Francisco Mailson de Oliveira Silva – Advogado. Pós-graduado em processo penal. Autor de livro. E-mail: [email protected].
Resumo: Trata-se de artigo em que se analisa a responsabilidade civil da instituição financeira por conduta criminosa perpetrada por criminosos que se utilizam das facilidades de abrir e movimentar conta bancária de forma eletrônica para escoar o proveito criminoso. A instituição financeira queda-se omissa no dever de segurança, incrementando no risco da segurança bancária de consumidores-vítimas, e endossando o proveito e êxito dos criminosos, quando agem de forma livre. As teorias da cegueira deliberada e conditio sine qua non são invocadas para fortificar o tônus da responsabilidade objetiva da instituição bancária, evocando que quando os criminosos agem utilizando-se o aparato do banco, atrai o fortuito interno e fato do serviço, devendo os danos suportados por consumidores-vítimas serem integralmente reparados. A jurisprudência brasileira é uníssona quanto a possibilidade de responsabilizar civilmente a instituição bancária quando esta é negligente em seus deveres, notadamente o de segurança.
Palavras-chaves: segurança bancária. Responsabilidade objetiva. Fortuito interno.
Abstract: This is an article that analyzes the financial institution’s civil liability for criminal conduct perpetrated by criminals who use the facilities to open and operate bank accounts electronically in order to dispose of the criminal gain. The financial institution falls silent on the duty of security, increasing the risk of bank security for consumer victims, and increasing the profit and success of criminals, when they act freely. Theories of deliberate blindness and conditio sine qua non are invoked to strengthen the tone of the banking institution’s objective liability, evoking that when criminals act using the bank’s apparatus, it attracts the internal fortuitous and fact of the service, and the damages incurred victim consumers are fully repaired. Brazilian jurisprudence is unanimous in terms of the possibility of civilly holding the bank accountable when it is negligent in its duties, notably that of security.
Keywords: bank security. Strict liability. Internal fortuitous.
Sumário: Introdução. 1. Teoria da cegueira deliberada; 2. conditio sine qua non. Conclusão. Bibliografia.
Introdução
A dimensão da responsabilidade civil da instituição financeira no cibercrime torna-se presente na atualidade, haja vista os avanços tecnológicos e aplicativos existentes no mercado bancário, o que atrai os olhares de organizações criminosas e criminosos de colarinho branco, como os que aplicam golpes pela internet.
O banco, ao disponibilizar a abertura de conta bancária de forma eletrônica e, igualmente, a sua movimentação, podendo o agente criminoso entrar e sair do sistema financeiro, usando de documentos e nomes falsos, com escopo de concretizar a empreitada criminosa, assume os riscos inerentes a atividade de tornar a operação segura e isenta de lavagem de capitais. Sem o banco, sem a conta bancária, o prognóstico de êxito da conduta criminosa no cibercrime de leilões virtuais seria zero, o que torna a participação do banco determinante para a operação criminosa.
As teorias da cegueira deliberada e da conditio sine qua non são argumentos tonificantes da responsabilidade civil objetiva da instituição financeira, pois o banco queda-se omisso no dever de segurança, facilitando que o dinheiro, proveniente do crime, seja disponibilizado e movimentado, o que incrementa no dano patrimonial do consumidor-vítima, que teve seu dinheiro empregado por criminosos estelionatários.
O dever de segurança, quando rompido pelo banco, atrai a aplicação do fortuito interno, ínsito à atividade bancária que, ao disponibilizar serviços e produtos no mercado, aberto para todos, inclusive para agentes criminosos, está obrigado à reparação civil daqueles que tenha sido vítimas da ação criminosa, encontrando-se o banco, em sua conduta omissiva e abusiva, concatenada no nexo causal entre a conduta criminosa e os danos.
- Teoria da cegueira deliberada
A Willful Blindness Doctrine, ou consciência camuflada, é uma forma de atrair a análise de que o sujeito age, no mínimo, com dolo eventual diante da conduta punível; tapam-se os olhos, como subterfúgio de buscar minimizar ou romper o nexo causal entre a conduta criminosa e o resultado criminoso, porém a conduta de deliberadamente fingir não existir nada de errado ou criminoso é juridicamente relevante, criminal e civilmente.Assim, o sujeito que age deliberadamente na omissão de cautelas e no concatenamento de fatos e condutas de terceiros, na empresa criminosa, igualmente tem conduta enquadrada como dolo eventual.
