Direito do Consumidor x Interesses Econômicos: a querela sobre a cobertura dos testes sorológicos pelos planos de saúde durante a pandemia de Covid-19 no Brasil

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Cleidmar Avelar Santos – Graduada em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Pós-Graduada em Direito do Consumidor pela Universidade Estácio de Sá, E-mail: [email protected].

Resumo: O tema, já bastante relevante no país, considerando-se o alto número de contratos de assistência à saúde, os quais são objetos de conflitos judiciais entre consumidores e empresas de planos de saúde que vem crescendo nos últimos anos, ganha ainda maior relevo no atual contexto de pandemia de Covid-19, vivenciado desde março de 2020. Observou-se que, não obstante a obrigatoriedade da cobertura de exames diagnósticos dessa doença ter sido determinada pela Agência Nacional de Saúde em Resolução Normativa, muitos consumidores têm relatado a recusa ou a colocação de empecilhos por parte dos planos de saúde com os quais contrataram, para a realização desses exames. Assim, urge assegurar-se o cumprimento dos direitos do consumidor, parte vulnerável das relações de consumo. O presente artigo traça pesquisa qualitativa, na qual a análise da questão será feita à luz da Constituição de 1988, do Código Civil de 2002, da Lei nº 8.078/1990 e demais normas infraconstitucionais pertinentes. Têm-se como objetivos avaliar o posicionamento dos Tribunais acerca da matéria e reafirmar a importância de promover a informação do consumidor quanto aos seus direitos, tornando-os aptos a repelir abusos e/ou danos decorrentes do desrespeito contratual por parte do respectivo plano de saúde contratado.

Palavras-chave: Direito à saúde; Planos de saúde; Covid-19; Relações de consumo; Agência Nacional de Saúde.

 

Abstract: The topic, already quite relevant in the country, considering the high number of health care contracts, which are the subject of legal conflicts between consumers and health insurance companies that has been growing in recent years, gains even more relevance in the current context of the Covid-19 pandemic, experienced since March 2020. It was observed that, although the mandatory coverage of diagnostic tests for this disease was determined by the National Health Agency in Normative Resolution, many consumers have reported the refusal or placing obstacles on the part of the health plans with which they contracted, to carry out these examinations. Thus, there is an urgent need to ensure compliance with consumer rights, a vulnerable part of consumer relations. This article outlines qualitative research, in which the analysis of the issue will be made in the light of the 1988 Constitution, the 2002 Civil Code, Law No. 8,078 / 1990 and other pertinent infraconstitutional rules. The objectives are to evaluate the position of the Courts on the matter and to reaffirm the importance of promoting consumer information about their rights, making them able to repel abuses and / or damages resulting from contractual disrespect by the respective health plan. hired.

Keywords: Right to health; Health insurance; Covid-19; Consumer relations; National Health Agency.

 

Sumário: Introdução. 1. Do enquadramento dos contratos entre operadoras de planos de saúde e seus beneficiários nas relações de consumo. 2. As denúncias sobre recusa de cobertura dos exames diagnósticos de Covid-19 pelos planos de saúde para beneficiários e os posicionamentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar. 3. Entendimento do Poder Judiciário sobre a questão. Conclusão. Referências

 

Introdução

A legislação protetiva do consumidor no Brasil encontra-se em um estágio bastante avançado, contando também com uma rede de órgãos administrativos e instrumentos processuais adequados para a garantia dos direitos do consumidor e de relações de consumo equânimes.

Entretanto, devido às constantes mudanças do mercado, e de fenômenos como a globalização e o surgimento de novas tecnologias, faz-se necessário que as medidas de proteção ao consumidor evoluam para acompanhar essas mutações.

Um exemplo disso é a massificação e padronização de alguns contratos, como os de adesão, que se caracterizam pela redação unilateral do instrumento, que retira do consumidor a possibilidade de discutir suas cláusulas.

Dentre esses contratos, temos os de planos de saúde e assistência médica, os quais são apresentados de forma pronta e acabada ao consumidor, ao qual cabe somente a aceitação dos termos.

Tais contratos têm sido objetos de diversas lides judiciais, mormente no que concerne à inclusão de cláusulas abusivas ou práticas abusivas como a recusa por parte das empresas operadoras em custear tratamentos que se encontram dentro do rol de cobertura pactuado, prejudicando assim, a concretização do direito à saúde do contratante, o qual é um dos pilares da dignidade humana, fundamento do nosso Texto Maior.

O mundo tem enfrentado o chamado “inimigo invisível”, o SARS-Cov-2, vírus que pertence a uma cadeia denominada como Coronavírus. Esse causa uma síndrome respiratória aguda grave com alto poder de transmissão e letalidade. (SANARMED, 2020).

Foi identificado pela primeira vez em Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China, em dezembro do ano passado. Pelos estudos feitos até o momento, acredita-se que o vírus tenha uma origem animal, por conta dos primeiros casos confirmados terem ligações com o Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan. Assim, suspeita-se que alguns animais como cobras, morcegos e pangolins possam funcionar como hospedeiros do vírus.

A doença espalhou-se rapidamente desde a notificação do primeiro caso em 31 de dezembro de 2019 por diversos países, levando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar o surto de Covid-19 como pandemia e a, daí por diante, expedir orientações para contenção da virose e seu combate. (GRUBER, 2020).

Os principais sintomas da moléstia são tosse seca, febre, falta de ar, coriza, diarreia em alguns casos e mais recentemente foram relatados falta de apetite e perda do paladar. Entretanto, nem todas as pessoas infectadas apresentam sintomas, o que aumenta a periculosidade de sua transmissão.

O período de incubação do vírus, ou seja, o lapso temporal entre a infecção e a apresentação dos sintomas nos pacientes não assintomáticos varia entre 02 (dois) e 14 (quatorze) dias. Daí a importância das medidas de isolamento social para evitar a contaminação. (NEPOMUCENO, 2020).

Quanto a este ponto, verifica-se que não há uma uniformidade nas políticas públicas referentes ao confronto da pandemia, variando de um país para outro e mesmo dentro de uma mesma nação. Dessa forma, por consequência, temos diferentes resultados com algumas nações tendo sucesso no controle da pandemia e tratamento dos infectados e outras tendo grandes dificuldades para contornar a crise sanitária. (MAIA, 2020).

