A Vulnerabilidade Neuropsicológica do Consumidor e o Apelo Publicitário

Luiz Filipe Braga Sampaio[i]

Resumo: O presente artigo dedica-se ao estudo da repercussão jurídica do apelo publicitário e seus efeitos no comportamento do consumidor. Tem-se como objetivo principal analisar a vulnerabilidade neuropsicológica do consumidor frente ao assédio das campanhas publicitárias. Além disso, fazendo uso do método dedutivo e com base em um levantamento bibliográfico, constata-se que, a partir estrutura psíquica e fisiológica dos consumidores, é possível que os fornecedores obtenham vantagens econômicas a despeito dos danos psicológicos e financeiros sofridos pelos consumidores. Outrossim, identifica-se o dever de mitigar o próprio dano como ferramenta normativa para regular a produção do conteúdo publicitário de maneira a propiciar harmonia à relação de consumo.

Palavras-chave: Vulnerabilidade. Consumidor. Apelo Publicitário. Superendividamento.

 

Abstract: This article is dedicated to the study of the legal repercussion of the advertising appeal and its effects on consumer behavior. The main objective is to analyze the neuropsychological vulnerability of the consumer in face of the harassment of advertising campaigns. In addition, using the deductive method and based on a bibliographic survey, it appears that, from the psychological and physiological structure of consumers, it is possible for suppliers to obtain economic advantages despite the psychological and financial damage suffered by consumers. Furthermore, the duty to mitigate the damage itself is identified as a normative tool to regulate the production of advertising content in order to provide harmony to the consumption relationship.

Keywords: Vulnerability. Consumer. Advertising Appeal. Over-indebtedness.

 

Sumário: Introdução. 1. O Consumidor e o Direito. 2. O Consumidor como Sujeito Vulnerável. 3. Fragilidade Psíquica e Fisiológica do Consumidor. 4. O Apelo Publicitário e o Superendividamento. Conclusão. Referências.

 

Introdução

Em alguma medida, a atual sociedade destaca-se pelo consumo. A aquisição de produtos de forma impulsiva e sem qualquer planejamento é prática comum entre grande parte dos consumidores.

Na sociedade do consumo, a publicidade cumpre uma função proeminente, isto é, a de criar necessidades ou desejos com o fim de seduzir os consumidores à aquisição de produtos e serviços, os quais, muitas vezes, são prescindíveis. Daí que a máxima “a publicidade é a alma do negócio” encontra seu sentido.

Ocorre que, do ponto de vista da ciência do direito, a publicidade é uma prática comercial com repercussão jurídica, de tal sorte que interessará ao direito conhecer as implicações desse fenômeno mercadológico na relação de consumo. Diante desse contexto, vem a calhar o seguinte questionamento: o apelo publicitário majora a vulnerabilidade do consumidor?

Isto posto, constitui objetivo geral do presente artigo constatar e analisar a vulnerabilidade neuropsicológica do consumidor frente ao apelo publicitário. Frisa-se, por oportuno, que o presente artigo não visa o tolhimento do direito de anunciar (art. 1°, IV, da CRFB/88), antes, porém, busca identificar seus excessos, com vistas a propiciar harmonia à relação de consumo.

Ademais, usando o método dedutivo e uma abordagem qualitativa dos fenômenos, fez-se levantamento bibliográfico entre livros, artigos e leis para viabilizar as conclusões obtidas nesta pesquisa.

 

1   O Consumidor e o Direito

Além do aspecto socioeconômico, o direito do consumidor não pode ser entendido fora do seu contexto histórico. Não por outra razão, a doutrinadora Claudia Lima Marques (2017, p. 41-59), afirma que, com o declínio do estado liberal e com os avanços do estado social, o direito privado clássico sofreu uma ruptura em seus paradigmas, passando a ter um compromisso maior com a função social da propriedade e dos contratos, bem como com o ideal solidário.

Cláudia Lima Marques (2017, p. 57) explica que essa ruptura decorreu das fortes mudanças provocadas pela revolução industrial (séc. XVIII e XIX). Tal transição social e econômica ensejou mudanças na relação de consumo, tendo em vista que a produção e distribuição, antes individualizadas, passaram a ser massificadas, o que massificou também seus destinatários: os consumidores.

