Resumo: o artigo versa sobre o reconhecimento do Estado de Coisa Inconstitucional – ECI e seus desdobramentos, apresentando-o como importante embasamento axiológico para o combate da violação dos direitos fundamentais, sob o lastro de princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana. Diante das ocorrências de graves e consecutivas inconstitucionalidades, geradas pelas falhas do poder público o presente trabalho objetiva fomentar discussões sobre a efetividade dos direitos fundamentais no que tange ao reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional.
Palavras Chaves: Direito. Constitucional. Estado de Coisas Inconstitucional. Direitos Fundamentais.
Abstract: the article deals with the recognition of the State of Unconstitutional Thing – ECI and its unfolding, presenting it as an important axiological foundation for the fight against the violation of fundamental rights, under the protection of constitutional principles such as the dignity of the human person. In view of the occurrence of serious and consecutive unconstitutionalities, generated by the failures of public power, the present work intends to promote discursions about the effectiveness of fundamental rights regarding the recognition of the unconstitutional state of affairs.
Keywords: Right. Constitutional. State of Things Unconstitutional. Fundamental rights.
Sumário: Introdução; 1. Pressuposto do Estado de Coisas Inconstitucional – ECI. 2. Posicionamento dos Doutrinadores. 3. O ECI e o Direito Brasileiro; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O estudo do Estado de Coisas Inconstitucional – ECI é de salutar importância para corroborar com o aprimoramento do sistema jurídico brasileiro, haja vista, ser este um tema original, atual e que dialoga com várias vertentes constitucionais do direito brasileiro e internacional, no que tange as constantes violações aos direitos fundamentais/direitos do homem, de maneira interdisciplinar.
Ademais, pretende-se, de forma crítica, pesquisar, consolidar, produzir e expandir conhecimentos no que se refere os efeitos e consequências que o reconhecimento do ECI pode trazer para os sistemas jurídicos, bem como, de que forma essa inovação jurídica pode garantir o combate à violação dos direitos fundamentais, tendo como base as experiências trazidas do direito comparado, revelando-se, assim, um trabalho científico de grande valia para o enriquecimento dos estudos constitucionais.
1. PRESSUPOSTO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – ECI
O Estado de Coisas Inconstitucional – ECI (terminologia surgida em 1997, durante uma decisão da Corte Constitucional Colombiana em uma decisão que versou sobre direitos previdenciários), é uma inovação jurídica, que está sendo dialogada por Cortes Internacionais e do Brasil e por renomados doutrinadores e juristas, como Dirley da Cunha Júnior e Carlos Alexandre de Azevedo Campos, José Rodrigo Rodrigues, Lenio Luiz Streck Rocha entre outros. Estes vislumbram o potencial do reconhecimento do ECI para propiciar a direta interferência nas ações do poder público, no que concerne a coibir a violação dos direitos fundamentais em respeito ao principio da dignidade da pessoa humana e aos ditames estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Nessa vereda, salientam Dirley da Cunha Junior e Carlos Alexandre de Azevedo Campos[1] que o ECI é um significativo avanço no combate a violação de direitos fundamentais na medida em que visa propiciar o incremento de soluções estruturais, dialógicas e pactuadas voltadas à superação do lamentável quadro de violação massiva de direitos das populações vulneráveis, tendo em vista as situações de graves e sucessivas inconstitucionalidades geradas pelas falhas do poder público.
A seu turno, o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pela jurisprudência, no direito comparado, já é uma realidade nos ordenamentos jurídicos pátrios de várias nações, utilizado inclusive pela Corte Colombiana e Peruana em situações distintas para resolver problemas relativos à omissão do poder público. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal, ao deferir parcialmente o pedido de medida cautelar formulado no ADPF nº 247/DF, proposta em face da crise do sistema carcerário brasileiro, reconheceu expressamente a existência do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, ante as graves, generalizadas e sistemáticas violações de direitos fundamentais da população carcerária[2].
Neste diapasão, observa-se que o sentido ético-jurídico do Estado de Coisas Inconstitucional ante o princípio da dignidade da pessoa humana figura como um possível pressuposto para a consolidação dos direitos fundamentais dos cidadãos em suas dimensões individuais, sociais e difusas, conforme apregoa Ricardo Maurício Freire Soares.