Outros fatores como problemas socioeconômicos e a existência e  manutenção de sistemas de saúde bem como a adesão das populações às medidas implementadas têm se mostrado determinantes para refrear o avanço da pandemia. (JANSEN, 2020). O ideal seria que as medidas sanitárias pudessem ser aplicadas conjuntamente a políticas econômicas e sociais. Aliás, tem sido esse um dos principais obstáculos ao enfrentamento da Covid-19. (BARROS; DELDUQUE; SANTOS, 2020).

Os problemas de infraestrutura em subúrbios e favelas e a grande parcela de pessoas desempregadas ou em trabalhos informais dificultam a obediência do isolamento social pela parcela mais carente. (ALMEIDA, 2020).

Consequentemente, pela novidade da situação e pelo alto número de infectados, o sistema de saúde público tem encontrado dificuldades como a falta de materiais, de infraestrutura e até casos de desvios de recursos públicos, beirando a saturação completa em alguns Estados da federação.

Assim, nesse momento, é compreensível que as pessoas procurem tratamento junto aos planos de saúde, que se configura como um contrato aleatório, assim definido pelo Código Civil de 2002:

 

Art. 458. Se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros, cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir. (BRASIL, 2002).

 

Portanto, nos contratos dos planos de prestação de assistência médica há um risco para ambos os contratantes. Por um lado, o consumidor pode pagar regularmente as parcelas, raramente fazendo uso dos serviços contratados e em outros casos, precisar continuamente dos mesmos. Em qualquer dos casos, as empresas contratadas possuem o dever contratual de prestar o atendimento necessário, dentro das condições estabelecidas.

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Mas, infelizmente nesse contexto de pandemia, verificou-se o aumento do número de casos de planos de saúde que tem dificultado ou até se recusado a efetuar a cobertura de testes sorológicos para averiguação de contágio pelo coronavírus de seus usuários. Essas denúncias ganharam visibilidade nos meios de comunicação, chamando atenção para o problema.

Com efeito, essas situações deram início a diversos debates sobre o tema, ensejando a tomada de medidas por parte da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) no sentido de regular a matéria, apesar de esta já se encontrar contemplada em dispositivos do Código Civil de 2002 (CC/2002) e do Código de Defesa do Consumidor/1990 (CDC/1990).

Entretanto, as decisões contraditórias do órgão supracitado quanto à obrigatoriedade ou não dessa cobertura pelos planos de assistência médica trouxe uma insegurança jurídica para todos os envolvidos. Apesar disso, os julgados acerca do tema vêm se cristalizando no sentido de privilegiar o bem jurídico saúde, determinando que os planos de saúde e laboratórios credenciados procedam aos exames em comento, desde que o consumidor preencha os requisitos formais exigidos pela ANS.

Pela gravidade dos riscos que a Covid-19 pode assumir, o que resta caracterizado pelo alto índice de mortes contabilizado até o momento – mais de 100.000 mortos, segundo dados do Ministério da Saúde (BRASIL, 2020d) – as disputas judiciais envolvendo o tema estudado, ganham enorme relevância, posto que a depender das circunstâncias, as decisões tomadas podem determinar a sobrevivência ou a morte dos pacientes, já que os sintomas nos casos mais graves da moléstia evoluem muito rapidamente, no lapso de poucos dias, justificando a sua investigação.

Tenciona-se discutir ao longo do trabalho, os dispositivos constitucionais e legais que amparam o direito do consumidor à saúde, o qual não deve ser suplantado por interesses econômicos por parte de alguns planos de saúde que tem se esquivado de suas obrigações contratuais alegando prejuízos à sua saúde financeira, até porque cabe ao empreendedor o risco da atividade econômica desenvolvida.

Por outro lado, a vulnerabilidade intrínseca ao consumidor, torna-se ainda mais acentuada, com a debilidade física provocada pela enfermidade e pela angústia psicológica resultante da ciência de portar uma doença com consequências graves e ainda imprevisíveis pelo seu ineditismo, exigindo ainda maior atenção da Justiça na repressão aos ataques feitos aos direitos dos usuários dos planos de saúde que tem seu direito lesado por práticas abusivas destas empresas.

 

  1. Do enquadramento dos contratos entre operadoras de planos de saúde e seus beneficiários nas relações de consumo

As relações de consumo são compostas por elementos subjetivos, fornecedor e consumidor e elementos objetivos, os bens e serviços contratados no mercado de consumo. O CDC define o fornecedor em seu artigo nos seguintes termos:

 

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. (BRASIL, 1990).

 

O rol de atividades elencado nesse dispositivo possui caráter exemplificativo. Andou bem o legislador ao optar que diversos conceitos da Lei 8.078/1990 fossem abertos, já que facilita a adaptação da letra da lei às mudanças sociais, fazendo com que esta continue em compasso com a realidade.

Por seu turno, o consumidor encontra-se descrito no artigo 2º enquanto “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (BRASIL, 1990).

No parágrafo único desse artigo é igualmente considerado como consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. (BRASIL, 1990).

Dessa forma, a lei contempla duas categorias de consumidores, quais sejam, o consumidor standard ou padrão e o consumidor by standard ou por equiparação. O primeiro trata-se daquele que adquire bem ou contrata serviço diretamente com o fornecedor. O último diz respeito às pessoas que não adquiriram diretamente um produto ou serviço, mas foram expostas a práticas comerciais previstas no CDC, ou ainda, que sofrerem danos à sua vida, ou saúde em virtude de fato do produto, consoante nos esclarece Theodoro Júnior (2017, p. 31):

 

Prevê o art. 17 do CDC a figura do “consumidor por equiparação” (bystander), por meio da qual a proteção da legislação consumerista é estendida àquelas que, mesmo sem participar diretamente da relação de consumo, venham a ser vítimas de evento danoso decorrentes dessa relação.

Quem, por exemplo, numa festa ingeriu bebida ou comida deteriorada pode agir, em busca de reparação do dano sofrido, contra o fabricante da bebida ou contra o buffet que preparou os alimentos. Não importa que nenhuma relação direta tenha sido previamente estabelecida entre a vítima e os fornecedores em questão.

 

Dessa forma, para ser enquadrado como consumidor não é obrigatório necessariamente ter adquirido um bem de forma direta. Ainda sobre a abrangência do conceito, foram formuladas doutrinariamente teorias explicativas da expressão “destinatário final”, inserta no art. 2º do CDC.

Parte da doutrina confere interpretação ampla ao termo, entendendo que qualquer pessoa física ou jurídica que adquira produtos ou serviços no mercado, independentemente da destinação dada aos mesmos deve ser considerada como consumidora. Essa teoria foi denominada Maximalista.