Na dogmática penal temos que os crimes não podem ser responsabilizados de forma objetiva, devendo existir ou de forma dolosa ou culposa. Nesse contexto, o dolo se bifurca em dolo direto, em que se quer o resultado criminoso, e eventual, em que, embora o agente assuma que o resultado possa ocorrer, busca minimizar sua conduta extravagante. Na cegueira deliberada o agente, que antes não integrava o enlace criminoso, porém, ao se deparar com a execução criminosa, abstém-se de tomar consciência deliberadamente, acreditando piamente que nenhum crime está sendo perpetrado, como no caso de uma concessionária receber indivíduo com maleta cheia de notas de cem reais para adquirir diversos carros, ou, no caso, quando o banco simplesmente negligencia dever de cautela e disponibiliza abertura e fluxo de conta bancária de forma eletrônica.
Vide excerto do acórdão do Habeas Corpus n. 08010049620194050000, 1ª Turma do TRF da 5ª região[1]:
“O investigado, engenheiro da MELF Construtora (cuja simbiose com a empresa EMN já havia sido demonstrada), na qualidade de engenheiro fiscal, assinou diversos documentos atestando, em favor da EMN Construções, a falsa execução de serviços na Fazenda Soares (termo de aceitação da obra, atestado e planilha de quantitativos), com vistas a fraudar licitações públicas, destacando, ainda, a presença de indícios de que tinha conhecimento das condutas criminosas do grupo investigado (ou, no mínimo, assumiu o risco de que elas estivessem sendo praticadas, em verdadeira cegueira deliberada)”.
Outro interessante trecho de julgado do mesmo TRF da 5ª região[2]:
“Ilegalidade qualificada pelo intuito nocivo do agente público, uma vez que deixou de averiguar, de maneira livre e consciente, numa autêntica cegueira deliberada, a data do recebimento das DCTF’s, mesmo quando era possível fazê-la por meio de simples consulta ao sistema informatizado da Receita Federal. Fê-lo por dolo de forma malsão quando se colocou voluntariamente em estado de desconhecimento, ao deixar de diligenciar a (in)tempestividade da entrega das declarações do contribuinte que chegaram a ele – ao auditor fiscal – sem data e por meio de disquete, ainda que essa informação pudesse ser colhida do sistema informatizado da receita federal, optando por situação que lhe rendeu a percepção de vantagem indevida em dinheiro”.
Não se espera que o agente, que se omite de forma deliberadamente, dentro dos padrões de boa-fé objetiva, não atraia para si a responsabilidade criminal e, também, civil da conduta que ensejam danos indenizáveis. O banco tem conduta omissiva quando alguém abre uma conta pela internet e, dessa conta, recebe valores significativos. É dever do banco sustar os valores, comunicando à autoridade competente, para se averiguar a origem dos valores. Ora, quando os fraudulentos leilões virtuais de veículos ocorrem, os consumidores-vítimas transferem o valor do ilusório bem arrematado para a conta indicada pela organização criminosa, tendo essa conta bancária sido aberta pela internet. O escoamento do dinheiro obtido de forma ilícita, é facilmente movimentado pelos criminosos, que usam, inclusive, documentos e dados falsos de terceiros. O banco torna a ação criminosa com aparência de legitimidade, facilitando no branqueamento dos valores.
O banco que assim se omite, camuflando-se, escondendo-se, buscando uma forma de romper o elo causal, mas sem se importar com o resultado, deveras adentra na cadeia causal da conduta criminosa com resultado consumado ou, no mínimo, tentado.
Na seara da responsabilidade civil da instituição financeira, que se omite no dever de segurança e de transparência, notadamente na atualidade, em que a abertura de conta bancária é possível por meio eletrônico, torna-se realidade para os criminosos, voltados aos crimes de colarinho branco, que não usam violência diretamente, fazer uso desse mecanismo eletrônico para abrir contas, usando de documentos de terceiros, para receber e movimentar valores obtidos por meio de leilões virtuais fraudulentos, por exemplo.