De acordo com professor Dirley Cunha[3], a Constituição de 1988, revela-se um composto de normas jurídicas fundamentais e supremas, como ensina o inaugura uma etapa de amplo respeito pelos direitos fundamentais e reconhecida efetividade, sobrevala, assim, Dirley da Cunha Júnior[4], que a Constituição deu cristalina amostra de que se preocupou com o ser humano, enaltecendo-o como “fim” para o qual deve se dirigir Estado, este considerado “instrumento” de realização da finalidade daquele. Nesta toada, o art.1, § III da Carta Magna elegeu como um dos seus princípios fundamentos “O princípio da dignidade da pessoa humana”. O referido é considerado um valor constitucional supremo, o centro axiológico da Carta Magna, de onde emanam todos os demais princípios, direitos e garantias constitucionais.
Na acepção mais plena, o princípio da dignidade da pessoa humana participa de quase todas as declarações e tratados internacionais que afirmam direitos humanos, conforme entendimento de Soares[5], a eficácia desse princípio perpassam as decisões de diversos tribunais tornando-se um vetor jurídico, social e político contra a opressão dos Estados e de entidades privadas.
Nesse compasso, assinala Soares [6], que o conceito de dignidade humana se revela atrelado ao impedimento de degradação e coisificação da pessoa. Com efeito, o sentido da dignidade da pessoa humana pode ser também traduzido na impossibilidade de redução do homem à condição de mero objeto do Estado. Nesse sentido, sustenta Mendes[7], que todo ser humano deve ser tratado com igual respeito à sua dignidade. Nesta toada, o Estado tem o dever de proteger todos dos indivíduos que se encontram sob a sua tutela, garantindo, assim, a efetivação dos seus diretos fundamentais, sob o prisma dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proporcionalidade.
Decerto, com o recente reconhecimento de Estado de Coisas Inconstitucional, foi aberto um novo horizonte de possiblidades, demonstrando mais uma vez a evolução dos posicionamentos que estão emergindo no judiciário brasileiro, um verdadeiro ativismo judicial, no sentido de aprimorar as decisões com base no direito justo, atual, no diálogo institucional, no direito pós-positivista, que acompanha e se adequa as mudanças sociais.
2. POSICIONAMENTO DOS DOUTRINADORES
Diversos doutrinadores e pesquisadores nacionais e internacionais se debruçaram sobre a temática, com destaque singular, para os renomados doutrinadores Dirley da Cunha Júnior (Direito Constitucional/ Controle judicial das omissões do poder público/controle de constitucionalidade), Gilmar Ferreira Mendes (Direito constitucional), Ricardo Maurício Freire Soares (Princípio da Dignidade da Pessoa Humana), José Gomes Canotilho (Direitos Fundamentais) e Carlos Alexandre Azevedo Campos (Estado de Coisa Inconstitucional), fontes de notória sabedoria no âmbito constitucional, materializada nas suas brilhantes obras sobre a temática dessa pesquisa.
Para o Professor e jurista Dirley da Cunha Júnior[8], por exemplo, o ECI pode servir pedagogicamente para estimular a adoção de medidas reais efetivas, e provocar debates a respeito da falta ou insuficiência de políticas públicas em determinados setores sensíveis, e proporcionara construção de soluções estruturais dialogadas e concentradas entre os poderes públicos, a sociedade e as comunidades atingidas.
Na seara do Direito muitos são os doutrinadores e juristas que colaboraram para o desenvolvimento e efetivação do direito justo e pós-positivista, nesta senda destaca-se Hans Kelsen, com a Teoria Pura do Direito, e discorrendo com maestria sobre o direito constitucional, Luís Roberto Barroso, José Afonso da Silva, Pedro Lenza, Manoel Gonçalves Ferreira Filho entre outros.
Não se pode olvidar do Jurista Sérgio Fernando Moro, que trata do desenvolvimento e efetivação judicial das normas constitucionais e o inesquecível Teori Zavascki[9] com suas enriquecidas ponderações sobre Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional, traz a tona o papel da Corte, como órgão de cúpula do Judiciário e guardião da Constituição e faz-se essencial sua figuração como marco teórico do presente trabalho.
O jurista Carlos Ayres Britto possui relevantes contribuições, no debate político-jurídico atual sobre o humanismo como categoria constitucional, bem como o doutrinador Daniel Sarmento, que dialoga sobre a Dignidade da Pessoa Humana, suas obras são de fundamental importância para o presente estudo.