Todavia, outra parte da doutrina percebe a expressão de forma literal, concluindo que só deverá ser tomado como consumidor, aquele que adquirir produto ou serviço para consumo próprio, para uso pessoal, ficando excluídos do conceito aqueles que adquirirem produto ou serviço com finalidades empresariais ou profissionais, entendimento designado como Teoria Finalista.

Esse último entendimento vinha sendo majoritário, até meados de 2007, quando o STJ em julgamento no Resp. n. 716.877 realizado pela Terceira Turma, decidiu no caso concreto que, em situações excepcionais é admissível a aplicação do conceito de consumidor, mesmo quando o adquirente do produto ou serviço utilizá-lo para fins profissionais ou industriais, desde que reste configurada a vulnerabilidade da parte.

Quanto aos bens e serviços são delineados respectivamente como:

 

Art. 3º […]

 

  • 1° […] é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
  • 2° […] é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. (BRASIL, 1990, grifo nosso).

 

Observa-se então que a Lei 8.078/1990 excluiu de sua abrangência apenas três tipos de relações: a trabalhista, a tributária e a de previdência pública. O fundamento para a exclusão dessas relações do âmbito de aplicação das normas de consumo é que nelas não se encontra presente a liberdade de escolha, elemento básico das relações de consumo.

Enquanto nas relações trabalhistas há subordinação do trabalhador ao empregador, nas relações tributárias e previdenciárias, há obrigatoriedade no pagamento dos tributos e na contribuição ao Estado.

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Assim como as empresas tem garantidas a sua livre iniciativa e a livre concorrência com a possibilidade de ofertar seus produtos no mercado de consumo, também os consumidores devem gozar de liberdade para escolha dos bens e fornecedores que lhe aprouverem.

Além da liberdade de escolha outro aspecto inerente às relações de consumo é a presença da vulnerabilidade do consumidor. Ora, as relações civis de modo geral, pressupõem a igualdade entre partes e arrimam-se no princípio da autonomia privada. Já nas relações de consumo, embora haja a autonomia das partes, no mais das vezes são relações que se formam entre desiguais, atraindo, pois, a interferência estatal no sentido de promover uma paridade real.

Desse reconhecimento do consumidor como parte mais frágil da relação de consumo decorreu a legislação protetiva do consumidor. A vulnerabilidade está consignada no art. 4º, I do CDC, in verbis:

 

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:  (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

 

I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (BRASIL, 1990).

 

 

Esta pode ser verificada em várias esferas sendo as mais comuns, a econômica, a técnica e a jurídica. Econômica, porque o consumidor na maioria das vezes contrata com pessoas jurídicas, empresas ou até multinacionais que movimentam grandes somas em dinheiro. Técnica porquanto os fornecedores e fabricantes integram a cadeia de produção do bem, dominando os detalhes de sua confecção.

O mesmo se dá com relações a serviços especializados, cujos meandros são desconhecidos para o consumidor, como, a título exemplificativo, as companhias fornecedoras de energia elétrica, e por derradeiro, jurídica porque o consumidor é quase sempre um litigante eventual frente a uma litigante habitual, já que a maioria das corporações dispõe, inclusive, de um núcleo jurídico especializado.

No mais, essa mitigação da autonomia privada que levou as regras reguladoras do direito do consumidor a assumirem o status de normas de ordem pública, decorrem em última instância do próprio princípio constitucional da isonomia como assinala Nunes (2018, p. 79) quando afirma que “a característica de vulnerabilidade do consumidor prevista no inciso I do art. 4º decorre diretamente da aplicação do princípio da igualdade do Texto Magno”.

Sobre esse ponto, invocamos também as lições de Tartuce; Neves (2018, p. 49) que prelecionam:

 

Assim, enquadrando-se a pessoa como consumidora, fará jus aos benefícios previstos nesse importante estatuto jurídico protetivo. Assim, pode-se dizer que a vulnerabilidade é elemento posto da relação de consumo e não um elemento pressuposto, em regra.

 

[…]

 

Sintetizando, constata-se que a expressão consumidor vulnerável é pleonástica, uma vez que todos os consumidores têm tal condição, decorrente de uma presunção que não admite discussão ou prova em contrário. Para concretizar, de acordo com a melhor concepção consumerista, uma pessoa pode ser vulnerável em determinada situação – sendo consumidora –, mas em outro caso concreto poderá não assumir tal condição, dependendo da relação jurídica consubstanciada no caso concreto. A título de exemplo, pode-se citar o caso de um empresário bem-sucedido. Caso esse empresário adquira um bem de produção para sua empresa, não poderá ser enquadrado como destinatário final do produto, não sendo um consumidor vulnerável. Entretanto, adquirindo um bem para uso próprio e dele não retirando lucro, será consumidor, havendo a presunção absoluta de sua vulnerabilidade. (grifo do autor).

 

A vulnerabilidade torna-se ainda mais premente em algumas espécies de contrato, como, os de adesão. Nestes contratos o conteúdo é determinado por um dos pactuantes de forma unilateral, cabendo à outra parte, a mera anuência de seus termos, sem a possibilidade de discussão de suas cláusulas, simplesmente aderindo ou recusando-a por completo, conforme explana Gonçalves (2017, p. 121):

Contratos de adesão são os que não permitem essa liberdade, devido à preponderância da vontade de um dos contratantes, que elabora todas as cláusulas. O outro adere ao modelo de contrato previamente confeccionado, não podendo modificá-las: aceita-as ou rejeita-as, de forma pura e simples, e em bloco, afastada qualquer alternativa de discussão. São exemplos dessa espécie, dentre outros, os contratos de seguro, de consórcio, de transporte, e os celebrados com as concessionárias de serviços públicos (fornecedoras de água, energia elétrica etc.).

 

Percebe-se então que nesses contratos a liberdade de escolha do contraente é praticamente nula, o que justifica o reconhecimento da hipervulnerabilidade do consumidor nesse tipo de relação e a existência de diversos dispositivos legais para torná-la mais justa e isonômica.

Os contratos cumprem em nosso ordenamento uma dupla função: econômica, no sentido em que são instrumentos para as diversas transações comerciais; mas também, uma função social, princípio que foi inserido como cláusula geral do Diploma Civil de 2002, para apontar a possibilidade excepcional de intervenção sobre a autonomia privada e sobre a propriedade, com o fito de promover justiça social.

