Preceitos do Estado de direito ambiental no contexto da Constituição Federal de 1988

Resumo: O objetivo deste trabalho é examinar a relação entre os preceitos de uma proposta de Estado de direito ambiental e o conteúdo das normas de proteção ecológica trazidas pela Constituição Federal de 1988, ou seja, analisar como os objetivos e princípios do Estado de direito ambiental estão inseridos no texto constitucional. No que se refere à metodologia empregada na pesquisa, o método de abordagem adotado foi o indutivo. Entre os tipos de pesquisa, esta se enquadra como pesquisa qualitativa e exploratória. E como técnica de pesquisa, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, analisando-se fontes bibliográficas e documentais com base em definições teóricas. Conclui-se que o Estado de direito ambiental significa um paradigma interpretativo para a constituição, podendo ser entendido como uma proposta de modelo estatal ecológico. Percebe-se que a Constituição Federal de 1988 funciona como um elemento de integração do direito ambiental, como um instrumento de combate à fragmentação da interpretação normativa, visando uma proteção sistêmica do meio ambiente, efetivada com base em um sistema de normas infraconstitucionais integradas pelas normas constitucionais.

Palavras-chave: Estado de Direito Ambiental; Constituição Federal de 1988.

Abstract: The objective of this paper is to examine the relationship between the precepts of an environmental law State proposal and the content of the ecological protection norms brought by the Federal Constitution of 1988, that is, to analyze how the objectives and principles of the environmental law State are inserted in the constitutional text. Regarding the methodology used in the research, the approach method adopted was the inductive method. Among the types of research, this is a qualitative and exploratory research. And as a research technique, bibliographic research was used, analyzing bibliographical and documentary sources based on theoretical definitions. It is concluded that the environmental law State means an interpretative paradigm for the constitution, and can be understood as a proposal of an ecological state model. It is perceived that the Federal Constitution of 1988 acts as an element of integration of the environmental law, as an instrument to combat the fragmentation of normative interpretation, aiming at a systemic protection of the environment, made effective based on a system of infraconstitutional norms integrated by the constitutional norms.

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Keywords: Environmental law State; Federal Constitution of 1988.

Sumário: Introdução. 1. Objetivos do Estado de direito ambiental. 2. Princípios constitucionais de caráter ambiental. 3. Deveres constitucionais ambientais do Estado e da sociedade. 4. Interpretação e aplicação das normas constitucionais ambientais. 5. Visão integrada do direito constitucional ambiental. Conclusão. Referências.

Introdução

Neste trabalho, analisa-se como a interpretação e aplicação das normas de proteção ecológica podem tornar efetivos os preceitos da proposta paradigmática do Estado de direito ambiental, no contexto da Constituição Federal de 1988, por meio da aproximação entre normas constitucionais ambientais e a efetividade dos objetivos e princípios do Estado de direito ambiental.

A importância do estudo de tal questão reside no fato de que se pode contribuir para a adequação do direito em relação aos problemas ecológicos através da busca de maior conformidade do direito – bem como do exercício dos poderes e deveres do Estado – com os objetivos do Estado de direito ambiental. Quanto a esses poderes do Estado, o texto constitucional elencou os deveres que cabem ao poder público no que se refere à defesa do meio ambiente, a fim de que tais deveres sirvam de freio aos poderes estatais.

O objetivo deste trabalho é examinar a relação entre os preceitos de uma proposta de Estado de direito ambiental e o conteúdo das normas de proteção ecológica trazidas pela Constituição Federal de 1988, ou seja, analisar como os objetivos e princípios do Estado de direito ambiental estão inseridos no texto constitucional.

No que se refere à metodologia empregada na pesquisa, o método de abordagem adotado foi o indutivo. Entre os tipos de pesquisa, esta se enquadra como pesquisa qualitativa e exploratória. E como técnica de pesquisa, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, analisando-se fontes bibliográficas e documentais com base em definições teóricas. Conclui-se que, por mais integração que contenham os textos normativos, se não houver a interpretação integrada na produção de textos decisórios, não existirá a proteção jurídica integrada do meio ambiente.

1. Objetivos do Estado de direito ambiental

O Estado de direito ambiental é um conceito de cunho abstrato, que visa funcionar não como um alvo a ser atingido através de alterações no funcionamento do governo, mas como um ponto de referência para um caminho a ser seguido por essas alterações. Modificações que possam tornar o Estado mais ciente de suas responsabilidades ambientais durante a tomada de decisões, de maneira que a proteção ecológica seja um dos elementos considerados em uma conciliação entre interesses relacionados ao desenvolvimento da economia e da sociedade.

O Estado de direito ambiental é, segundo Leite et al.,  uma construção teórica para um novo paradigma, ou seja, a proposição de um modelo estatal ambientalmente orientado, como uma proposta de exploração de outras possibilidades, que recusa o fechamento do horizonte de expectativas e possibilita a visualização de alternativas, para uma melhor compreensão das exigências da sociedade moderna, diante do agravamento da crise ambiental (2012, p. 22). O Estado de direito ambiental é um enunciado – fundado em preceitos democráticos, sociais, ambientais e constitucionais – cuja edificação serve para conduzir o ordenamento jurídico em uma direção mais sustentável (LEITE et al., 2012, p. 41).

Uma nova relação com a natureza constitui o ponto de partida para a edificação desse enunciado, que, de acordo com Ferreira e Ferreira, se consolida como uma proposta com “elementos jurídicos, sociais e políticos na persecução de uma condição ambiental capaz de favorecer a harmonia entre os ecossistemas e, consequentemente, garantir a plena satisfação da dignidade humana” (2010, p. 202-203). Apesar desse modelo estatal ser, conforme Leite e Belchior, “uma abstração teórica, o tratamento que a lei fundamental de um determinado país confere ao meio ambiente pode aproximar ou afastar o seu governo dos avanços propostos pelo Estado de Direito Ambiental, servindo de meta e parâmetro para este” (2010, p. 304).