A massificação da produção, distribuição e dos próprios consumidores, deu origem aos contratos de adesão e condições gerais contratuais. A partir daí a autonomia da vontade, pressuposto típico do direito privado clássico, foi mitigada. A ilustre professora afirmar que:

 

Aquele que era considerado o centro, o “rei” do mercado, perdeu a centralidade, descontruíram e manipularam sua vontade (ou desejos), sua liberdade de consumo é mera ilusão. Este consumidor ideal tornou-se mero símbolo, a ser usado como metáfora de linguagem, no imaginário e no jogo coletivo e paradoxal do mercado de consumo e de marketing globalizado dos dias de hoje (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2017, p. 57).

 

É em face desse contexto que a Constituição Federal de 1988 consagra a defesa do consumidor como direito fundamental (art. 5°, XXXII). Não somente isso, o legislador constituinte institui a defesa do consumidor como um princípio da ordem econômica (art. 170, V). Ademais, o art. 48, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), estabeleceu um prazo de cento e vinte dias da promulgação da Constituição para que o Congresso Nacional elaborasse o Código de Defesa do Consumidor.

Outrossim, a Constituição Federal de 1988 tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CRFB/88). Dessa forma, conforme ensina o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e o professor Paulo Gonet Branco (2015, p. 135), os direitos fundamentais têm como núcleo a proteção da dignidade da pessoa. Logo, a defesa do consumidor resulta, necessariamente, no respeito à dignidade da pessoa humana.

Isto posto, observa-se com clareza a natureza de ordem pública e de interesse social das normas contidas no CDC (art. 1°), tendo em vista que é de interesse do Estado e de toda coletividade a defesa do consumidor, cabendo ao juiz agir de ofício diante das relações de consumo. Sobre o assunto, Claudia Lima Marques assevera que:

 

As normas de ordem pública estabelecem valores básicos e fundamentais de nossa ordem jurídica, são normas de direito privado, mas de forte interesse público, daí serem indisponíveis e inafastáveis através de contratos. O Código de Defesa do Consumidor é claro, em seu art. 1°, ao dispõe que suas normas se dirigem à proteção prioritária de um grupo social, os consumidores, e que se constituem em normas de ordem pública, inafastáveis, portanto, pela vontade individual. São normas de interesse social, pois as leis de ordem pública são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares, daí poderem encontrar aplicação ex officio, em especial como a sanção do CDC é a da nulidade taxativa absoluta (parágrafo único do art. 278, do CPC c/c o parágrafo único do art. 166, VII, do CC/22) (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2017, p. 79).

 

Daí, extrai-se o princípio do protecionismo do consumidor (art. 1° do CDC), o qual relativiza a máxima pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos) em face da massificação dos contratos, bem como da claudicação da autonomia da vontade.

Os doutrinadores Flávio Tartuce e Daniel Amorim (2018, p. 45-47) apontam três consequências práticas da aplicação desse princípio, a saber: (i) as regras do CDC não podem ser afastadas por convenção entre as partes, sob pena de nulidade absoluta; (ii) cabe sempre a intervenção do Ministério Público em questões envolvendo problemas de consumo; e (iii) toda a proteção constante da Lei Protetiva deve ser conhecida de ofício pelo juiz.

À vista disso, tem-se que as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor (Art. 47), sendo sua modificação um direito do consumidor (art. 6°, V), além da inversão do ônus da prova (art. 6°, VIII) e da desconsideração da personalidade jurídica (art. 28).

Em que pese isso, para se obter uma nítida compreensão dessa tutela, impende um aprofundamento na análise da pessoa do consumidor.

 

2   O Consumidor como Sujeito Vulnerável

Sujeito de direitos, a figura do consumidor é conceituada pelo legislador consumerista como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (art. 2°, caput). É importante mencionar que o CDC, no parágrafo único, do art. 2°, reconhece a figura do consumidor por equiparação ao dispor que “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”.

Do exposto, verifica-se três elementos para a caracterização do consumidor na relação de consumo: (i) elemento subjetivo (pessoa física ou jurídica); (ii) elemento objetivo (aquisição de produtos ou serviços); e (iii) elemento teleológico ou finalístico (destinatário final).

Conforme ensina Claudia Lima Marques (2017, p. 110-127), tradicionalmente, duas correntes doutrinárias cuidam do conceito de consumidor: os finalistas e os maximalistas. Para os finalistas, a interpretação de destinatário final deve ser restritiva, sendo o consumidor o destinatário fático e não profissional do bem de serviço, utilizando o produto para uso próprio e de sua família, sem o caráter lucrativo. Já para os maximalistas, a definição preconizada pelo art. 2°, caput, do CDC, deve ser interpretada extensivamente, sendo o consumidor qualquer pessoa física ou jurídica destinatário final fático e econômico do produto, não importando a finalidade lucrativa de sua aquisição ou de seu uso.