Essa omissão da instituição financeira é típica de atração da teoria da cegueira deliberada em que o próprio setor de segurança do banco suspeita da atividade da conta, porém, nenhum ato concreto é externado, deixando que o dinheiro entre na conta, permaneça a disposição e seja movimentado. Certamente os criminosos não abrem somente uma conta bancária para essas operações, mas se utilizam de documentos de terceiros para abrir novas contas eletrônicas para escoar o proveito criminoso, para cada investida e golpe.
O banco tem conhecimento real de quem está abrindo conta por meio eletrônico, permitindo que esse canal seja empregado para fruir valores ilícitos oriundos do cometimento de cibercrimes de leilões virtuais de veículos; e esse conhecimento real é fecundo para determinar que o banco é indispensável ao êxito crimino, portanto, elo essencial ao nexo causal entre a conduta criminosa e o proveito ilícito, devendo vir a ser obrigado a indenizar os danos que os consumidores-vítimas, no caso, os lesados em leilões de veículos, que transferiram valores para contas junto aos bancos Santander e Itaú, sejam ressarcidos por estes bancos.
Não há que se arguir exclusão de responsabilidade por fato de terceiro, haja vista que o relacionamento bancário se deu por meio eletrônico, em que criminosos abrem contas bancárias e fazem fruir numerários, tudo eletronicamente, porém com a chancela e conhecimento real do banco. O banco não obterá êxito em demonstrar que o consumidor-vítima agiu negligentemente, que o produto e serviço bancários não foram disponibilizados pelo banco, e que o produto e serviço bancários não foram defeituosos. A forma como abriram as contas bancárias e usaram para movimentar o dinheiro criminosamente auferido, é uma forma de atração da responsabilidade civil da instituição financeira.
O banco que disponibiliza plataforma para abrir conta eletronicamente, está agindo dentro do exercício regular de um direito, porém, como é cediço, o abuso de direito e a criação de um risco devem ser de inteira responsabilidade da instituição financeira que assim age, pois o abuso de direito também enseja ilícito passível de indenização, conforme preconiza o Código Civil:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Na senda de GONÇALVES, temos sobre o abuso de direito:
“A doutrina do abuso de direito não exige, para que o agente seja obrigado a indenizar o dano causado, que venha a infringir culposamente um dever preexistente. Mesmo agindo dentro do seu direito, pode, não obstante, ser responsabilizado. (2007, p. 463)”.
Diante desse quadro, pois, não há titubeios que o banco se omite, atraindo a aplicação da doutrina da cegueira deliberada na seara cível, haja vista que não se concebe que o banco, dotado de mecanismos e protocolos de segurança, jamais tenha se atentado que, ao disponibilizar a abertura de conta eletronicamente, está a permitir que criminosos possam abrir contas e movimentar valores, sem riscos. O banco aufere lucros por meio de tarifas, quando os criminosos movimentam valores. Ubi commoda, ibi incommoda, ou seja, quem aufere os bônus também deve suportar os ônus, incômodos da operação que lesou consumidores.
Ora, além dos benefícios que o banco aufere quando disponibiliza plataforma eletrônica para abrir contas e movimentá-las, também há que se presumir que agentes criminosos possam fazer uso dessa modernidade e facilidade, assegurando o proveito criminoso, como o recebimento de valores ilícitos oriundos de cibercrime dos leilões virtuais de veículos que os sítios eletrônicos Splanada Leilões, Pátio Leilões, Caoa Leilões, Nascimento Leilões, Laerte Leilões, dentre outros, estavam na farra de lesar interessados em arrematar veículos, auferindo milhares de reais com essas operações, todas movimentadas por meio de bancos. Os sítios eletrônicos suso mencionados não mais existem (nada impedindo que os criminosos criem outros domínios, o que deve ser monitorado diuturnamente), pois, por iniciativa do autor do presente trabalho, foram periciados e indisponibilizados, existindo processo crime tramitando sob segredo de justiça na Comarca de São Paulo-SP, em março de 2020.