Contudo, para Candemil, não há como imaginar a consolidação de um Estado de direito ambiental “que continue mantendo o padrão de exclusão e discriminação social, próprio das sociedades capitalistas e consumistas, pois foi este modelo de sociedade que rumou ao abismo da atual crise ambiental” (2012, p. 37). Assim, o mesmo se trata de um processo de esverdeamento do Estado, que, conforme Leite et al., visa atualizar e aperfeiçoar sua própria estrutura e racionalidade tradicionais, além de transformar a “própria sociedade, a qual, ao tomar conhecimento do quadro de crise ambiental, participa, exige e adota métodos voltados à busca do equilíbrio ecológico como (um dos) requisito(s) essencial(ais) à sadia qualidade de vida” (2012, p. 53).

Atingir os objetivos do Estado de direito ambiental não necessariamente solucionaria os problemas ecológicos, porém essa discussão é útil para expor as limitações das concepções clássicas, pois conhecendo o estado de crise é possível adotar medidas jurídicas adequadas para interferir na qualidade da proteção do meio ambiente (LEITE et al., 2012, p. 25). Dessa forma, em busca de maior conformidade do direito com os objetivos do Estado de direito ambiental, encontra-se a adequação do direito em relação aos problemas ecológicos.

Do mesmo modo, o aporte constitucional da norma ambiental traz a reflexão jurídica sobre a construção de um Estado mais apto a gerir os riscos ambientais, a fim de identificar as carências e deficiências jurídicas que possam interferir na qualidade da proteção tradicional do meio ambiente (LEITE et al., 2012, p. 8). Com base no art. 225 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), analisam-se os objetivos do Estado de direito ambiental, que se entrelaçam, sendo impossível efetivá-los isoladamente (LEITE et al., 2012, p. 36).

Cinco objetivos desse modelo estatal são apontados por Leite et al. (2012, p. 23-24): 1) propiciar uma maior compreensão do meio ambiente; 2) desenvolver um conceito integrativo de direito ambiental; 3) estimular a formação da consciência ambiental; 4) favorecer a adoção de mecanismos mais compatíveis com a natureza diferenciada dos problemas ambientais; e 5) viabilizar instrumentos capazes de garantir um nível de proteção adequado ao meio ambiente.

Os objetivos citados podem ser melhor entendidos da seguinte maneira:

1) Diante da omissão do constituinte, que se refere ao meio ambiente sem especificar seus elementos constitutivos, conclui-se que o texto constitucional utiliza o conceito estabelecido pelo art. 3º, I, da Lei 6.938/81, que considera “o meio ambiente como um conjunto de condições e de fatores essenciais ao desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas” (LEITE et al., 2012, p. 32-33).

2) A ausência de um direito ambiental integrativo pode interferir no exercício do dever de proteção ambiental, pois, consoante Leite et al., “a fragmentação do direito implica uma fragmentação do próprio meio ambiente, ou seja, perdendo-se a noção de integralidade da norma ambiental, perde-se automaticamente a noção do meio ambiente como bem integrado” (2012, p. 35). A defesa do meio ambiente, concebido como unitário e indivisível, requer abordagens jurídicas multitemáticas, capazes de incorporar sua amplitude, visto que, segundo Leite et al., a perda de uma noção integrada “faz com que o ambiente volte a ser considerado a partir de seus elementos constitutivos. Dessa forma, esvazia-se a visão sistêmica que origina um todo considerado maior do que a simples soma de suas partes” (2012, p. 35).

3) Para viabilizar a tomada de consciência ambiental, o art. 225, §1º, VI, da CF/88, determinou o dever estatal de promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino, enquanto que o art. 5º, I e III, da Lei 9.795/1999, estabeleceu, entre as finalidades da Política Nacional de Educação Ambiental, “o desenvolvimento de uma concepção integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações e o fortalecimento de uma consciência crítica sobre a problemática ambiental” (LEITE et al., 2012, p. 36).

4) Conforme Leite et al., o art. 225, § 1º, V, da CF/88, instituiu o dever de “assegurar o direito fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado, controlar o desenvolvimento de atividades que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o ambiente” (2012, p. 37).

5) O art. 225, §1º, da CF/88, impôs o dever de exigir a realização do Estudo Prévio de Impacto Ambiental para todas as obras e atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental, mediante avaliação integrada dos possíveis riscos (LEITE et al., 2012, p. 38).

Diante dessa análise, verifica-se que a CF/88 busca concretizar os objetivos do Estado de direito ambiental, a fim de aproximar o país de um modelo estatal ambientalmente mais orientado e promovendo melhoria na qualidade da proteção jurídica do meio ambiente, por meio de uma elaboração e aplicação da norma ambiental que observem, como dito por Leite et al., o núcleo normativo do direito ambiental brasileiro, presente no texto constitucional (2012, p. 39-40). Afastando o paradigma antropocêntrico tradicionalista e ultrapassando a concepção de dignidade como condição limitada à vida humana, a CF/88 aproximou o país dos avanços propostos pelo Estado de direito ambiental, que de acordo com Leite et al., visam assegurar a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado (2012, p. 42-43).

Percebe-se, então, que a CF/88 funciona como um elemento de integração do direito ambiental, como um instrumento de combate à fragmentação da interpretação normativa, visando uma proteção sistêmica do meio ambiente, efetivada com base em um sistema de normas infraconstitucionais integradas pelas normas constitucionais. O Estado de direito ambiental significa um paradigma interpretativo para a constituição, podendo ser entendido como uma proposta de modelo estatal ecológico.

2. Princípios constitucionais de caráter ambiental

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência brasileira, segundo Sarlet e Fensterseifer, reconhecem o direito ao ambiente como direito fundamental, “mesmo que a questão ambiental não tenha sido incluída direta e expressamente no elenco dos direitos e deveres fundamentais do Título II da CF88” (2013, p. 325). Embora o direito ao ambiente não esteja contido no rol de direitos fundamentais do Título II, a função social da propriedade é tratada no art. 5º, enquanto a função social ambiental está delimitada no art. 186, II.

Além disso, percebe-se que a CF/88, em seu art. 225, § 1º, V, citado anteriormente, trata o direito ao ambiente equilibrado como direito fundamental, utilizando expressamente esse termo. Logo, como um direito reconhecidamente fundamental, à proteção ecológica se aplicam os princípios contidos no texto constitucional de forma explícita, como o princípio da solidariedade, e implícita, como o princípio da proibição do retrocesso ecológico.