Esta é reconhecida de forma literal no próprio texto do Código Civil o qual dispõe no art. 421 que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.” (BRASIL, 2002). Daí decorrem, de forma coerente, os limites opostos a esse tipo de contrato que já é desigual em sua própria gestação:

 

Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.

 

Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio. (BRASIL 2002).

 

Na mesma senda, o Código de Defesa do Consumidor reforça essas regras enunciando no art. 47 que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. (BRASIL, 2002).

Feitas estas considerações, conclui-se que os contratos de planos de saúde e assistência médica enquadram-se na definição de contratos por adesão e a eles é aplicável todo o arcabouço legal e doutrinário exposto até aqui, entendimento ratificado pelo enunciado da Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o qual determina que: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”. (BRASIL, 2018).

O contrato de plano de saúde pode ser conceituado em breve síntese como aquele no qual uma das partes se compromete a arcar com a prestação de serviços médicos e de saúde, mediante contraprestação pecuniária da outra, normalmente através de uma rede credenciada previamente definida pela empresa.

Essa prestação é continuada e por prazo indeterminado. Constitui-se em um contrato de risco para ambas as partes, vez que não há uma maneira precisa de se prever a necessidade ou a regularidade na utilização desses serviços.

Existe uma Lei específica que traz as diretrizes de atuação das empresas que atuam nessa área, a Lei nº 9.656/1998, conhecida como Lei dos Planos de Saúde. Esta dispõe que esses serviços estão sujeitos também às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde, inclusive autorizando a sua atividade, após satisfação dos requisitos estipulados, nos artigos reproduzidos a seguir:

 

Art. 1º […]

 

  • 1º Está subordinada às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS qualquer modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira, tais como:

 

  1. a) custeio de despesas;
  2. b) oferecimento de rede credenciada ou referenciada;
  3. c) reembolso de despesas;
  4. d) mecanismos de regulação;
  5. e) qualquer restrição contratual, técnica ou operacional para a cobertura de procedimentos solicitados por prestador escolhido pelo consumidor; e
  6. f) vinculação de cobertura financeira à aplicação de conceitos ou critérios médico-assistenciais. (BRASIL, 1998).

 

 

Diante do atual cenário, naturalmente elevou-se a procura por exames diagnósticos e tratamentos relacionados à Covid-19, o que exigiu uma maior intervenção da ANS nas relações entre consumidores e empresas de planos de saúde, para regular as novas situações resultantes desse contexto, as quais ora se passa a analisar.

 

2. As denúncias sobre recusa de cobertura dos exames diagnósticos de Covid-19 pelos planos de saúde para beneficiários e os posicionamentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar

O direito à saúde é um dos mais importantes em nosso ordenamento jurídico, sobretudo devido ao seu entrelaçamento com os direitos à vida e à dignidade humanas. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assevera em seu artigo 196 ser a saúde,

 

direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988).

 

Apesar de esta tratar-se de norma de eficácia plena, de aplicabilidade imediata, sabe-se que essa é uma garantia que ainda não se consubstanciou em concreto na vida dos cidadãos brasileiros. Muitas vezes, diante desta ineficácia, muitos se voltam para o plano de saúde como uma forma alternativa de obter atendimento e tratamento médicos e hospitalares.

De fato, o número de contratações com planos de saúde no Brasil é significativo, atingindo mais de 47 milhões de pessoas de acordo com dados obtidos no site da ANS (BRASIL, 2020a).

Mesmo em períodos de normalidade, as demandas judiciais envolvendo planos de saúde e seus usuários são bastante comuns. Com a deflagração do surto de coronavírus no país, novas lides se esboçaram, agora em torno da cobertura de exames diagnósticos da Covid-19. Transcreve-se infra alguns casos denunciados a veículos de comunicação em que houve essa infração:

 

Com febre e dor no corpo, um autônomo de 31 anos, que prefere não ser identificado, procurou um hospital do Grupo São Francisco em 4 de junho na zona leste de Ribeirão Preto (SP) com medo de que estivesse com Covid-19.

Ele afirma que, depois de ser submetido a um exame de sangue, que descartou a suspeita de dengue, foi orientado pela médica que o atendeu a procurar o Polo Covid-19 na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Avenida Treze de Maio para que pudesse ser submetido ao teste para Covid-19 porque o nível de plaquetas estava baixo.

O autônomo conta que a profissional disse que, pelo convênio, ele não conseguiria realizar o procedimento e que o exame só era adotado para casos extremos da doença.

“Cheguei a questionar: mas quero fazer exame da Covid. Aí ela falou: não, a gente não está fazendo aqui agora, só em caso muito grave. Ela me orientou a ir à UPA, porque lá eles estavam fazendo”, relata.

Liberado e com um receituário para tomar um vermífugo e um corticoide, o autônomo afirma que procurou a UPA, onde testou positivo para o novo coronavírus. “Eles me ligaram sete dias depois falando o resultado. Deu positivo.”

Com a manifestação leve da doença, o autônomo afirma estar bem, livre dos sintomas, e que seguiu as recomendações de isolamento social para evitar o contágio entre seus familiares. Por outro lado, critica a impossibilidade de ter feito o teste pelo plano de saúde pelo qual paga.

“O certo era eles terem feito o exame, porque pago para o hospital, não interessa o valor que eles deveriam cobrar pra fazer o exame. (…) Não deram essa opção pra mim em querer fazer ou não.” (TIENGO, 2020).

 

Outro relato similar dentro da mesma reportagem:

 

Um estudante de 22 anos, que também prefere não ser identificado, afirma que não conseguiu ser submetido ao teste da Covid-19 em Sertãozinho (SP), mesmo depois de procurar o plantão da Unimed com sintomas como febre e perda de paladar e de receber uma ficha com uma solicitação do médico que o atendeu para que o procedimento fosse realizado.

Ele relata que há cerca de três semanas tem permanecido em casa se recuperando dos sintomas, segundo ele graves, sem de fato ter o diagnóstico. “Certeza absoluta que eu estava com Covid, mas eles não quiseram fazer o exame”, diz.

O estudante conta que procurou o plantão do hospital em 10 de junho depois de sentir dores pelo corpo, febre, falta de ar e perda de paladar. Ele relata que, durante a consulta, o médico que o atendeu o diagnosticou com suspeita de Covid-19 e emitiu uma ficha solicitando o procedimento.

A suspeita foi reforçada, segundo o paciente, pelo fato de a mãe do estudante, uma enfermeira de 54 anos, ter procurado atendimento médico com sintomas do novo coronavírus.