- conditio sine qua non
A teoria das condições anteriores é uma forma de analisar o panorama da relação causal entre a conduta externada no mundo fenomênico, e o resultado danoso suportado pela vítima. Perquire-se, nessa explanação, se determinada conduta comissiva ou omissiva foi um elo do evento danoso. Assim, para romper com a cronologia ad infinitum, essa teoria atrai somente elementos atuais e que determinaram direta ou indiretamente o êxito criminoso.
Obtempera BITENCOURT sobre a teoria da conditio sine qua non:
“Para que se possa verificar se determinado antecedente é causa do resultado, deve-se fazer o chamado juízo hipotético de eliminação, que consiste no seguinte: imagina-se que o comportamento em pauta não ocorreu, e procura-se verificar se o resultado teria surgido mesmo assim, ou se, ao contrário, o resultado desapareceria em consequência da inexistência do comportamento suprimido. Se se concluir que o resultado teria ocorrido mesmo com a supressão da conduta, então não há nenhuma relação de causa e efeito entre um e outra, porque mesmo suprimindo esta o resultado existiria. (2016, p. 319)”.
A relação de causa e feito, o nexo causal entre conduta comissiva ou omissiva e resultado, é de importância determinante, tanto para a responsabilidade civil subjetiva, quanto objetiva, sendo que o nexo causal é ínsito em ambas as teoria da responsabilidade civil, não havendo como existir a responsabilidade absoluta e integral pelo fato ocorrido.
No caso em apreço dos leilões fraudulentos por meio de sítios eletrônicos, se o banco disponibiliza canal na internet para abrir conta digital, em que se necessita de dados pessoais e o envio de documentos por meio eletrônico, cria-se, no mercado bancário uma forma de se esvair numerários auferidos de forma ilícita. Os reportados leilões fraudulentos de veículos recuperados de financiamento, em que os criminosos disponibilizavam catálogo de veículos, valor do lance, logotipo de empresa comitente, logotipo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nome de leiloeiro oficial do Estado, enfim, um mix de informações que espancam qualquer dúvidas naquele que estava a procurar arrematar um veículo.
Ocorre que o leilão é um meio de aplicar estelionato, falsidade ideológica, crime de organização criminosa, de lavagem de dinheiro, em que os criminosos simulam perfeitamente o termo de arrematação do lote, com dados bancários de conta junto ao banco Santander ou Itaú, como deveras ocorreu; o lesado faz a transferência para a conta bancária informada e, pronto, o crime se consuma. Com isso, o êxito criminoso: o dinheiro foi disponibilizado em conta bancária aberta de forma legítima, usando os criminosos dados e documentos de terceiros, que sequer tem conhecimento de que uma conta foi aberta e movimentada, branqueando o dinheiro por meio do banco.
O elo “abertura de conta bancária” foi determinante para que o resultado e empreitada criminosa fossem bem sucedidas. Sem a conta bancária os criminosos não teriam como receber o proveito ilícito. A cilada, sim, está perfeitamente ordenada e lógica no sítio eletrônico da organização criminosa, porém a forma como o dinheiro é movimentado, não seria possível se o banco não disponibilizasse esse canal de singela utilização por qualquer pessoa, basta ter dados e seguir o passo-a-passo no sítio eletrônico do banco.
Sem titubeios, quando o banco facilita na abertura de conta bancária por meios eletrônicos, enseja um possível acidente de consumo entre a conduta criminosa e a vítima do crime de estelionato. O acidente de consumo para o terceiro é presente quando se analisa que o serviço ou produto do banco, a abertura de conta bancária de forma singela, infringiu o dever de segurança ínsito a todas as relações de consumo e a expectativa do terceiro, o lesado, de que se existe uma conta bancária é porque os protocolos de segurança foram cabalmente cumpridos e observados; porém, não é o que ocorre diante de uma conta digital aberta por criminosos.