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A proibição de retrocesso – que consiste em um princípio constitucional implícito, de acordo com o entendimento consolidado na doutrina – diz respeito a uma garantia de proteção dos direitos fundamentais contra a atuação do legislador e do gestor público, quando estão em causa medidas que visem à supressão ou restrição desses direitos, preservando o bloco normativo, constitucional e infraconstitucional, já construído e consolidado no ordenamento jurídico (SARLET; FENSTERSEIFER, 2013, p. 288). Candemil o relaciona com os demais princípios, ao afirmar que o Estado de direito ambiental “tem apoio nos pilares das funções social e ecológica da propriedade, na solidariedade intra e intergeracional e no princípio da proibição do retrocesso”, não havendo níveis de hierarquia entre esses pilares (2012, p. 36).

O princípio da proibição do retrocesso ecológico, de acordo com Leite et al., procura evitar o recuo injustificado de normas e de medidas que estabeleçam um nível de proteção jurídica adequado ao meio ambiente, portanto, garantindo uma zona de proteção que não recua para níveis inferiores aos anteriormente consagrados (2012, p. 30-31). Esse princípio da solidariedade é às vezes denominado de princípio da equidade entre gerações, notando-se que se tratam essencialmente do mesmo princípio por ambos derivarem do valor fraternidade.

Sob as diretrizes da CF/88, o Estado brasileiro se amolda aos contornos do Estado de direito ambiental, que para LEITE et al., tem “o princípio jurídico da equidade intergeracional como seu núcleo irradiador, inspirado no valor político da fraternidade, terceiro lema da Revolução Francesa” (2012, p. 81-82). De acordo com Sarlet e Fensterseifer, a edificação do Estado de Direito Ambiental tem como fundamentos a democracia participativa e o princípio da solidariedade, que expressam a necessidade de cooperação no corpo social (2013, p. 56).

Na democracia ambiental “não apenas os Estados e os representantes do povo atuariam (democracia formal representativa), mas também os cidadãos, Organizações não governamentais e Organizações Internacionais de proteção ao meio ambiente. Destaca-se que a participação como forma de gestão de problemas ambientais é impossível se dissociada de processos de conscientização e informação. O desenvolvimento de novos padrões cognitivos, fundamentados na complexidade do meio ambiente, permitirá a reconstrução de pensamentos e práticas voltados para uma relação mais adequada e amiga com a natureza” (LEITE et al., 2012, p. 177).

Para a concretização de seus objetivos, o Estado de direito ambiental precisa de uma composição mista de participação pública nas decisões e acesso às informações necessárias para atingir uma tomada de consciência e emitir opiniões sobre o tema (AYALA, 2002, p. 45). A possibilidade de participação dos cidadãos nos processos relevantes para a proteção ambiental surge, conforme Leite et al., como consequência do direito de proteger interesses fundamentais transindividuais e “como resultado do reconhecimento de que a preservação do meio ambiente, considerado em sua dimensão integrada, deve articular-se de forma integrativa e, portanto, compartilhada” (2012, p. 22).

A cidadania ambiental – uma noção de cidadania centrada na participação ativa do cidadão – não se satisfaz na ausência de democracia, porém, os modelos democráticos liberais e suas fórmulas de representação de interesses revelam-se insatisfatórios ao se reconhecer uma sociedade com responsabilidade ambiental, e nesse contexto a democracia “afasta-se do princípio da soberania popular passiva e de sua essência puramente representativa para criar espaços públicos de decisão e então renascer como democracia ambiental” (LEITE et al., 2012, p. 140-141). O princípio da solidariedade diante dos demais princípios, entre eles o da cidadania, pode ser entendido como uma base para os outros. Consoante Leite e Belchior, “Há princípios estruturantes do Estado de Direito Ambiental, como o da precaução, o da prevenção, o da responsabilização, do poluidor-pagador, da participação, da cidadania, o princípio da democracia, o princípio da informação, o princípio da proibição do retrocesso ecológico e o princípio do mínimo existencial ecológico. No entanto, ao analisar todos esses princípios, percebe-se que a solidariedade acaba inserida, seja de forma transversal, seja direta, em todos os demais. Por conta disso é que o princípio da solidariedade é o fundamento teórico-jurídico do Estado de Direito Ambiental, ou seja, um dos princípios fundantes do novo paradigma estatal, o que não exclui, por conseguinte, os demais” (2010, p. 304-305).

Tendo o Estado Liberal incorporado como principal bandeira o valor liberdade e o Estado Social, a igualdade, o Estado Ambiental procura enfrentar o individualismo e o patrimonialismo deixados pelo liberalismo, incorporando o valor solidariedade, ou seja, adotando o terceiro dos ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade) (LEITE et al., 2012, p. 55). Fundada neste princípio da solidariedade, a responsabilidade compartilhada pelo meio ambiente sadio busca constituir a cidadania ambiental, que consoante Leite et al., vai além da geração presente – como uma cidadania global intergeracional –, devendo ser exercida em termos planetários, atravessando fronteiras, tanto pela integralidade do meio ambiente, e dos interesses a ele relacionados, quanto pela globalidade dos problemas ambientais (2012, p. 36, 65, 70).

Nota-se, no Estado de direito ambiental, o enlace de todos os elementos do Estado, de forma que se permita uma articulação de poderes (soberanias) voltada à proteção ecológica para além das fronteiras nacionais (territórios) no interesse das gerações presentes e futuras (povo) (LEITE et al., 2012, p. 71). Quanto a esses poderes do Estado, foram estabelecidos no texto constitucional os deveres que cabem ao poder público no que se refere à defesa do meio ambiente, a fim de que tais deveres sirvam de freio aos poderes estatais.

3. Deveres constitucionais ambientais do Estado e da sociedade

Uma vez que a constituição estabelece a mecânica governamental básica, orientando o funcionamento do Estado, Benjamin afirma que a constitucionalização da proteção ambiental legitima, facilita e obriga “a intervenção estatal, legislativa ou não, em favor da manutenção e recuperação dos processos ecológicos fundamentais” (2011, p. 94). Com base no tratamento constitucional dado ao ambiente – de bem de uso comum do povo –, tem-se a concepção do Estado gestor do patrimônio ambiental (que é de toda a sociedade), em que o Poder Público não é proprietário de bens ambientais, mas administrador de bens que não são dele, tendo, portanto, conforme Sarlet e Fensterseifer, o dever de explicar sua gestão, prestando contas da adequação e suficiência das medidas adotadas para a tutela ecológica (2013, p. 279-280).

