que se autodeclaram pretos ou pardos, de forma a deixar claro que pessoas compõem esse grupo étnico. Quando se discute a questão das cotas raciais, a elucidação do que é ser negro torna-se fundamental, vez que existe no país uma discussão concernente a pretos e pardos pertencerem ou não ao mesmo agrupamento étnico.

O art. 2° do Estatuto reforça o princípio da igualdade previsto no caput do art. 5° da Constituição da República, ao afirmar que a sociedade e o Estado brasileiro têm o dever de garantir, para todos os cidadãos, a igualdade de oportunidades e o direito de participar socialmente de atividades econômicas, políticas, educacionais, culturais e esportivas, independentemente de etnia ou raça, valorizando assim a dignidade humana de todos os indivíduos. Supletivamente ao princípio da igualdade insculpido no texto constitucional, o Estatuto perfilha-se no sentido de incluir os indivíduos que são vítimas de desigualdades étnico-raciais, valorizando a igualdade étnica e fortalecendo a identidade nacional brasileira, colocando-a acima de pensamentos e juízos de valores segregatórios (art. 3°). O art. 4° do Estatuto da Igualdade define uma série de ações governamentais tendentes a estabelecer a igualdade de oportunidades para a população negra, em face das etnias econômica e socialmente privilegiadas. As frentes principais de atuação são: inserir negros nas políticas públicas de promoção do desenvolvimento econômico e social; fazer uso das ações afirmativas na constituição de programas e políticas governamentais; preparar o Estado brasileiro para enfrentar e resolver problemas de natureza segregatória; modificar a legislação brasileira, ajustando-a para o combate eficaz das desigualdades e discriminações étnico-raciais; construir um novo padrão cultural contrário às desigualdades e discriminação; implementar políticas e programas sociais fundamentados em ações afirmativas, resgatando a dignidade humana em aspectos fundamentais como, por exemplo, educação, saúde, cultura e acesso à justiça. O parágrafo único desse artigo 4° explica que os programas estruturados por meio de ações afirmativas (…) constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País. A Lei n.° 12.288 também prevê nas suas disposições preliminares a criação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), que tem como funções as de organizar e articular a instituição de um conjunto de políticas e ações, com o fim de solucionar, dentro do poder público federal, as desigualdades étnicas porventura encontradas (art. 5° c/c art. 47). Os objetivos do SINAPIR estão insculpidos no art. 48 e são basicamente os seguintes: promover da igualdade étnica e combate às desigualdades de fundo racista, através de ações afirmativas; formular políticas públicas de combate à marginalização e exclusão da população negra; descentralizar as políticas com ações afirmativas para todos os entes federativos; fomentar e promover instrumentos para o estímulo da igualdade étnica; e, também, garantir a eficácia dos instrumentos de ações afirmativas e os resultados pretendidos.

O capítulo II, do Título II do Estatuto, que trata dos direitos fundamentais, apresenta algumas disposições referentes ao tema da educação que merecem destaque. O primeiro direito garantido nessa parte do texto é o de participação efetiva da população negra em atividades educativas, culturais, esportivas e de lazer, contribuindo para o patrimônio cultural de sua comunidade e da sociedade brasileira como um todo (art. 9°). Mas, para que essa participação se torne concreta, todas as instâncias do poder público precisam promover ações com o fim de viabilizar e ampliar o acesso da etnia negra, principalmente dos indivíduos jovens, no ensino gratuito, assim como nas atividades de esporte e lazer (art. 10, incs. I e IV). No que diz respeito aos aspectos educacionais, o Estatuto estabelece a obrigatoriedade do estudo da história geral da África e da população negra no Brasil nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, públicos e privados, observando-se o disposto na LDB (art. 11). Essa medida é bem interessante, pois, ao longo do tempo, trará o reconhecimento da importância da cultura africana e negra na formação cultural, social e econômica de nosso país. Acrescente-se a isso que ajudará os negros a conhecer sua própria história, vez que o processo de formação educacional e cultural vigente não fornece o instrumental necessário para esse autoconhecimento. Sobre a política de cotas nas universidades públicas, o texto do Estatuto quedou silente, havendo apenas a previsão de que o poder público brasileiro adotará programas educacionais sob o fundamento de ações afirmativas. No capítulo dedicado ao tema da promoção da igualdade racial no aspecto laboral, o art. 38, parágrafo sétimo, estabelece como meta do poder público o estímulo às ações que objetivem aumentar o nível de escolaridade e qualificação profissional dos trabalhadores negros de baixa escolarização. Finalmente, ainda sobre o texto legal, consta a previsão financeira no orçamento da União de valores para: estimular a igualdade racial, as pesquisas voltadas para a melhoria das populações negras e o incremento de iniciativas que facilitem o acesso e a permanência das pessoas negras em todos os níveis da educação brasileira (básica, média, técnica e superior). Para finalizar este item, gostaríamos de dizer que o Estatuto da Igualdade Racial, se efetivamente implementado, trará enormes benefícios aos cidadãos afro-brasileiros, porém ele pecou ao não instituir as cotas nas universidades públicas, demonstrando que ainda existe na sociedade brasileira uma resistência fulcrada no preconceito e na concepção de que a exclusão dos negros manterá os brancos na sua posição social privilegiada.

