Resumo: A abordagem inicia-se com uma breve explanação acerca das atividades jurisdicional, legislativa e executiva, demonstrando os pontos de semelhança e desencontro. Trata também do direito de petição, como forma de provocação da atuação estatal. No segundo momento, aborda-se o instituto jurídico da Reclamação Constitucional, seu disciplinamento na Carta Magna e a possibilidade de sua utilização perante outros Tribunais, utilizando-se dos princípios da simetria e da efetividade das decisões. Palavras chave: Reclamação, Constitucional, Tribunais, jurisdição, petição.
Sumário: 1. A atividade jurisdicional 2. A Reclamação proposta perante o STF e a Reclamação proposta perante outros Tribunais.
1. A atividade jurisdicional
A separação das funções estatais, tradicionalmente, é feita em função legislativa, executiva e jurisdicional.
A função legislativa exercerá, prioritariamente, as atribuições de edição de normas gerais e abstratas, a todos aplicáveis e por todos observadas. A função executiva terá a atribuição preponderante de administrar a coisa pública, apegado à legalidade e moralidade como princípios basilares para sua atuação.
Já a atividade jurisdicional decidirá, diante de um caso concreto de conflito de interesses, em caráter definitivo, o direito aplicável ao caso. O ponto de afastamento entre ela e a atividade legislativa pode ser observado neste momento, tendo em vista que a criação de leis destina-se a atuar diante de hipóteses consideradas em abstrato, para aplicação futura e observância geral.
Maior ponto de contato existe entre as funções executiva e jurisdicional tendo em vista que ambas são exercidas em concreto. Segundo Alexandre Freitas Câmara, tal diferenciação é tão complexa que já houve mesmo quem negasse qualquer distinção substancial entre as duas funções estatais.[1] Ocorre que há divergências que podem ser levantadas para distanciá-los. De início, a função jurisdicional deve ser prestada de forma imparcial, atuando somente mediante provocação, permanecendo inerte até ser incitada.
Naturalmente parcial, a função administrativa revela-se apegada à atividade que desenvolve, podendo ter interesses de natureza econômica ou jurídica. Além do mais, seus atos são passíveis de revogação, anulação e modificação a qualquer tempo, enquanto a sentença, após esgotados os recursos cabíveis, ganha status de coisa julgada. Além disso, a função jurisdicional é substitutiva a dos jurisdicionados, enquanto a administrativa é originária.
Essa tripartição tradicional de funções do Estado está submetida ao sistema de freios e contrapesos, de tutela constitucional, que relativiza a plenitude de tais poderes e atribui a eles atribuições que não pertencem naturalmente ao seu rol de competências.
A Constituição Federal de 1988 destina a atividade jurisdicional aos órgãos do poder judiciário, que para o desempenho de tal mister, gozam das garantias dispostas no art. 95, consistentes na vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios.
Quanto aos jurisdicionados, a mesma Carta Magna expressamente garante o direito de petição, ao definir, no art. 5., XXXIV que “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.
Sendo assim, o direito de petição pode ser caracterizado como forma de provocação do Estado. Segundo José Afonso da Silva, tal direito revela-se pela possibilidade de se invocar a atenção dos poderes públicos acerca de uma situação, podendo ser ainda utilizado para denunciar lesão ocorrida ou para esclarecer ou pugnar por orientações acerca de situações ou temas.
Dessa forma, dentro do direito de petição se insere o direito de solicitar esclarecimentos, de solicitar cópias e certidões e ofertar denúncias de irregularidades. Em decorrência, colhe-se que seu exercício não poderá ser obstado pelos poderes públicos, independente do teor do que se peticiona. Por mais inadequado, ilegal ou impossível que seja o teor peticionado, o exercício do direito não poderá ser restringido, sob pena de violação de garantia constitucional.
Segundo José Afonso, o direito de petição carrega consigo eficácia, no sentido de que deve haver pronunciamento da autoridade a quem foi dirigida, apresentando os motivos que formaram o convencimento para a resposta.[2] Assim, observando-se a ilegalidade ou impossibilidade, tanto formal quanto material do exposto na petição, deverá a autoridade indeferi-la, fundamentando seu convencimento.
Assim, a petição engloba toda e qualquer forma de se dirigir ao Estado. Com a divisão estatal em funções, de natureza legislativa, executiva e jurisdicional, especificaram-se as formas de se buscar as pretensões dirigidas aos poderes. À espécie de petição submetida ao processo judicial, por cuja condução são competentes os órgãos jurisdicionais, deu-se o nome de ação.