Os direitos ecológicos têm estrutura de direito-dever, limitando os direitos de seu titular a fim de ajustar o seu exercício ao comando constitucional de proteção do ambiente (SARLET; FENSTERSEIFER, 2013, p. 235). Entre as diversas formas normativas assumidas pelo dever constitucional de proteção do ambiente para a sociedade, Sarlet e Fensterseifer destacam o dever de denunciar práticas poluidoras particulares ou estatais, dever de prevenção e precaução do dano ambiental, dever de reparar o dano ambiental, dever de participação política em questões relativas à proteção ambiental, dever de informação ambiental, dever de consumo sustentável ou dever de uso sustentável dos recursos naturais (2013, p. 245).

Com base em Sarlet e Fensterseifer, pode-se afirmar que os deveres de participação e informação se relacionam: “Para além da consagração constitucional do dever fundamental de proteção do ambiente, importa registrar, ainda, a concretização de tais deveres na esfera infraconstitucional. Antes mesmo da promulgação da CF88, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), já dispunha, no âmbito dos seus princípios, como dever do Estado, ‘a educação ambiental a todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente (art. 2º, X)’. A conscientização da sociedade sobre a questão ecológica por meio da educação ambiental, como se pode aferir do próprio conteúdo da norma em questão, configura-se como premissa à imposição de deveres de participação aos cidadãos na defesa do patrimônio ecológico” (2013, p. 245).

A injustiça ambiental afeta de forma mais intensa os cidadãos vulneráveis em termos socioeconômicos, com acesso limitado à informação ambiental, o que, de acordo com Sarlet e Fensterseifer, impede que evitem determinados riscos ambientais por falta de conhecimento (2013, p. 138). Estando ligados uns aos outros a educação, a informação, a conscientização e a participação ambiental, destaca-se o estabelecimento desse dever constitucional:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VI – promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente” (BRASIL, 1988).

A Constituição de 1988 instituiu uma ordem pública ambiental que conduz o Estado e o modelo político-econômico a assumirem a forma de Estado de Direito Ambiental, e embora essa ordem esteja “concentrada no art. 225, aparece espalhada no espaço da Constituição, com destaque para os arts. 5º, XXII e XXIII, 20, II a VII, 21, XIX, 22, IV, 23, VI e VII, 24, VI a VIII, 26, I, 170, VI, 184, §2º, 186, II, 200, VII e VIII” (BENJAMIN, 2011, p. 141-142).

Um dos pressupostos essenciais ao processo de edificação do Estado de Direito Ambiental é o agir integrativo da administração, que surge “como o reconhecimento de que a preservação do meio ambiente, considerado em sua dimensão integrada, deve articular-se de forma integrativa e, portanto, compartilhada” entre órgãos públicos e sociedade civil, através da participação dos cidadãos nos processos ambientalmente relevantes (CANOTILHO apud LEITE; BELCHIOR, 2010, p. 303). Visando a integração das políticas governamentais, uma das leis que regulamentam normas constitucionais ambientais (Lei Complementar 140/2011), estabeleceu quatro objetivos:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no exercício da competência comum a que se refere esta Lei Complementar:

I – proteger, defender e conservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, promovendo gestão descentralizada, democrática e eficiente;

II – garantir o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico com a proteção do meio ambiente, observando a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais;

III – harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente;

IV – garantir a uniformidade da política ambiental para todo o País, respeitadas as peculiaridades regionais e locais” (BRASIL, 2011).

No que toca o supracitado equilíbrio entre a proteção ecológica e o desenvolvimento econômico, Benjamin afirma que o Direito Ambiental tem fim redistributivo, redirecionando os benefícios e custos ambientais diante da degradação ambiental, que se mostra como uma “apropriação indevida (e, agora, também constitucionalmente desautorizada) de atributos ambientais, em que os benefícios são monopolizados por poucos (= os poluidores) e os custos são socializados entre todos (= a coletividade, presente e futura)” (2011, p. 93). Ainda sobre a compatibilização entre interesses econômicos e ecológicos, e também a respeito da já referida ligação entre informação e consciência pública, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) estabelece, entre os seus objetivos:

Art. 4º. A Política Nacional do Meio Ambiente visará:

I – à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico;

V – à difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente, à divulgação de dados e informações ambientais e à formação de uma consciência pública sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico” (BRASIL, 1981).

Diante dos impactos dos avanços econômicos, o movimento ambientalista visa corrigir a crise ecológica que o Mercado e o Estado não foram capazes de evitar e solucionar sozinhos (SARLET; FENSTERSEIFER, 2013, p. 35). Com tal fim, a ordem pública ambiental traz um sistema integrado, reunindo democratização do domínio ambiental – tratado como bem de uso comum do povo – e coletivização da representação do meio ambiente – na ação popular ambiental e na ação civil pública ambiental (BENJAMIN, 2011, p. 144).

Dessa maneira, o segmento ambientalista da sociedade pode participar dos processos jurídicos que envolvem a conciliação entre desenvolvimento e meio ambiente. Para que essa conciliação prospere, no entanto, é necessário que as entidades governamentais trabalhem de forma integrada, diante do caráter sistêmico da natureza.

“Propõem-se, assim, soluções mais integradas, mais ecologicamente equilibradas, que valorizam a interdependência jurídica das várias dimensões do meio ambiente – ar, solo, água, flora e fauna – bem como os processos que compartilham. Assim procedendo, evitam-se medidas legislativas que, por desconhecerem ou desprezarem o caráter sistêmico da natureza, acabam por transferir a degradação de um meio (como a água) para outro (como o ar ou o solo). Nessa mesma linha, deve-se aceitar que a interdependência ambiental não é estancada por fronteiras políticas ou administrativas e pode exigir soluções regionais ou até globais para a degradação que a todos afeta” (BENJAMIN, 2011, p. 131).

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Segundo Ayala, a viabilidade do “Estado ambiental de direito depende da capacidade de comunicação de aprendizado das experiências jurídicas nacionais com outras experiências externas”, além de consensos sobre obrigações e compromissos, na forma de um princípio de sustentabilidade “que esboça o comprometimento de todos os Estados no interesse de valores comuns à humanidade” (2011, p. 128).