Todavia, a autora (2017, p. 116) explica que a jurisprudência do STJ (Resp. 476428/SC) consagra outra corrente doutrinária quanto ao conceito de consumidor. Essa doutrina defende a teoria do “finalismo aprofundado”, segundo a qual, diante de uma relação de consumo, verificada a vulnerabilidade de uma das partes, ainda que com o fim lucrativo, poder-se-á enquadrá-la no conceito de consumidor.

Sobre a referida teoria, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial n°. 476428, estabeleceu que:

 

A relação jurídica qualificada por ser “de consumo” não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus pólos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro. – Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo. – São equiparáveis a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais abusivas (STJ, Recurso Especial n. 476428. Rel. Min. Nancy Andrighi, 19/04/2005).

 

Nesse sentido, o fator determinante para identificar uma pessoa física ou jurídica como consumidor é constatação de sua vulnerabilidade. Por ensejar uma desigualdade, a vulnerabilidade é o fundamento filosófico e sociológico da proteção do consumidor (MORAES, 2009, p. 124). Sobre esse aspecto, Claudia Lima Marques (2017, p. 117) define que: “Vulnerabilidade é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação de consumo. Vulnerabilidade é uma característica, um estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção”.

É notável que esse estado que constitui o consumidor se manifesta em diferentes formas. O entendimento clássico jurisprudencial e doutrinário caminha no sentido de reconhecer a vulnerabilidade técnica, jurídica, fática (ou socioeconômica) e informacional (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2017, p. 118).

Sobre as espécies de vulnerabilidade, Claudia Lima Marques (2017, p. 118) leciona que a vulnerabilidade técnica se revela quando, ao consumidor, falta conhecimento acerca da composição ou utilidade de um produto ou serviço, podendo, assim, ser facilmente enganado pelo fornecedor. Esse tipo de vulnerabilidade configura-se, por conseguinte, pela falta de informação, obscuridade, imprecisão ou pelo erro na veiculação de algum dado ou característica do bem de serviço. Por essa razão, repousa sobre o fornecedor o dever irrefragável de informar.

Por seu turno, a vulnerabilidade jurídica ocorre diante complexidade e dificuldade que o consumidor possui na defesa de seus direitos, tanto no âmbito administrativo, como no judicial. Pode-se afirmar que a vulnerabilidade jurídica decorre também de um limitado conhecimento econômico e contábil do consumidor, o qual não dispõe de erudição para averiguar a porcentagem dos juros cobrados ou tomar ciência dos termos contratuais, mormente por sua massificação e adesão.

A vulnerabilidade fática ou socioeconômica surge quando o fornecedor se serve de seu poder econômico ou da essencialidade do serviço prestado para impor sua vontade, estabelecendo condições contratuais de forma unilateral. Cita-se como exemplo desse tipo de vulnerabilidade a relação entre consumidores e as concessionárias de serviço público, as quais impõe a suspensão do serviço público de natureza essencial como pena aos consumidores inadimplentes.

Não obstante, a vulnerabilidade manifesta-se de igual forma no déficit informacional dos consumidores. Com o avanço tecnológico e científico, as informações se multiplicaram, de forma que a posse de tais informações garante ao fornecedor vantagens na relação de consumo. Esse monopólio da informação dá causa à vulnerabilidade informacional do consumidor.

 

3   Fragilidade Psíquica e Fisiológica do Consumidor

O entendimento clássico sobre a vulnerabilidade, todavia, não pode (deve) ser taxativo, sob pena de ser superado pelo dinamismo do fenômeno mercadológico. A análise da fragilidade do consumidor não se esgota pela constatação do aspecto técnico, jurídico, fático (ou socioeconômico) ou informacional, antes, porém, demanda um esforço interdisciplinar para a compreensão plena da desigualdade que há na relação de consumo.

Nesse sentido, porquanto a decisão de compra se dá na esfera neuropsicológica do consumidor, faz-se necessária a análise psíquica e fisiológica da mente humana, tudo com o fito de constatar os reais motivos que levam um sujeito ao consumo.