2. A Reclamação proposta perante o Supremo Tribunal Federal e a Reclamação proposta perante outros Tribunais
A Constituição Federal de 1988 previu, pela primeira vez em nossa história constitucional, o instituto da reclamação. Em seus arts. 102, I, “l”, 105, I, “f” consagrou-se como competência originária, tanto do STF, quanto do STJ, a de processar e julgar a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões. Estas são as duas hipóteses de cabimento do instituto.
Como se adiantou, o constituinte originário não contemplou expressamente a possibilidade de se propor reclamação perante outros tribunais que não o STF e o STJ. Não obstante, o Supremo, em sede de julgamento da ADI 2.480, j. 02.04.2007, DJ, 15.06.2006, alterou o entendimento até então firmado, na medida em que admitiu a possibilidade da previsão da reclamação na Constituição Estadual para o controle de constitucionalidade em âmbito estadual. Vale registrar que se chegou a tal entendimento com base nos princípios da simetria (art. 125, caput, e §1º) e da efetividade das decisões judiciais, bem como a partir da compreensão de sua natureza jurídica como derivação do direito de petição (art. 5º, XXXIV, CF). Colaciono o entendimento, de forma ementada:
“Ação direta de inconstitucionalidade: dispositivo do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (art. 357), que admite e disciplina o processo e julgamento de reclamação para preservação da sua competência ou da autoridade de seus julgados: ausência de violação dos arts. 125, caput e § 1º, e 22, I, da CF. O STF, ao julgar a ADI 2.212 (Pleno, 2-10-2003, Ellen Gracie, DJ de 14-11-2003), alterou o entendimento – firmado em período anterior à ordem constitucional vigente (v.g., Rp 1.092, Pleno, Djaci Falcão, RTJ 112/504) – do monopólio da reclamação pelo STF e assentou a adequação do instituto com os preceitos da Constituição de 1988: de acordo com a sua natureza jurídica (situada no âmbito do direito de petição previsto no art. 5º, XXIV, da CF) e com os princípios da simetria (art. 125, caput e § 1º) e da efetividade das decisões judiciais, é permitida a previsão da reclamação na Constituição Estadual. Questionada a constitucionalidade de norma regimental, é desnecessário indagar se a colocação do instrumento na seara do direito de petição dispensa, ou não, a sua previsão na Constituição estadual, dado que consta do texto da Constituição do Estado da Paraíba a existência de cláusulas de poderes implícitos atribuídos ao Tribunal de Justiça estadual para fazer valer os poderes explicitamente conferidos pela ordem legal – ainda que por instrumento com nomenclatura diversa (Constituição do Estado da Paraíba, art. 105, I, e e f). Inexistente a violação do § 1º do art. 125 da CF: a reclamação paraibana não foi criada com a norma regimental impugnada, a qual – na interpretação conferida pelo Tribunal de Justiça do Estado à extensão dos seus poderes implícitos – possibilita a observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, como exige a primeira parte da alínea a do art. 96, I, da CF. Ação direta julgada improcedente.”[3]
No que toca, inicialmente, ao objeto da reclamação (preservar a competência da corte e garantir a autoridade de suas decisões) este, genericamente falando, em observância ao próprio princípio da simetria, será o mesmo para todos.
Ocorre que, em decorrência da eficácia das decisões do Supremo, em sede das ações objetivas de constitucionalidade, a reclamação proposta no citado tribunal terá contornos diferentes em relação às interpostas perante os demais tribunais (STJ e TJ’s).
Primeiramente, no que toca à legitimidade para a propositura da reclamação, com fundamento no art. 103, l, da CF, consoante entendimento do STF, consagrado desde o julgamento do agravo regimental que entendeu pela constitucionalidade do p.u. do art. 28 da Lei n.º 9.868/99, será parte legítima todos aqueles que forem atingidos por decisões contrárias ao entendimento firmado pela Suprema Corte no julgamento de mérito proferido em ação direta de inconstitucionalidade[4].
Como se vê, a partir do citado julgado, houve uma ampliação do conceito de parte interessada, em decorrência dos reflexos processuais da eficácia vinculante do acórdão a ser preservado.
Ademais, a legitimidade para a propositura da reclamação ganhou maior amplitude com a nova redação conferida ao art. 102, §2º, da CF, pela EC n.º 45/2204, no sentido de que:
“as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.”
Outra novidade trazida pela Reforma do Judiciário foi a possibilidade de propositura de reclamação para garantir a autoridade de decisão do Supremo expressa em súmula vinculante.