Se vários dos problemas ambientais são causados por todos e afetam a todos, então todos devem colaborar na busca de soluções. Logo, é preciso haver integração não apenas entre Estado e sociedade, mas também entre diferentes Estados, bem como entre gerações presentes e futuras.

Por isso, o Estado de direito ambiental pode ser encarado como uma possibilidade de avanço na proteção ambiental, “tanto local, ao submeter sua legislação nacional a constantes reformas, estimuladas pela informação cientificamente consolidada, quanto global, ao buscar a harmonização de várias ordens jurídicas, sejam elas comunitárias, internacionais ou globais” (LEITE et al., 2012, p. 80). Contudo, atualizar o corpo normativo para acompanhar inovações no conhecimento científico não é suficiente, pois é preciso que as normas alcancem os efeitos esperados na realidade a que elas se referem.

Como informam Sarlet e Fensterseifer, a legislação ambiental brasileira é apontada por especialistas nacionais e estrangeiros como uma das mais avançadas do mundo, entretanto sua efetividade é fraca, “observando-se, nesse cenário, um déficit procedimental, organizacional e instrumental, no que diz respeito aos órgãos incumbidos da proteção ambiental e aos meios disponíveis para bem exercerem suas atribuições” (2013, p. 277). Portanto, não basta que as normas sejam criadas ou reformadas, devendo-se interpretá-las e aplicá-las de tal maneira que se possa lhes conferir maior efetividade, para que o ambiente seja realmente protegido.

4. Interpretação e aplicação das normas constitucionais ambientais

De acordo com Leite e Belchior, “De nada adianta toda uma construção teórica em torno do Estado de Direito Ambiental, se não existirem mecanismos concretos de efetivação”, sendo necessário que as normas sejam interpretadas de maneira a concretizar esse paradigma estatal, trazendo um novo modo de ver a ordem jurídica, para que o sentido a ser captado da norma esteja voltado à redução dos impactos da crise ecológica (2010, p. 308). O Estado de direito ambiental, segundo Ayala, pode ser considerado “a medida de referência para o Estado de direito neste momento societal de transição”, exigindo que os direitos fundamentais – que funcionam como reservas para a tomada de decisões – tenham o seu conteúdo reorganizado, “para adequá-los ao projeto de consecução de um Estado de justiça ambiental: um Estado de direitos fundamentais ecológicos, mediado por uma Constituição de conteúdo ecológico, e que se realiza em um espaço de democracia ambiental” (2002, p. 47).

Com a reorganização dos critérios de definição dos direitos fundamentais, por meio da consideração jurídica das necessidades ecológicas, se torna mais evidente “a crise de paradigmas, a ruptura com a unidade ética de valores universais, e a fragmentação moral, até mesmo dos padrões de justificação do Estado democrático de direito” (AYALA, 2002, p. 90).

Além de inviabilizar a visão de um conjunto (o meio ambiente) que necessariamente se estabelece de maneira integrada, a concepção tradicional “também favorece a fragmentação de sociedades, de culturas e de conhecimentos, desconsiderando as noções de biodiversidade e de sociodiversidade” (LEITE et al., 2012, p. 122). Ao examinar um objeto, o reducionismo cartesiano – marcado pela técnica analítica, ou seja, de fragmentações – adota, segundo Leite et al., “um processo de dissecação, composto por três fases essenciais: identificação das partes, extirpação delas do seu contexto e, por fim, exame estanque dessas partes” (2012, p. 95).

Os objetivos do Estado de Direito Ambiental são focados numa visão sistêmica de meio ambiente e, portanto, de cunho socioambiental, em que a superação da visão cartesiana, inspirada em métodos analíticos, tem como tônica a integração (LEITE et al., 2012, p. 92). A Constituição coloca seus valores em posição de isonomia, para que a resolução das tensões entre valores (sociais, ecológicos, econômicos, políticos) ocorra de forma não hierarquizada, sendo “considerado, como fez o constituinte brasileiro, que a natureza e as necessidades ecológicas compõem o quadro de valores fundamentais da nova ordem democrática e desse novo modelo de Estado de direito” (AYALA, 2002, p. 58).

Os valores ecológicos, de acordo com Ayala, devem ser inseridos como razões fundamentais dos sistemas jurídicos, assegurando a construção de “sistemas constitucionais que sejam autenticamente ecológicos, e para que possam, em consequência, figurar junto ao quadro de direitos fundamentais clássicos, as novas necessidades ecológicas” (2002, p. 90). Na perspectiva de abertura do sistema constitucional às necessidades ecológicas, Ayala afirma que a Constituição se mostra aberta às exigências do Estado de direito ambiental, ao impor obrigações de proteção da dignidade jurídica do meio ambiente e “compreender os problemas ecológicos como problemas de longo prazo, relacionando gerações presentes e futuras com sistemas jurídicos de proteção” (2002, p. 108).

A consagração constitucional do Estado de Direito Ambiental guarda sintonia com a tese da interdependência dos direitos fundamentais, reclamando uma compreensão integrada (SARLET; FENSTERSEIFER, 2013, p. 57). Em um regime de proteção constitucional do meio ambiente, “adota-se uma compreensão sistêmica (= orgânica ou holística) e legalmente autônoma do meio ambiente, determinando um tratamento jurídico das partes a partir do todo, precisamente o contrário do paradigma anterior”, ou seja, uma nova perspectiva ético-jurídica, e também político-econômica, que, para Benjamin, deve substituir a “clássica compreensão coisificadora, exclusivista, individualista e fragmentária da biosfera” (2011, p. 86).

Quanto à adoção da compreensão sistêmica na proteção constitucional, entende-se que, por não haver definido expressamente a ideia de meio ambiente, a CF/88 recepcionou a definição sistêmica de meio ambiente trazida por um texto normativo anterior, a Lei 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente:

Art. 3º. Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

I – meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981).

Para Benjamin, a CF/88 acolheu “a proteção do meio ambiente, reconhecendo-o como bem jurídico autônomo e recepcionando-o na forma de sistema, e não como um conjunto fragmentário de elementos” (2011, p. 104). Sendo recepcionados dessa maneira, o ambiente e “seus elementos são apreciados e juridicamente valorizados em uma perspectiva relacional ou sistêmica, que vai além da apreensão atomizada e da realidade material individual desses mesmos elementos (ar, água, solo, floresta, etc.)” (BENJAMIN, 2011, p. 105).