Isto posto, a psiquiatra brasileira Ana Beatriz, no livro Mentes Consumistas: do consumismo à compulsão por compras, realiza um estudo técnico a respeito da decisão de compra, do qual, verifica-se que o comportamento do consumidor não pode ser entendido a partir da ideia simplista de que todos são livres ao optar por comprar ou não.

A autora (2014, p. 109-116) explica que, naturalmente, o cérebro humano funciona de forma independente, tanto nas funções fisiológicas (batimento cardíacos, frequência respiratória) quanto no gerenciamento das sensações e pensamentos. A partir da captação de fatores sensíveis (cores, aromas, sabores, sons, luz), o cérebro humano realiza associações e conexões capazes de influenciar, de forma inconsciente, o comportamento humano.

A psiquiatra brasileira (2014, p. 124) afirma que o comportamento humano é ainda mais influenciado pela mecânica cerebral no momento da decisão de compra. Isso ocorre porque, na hora de comprar, existe uma interação fisiológica e psíquica denominada como sistema de recompensa ou sistema mesolímbico dopaminérgico. Sobre o tema, a autora explica que:

 

Essas estruturas, evolutivamente consideradas bem antigas, localizam-se na base do cérebro e se conectam a diversas regiões por meio de feixes eletrobioquímicos – moléculas químicas denominadas neurotransmissores. Tais substancias acionam descargas elétricas que conduzem sinais e ativam outras áreas cerebrais. As mais proeminentes fontes acionadas pela região tegmental ventral e pelo núcleo accumbens são: córtex pré-frontal se incumbe de filtrar e “racionalizar” o prazer; a amígdala, de dar o tom emocional da situação; e o hipocampo, de memorizar com detalhes tudo o que estiver relacionado à satisfação e à sensação em si (SILVA, 2014, p. 149-150).

 

A sensação de recompensa, após satisfeita, libera uma substancia no cérebro humano denominada como dopamina. Segundo a autora (2014, p. 152), essa substancia é um neurotransmissor do prazer que, uma vez liberado no cérebro humano, causa uma sensação de gozo e contentamento no consumidor. Por essa razão, o sistema de recompensa alimentado reiteradamente pelo consumo pode causar dependência ou vício nas pessoas, causando-lhes danos psicológicos.

Para a psiquiatra (2014, p. 44-46), existem três tipos de compras que podem apontar para um comportamento de dependência ou até mesmo patológico no mercado. A primeira é denominada como compra impulsiva, que se configura no ato de consumir sem qualquer planejamento prévio, de maneira irracional e na busca pela satisfação imediata de uma vontade momentânea. Segundo a autora, a compra impulsiva sustenta o grande comércio, motivo pelo qual o investimento em estratégias publicitárias, especialmente o neuromarketing, é a chave para obter sucesso.

A segunda, por sua vez, é tida como compra abusiva, que também gera um sentimento de conquista imediata e bem-estar aos consumidores. No entanto, a sua prática coloca os consumidores em situações de endividamento. A ideia é que a compra abusiva faz com que o consumidor viole seu poder de compra, gerando, portanto, o seu endividamento.

Por último e mais grave, tem-se a compra compulsiva ou oniomania. Esse tipo de comportamento tem um caráter patológico, pois caracteriza-se pelo descontrole mental provocado por pensamentos intrusivos, os quais impõe um vício ou uma necessidade irresistível por compras.

Seja de forma impulsiva, abusiva ou compulsiva, esses sintomas evidenciam o dano psicológico causado aos consumidores que são reféns do apelo das campanhas publicitárias.

Em face do exposto, levando-se em consideração a complexidade da fragilidade psíquica e neurológica do consumidor, verifica-se que a vulnerabilidade neuropsicológica do consumidor não pode ser entendida somente pelo fator psíquico como vem reconhecendo a jurisprudência (REsp: 1195642/RJ) e parte da doutrina. Antes, para Paulo Valério Dal Pai Moraes (2009, p. 174-175), além desse fator, há que se valorar o fator fisiológico (ou anatômico) e neurológico do sistema nervoso (sistema de recompensa) que compõem o consumidor. Daí porque, constatar uma vulnerabilidade neuropsicológica.

 

4   O Apelo Publicitário e o Superendividamento

Para o sociólogo Zygmunt Bauman, no livro Vida para Consumo, a necessidade consumista dos indivíduos decorre do poder persuasivo do marketing que forja a ideia de que felicidade é consumir. Não por outra razão, o sociólogo polonês (2008, p. 52) afirma que “a felicidade é o propósito mais invocado e usado como isca nas campanhas de marketing”.