Citada inovação trouxe, ainda, a admissibilidade de reclamação não mais apenas contra ato judicial, em desconformidade com o entendimento da corte, mas também da propositura do citado instituto contra ato da Administração em desconformidade com súmula vinculante. Ampliou-se, como se vê, ainda mais a perspectiva do instituto.
Do exposto, percebe-se que a reclamação proposta perante a Corte Constitucional apresenta peculiaridades não encontradas nas interpostas nos outros tribunais. As diferenças (legitimados e objeto) decorrem, justamente, da eficácia vinculante das decisões do Supremo em sede de controle de constitucionalidade, bem como da prerrogativa da citada Corte de aprovar súmulas vinculantes.
O entendimento precursor proferido pelo Supremo Tribunal Federal admitindo o instituto da Reclamação perante outros tribunais deu-se na ADI nº 2212[5], abaixo colacionada:
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 108, INCISO VII, ALÍNEA I DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO CEARÁ E ART. 21, INCISO VI, LETRA J DO REGIMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. PREVISÃO, NO ÂMBITO ESTADUAL, DO INSTITUTO DA RECLAMAÇÃO. INSTITUTO DE NATUREZA PROCESSUAL CONSTITUCIONAL, SITUADO NO ÂMBITO DO DIREITO DE PETIÇÃO PREVISTO NO ARTIGO 5º, INCISO XXXIV, ALÍNEA A DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO ART. 22, INCISO I DA CARTA. 1. A natureza jurídica da reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal. Em consequência, a sua adoção pelo Estado-membro, pela via legislativa local, não implica em invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I da CF). 2. A reclamação constitui instrumento que, aplicado no âmbito dos Estados-membros, tem como objetivo evitar, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, o caminho tortuoso e demorado dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente inconvenientes quando já tem a parte uma decisão definitiva. Visa, também, à preservação da competência dos Tribunais de Justiça estaduais, diante de eventual usurpação por parte de Juízo ou outro Tribunal local. 3. A adoção desse instrumento pelos Estados-membros, além de estar em sintonia com o princípio da simetria, está em consonância com o princípio da efetividade das decisões judiciais. 4. Ação direta de inconstitucionalidade improcedente.”
O entendimento do Supremo exarado em tal julgamento reconhece a constitucionalidade do dispositivo da Constituição do Estado do Ceará que contemplou, no âmbito estadual, o instituto da reclamação.
A pedra de toque da questão encontra-se na natureza jurídica do instituto, que se situa no âmbito do direito constitucional de petição, previsto no art. 5º, XXXIV, alínea “a”, da Constituição de 1988, que preleciona:
“XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”.
Definida a natureza da reclamação, não merece prosperar qualquer argumento no sentido da inconstitucionalidade formal, com base no argumento de que, nos termos do art. 22, I da Constituição compete privativamente a União legislar sobre direito processual.
Por outro lado, valendo-se das Palavras de Ada Pelegrinni, reproduzidas no voto da relatora, tem-se que o objetivo da reclamação é “postular perante o próprio órgão que proferiu uma decisão o seu exato cumprimento”. Desta feita, lançando-se mão do princípio da simetria, os Estados, na organização de sua justiça, conforme lhe incumbiu o art. 125, caput, da Carta Política, por meio de suas respectivas constituições, poderão adotar, assim como o STF e o STJ, o instituto da reclamação.
Entende-se, assim, que o instrumento da reclamação, no âmbito estadual, visa justamente concretizar o disposto no caput do art. 125 da Constituição, conferindo eficácia às decisões proferidas pela Corte Estadual.
Ademais, como bem evidenciou a ministra Ellen Gracie, de acordo com a Carta Magna (caput, art. 125), os Estados organizarão sua justiça observando os princípios estabelecidos na Constituição. Quanto ao ponto, vale reproduzir trecho do voto da citada jurista: “o instituto da reclamação traz em seu bojo um princípio que deve ser seguido pelos Estados-membros no âmbito de suas competências, que é o princípio da efetividade das decisões judiciais”.
Por fim, é forçoso concluir que o dispositivo da Constituição cearense, que contemplou o instituto da reclamação, adequa-se aos preceitos da atual Carta Política, vez que, compreendido como derivação do direito de petição, realiza os princípios da simetria e da efetividade das decisões judiciais.
Informações Sobre o Autor
Gabriela Pereira Franco
Procuradora Federal, Coordenadora Estadual da PFE/IBAMA-DF, Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília. Brasília/DF