Na lição de MARQUES temos explanação da responsabilidade civil objetiva nos acidentes de consumo, e o terceiro, in casu, a vítima, indiretamente faz parte da relação de consumo:
“A responsabilidade objetiva nos acidentes de consumo envolvendo serviços, fato do serviço: a responsabilidade imposta pelo art. 14 do CDC é objetiva, independe de culpa e com base no defeito, dano e nexo causal entre o dano ao consumidor-vítima (art. 17) e o defeito do serviço prestado no mercado brasileiro. Com o CDC, a obrigação conjunta de qualidade-segurança, na terminologia de Antônio Herman Benjamin, isto é, de que não haja defeito na prestação do serviço e consequente acidente de consumo danoso à segurança do consumidor, é verdadeiro dever imperativo de qualidade. (2016, p. 558)”.
Na disposição do CDC temos em seu art. 17 que se equiparam a consumidor todas vítimas do evento.
“Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento”.
No escólio de MARQUES, temos comentários sobre o dispositivo legal acima transcrito:
“Logo, basta ser “vítima” de um produto ou serviço para ser privilegiado com a posição de consumidor legalmente protegido pelas normas sobre responsabilidade objetiva pelo fato do produto presente no CDC. (2016, p. 652)”.
O banco se omite em sua obrigação/dever[3] de Conheça seu Cliente, exemplificativamente, deve conter as seguintes informações:
“Dados de identificação do cliente;
Descrição sobre a situação financeira do cliente;
Relato sobre as atividades profissionais do cliente (no Brasil e no Exterior);
Relato sobre as atividades profissionais e empresarias da família do cliente;
Relato sobre a capacidade financeira presumível do cliente e sua capacidade de investimento;
Descrição sobre o relacionamento com o responsável de Conta;
Relato de como foi o processo de prospecção do cliente;
Relato sobre as referências pessoais e profissionais analisadas;
Relato sobre as principais instituições financeiras utilizadas pelo cliente;
Quantificar em percentual a composição patrimonial do cliente, distribuída em imóveis rurais, urbanos e comerciais, e em aplicações financeiras de renda fixa, variável;
Declaração assinada pelo responsável da conta, afirmando ter visitado e conhecido o cliente e que está confortável com a sua reputação e origem de seu patrimônio, de acordo com a due dilligence por ele efetuada e que durante as visitas realizadas às instalações do cliente, nenhuma irregularidade foi constatada”.
O know your employee é o procedimento de Conheça seu Cliente, sendo uma recomendação do Comitê de Basiléia, na qual os bancos devem estabelecer um conjunto de regras e procedimentos bem definidos com o objetivo de “Conhecer Seu Cliente, buscando identificar e conhecer a origem e constituição do patrimônio e dos recursos financeiros do cliente.
Na ementa do acórdão da Ação Penal n. 470 – EI-décimos segundos / MG – MINAS GERAIS[4], de Relatoria do Min. Luiz Fux, temos elucidativa inserção e dinâmica da lavagem de capitais, de como é imprescindível a união de elos de branqueadores de capitais para êxito na operação ilícita:
“Ementa: 1) direito penal. crime de lavagem de dinheiro. configuração do delito e presença dos requisitos para a condenação do embargante. 2) a lavagem de dinheiro é entendida como a prática de conversão dos proveitos do delito em bens que não podem ser rastreados pela sua origem criminosa. 3) a dissimulação ou ocultação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade dos proveitos criminosos desafia censura penal autônoma, para além daquela incidente sobre o delito antecedente. 4) o delito de lavagem de dinheiro, consoante assente na doutrina norte-americana (money laundering), caracteriza-se em três fases, a saber: a primeira é a da “colocação” (placement) dos recursos derivados de uma atividade ilegal em um mecanismo de dissimulação da sua origem, que pode ser realizado por instituições financeiras, casas de câmbio, leilões de obras de arte, dentre outros negócios aparentemente lícitos. após, inicia-se a segunda fase, de “encobrimento”, “circulação” ou “transformação” (layering), cujo objetivo é tornar mais difícil a detecção da manobra dissimuladora e o descobrimento da lavagem. por fim, dá-se a “integração” (integration) dos recursos a uma economia onde pareçam legítimos. 5) in casu, o acervo probatório dos autos revela que o embargante tinha pleno conhecimento da utilização das empresas bônus banval e natimar negócios e intermediações ltda. para a prática do crime de lavagem de dinheiro. ademais, o embargante recebeu, por meio de terceiros, repasses de saques efetuados no banco rural. 6) in casu, as condições materiais em que praticado o delito encerram motivos suficientes para se concluir que o agente desejava ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade do numerário, em relação ao qual, também pelas circunstâncias objetivas dos fatos provados, revelaram que o réu sabia que o numerário era proveniente, direta ou indiretamente, de crime. 7) embargos infringentes a que se nega provimento”.