Ele enviou ao G1 um documento timbrado do plano de saúde com a assinatura e o carimbo de um médico solicitando a realização do exame RT-PCR. A ficha também menciona que o paciente estava com perda de paladar.

“Ele viu todos os meus sintomas e me deu uma ficha. Ele falou que eu estava com Covid e que eu precisaria fazer o exame”, diz.

O paciente conta, no entanto, que ao procurar funcionários do convênio recebeu a informação de que o exame tinha sido recusado. Depois de uma primeira recusa sem explicação, ele afirma que obteve a justificativa por telefone, de uma central de atendimento do plano em Ribeirão Preto. “A moça me atendeu e me falou assim que o exame foi negado porque eu não tinha sintomas previstos pelo Ministério da Saúde”, alega.

Ele afirma que deram a opção de procurar a unidade de atendimento da Unimed na Avenida Nove de Julho, em Ribeirão Preto, e que ainda poderia ter procurado o sistema público em Sertãozinho, mas que não tinha condições de se deslocar por conta própria devido às suas condições de saúde. Nos primeiros dias, ele chegou a ficar acamado, com dificuldade para permanecer em pé.

“Como eu iria lá dirigindo, nem tenho condições de dirigir, minha mãe também não, porque é [era] muita falta de ar, muita dor. E de ônibus eu iria contaminar meio mundo. Eu já sabia que eu estava com Covid, era 99% de certeza, só precisava fazer o exame para confirmar.”

Desde então, ele tem permanecido em recuperação em casa, onde vive com a mãe. De acordo com ele, a técnica de enfermagem também tentou realizar o exame para Covid-19 na Sermed em Sertãozinho, no início do mês, mas também não teve acesso ao teste. “Ela procurou e eles deram também a justificativa de que só [fazem o exame] em casos de internação.” (TIENGO, 2020).

 

Trouxe-se à baila esses casos que longe de serem isolados, repetiram-se em diversas localidades brasileiras com operadoras de planos de assistência médica diferentes, muitos deles chegando ao Judiciário.

A ANS mudou seu posicionamento diante da questão ao longo dos seis meses em que se tem enfrentado a pandemia. Inicialmente, aprovou em 12 de março de 2020 em reunião extraordinária, a inclusão do exame de detecção do novo vírus na lista de procedimentos obrigatórios para beneficiários de planos de saúde, a Resolução Normativa nº 453, nas seguintes condições:

 

Art. 1º A presente Resolução altera a Resolução Normativa – RN nº 428, de 07 de novembro de 2017, que dispõe sobre o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde no âmbito da Saúde Suplementar, para regulamentar a utilização de testes diagnósticos para infecção pelo Coronavírus.

 

Art. 2º O Anexo I da RN nº 428, de 2017, passa a vigorar acrescido do seguinte item, “SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – pesquisa por RT – PCR (com diretriz de utilização)”, conforme Anexo I desta Resolução.

 

Art. 3º O Anexo II da RN nº 428, de 2017, passa a vigorar acrescido dos itens, SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – PESQUISA POR RT-PCR cobertura obrigatória quando o paciente se enquadrar na definição de caso suspeito ou provável de doença pelo Coronavírus 2019 (COVID-19) definido pelo Ministério da Saúde, conforme Anexo II desta Resolução. (BRASIL, 2020b, grifo nosso).

 

Portanto, a obrigatoriedade do custeio desses exames para os beneficiários dos planos de saúde, embora a nosso ver já existisse como decorrência natural dos próprios contratos, acabou sendo reafirmada através dessa Resolução, que foi útil no sentido de esclarecer os procedimentos a serem observados pelos usuários.

Um deles é que o exame seja solicitado por médico com a devida justificação, a saber, a descrição dos sintomas do paciente que conduziram à suspeita de infecção pelo vírus. A partir daí, o usuário deve entrar em contato com a operadora de seu plano para saber em quais locais dentro da rede credenciada poderá realizar o exame.

Em complemento, a ANS adicionou em 28 de maio de 2020, por meio de outra Resolução Normativa, a nº 457/2020 mais seis exames que auxiliam no diagnóstico de Covid-19 no rol de coberturas obrigatórias pelos planos de saúde, in verbis:

 

Art. 3º O Anexo II da RN nº 428, de 2017, passa a vigorar acrescido dos itens:

 

I – Item c na DUT do procedimento Dímero-D, conforme Anexo desta Resolução;
II – Procalcitonina, dosagem, conforme Anexo desta Resolução;
III – Pesquisa rápida para Influenza A e B, conforme Anexo desta Resolução;
IV – PCR em tempo real para Influenza A e B, conforme Anexo desta Resolução;
V – Pesquisa rápida para Vírus Sincicial Respiratório, conforme Anexo desta Resolução; e
VI – PCR em tempo real para Vírus Sincicial Respiratório, conforme Anexo desta Resolução. (BRASIL, 2020c).

 

Repisa-se que as operadoras de planos de saúde têm por obrigação custear todos os procedimentos, tratamentos e medicamentos inclusos no rol de benefícios da ANS, obrigatoriedade imposta pela Lei 9.656/1998.

Na situação observada, em se recusando a empresa a cumprir seu dever de fazer ou ultrapassado o prazo de três dias úteis de sua solicitação sem o retorno, o consumidor tem como opções fazer uma reclamação nos órgãos administrativos da Agência Nacional de Saúde ou do Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), ou ainda recorrer à via judicial para fazer valer seu direito.

Ocorre que em 17 de julho de 2020 a ANS retrocedeu, suspendendo a norma anterior e trazendo um novo entendimento segundo o qual, a partir de então, as operadoras de planos de saúde estariam desobrigadas de custear os testes sorológicos para o diagnóstico de Covid-19.

A medida considerada controversa gerou bastantes críticas, não apenas por provocar insegurança jurídica, mas também por apresentar justificativas pouco plausíveis, senão vejamos. Uma das justificativas apresentadas seria um suposto desequilíbrio financeiro o qual poderia impactar de forma negativa os planos de saúde, repercutindo na ordem econômica.

Desde o início da pandemia não houve prejuízo na margem de lucros dessas empresas porque, se por um lado aumentaram os atendimentos de urgência e emergência, essas despesas foram compensadas pela diminuição no número de outros atendimentos desatrelados do covid-19 como consultas, cirurgias eletivas, dentre outros.