Além disso, a adoção de uma concepção integrada do meio ambiente pode também favorecer “o desenvolvimento de um conceito de direito ambiental integrativo e, como consequência, promove substantivas modificações na forma como os instrumentos jurídicos são concebidos, definidos e implementados pelo Estado” (LEITE; BELCHIOR, 2010, p. 302).

No que se refere ao papel do Estado como administrador do patrimônio ecológico, “o bem ambiental não pode ser rotulado como bem público, devendo, sim, ao contrário, ser considerado um bem de interesse público e cuja administração, uso e gestão devem ser compartilhados e solidários com toda a comunidade, inspirado em um perfil de democracia ambiental. Desta forma, no Estado democrático ambiental, o bem ambiental deve pertencer à coletividade e não integra o patrimônio disponível do Estado, impedindo o uso irracional e autoritário do patrimônio ambiental pelo poder público e pelo particular. Trata-se, assim, de uma verdadeira realização de justiça social ambiental, em que a sua realização deve ser compartilhada por todos os componentes da sociedade, exigindo-se o exercício da responsabilidade compartilhada na gestão ambiental que pressupõe uma unidade de ação de multi-atores” (LEITE apud AYALA, 2002, p. 93).

Essa ideia de responsabilidade compartilhada entre o poder público e o particular na proteção ambiental está relacionada à integração entre as gerações presentes e as gerações futuras, pois, do mesmo modo, uma proteção fragmentada seria incompleta e, portanto, não teria efetividade.

Assim, para o Estado de direito ambiental é fundamental a adoção de um novo sentido de proteção do “direito à vida que não se esgota no tempo e que não se restringe à pessoa humana. Por isso é politicamente fundamental nesse Estado de direito, que se garanta proteção jurídica à natureza e às futuras gerações” (AYALA, 2002, p. 336). A consideração jurídica das futuras gerações é, para Ayala, “manifestação de solidariedade entre as gerações, e caminho para a construção de uma sociedade justa, que prime por atingir os objetivos de justiça ambiental do novo Estado democrático de direito ambiental” (2002, p. 341).

Assim como é necessário haver integração entre poder público e sociedade, entre Estados, entre gerações e entre elementos do meio ambiente, é preciso também se considerar a integração nas normas de direito ambiental. Desse modo, as normas constitucionais que fazem referência ao meio ambiente devem ser analisadas em conjunto, como um sistema.

A proteção constitucional do meio ambiente abrange uma série de dispositivos que se relacionam a valores ambientais de forma sistêmica, portanto, “o capítulo que versa sobre o meio ambiente nada mais é do que o ápice ou a face mais visível de um regime constitucional que se dedica de forma difusa à gestão dos recursos ambientais” (BENJAMIN apud LEITE; BELCHIOR, 2010, p. 304). O direito ao equilíbrio ecológico não se esgota no art. 225, pois tal dispositivo, segundo Benjamin, funciona apenas como a sede da organização desse direito, que reaparece no decorrer do texto constitucional, como direito reflexo (proteção da saúde, do trabalhador), ou como norma de apoio (função ecológica da propriedade rural) (2011, p. 124).

As normas constitucionais se referem a um direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, utilizando exatamente essas palavras, como citado anteriormente, porém, na interpretação e aplicação dessas normas deve-se estar atento ao que as inovações do conhecimento científico apontam como um meio ambiente equilibrado.

Benjamin avisa que os cientistas percebem cada vez mais que os sistemas naturais não são tão previsíveis como faz parecer a expressão “equilíbrio ecológico”, pois esse equilíbrio, no sentido adotado pelo texto constitucional, não é estático, mas sim um sistema dinâmico (2011, p. 127).

Além da supracitada integração entre as normas de direito ambiental no momento de sua interpretação e aplicação, é importante que a visão sistêmica esteja presente também no momento de produção e atualização das normas ambientais. Tendo em vista que essas normas tratam de um objeto sistêmico (o meio ambiente e sua proteção jurídica) e lidam com valores que exigem uma abordagem também sistêmica (interesses ecológicos, sociais e econômicos), é preciso haver integração não apenas inter-normativa, mas também intra-normativa.

Dessa maneira, pautando-se pelo respeito aos parâmetros ambientais constitucionais, o Estado de Direito Ambiental procura estimular a “criação de normas ambientais sistêmicas, ecossocioeconômicas”, e que estejam de acordo com uma visão sistêmica do meio ambiente (LEITE et al., 2012, p. 102, 114). Por ecossocioeconômico, segundo Leite et al., entende-se que o necessário “para que o desenvolvimento real seja viabilizado é uma conformação entre eficácia econômica, igualdade social e prudência ambiental” (2012, p. 121-122), de maneira que a partir dessa “conformação entre o economicamente viável, o ecologicamente correto e o socialmente justo resultam no conceito de sustentabilidade” (2012, p. 128).

Tal como os elementos naturais e suas inter-relações compõem um sistema ecológico (ecossistema), há um sistema jurídico composto por normas de caráter ambiental e pelas inter-relações estabelecidas entre essas normas. Uma interpretação sistêmica do Direito Ambiental pode contribuir para que haja maior efetividade na aplicação de suas normas, fazendo com que a proteção jurídica do meio ambiente funcione de forma integrada, assim como funcionam os próprios problemas ecológicos.

A visão sistêmica, em contraposição ao paradigma cartesiano, é um método de avaliação que, conforme Leite et al., busca o sentido do todo por meio de uma interpretação contextual, examinando as inter-relações estabelecidas entre partes integrantes de um sistema (2012, p. 96-97). Essa visão, consoante Leite et al., “revela-se de suma importância para um novo pensamento jurídico, especialmente no sentido de que não se conduza por uma leitura estanque, isolada, dos dispositivos que formam todo o instrumento normativo constitucional” (2012, p. 98). É justamente a leitura isolada dos dispositivos um dos entraves à efetividade na aplicação de normas constitucionais de proteção ambiental.