É característica do consumismo a transformação da felicidade em produto, de maneira que isso gera no consumidor uma necessidade exagerada por compras, pois o fim não é somente adquirir o produto, mas a aquisição da própria felicidade.

Aliás, para o sociólogo (2008, p. 20), o consumismo não só transforma a felicidade em produto, transforma também o indivíduo em mercadoria, isto é, a depender do produto consumido, o indivíduo pode (e deve) agregar valor a si, tornando-se valioso para o mercado e, por conseguinte, apto para ser consumido.

Com base nisso, Eduardo Bittar e Guilherme de Almeida na obra Curso de Filosofia do Direito, explica que a atual sociedade é regida pela ideologia do consumismo:

 

A insistência com a qual a ideologia mercantil da sociedade do consumo impregna as consciências através de expedientes da propaganda, dos reclames comerciais, do apelo dos anúncios, enfocando exclusivamente o materialismo canhestro e a falta de alternativas fora do consumo, torna, num certo sentido, abusiva a conversão do consumo-necessário, vital e elementar à sobrevivência e reprodução material da vida, ao consumismo-desnecessário, tornado ideologicamente necessário, vital e essencial (ALMEIDA; BITTAR, 2016, p. 594).

 

Hodiernamente, a produção das técnicas de marketing é pautada na neurociência (SILVA, 2014, p. 123-143). Essa combinação possibilita que a mensagem publicitária tenha o condão de influenciar (de forma consciente e inconsciente) a decisão de compra do consumidor.

Técnicas como marketing olfativo, gatilhos mentais, psicologia das cores, ancoragem de preços, dentre outras, se valem do subconsciente da mente humana, estimulando os sentidos dos consumidores, de modo a galvanizá-los à (in)decisão de compra. A emoção é o principal alvo da publicidade neural. As estratégias centram-se não no produto em si, mas em uma situação emocionalmente válida que vincule o produto ao consumidor, de maneira a fidelizá-lo. Não por acaso, ao imaginar uma família reunida para celebrar o natal, o único refrigerante compatível com esse momento pertence à marca Coca-Cola (VERBICARO; RODRIGUES; ATAÍDE, 2018, p. 14-22).

Diante disso, fácil compreender a importância do reconhecimento da vulnerabilidade neuropsicológica do consumidor, sobretudo em razão de sua exploração pelas campanhas publicitárias com base em estudos neurocientíficos. Fato é que esse assédio ditado pela ideologia do consumo gera não só danos psicológicos, mas também um dano econômico ao consumidor.

O doutrinador Humberto Theodoro Júnior (2017, p. 46), na obra Direitos do Consumidor, citando Marcelo Schenk Duque, afirma que a concessão irresponsável de crédito, a deficiência de informação e o apelo ao consumismo são fatores que ensejam o que convencionou-se chamar de superendividamento.

Na lição de Claudia Lima Marques (2017, p. 20), esse fenômeno se caracteriza pela “impossibilidade global do devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas e patrimônio”. A natureza dessas dívidas, todavia, não alcançam aquelas de origem fiscal ou oriundas de delitos e de alimentos.

Apontado como um dos fatos geradores do superendividamento, a concessão irresponsável de crédito ao consumidor decorre, notadamente, do apelo ao consumismo. Não há como desvincular um do outro. Dessa forma, na medida em que o fornecedor se serve da vulnerabilidade neuropsicológica do consumidor, criando necessidade e desejos e estimulando suas sensações, é verificável que o dano não se restringe ao espectro psicológico, mas atinge também o lado econômico dos indivíduos.