Além disso, o ordenamento civil brasileiro adotou a Teoria do risco, segundo a qual aquele que se beneficia dos bônus deve também suportar os ônus da atividade econômica desenvolvida.

Desse modo, eventual tentativa de transferência de despesas para os consumidores como forma de minimizar seus custos ofende o princípio da boa fé objetiva, o qual deve nortear todos os contratos. Ao encontro dessa interpretação vem Silva (2020), ao avaliar que

 

este mecanismo de sinistralidade que permite à operadora transferir os riscos da atividade originalmente assumidos mediante aumento das contraprestações mensais, faz com que haja vantagem excessiva frente aos consumidores, o que viola o advento das normas contidas nos artigos 39, V e art. 51, XIII do Código de Defesa do Consumidor, além de descaracterizar a própria natureza e base objetiva do contrato firmado, que pressupõe a possibilidade de prejuízo simultânea ao lucro – dito isso porque o que as operadoras querem fazer é substituir o caráter aleatório do contrato tornando-o comutativo somente para a operadora, o que viola prelados mínimos da essência de uma ideia de boa-fé objetiva (isso – esse tipo de estratagema, são as letrinhas miúdas que se deve conter no século XXI).

 

Ademais, a outra explicação para a mudança de posicionamento da ANS foi a suspeita de imprecisão dos testes sorológicos, que ainda estariam sendo objetos de estudos científicos, e, portanto sem eficácia definitivamente comprovada. Quanto a esse aspecto é fato que além de ainda não haver uma vacina ou tratamento específico para essa moléstia, o mesmo não se pode afirmar no que compete aos exames diagnósticos. Isto porque

 

na comunidade médica há quem defenda a importância dos testes sorológicos, uma vez que eles servem para identificar se a pessoa possui em seu organismo os anticorpos relacionados ao covid-19, demonstrando-se, assim, se a pessoa já foi infectada e/ou adquiriu imunidade ao vírus, podendo, inclusive, auxiliar em estatísticas e adoção de políticas púbicas voltadas ao combate do coronavírus. (PAULA JÚNIOR, 2020).

 

Aliás, a testagem em massa integra a política recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ao lado do isolamento social, mesmo que tais medidas sofrerão variações de país para país, a depender do contexto político, econômico e social de cada um.

Então, em 13 de agosto de 2020, mais uma vez a ANS reviu sua decisão, determinando novamente a obrigatoriedade de cobertura dos testes sorológicos de detecção do Covid-19 pelos planos de saúde.

Avalia-se que, apesar da indecisão demonstrada pelo órgão tendo em vista essas mudanças de posicionamento que provocam insegurança jurídica, em um momento já instável pela própria pandemia e seus desdobramentos, finalmente a ANS optou pela solução mais acertada e consentânea com a defesa dos direitos dos consumidores.

 

3. Entendimento do Poder Judiciário sobre a questão

Os Tribunais pátrios vêm decidindo majoritariamente pelo deferimento de pedidos em ações de obrigações de fazer nas quais o autor é consumidor enfermo, com suspeita de ter contraído Covid-19 e foi impossibilitado de fazer o exame diagnóstico por recusa de plano de saúde contratado.

Um desses casos foi o processo nº 0701742-10.2020.8.07.0014 no qual a juíza de Direito Wannnessa Dutra Carlos do Juizado Especial Cível do Guará, DF, acolheu liminar que requeria a cobertura de exames necessários ao diagnóstico de Covid-19 por mulher com suspeita de infecção.

A autora em questão ajuizou a ação alegando que a operadora do plano de saúde negou a autorização para o teste mesmo com a requisição médica, ao que a empresa retorquiu que a solicitante não se enquadrava na hipótese de casos suspeitos, argumento que foi desconstruído pelas provas apresentadas nos autos.

Na decisão, a magistrada deferiu a liminar para a autorização dos exames em qualquer estabelecimento hospitalar ou laboratório integrante da rede conveniada do plano reclamado, sob pena de multa, consoante se transcreve a seguir:

 

A antecipação pretendida depende do preenchimento de dois requisitos, quais sejam, a demonstração da verossimilhança das alegações e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, os quais se fazem presentes no caso ora em exame.

Ademais, nos casos de obrigação de fazer ou não fazer, a lei exige somente os requisitos previstos no art. 461, CPC, vale dizer, relevância dos fundamentos e justificado receio de ineficácia do provimento final.

Os documentos colacionados comprovam que a parte autora enquadra-se entre os casos suspeitos de contaminação por COVIC-19 (ID59515236).

Todavia, já decorreu mais de 10 dias desde o início dos sintomas e a parte autora permanece com sintomas leves, o que reforça a necessidade de permanecer em ISOLAMENTO DOMICILIAR, o qual, nesse atual estado de evolução do risco de contágio está sendo aconselhado a toda a população brasileira.

A Portaria 356, de 11 de março de 2020, editada para regulamentar os procedimentos previsto na Lei 13.979/2020, dispõe em seu artigo 3º: Art. 3º

A medida de isolamento objetiva a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local.

  • 1º A medida de isolamento somente poderá ser determinada por prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica, por um prazo máximo de 14 (quatorze) dias, podendo se estender por até igual período, conforme resultado laboratorial que comprove o risco de transmissão.
  • 2º A medida de isolamento prescrita por ato médico deverá ser efetuada, preferencialmente, em domicílio, podendo ser feito em hospitais públicos ou privados, conforme recomendação médica, a depender do estado clínico do paciente.
  • 3º Não será indicada medida de isolamento quando o diagnóstico laboratorial for negativo para o SARSCOV-2.
  • 4º A determinação da medida de isolamento por prescrição médica deverá ser acompanhada do termo de consentimento livre e esclarecido do paciente, conforme modelo estabelecido no Anexo I.
  • 5º A medida de isolamento por recomendação do agente de vigilância epidemiológica ocorrerá no curso da investigação epidemiológica e abrangerá somente os casos de contactantes próximos a pessoas sintomáticas ou portadoras assintomáticas, e deverá ocorrer em domicílio.
  • 6º Nas unidades da federação em que não houver agente de vigilância epidemiológica, a medida de que trata o § 5º será adotada pelo Secretário de Saúde da respectiva unidade.
  • 7º A medida de isolamento por recomendação será feita por meio de notificação expressa à pessoa contactante, devidamente fundamentada, observado o modelo previsto no Anexo II. (GRIFEI).

Nesse aspecto, recomenda-se que a autora e seus familiares, permaneçam em regime de isolamento domiciliar voluntário, todavia, em havendo evolução dos sintomas, deverá procurar estabelecimento hospitalar a fim de se submeter ao tratamento e exames oportunamente solicitados.