Mesmo após intervenção do Supremo Tribunal Federal em dissensos de interpretação, há dificuldades de implementação das normas constitucionais nas cortes estaduais, nas quais “pode-se verificar como é cada vez mais difícil a correção dos profundos défices de justiça ambiental, enfrentados pelo Estado de direito do ambiente, e ainda mais difícil a tarefa de consolidação do Estado democrático de direito ambiental” (AYALA, 2002, p. 283). Observa-se a compreensão inadequada da cláusula constitucional na resolução de conflitos de direitos, durante a qual, para Ayala, ocorre “desvio na determinação do âmbito de proteção da norma constitucional”, desvio na identificação das práticas que estão sob o alcance desse âmbito de proteção, e “avaliação defeituosa da situação de colisão dos interesses relacionados”, que desconsideram outros elementos envolvidos no conflito, permitindo que “as práticas fraudatórias à Constituição sejam consideradas como mais um dos problemas que qualificam as dificuldades de realização do Estado democrático de direito ambiental” (2002, p. 284-285).

Essas divergências demonstram o fato de que, por mais integração que contenham os textos normativos, se não houver a interpretação integrada na produção de textos decisórios, não existirá a proteção jurídica integrada do meio ambiente.

Diante disso, o Estado de Direito Ambiental funciona como um modelo decorrente da interpretação integrativa das normas ambientais presentes na CF/88, que, para LEITE et al., deve servir de referencial para medidas legislativas (e judiciais) que tornem a proteção ambiental mais eficiente (2012, p. 100).

Para tanto, o direito ambiental deve entender os princípios sobre os quais se organizam os sistemas ecológicos, pois direito e ecologia são mundos distintos, que, segundo Ayala, necessitam de uma linguagem comum, através da integração e comunicação de seus códigos, rompendo dificuldades de entendimento e buscando “integralização cognitiva de nossa ordem constitucional, fundada em um tríplice modelo de referência: um Estado de direito ambiental, novos direitos fundamentais e uma nova democracia ambiental” (2002, p. 86-87). Logo, deve haver integração entre a ciência jurídica e a ciência ecológica.

5. Visão integrada do direito constitucional ambiental

A diferenciação funcional da sociedade em sistemas parciais, como o direito, a política e a economia, “estabelece uma fragmentação do sentido atribuído ao meio ambiente. A assimilação social dos riscos, perigos e degradações ambientais” ocorre através da formação de estruturas sociais seletivas, que, como Carvalho afirma, operam por meio da racionalidade específica a cada sistema parcial (2009, p. 32). A diferenciação funcional do conceito de meio ambiente permite “uma compreensão simultaneamente ampla e altamente especializada em seus aspectos (…), capaz de compreender aspectos altamente diferenciados (meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho)” (CARVALHO, 2009, p. 34). Para Carvalho, a partir da formação do sentido jurídico de meio ambiente, “o Direito passa a apresentar maiores condições operacionais para produzir decisões cada vez mais complexas e especializadas às características peculiares a cada aspecto de meio ambiente” (2009, p. 31).

Apesar da importância de um conceito amplo de meio ambiente, que agrega elementos humanos e sociais, a proteção ambiental nunca deixou de ter em sua centralidade a tutela do meio ambiente natural, em razão da existência de uma maior preocupação social em relação aos efeitos colaterais da sociedade industrial, que tem colocado em risco a manutenção de todas as formas de vida (CARVALHO, 2009, p. 30). Dessa maneira, de acordo com Carvalho, é possível “observar um maior destaque (vislumbrado na constante utilização de termos como ecossistema, ecologia etc) ao ‘meio ambiente natural’, já que este é condição direta para a sadia qualidade de vida” (2009, p. 31).

Em detrimento da concepção de Direito Ecológico – adotada pelos primeiros juristas ambientalistas –, a noção de Direito Ambiental, consoante Carvalho, “apresenta um aspecto teleológico bastante relevante por ampliar a abrangência da tutela jurídica ambiental. Aqui pode ser observado um deslocamento da tutela jurídica exclusiva dos aspectos naturais do meio ambiente (Direito Ecológico) para uma proteção mais ampla que, abrangendo os elementos naturais, sociais e humanos que compõem o meio ambiente, incide sobre as repercussões ambientais oriundas das relações homem-natureza, em seus aspectos socioambientais. Por isso, o termo Direito Ambiental representa mais adequadamente a proteção jurídica do meio ambiente, quer em sua dimensão natural, artificial, como um bem unitário e global, ou, ainda, como elementos naturais isolados” (2009, p. 29-30).

Quanto a essa relação homem-natureza, tem-se que “o projeto de direitos humanos ecológicos contempla a reconciliação entre os fundamentos filosóficos dos direitos humanos com princípios ecológicos”, de modo que os direitos humanos se tornem “capazes de dar respostas ao fato de que os indivíduos não estão inseridos apenas em um ambiente social, senão também em um ambiente natural” (BOSSELMANN apud AYALA, 2011, p. 125). A CF/88 modificou a compreensão que se deve ter do assunto, inserindo o conteúdo humano e social no interior do conceito de proteção ambiental, sendo que a “preocupação com este conjunto de relações foi tão grande que se estabeleceu uma obrigação comunitária e administrativa de defender o meio ambiente” (ANTUNES apud CARVALHO, 2009, p. 30).

O meio ambiente considerado em si mesmo (macrobem), conforme Carvalho, consiste em um bem de todos, e essa visão, apresentada em inúmeros tratados internacionais, “ressalta a importância do meio ambiente como um valor em si, de caráter global e integrado, além dos elementos corpóreos que o compõem (microbens). Como consequência dessa concepção imaterial e global do meio ambiente como bem de qualidade pública e uso comum, constata-se a indisponibilidade, a imprescritibilidade e a impenhorabilidade do bem ambiental” (2009, p. 34).

Com a formação do sentido de bem ambiental como macro e micro realidade, segundo Carvalho, estabelece-se tanto uma observação do meio ambiente na sua totalidade como dos elementos isolados que o compõem, e visualiza-se uma interação ecossistêmica (2009, p. 35). Além dessa interação entre elementos do meio ambiente, há a interação entre o meio ambiente e outros elementos da sociedade. Desse modo, não se pode ter prosperidade econômica sem justiça social, nem esta sem aquela, “mas ambos os objetivos somente podem ser alcançados se condicionados por uma referência de sustentabilidade ecológica” (AYALA, 2011, p. 121).