Os autores Alexandre Coutinho Pagliarini e Dimitri Dimoulis que explanam sobre o Direito Constitucional e Internacional dos Direitos Humanos, bem como, a professora Flávia Piovesan, apresenta também notáveis estudos na área de Direitos Humanos e Justiça Internacional. A militância de Piovesan, por exemplo, está calcada na concepção de que os direitos humanos representam uma plataforma emancipatória voltada para a proteção da dignidade humana[10]. Nesse cerne, as contribuições de Flávia Piovesan em obras como Direitos Humanos e Justiça Internacional, Temas de Direitos Humanos, Direitos Humanos – Fundamento, Proteção e implementação, demonstram-se fundamentais na consecução do presente projeto.
Por sua vez, Ingo Wolgang Sarlet, no campo da teoria geral dos direitos fundamentais, respectivamente, através das obras a eficácia dos direitos fundamentais e Curso de direitos fundamentais, oferecem valiosos subsídios no tocante à importância das políticas públicas para coibir a violação dos direitos fundamentais.
A seu turno, ministros e doutrinadores de notável saber jurídico não se refutaram de tratar de forma inovadora e coerente da temática dos direitos fundamentais, direitos humanos, vida e igualdade, como Luiz Fux, quando versa sobre Constituição, democracia e direitos fundamentais, Roberty Alexy, em sua obra sobre a Teoria de los Direchos Fundamentales e em especial a Presidente do STF, ministra Carmem Lucia Antunes Rocha (2008, 27p)[11], autora da obra Direito de para todos, quando aduz que “Toda pessoa humana tem o direito de ser identificada e igualada pela sua humanidade e diferenciado, no que constitui a sua individualidade”.
De outro lado, cumpre invocar o magistério autorizado de Miguel Enrique Falla, que trata do Estado de Coisas Inconstitucional no Peru) e Gabriel Bustamante Peña que trata do Estado de Cosas Inconstitucional y políticas públicas e Eduardo Cifuentes Muñoz trata do ECI na Colômbia, obras que oferecem relevantes subsídios para ao embasamento do estudo em epígrafe, na esfera do Direito Constitucional.
3. O ECI E O DIREITO BRASILEIRO
Tema inovador que adentra ao Direito Brasileiro, a Teoria do Estado de Coisas Inconstitucional – ECI teve origem no direito colombiano, por intermédio das ações de tutela, em primeiro grau de jurisdição. Neste país, foi notória a aplicabilidade do ECI para a tutela dos direitos fundamentais no campo do sistema carcerário.
O Estado e Coisas Inconstitucional refere-se à possibilidade da Corte Constitucional do país condenar o próprio Estado a implantar políticas públicas em casos de extrema gravidade estrutural. Assim, após constatar-se a contínua omissão dos Poderes Executivo e Legislativo do país, a Suprema Corte poderá condenar o Estado a uma mudança drástica estrutural.
Carlos Campos aponta três requisitos cumulativos para a constatação do Estado de Coisas Inconstitucional: 1) quando não há mera violação a direito e garantia fundamental de determinadas pessoas, mas afronta generalizada de direitos e garantias de uma parcela da população, há vulnerabilidade massiva de um número significativo de pessoas; 2) quando se verifica que existe “falha estatal estrutural”, ou seja, a inabilidade administrativa, legislativa, orçamentária e até mesmo judicial em garantir a efetivação de direitos fundamentais, ocorrendo justamente o oposto, sua constante violação por culpa do próprio Estado; 3) quando o problema é complexo, não envolve um caso particular e desafia a atuação de diferentes esferas estatais, sendo o remédio igualmente complexo, pois se dirigirá a uma pluralidade de órgãos e visa à correção e implantação de novas políticas públicas.
Tendo em vista a jurisprudência colombiana, no Brasil foi ajuizada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 347, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), firmada por Daniel Sarmento (UERJ) em 2015.
Em sessão realizada na tarde de 09 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar solicitada na ADPF n° 347, que pedia providências para a crise prisional do país, a fim de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão. Os ministros também entenderam que deve ser liberado, sem qualquer tipo de limitação, o saldo acumulado do Fundo Penitenciário Nacional para utilização na finalidade para a qual foi criado, proibindo a realização de novos contingenciamentos.
Por maioria dos votos, a Corte acolheu proposta do ministro Luís Roberto Barroso para determinar à União e ao Estado de São Paulo que forneçam informações sobre a situação do sistema prisional. Vencidos, neste ponto, os ministros Marco Aurélio (relator), Cármen Lúcia e o presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski.
Na ação em epígrafe, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pede que se reconheça a violação de direitos fundamentais da população carcerária e seja determinada a adoção de diversas providências no tratamento da questão prisional do país.