Com tais considerações, DEFIRO a antecipação dos efeitos da tutela de urgência para DETERMINAR seja AUTORIZADO, pela parte requerida, a realização dos exames necessários para diagnosticar contágio por coronavirus, em estabelecimento hospitalar, ou laboratórios particulares conveniados ao plano de saúde, uma vez que a RN 453 da ANS não traz qualquer restrição a esse respeito, sob pena de MULTA PECUNIÁRIA no valor de R$600,00. INTIMEM-SE.

 

(TJ-DF e Territórios. Ação de fazer com pedido de liminar nº 0701742-10.2020.8.07.0014, do Juizado Especial Cível do Guará. Relatora: drª. Wannessa Dutra Carlos. Data do Julgamento: 23/03/2020. Data de Publicação: DJe: 23/03/2020).

 

Percebe-se que desde o início da pandemia no Brasil, casos como esses vêm se repetindo pelo país. Pela própria natureza dessa pesquisa optou-se por trazer um único julgado, a título de exemplificação da forma como nossos Tribunais têm decidido nessas situações.

Decisões como a que abordamos são importantes porque desencorajam o descumprimento contratual por parte dos planos de assistência médica, garantindo que o contrato possa cumprir seus fins.

A responsabilidade civil in casu é a objetiva, ou seja, aquela que independe da averiguação de culpa ou dolo, bastando apenas a superveniência de dano derivado da conduta do agente. Essa espécie de responsabilidade além de prevista no Código Civil foi a adotada pela Lei 8.078/1990 em relação ao fornecedor de produtos ou serviços por danos oriundos destes, nos artigos 12, 13 e 14.

 

Em verdade, é preciso se explicitar que se pode discutir culpa em sede de responsabilidade civil objetiva. Todavia, isso somente ocorrerá se houver provocação do réu nesse sentido, suscitando, por exemplo, a culpa exclusiva da vítima (o que quebraria o nexo causal) ou a culpa concorrente (que é elemento para fixação da indenização).

A diferença da responsabilidade civil objetiva para a subjetiva não está, portanto, na possibilidade de discutir culpa, mas, sim, na circunstância da culpa ser um elemento obrigatório de ônus da prova, pois, na responsabilidade civil subjetiva (seja de culpa provada ou de culpa presumida), o julgador tem de se manifestar sobre a culpa, o que somente ocorrerá acidentalmente na responsabilidade civil objetiva. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 863).

 

Além disso, é sabido que sempre existe a possibilidade de inversão do ônus da prova nas causas consumeristas, visto que o Código de Defesa do Consumidor assim o previu no art. 6, VIII, ante a hipossuficiência dos consumidores em relação aos fornecedores.

A adoção desse tipo de responsabilidade pelo CDC está arrimada em alguns pressupostos. Dentre eles tem-se a assunção do risco da atividade econômica, a produção em série, que inevitavelmente ocasiona a maior incidência de vícios e defeitos nos produtos, apesar de toda evolução tecnológica e, ainda, por conta da maior dificuldade do consumidor em comprovar a culpa dos fornecedores pelos produtos viciados.

Esses fundamentos são abordados de forma extremamente didática por Nunes (2011), no qual esclarece que:

 

Vê-se, só por isso, que, se o consumidor tivesse de demonstrar a culpa do produtor, não conseguiria. E, na sistemática anterior do Código Civil (art. 159), o consumidor tinha poucas chances de ressarcir-se dos prejuízos causados pelo produto ou pelo serviço.

Além disso, ainda que culpa houvesse, sua prova como ônus para o consumidor levava ao insucesso, pois o consumidor não tinha e não tem acesso ao sistema de produção e, também, a prova técnica posterior ao evento danoso tinha pouca possibilidade de demonstrar culpa. Poder-se-ia dizer que antes — por incrível que possa parecer — o risco do negócio era do consumidor. Era ele quem corria o risco de adquirir um produto ou um serviço, pagar seu preço (e, assim, ficar sem seu dinheiro) e não poder dele usufruir adequadamente ou, pior, sofrer algum dano.

 

Portanto, o consumidor que vier a ser lesado por negativa de plano de saúde em cobrir os testes sorológicos para detecção de Covid-19 fará jus a ter seu direito à saúde atendido, assim como aos danos materiais e morais resultantes da conduta omissiva da empresa contratada.

Ainda dentro desse tema, faz-se oportuno comentar acerca de uma prática jurídica comum em outras nações, mas que encontra ainda resistência entre a doutrina e jurisprudência brasileiras, “a indenização punitiva”.

As origens dessa prática remonta aos Estados Unidos, um dos países pioneiros na legislação protetiva aos direitos do consumidor, lá denominada como punitive damages. A ideia desta é aplicar penas pecuniárias aos infratores de modo que as multas não tenham mero caráter reparatório, mas também compensatório e pedagógico. Visa assim, a um só tempo, punir os infratores e desmotivá-los a violarem novamente as normas.

Essa Teoria tem maiores adeptos na seara dos Direitos consumerista e ambiental, no caso do primeiro, sobretudo, por conta da vulnerabilidade do consumidor já comentada alhures e no segundo caso, por conta do bem jurídico tutelado. De fato, nota-se que

 

a indenização de cunho apenas reparatório, há muito, não tem atendido a todas as situações da vida. Muitas vezes, o simples ressarcimento do indivíduo lesado, preconizado na teoria tradicional da responsabilidade civil, se mostra insuficiente para responder aos problemas de uma sociedade multicultural, pluralista e democrática, cabendo ao direito, estabelecer novos limites, além de prevenir e solucionar os conflitos apresentados pela sociedade contemporânea. (SILVEIRA, 2016).

 

Além disso, na prática, observa-se que muitas vezes os valores irrisórios das multas reparatórias aplicadas acabam tornando-se simbólicas, fazendo com que muitos infratores tornem-se contumazes por acharem mais vantajoso descumprirem a lei para aumentarem seus lucros. Para os defensores de sua aplicação, dentre os quais nos incluímos,

 

A função punitiva tem o objetivo de reforçar as sanções sob o escopo da responsabilidade civil, a fim de funcionar de maneira hábil a mitigar a possibilidade de se efetivar a hipótese na qual o agente perceba que as consequências da sua conduta serão inferiores ao proveito auferido pela conduta ilícita, inibindo, por exemplo, delitos em massa envolvendo as relações de consumo e os danos de âmbito ambiental. (SILVEIRA, 2016).