Sobre o tema, Dennis Verbicaro, Lays Rodrigues e Camille Ataíde, no artigo científico Desvendando a vulnerabilidade comportamental do consumidor: uma análise jurídico-psicológica do assédio de consumo, apontam que:

 

O assédio de consumo coloca o consumidor em uma situação em que se vê constrangido, persuadido e pressionado a adquirir os bens considerados desejáveis e “necessários” no momento, que, por sua vez, subitamente tornam-se ultrapassados e são substituídos por outros, num ciclo vicioso de consumo, impossível de ser acompanhado nem mesmo pelo consumidor mais diligente, gerando consequências psicológicas (ansiedade, frustração e, numa escala mais grave, depressão) e econômicas (comprometimento financeiro e superendividamento). É nesse descompasso entre o que se deseja, o que se impõe e o que se pode adquirir que o assédio de consumo se instala e coloca o consumidor em uma situação de vulnerabilidade extremada (VERBICARO; RODRIGUES; ATAÍDE, 2018, p. 8-9)

 

À vista disso, nota-se que o engenho e o esforço empregado na elaboração de velhas e novas técnicas de marketing baseadas na neurociência termina não oferecendo a vantagem esperada, posto que, ao provocar o endividamento maciço dos consumidores, o fornecedor estará também prejudicando seu lucro, dando causa ao seu próprio prejuízo.

Nessas perspectivas, dada a constitucionalização do direito privado, como visto anteriormente, há que se ter um diálogo entre o CDC e Código Civil. A professora Claudia Lima Marques (2017, p. 145) explica que essa relação chamada de “diálogo das fontes”, é fundamental diante das mudanças de paradigma do direito civil, pois significa “a atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais e gerais, com campos de aplicação convergentes, mas não mais iguais”.

Nesse contexto, o direito pátrio passou a adotar o princípio do duty to mitigate the loss ou dever de mitigar o próprio dano. Segundo Humberto Theodoro Junior (2017, p. 47), esse princípio fora importado do modelo common law pela doutrina e jurisprudência brasileira. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Resp: 1479800/DF, entendeu que:

 

O Tribunal de origem entendeu que o banco não agiu com boa-fé ao permitir que a conta-corrente permanecesse ativa por mais de um lustro sem movimentação, acumulando débitos, que foram posteriormente incluídos em cadastro de inadimplentes. Especificamente, aplicou-se o princípio “duty to mitigate the loss”, que é uma das concreções do princípio da boa-fé objetiva, segundo o qual as partes num contrato têm o dever de mitigar as perdas umas das outras (STJ, Recurso Especial n. 1479800, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 07/08/2017).

 

O dever de mitigar o próprio dano impõe às partes o múnus de tomar providências para minorar os efeitos do dano causado, isso ocorre porque o duty to mitigate the loss é um desdobramento da boa-fé objetiva e tem sua gênese no dever anexo de cooperação. Sobre esse vetor, o doutrinador Leonardo Garcia, na obra Código de Defesa do Consumidor: Comentado Artigo por Artigo, leciona que:

 

Ao versar sobre o dever de cooperação e lealdade, a doutrina moderna, inspirada no dogma da eticidade que deve reinar nas relações jurídicas, acentua a existência do dever anexo de o credor mitigar as próprias perdas em virtude do inadimplemento do devedor. É o chamado duty to mitigate the loss em matéria contratual. Foi disposto no Enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo (GARCIA, 2017, p. 65).

 

Assim, constatado que o apelo publicitário excessivo figura como um dos fatos geradores do superendividamento dos consumidores, o qual prejudica o mercado de consumo como um todo, atingindo, por conseguinte, o fornecedor, conclui-se que o princípio do dever de mitigar o próprio dano deve ser adotado como medida normativa para moderar os efeitos provocados pela galvanização publicitária.

 

Conclusão

À guisa de conclusão, nota-se que este estudo se deu a partir da constatação de que o apelo publicitário enseja o consumismo, fenômeno (ou mazela) social que caracteriza a atual sociedade.

Da pesquisa feita, conclui-se, portanto, que restou demonstrada a fragilidade psíquica e fisiológica dos consumidores, confirmando-se a existência de uma vulnerabilidade neuropsicológica a partir da qual é possível obter vantagens no mercado de consumo, ocasionando danos psicológicos ao consumidor, isto é, comportamento impulsivo, abusivo e compulsivo do consumidor, bem como danos econômicos: seu endividamento.

Outrossim, constatou-se, ainda, que o princípio do duty to mitigate the loss é ferramenta normativa capaz de minorar os excessos praticados pelos fornecedores quando da criação das campanhas publicitárias, haja vista que o endividamento maciço dos consumidores atinge todos os sujeitos do mercado de forma negativa.

Por fim, ressalta-se que este artigo não teve a pretensão de esgotar o tema, reconhecendo que o tema posto demanda um aprofundamento teórico e a produção de mecanismos práticos.

 

Referências

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[i] Graduado em direito pelo Centro Universitário Unifacid. E-mail: [email protected]

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