Assim, pois, a instituição financeira que facilita na abertura de contas digitais, fomentando que criminosos possam utilizar documentos e dados de terceiros e passam a disponibilizar de conta bancária para que os lesados transfiram valores para essas contas e, imediatamente, os criminosos conseguem dar vazão aos valores, transferindo para outras contas ou sacando valores, o banco tem responsabilidade civil pela omissão ilícita. Esse elo branqueador da conta digital, se o banco fosse mais rígido com a recomendação do conheça seu cliente, certeza dificultaria na abertura de contas e não haveria o escoamento de valores por aplicativos.
A omissão danosa do banco é latente, que deixa de criar e manter protocolos de segurança àqueles que criam conta dessa forma, eletronicamente, sendo, inclusive, um elo branqueador do crime de lavagem de dinheiro, pois, sem a conta bancária os criminosos não conseguiriam obter êxito no golpe de leilões virtuais, exempli gratia. No quesito colocação e circulação, o banco, diante sua omissão, tem papel primordial na empresa criminosa, o que endossa a tese de que há responsabilidade civil objetiva da instituição financeira quando os criminosos tenham aberto conta bancária de forma “facilitada” para escoar o proveito ilícito.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça temos a súmula n. 479 sobre o fortuito interno na operação bancária e que, desse fato do serviço, caso enseje danos ao consumidor, a responsabilidade é objetiva:
“Súmula 479 – As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”.
No caso dos leilões virtuais e que se utilizaram de contas abertas por meios eletrônicos, vide que o fortuito interno a que se atrai é a disponibilidade do serviço de abertura de conta bancária digitalmente, proporcionando comodidade aos criminosos que se quer vão à agência bancária para movimentar a conta, tudo ocorrendo de forma expedita pelos aplicativos e internet. Assim, a geração do fortuito interno é ínsito ao serviço bancário disponibilizado para que criminosos possam obter segurança e proveito na movimentação financeira.
Houve falha bancária no dever de segurança quando numerários são movimentados das vítimas para as contas abertas por meio eletrônico, sem que o banco externe mecanismo de contenção e sustação para impedir que a fraude se consuma.
Na seara processual civil, o ônus da prova do banco deverá ser invertido, sendo prova diabólica para o consumidor-vítima evidenciar nos autos que o banco utilizou ou não todos os protocolos de defesa e segurança com escopo de evitar que os criminosos tenham aberto conta bancária e que movimentaram os valores transferidos para essas contas sem atrair a atenção da origem daqueles numerários.
Como o banco deveras infringiu dever de cuidado e de segurança quando disponibiliza a abertura de contas eletronicamente, o seu ônus da prova centra-se em demonstrar que o serviço foi prestado dentro das condições normais, o que será impossível o banco se desvencilhar desse encargo processual, pois os criminosos utilizaram-se de documentos de terceiros para abri conta eletronicamente, passando, com isso, a movimentar valores auferidos no cometimento de cibercrimes.
O magistrado, ao inverter o ônus da prova, com arrimo no art. 6º, inc. VIII do CDC, retirará o complexo e impossível dever do consumidor-vítima evidenciar que o banco agiu de forma omissa e negligente, sendo esse ônus transferido para o banco.
Vide o que TARUFFO elucida sobre o ônus da prova:
“A função do princípio do ônus da prova é permitir ao tribunal resolver o caso quando os fatos principais não forem provados. Por essa razão, as regras nas quais se articula o princípio definem-se na Alemanha como Hilfsmitteln ou como Operationsregeln, previstas somente para o caso de falta de prova dos fatos. Em uma perspectiva diferente, porém convergente, essas regras são estabelecidas como critérios acerca do “risco de não persuasão”, uma vez que preveem as consequências do não convencimento do tribunal acerca da ocorrência de um fato principal. Segundo uma eloquente definição, essas regras são uma ponte entre a situação de ausência de provas e a aplicação da norma substantiva que rege o caso, porque evitam que o tribunal o decida indevidamente aplicando-a em uma situação na qual não poderia. O princípio do ônus da prova é também um recurso para se resolver a incerteza da prova dos fatos principais: ante a incerteza, os fatos são considerados inexistentes. (2014, p.143)”.