 

Obviamente reconhece-se que a adoção dessa medida requer parcimônia, com a definição de critérios específicos, sob pena de banalizar sua aplicação. Um desses requisitos é a proporcionalidade. Não é justo, tampouco razoável, aplicar a um microempresário uma multa de mesmo valor que a aplicada a uma corporação multinacional, por exemplo. Também há que se ajustar o valor da sanção à gravidade do delito.

Alguns juristas defendem sua aplicação, desde que esta seja previamente definida em lei, como Theodoro Júnior (2017, p. 148) que aduz:

 

O caráter punitivo da reparação do dano moral no âmbito das relações de consumo é defendido, doutrinariamente, como prevenção contra as grandes corporações que dominam a prestação dos serviços essenciais no mundo capitalista atual. As multas apenas simbólicas não intimidam os grandes fornecedores. É preciso introduzir no Brasil, a exemplo do que ocorre no primeiro mundo, a “indenização punitiva”, para defender a sociedade consumerista da desídia notada na prestação dos serviços monopolizados e daqueles prestados por megacorporações.

[…]

O esforço justo para que as indenizações punitivas sejam adotadas no Brasil, em nome da prevenção contra os prejuízos graves suportados pelos consumidores, no quadro atual de nosso ordenamento jurídico, há de voltar para o plano legislativo e não para o judiciário.

 

No objeto específico desta análise, qual seja, a conduta dos planos de saúde em negar cobertura de exames diagnósticos de Covid-19 para seus usuários, mesmo quando estes preenchem todos os requisitos legais para tanto, se configura claramente em prática abusiva, a qual deve ser severamente reprimida, não só por direcionarem-se contra consumidores hipervulneráveis, com a saúde física e/ou psicológica comprometida, mas ainda por o fazerem em um momento de calamidade, a pandemia global.

Considerando-se que, via de regra, as empresas que comercializam planos de assistência à saúde possuem alta lucratividade, mantida, pela própria natureza aleatória do contrato e pelos reajustes periódicos autorizados por lei, não se configura nenhum absurdo a aplicação do raciocínio encampado pela Teoria do desestímulo.

Esta se torna uma importante aliada, na medida em que serve como fator de inibição de novas práticas abusivas por parte de operadoras de planos de saúde e ajuda a conferir maior segurança jurídica e a reduzir a judicialização das relações de consumo, estimulando o respeito à boa fé e a lisura contratuais.

 

Conclusão

Neste trabalho foi feita uma pesquisa bibliográfica acerca do tema escolhido, especialmente em fontes jurídicas como leis, doutrinas, jurisprudências e sites de revistas e periódicos jurídicos especializados, assim como sites de notícias que abordaram a situação-problema investigada.

Procedeu-se à leitura, reflexão e análise minuciosa do material levantado, associando-o sempre ao conteúdo das aulas ministradas nas disciplinas que compõem o curso.

Foi verificado que as demandas judiciais envolvendo planos de saúde e de assistência médico hospitalar e seus beneficiários têm aumentado, na maioria das vezes motivada pelo inadimplemento de obrigações contratuais por parte das empresas, mormente ao seu próprio objeto, a cobertura de exames, consultas e tratamentos.

Percebeu-se ainda, que, durante o período de pandemia no Brasil (meados de março de 2020 até os dias atuais) muitos beneficiários denunciaram a negativa ou obstaculização da cobertura de exames diagnósticos de Covid-19 por parte dos planos de saúde com os quais contrataram, colocando em risco sua saúde e, pela gravidade que a moléstia pode alcançar, até mesmo suas vidas.

Sensível a esse problema, a Agência Nacional de Saúde, editou as Resoluções Normativas nº 453 e 457, entendendo que a cobertura desses exames pelos planos de saúde é obrigatória. No entanto, alterou seu entendimento, suspendendo sua aplicação em decisão de 17 de julho de 2020. Em 13 de agosto, contudo, mais uma vez reviu sua postura e optou por manter a obrigatoriedade determinada nas Resoluções citadas.

Compreende-se que essas mudanças de posicionamento por parte da ANS provocaram insegurança jurídica. Com efeito, a jurisprudência nacional tem estado dividida no que concerne às querelas que versam sobre esse objeto.

Não obstante esse fato, na pesquisa realizada, foi apurado que a maioria dos julgados decidiu em favor do consumidor beneficiário de plano, estipulando a obrigatoriedade do plano em autorizar a feitura dos exames requeridos. Esse entendimento refletiu-se em processos de diferentes estados do país, demonstrando que a tendência futura será a provável sedimentação do mesmo no Judiciário.

Conclui-se ainda que além da legislação protetiva do consumidor e de medidas para conferir-lhe eficácia, é fundamental a informação dos consumidores quanto aos seus direitos. Isto porque, para compreender que tiveram seus direitos violados e buscar a Justiça, é mister que tenham ciência acerca deles.

Ressalta-se ainda a importância do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor e da interferência do Estado no sentido de garantir a liberdade de escolha e de coibir práticas abusivas por parte de fornecedores de produtos ou serviços. Na situação em tela, as Resoluções Normativas da ANS, a despeito de sua suspensão temporária vieram reafirmar uma obrigação que já é intrínseca, pela própria finalidade dos contratos de prestação de assistência médica.

Os fornecedores de serviços que recusarem-se a cumprir as obrigações contratuais, devem ser compelidos a fazê-lo pela via judicial, arcando com o descumprimento de eventuais prejuízos materiais e /ou morais infligidos ao consumidor.

Por fim, discutiu-se a possibilidade de adoção e aplicabilidade da Teoria do Desestímulo, a qual prediz que além da multa reparatória em casos como o objeto da presente discussão, seria cabível a imposição de multa com caráter sancionatório e pedagógico com o escopo de desencorajar novas infrações. Multa essa que deve se harmonizar com o princípio da proporcionalidade, não perdendo de vista o equilíbrio entre o delito e a sanção, e atentando sempre para a situação econômica do fornecedor.

Presume-se que todas as medidas mencionadas contribuem para uma maior conscientização das operadoras de planos de saúde e assistência médica, principalmente por conta de seus contratos envolverem os bens jurídicos mais importantes do ordenamento brasileiro, a vida, a saúde e a dignidade humanas. Tal percepção é indispensável para que crescimento econômico ande de mãos dadas com justiça social nas relações de consumo.

 

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