CONCLUSÃO

Após a exposição ao longo de todo o texto, podemos concluí-lo dizendo, inicialmente, que as ações afirmativas, sob todos os aspectos, funcionam como um importante instrumento para a correção das injustiças e violações no plano concreto, porém elas não podem ser eternas ou permanentes. Como vislumbramos no conceito e em outros momentos do texto, elas ajustarão distorções sociais e econômicas, mas, assim que esses desvios deixem de existir, é necessário que a sociedade coletivamente não permita o retrocesso, ou seja, se os fatores de desigualdade desaparecem com as discriminações positivas, o Estado, a iniciativa privada e o corpo social precisam manter o mesmo nível de inclusão e o poder de competitividade nos planos educacional e laboral. Também é necessário informar àqueles que são favoráveis às desigualdades e à manutenção do status quo da maioria absoluta dos negros de nosso país que as ações afirmativas, ao contrário do que pensam, não excluirão ou reduzirão o espaço no setor educacional e de trabalho dos indivíduos que hoje são socialmente beneficiados pelas políticas públicas econômicas e sociais. O que elas farão é a inclusão de uma parcela significativa da população brasileira no ensino superior e no mercado de trabalho, permitindo que esses beneficiados também se tornem pessoas economicamente empreendedoras, convertendo-os em consumidores e empresários que muito contribuirão para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.

 

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Notas:
[1] Texto baseado em parte da tese de doutorado do autor. CUNHA, H. D. de O. Os princípios éticos das políticas públicas de ingresso nas instituições de ensino superior do Brasil. 2011. 354 f. Tese de Doutorado (Doutorado em Educação). Universidad de la Empresa, Montevidéu, Uruguai, 2011

[2] PINHEIRO, E. MPF denuncia professor da UFMA por racismo. Racismo Ambiental, Rio de Janeiro, 22 mar. 2012. Disponível em: < http://www.blogdodecio.com.br/2012/03/21/mpf-denuncia-professor-da-ufma-por-racismo/>. Acesso em: 22 mar. 2012.
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[3] GOMES, J. B.B. (O debate constitucional sobre as ações afirmativas. Mundo Jurídico, Rio de Janeiro. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 05 fev. 2012) afirma que a primeira “ação afirmativa” reconhecida no país se deu através da “Lei do Boi” (Lei n. 5.465/1968), que concedeu benefícios às classes já privilegiadas no Brasil, ou como ocorre em algumas instituições de ensino superior (públicas e privadas), que fornecem cursos de pós-graduação lato sensu com reserva de vagas para promotores e magistrados. Ambos os exemplos trazem situações de ações afirmativas no sentido inverso àquele historicamente esculpido para o tema.

[4]  Como era de se esperar, os setores conservadores brasileiros questionam a validade do Estatuto, chegando ao absurdo de dizer que o Estado não tem qualquer responsabilidade para com os negros, visto que eles próprios contribuíram para o sistema escravista vigente no país por mais de trezentos anos, como o faz, por exemplo, o senador Demóstenes Torres, relator do texto na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, que afirmou que os escravos eram o “principal item de exportação da economia africana” e que a miscigenação ocorrida no Brasil não se deu por estupro, mas sim de “forma muito mais consensual” que os movimentos em defesa dos negros gostariam de admitir. (Disponível em: <http://www.cmconsultoria.com.br>. Acesso em 17 jun. 2010).

[5] A expressão “glass ceiling” tem como ideia o paradigma de que pessoas pertencentes a determinados grupos, como, por exemplo, negros ou mulheres, não devem alcançar certas posições de prestígio e poder na administração pública ou nas grandes corporações.


Informações Sobre o Autor

Helvécio Damis de Oliveira Cunha

Doutor em Educação pela Universidad de la Empresa de Montevidéu – Uruguai; Mestre em Direito das Relações Sociais (subárea de Direito Penal) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor Efetivo da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade Federal de Uberlândia.


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