Sobre a inversão do ônus da prova, obtempera NEVES:
“Nas relações consumeristas, entretanto, é preciso lembrar que existem dois requisitos para a inversão do ônus da prova que, segundo a doutrina majoritária, são alternativos, bastando a presença de um deles para que se legitime a inversão do ônus probatório. Dessa forma, ainda que não presentes as condições de hipossuficiência técnica, que legitimaria a aplicação da distribuição dinâmica do ônus da prova ao caso concreto, mas sendo verossímil as alegações do consumidor, a inversão será justificável. O art. 6º, VIII do CDC, portanto, sobrevive, ainda que parcialmente, diante do Novo Código de Processo Civil. (2016, p. 660)”.
Ora, diante desse quadro sistemático e de diálogo de fontes, eis que a responsabilidade civil objetiva do banco é aplicada por fato do produto e serviço disponibilizado, tendo ensejado e fomentado para que o consumidor-vítima tenha sido lesado, havendo nexo causal entre a conduta omissiva e negligente do banco ao disponibilizar abertura de conta e movimentação da mesma de forma eletrônica, o que contribui definitivamente para o êxito criminoso e lavagem do dinheiro auferido de forma ilícita.
Conclusão
Analisando a teoria da cegueira deliberada, como norte para fortificar a tese da responsabilidade civil objetiva, observa-se que o banco se omite no dever de segurança e de evitar danos a terceiros quando fomenta a abertura de contas bancárias de forma eletrônica, com uso de aplicativos por agentes criminosos, incrementando no êxito criminoso, pois, sem a participação do banco e sua estrutura, os criminosos não conseguiriam fruir numerários auferidos quando do estelionato cibernético de leilões virtuais de veículos.
Da análise do nexo causal o banco integra a dinâmica operacional de escoamento de valores auferidos ilicitamente, omitindo-se deliberadamente para coibir a ação criminosa, infringindo o dever de know your employee, deixando que agentes criminosos possam usar o seu aparato bancário, sem riscos para os criminosos e, ainda, auferindo lucros com as operações financeiras por meio de tarifas. Quando o setor de segurança do banco informa que há suspeita na conta, porém dessa suspeita nada é feito para bloquear a ação criminosa, eis que a omissão é patente.
A teoria da conditio sine qua non é empregada para afastar o elo irrelevante no nexo causal, e tornar notório o elo relevante na relação causal. Com isso, fazendo um juízo de exclusão, se o banco não facilitasse a abertura de contas digitais e a sua movimentação, os criminosos jamais teriam êxito no proveito criminoso, o que torna a conduta omissiva e abusiva do banco como determinante, portanto, atraindo a responsabilidade objetiva perante danos suportados por consumidores-vítimas do cibercrime. O dever de segurança do banco é falho, e, desse fato do serviço, exsurge o dever de indenizar.
A jurisprudência brasileira, no que concerne a fortuito interno e responsabilidade civil objetiva da instituição financeira diante fraude e ação criminosa, é fecunda, consignando-se que para haver a responsabilização do ente bancário, é imprescindível evidenciar a falha no serviço ou que o banco fora omisso ou negligente. Assim, no panorama do cibercrime dos leilões de veículos, em que criminosos abrem contas e movimentam essas contas, tudo de forma eletrônica, com as facilidade que o banco disponibiliza, eis que o incremento da operação criminosa se torna possível com a inserção do banco no nexo causal: sem o banco e sua omissão no dever de segurança, a movimentação financeira criminosa seria impossível.
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[2] Disponível em: https://www4.trf5.jus.br/data/2019/03/ESPARTA/00058476320144058100-01_20190329_8094702.pdf, acessado em 17/04/2020.
[3] Disponível em: http://www.abbi.com.br/praticasdeprevencao.html#indicador05, acessado em 16/04/2020
[4] Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5762408, acessado em 16/04/2020.