Um princípio de sustentabilidade propõe, conforme Ayala, “uma leitura holística sobre a definição de desenvolvimento, e também poderia ser sintetizado e melhor definido como um dever de proteger e de restaurar a integridade dos sistemas ecológicos terrestres”, com base na imposição de integridade ecológica (2011, p. 123). Em uma compreensão holística (sistêmica) sobre as relações humanas, pode-se entender que a integridade ecológica define um dever de sustentabilidade para as ações humanas, para Ayala, e expõe nesta definição – representativa da interdependência entre homem e natureza –, outra relação de interdependência, que evoca a conexão que se assenta como dever de justiça: a equidade entre gerações presentes e futuras, justiça intrageracional e intergeracional (2011, p. 124-125).

Ao conceber o meio ambiente equilibrado como essencial à qualidade de vida, a CF/88 ultrapassou a concepção de dignidade limitada à vida humana, consoante Ferreira e Ferreira, pois não fez “referência específica ao homem, o que possibilitou a inclusão de todas as formas de vida como beneficiárias da manutenção do equilíbrio ambiental” (2010, p. 204). Logo, a CF/88 ampliou o alcance da norma constitucional ao se referir ao ambiente sem especificar os seus elementos, adotando uma concepção integrada do meio ambiente, com a qual é possível “desenvolver um conceito de direito ambiental integrativo e, como consequência, promover substantivas modificações na forma como os instrumentos jurídicos são concebidos, definidos e implementados pelo Governo” (FERREIRA; FERREIRA, 2010, p. 205).

De acordo com o art. 170, IV, da CF/88, a ordem econômica “tem como finalidade assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, devendo ser observado o princípio da defesa do meio ambiente” (FERREIRA; FERREIRA, 2010, p. 220). Nesse dispositivo, o texto constitucional reconhece a necessidade, mencionada anteriormente, de que o desenvolvimento tenha base em uma integração entre eficácia econômica, prudência ambiental e igualdade social, visto que o conceito de sustentabilidade resulta dessa integração entre o economicamente viável, o ecologicamente correto e o socialmente justo.

Canotilho diz que um “Estado constitucional ecológico pressupõe uma concepção integrada ou integrativa do ambiente, e consequentemente um direito integrado e integrativo do ambiente”, que aponta para a necessidade de uma proteção global e sistêmica, não se tratando apenas de policiar os perigos das instalações ou atividades, “mas também de acompanhar todo o processo produtivo e de funcionamento sob um ponto de vista ambiental” (2010, p. 36). A construção de um direito ambiental integrativo (sistêmico) exige “a passagem de uma compreensão monotemática para um entendimento multitemático”, também pressupondo uma avaliação integrada do impacto ambiental, que não considere isoladamente o projeto que pode trazer risco ao ambiente, mas sim no contexto do plano geral no qual esse projeto específico se insere, e que, de acordo com Canotilho, vise a “substituição de uma ‘polícia de pormenores’ por um sistema de controle (ou de pós-avaliação) dos resultados” (2010, p. 36-37).

Visto que a humanidade não conseguiu ainda “impor-se um compromisso muito mais primário e intuitivo de não agressão mútua, de erradicação dos conflitos armados”, pode-se ter a impressão de que dificilmente obteria um “consenso sobre a questão ecológica, sobrepondo a preservação da natureza a seus interesses econômicos e de poder” (1989, p. 127). Contudo, a integração entre ecologia, economia e sociedade (sustentabilidade), assim como a integração entre Estados e entre gerações (solidariedade), podem contribuir para aproximar as pessoas e fazê-las perceber que apenas a ação coletiva é capaz de superar as limitações individuais.

Conclusão

O Estado de direito ambiental significa um paradigma interpretativo para a constituição, podendo ser entendido como uma proposta de modelo estatal ecológico. Percebe-se que a Constituição Federal de 1988 funciona como um elemento de integração do direito ambiental, como um instrumento de combate à fragmentação da interpretação normativa, visando uma proteção sistêmica do meio ambiente, efetivada com base em um sistema de normas infraconstitucionais integradas pelas normas constitucionais.

Se vários dos problemas ambientais são causados por todos e afetam a todos, então todos devem colaborar na busca de soluções. Logo, é preciso haver integração não apenas entre Estado e sociedade, mas também entre diferentes Estados, bem como entre gerações presentes e futuras. A leitura isolada de normas constitucionais de proteção ambiental é um dos entraves à efetividade na sua aplicação. Por mais integração que tenham os textos normativos, se não há a interpretação integrada na produção de textos decisórios, não ocorre a proteção jurídica integrada do meio ambiente. O problema não estaria no ritmo de produção de normas, mas na carência de efetividade às normas já produzidas, ou seja, é um problema de interpretação e aplicação dessas normas.

Tal como os elementos naturais e suas inter-relações compõem um sistema ecológico (ecossistema), há um sistema jurídico composto por normas de caráter ambiental e pelas inter-relações estabelecidas entre essas normas. Uma interpretação sistêmica do Direito Ambiental pode contribuir para que haja maior efetividade na aplicação de suas normas, fazendo com que a proteção jurídica do meio ambiente funcione de forma integrada, assim como funcionam os próprios problemas ecológicos.

Um direito que procure promover igualdade de bem-estar a todos não deve fazê-lo tentando propiciar a todos os mesmos hábitos de consumo excessivo, mas sim buscar as mudanças necessárias à integração econômica, ecológica e social. Ao dirigir-se a tais mudanças, o direito se aproxima do ideal de desenvolvimento sustentável, da mesma maneira que o governo pode se aproximar do ideal de Estado de direito ambiental. Utiliza-se a ideia de “aproximar” porque a proposta de desenvolvimento sustentável é, assim como a proposta de Estado de direito ambiental, uma construção teórica que serve de fundamento para uma mudança de paradigma, um guia apontando o caminho para corrigir os defeitos de atuação.

As soluções, elaboradas setor por setor, ou seja, sem integração, não são capazes de resolver efetivamente os problemas ambientais. Isso seria possível apenas por meio de uma visão sistêmica do desenvolvimento, em que as necessidades ecológicas são consideradas tão importantes quanto as (reais) necessidades econômicas e sociais. Essa concepção se relaciona aos hábitos de consumo excessivo, pensados (através do paradigma da fragmentação) como se fossem necessidades. Por isso a expressão “reais” necessidades, pois essas precisam ser repensadas, questionando-se o modelo de desenvolvimento adotado.

 

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Informações Sobre o Autor

Honácio Braga de Araújo

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)


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