Prima face, a questão central que subsidiou o ADPF n° 347 foi o estado de calamidade pública do sistema penitenciário brasileiro. Neste interim, a peça apresentada ao STF explicita, na acepção mais plena o conceito do ECI bem como as medidas que poderão ser tomadas. Em suma, dos outo pedidos formulados dois foram deferidos: a realização de audiências de custódia e o descontingenciamento das verbas existentes no Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), assim como a proibição de novos contingenciamentos, até que se reconheça a superação do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro.[12]
Nesse diapasão, ainda foi deferida uma cautelar de ofício sugerida pelo ministro Luís Roberto Barroso, para determinar que o governo federal encaminhe ao relator, no prazo de um ano, diagnóstico da situação em termos quantitativos e pecuniários, para que o STF tenha elementos adequados para julgar o mérito.
Conforme ministério de Ada Pellegrini Grinover, 2015, a decisão foi um passo importante no que virá a assinalar uma reviravolta decisiva no controle judicial de políticas públicas no Brasil. A ADPF 347 vem nos lembrar que o controle judicial de políticas públicas não é uma patologia do Judiciário, mas uma realidade social, política e cultural, que o direito processual e o ordenamento jurídico como um todo não podem ignorar, sob pena de falhar nas suas funções de justiça e pacificação social.[13]
Através dessa decisão, de acordo com Izabela Veras Souza Porpino, 2016, uma grande polêmica quanto ao grau de interferência do Poder Judiciário na formulação de políticas públicas e na priorização e alocação de recursos orçamentários como efeito da ponderação razoável entre a tutela aos direitos fundamentais assegurados na Carta Constitucional. De um lado, sustentou-se que a decisão do STF violava o princípio da separação e harmonia dos poderes, bem como a cláusula do financeiramente possível. Por outro, foi arguido a importância do ativismo judicial estruturante para proteção dos direitos fundamentais frente à inércia dos órgãos estatais.[14]
Nesta toada, é cediço que o processo para o controle das políticas públicas exige um procedimento adequado com comandos abertos, sucessivos, entrelaçados e em concordância, porque, em resumo, procura resolver problemas de interesse público que exige uma solução estrutural com a colaboração de todos os entes envolvidos.
CONCLUSÃO
A luz do entendimento jurisprudencial brasileiro os direitos fundamentos, mais do que princípios são verdadeiros norteadores das condutas de toda a sociedade, são valores básicos que se traduzem em verdadeiros alicerces para o equilibro das relações jurídicas e sociais.
No Brasil, o Poder judiciário, em especial detém um magnifico poder de intervenção mediante uma constatação de violação a esses direitos fundamentais, quando provocado. Neste interim, surge a figura do Estado de Coisas Inconstitucional como um instrumento já utilizado e aprovado pelo Direito Comparado, em especial da Colômbia, com a finalidade de garantir a efetivação dos direitos fundamentais, mediante a graves e continuas violações decorrentes de atos praticados por distintas autoridades públicas, agravado pela reiterada inércia dessas mesmas autoridades, bem como falhas estruturais em políticas públicas que envolvam um elevado número de indivíduos.
Em sede do ADPF n° 347, se iniciaram os debates acerca da adoção da teoria do “Estado de Coisas Inconstitucional – ECI” com o julgamento da ADPF nº 347, no qual se reconheceu o estado de calamidade pública em que se encontra sistema carcerário brasileiro, caracterizado pela sistemática e generalizada lesão a direitos fundamentais dos detentos, no qual restou reconhecido a necessidade da adoção do ECI, no que tange a imposição de obrigação de fazer por parte do Poder Executivo no âmbito da política penitenciária, no prisma da garantia dos direitos fundamentais.
Assim, faz-se necessário uma maior atuação por parte do STF no que tange a adoção e efetivação do “Estado de Coisas Inconstitucional – ECI” por parte das decisões que violem os direitos fundamentais, bem como a adoção pela doutrina, jurisprudência e legislação desse instituto que veio para reafirmar os direitos fundamentais já assegurados pela Constituição Federal de 1988.
Informações Sobre o Autor
Deise Emanuele Lima de Menezes Ramos
Advogada Doutoranda em Direito Público Especialista em Direito do Consumidor Especialista em Direito Civil e Processo Civil; Especialista em Gestão de Pessoas e Especialista em Metodologia do Ensino Superior. Sócia do Escritório DM Advocacia e Consultoria Jurídica Professora de Direito Constitucional