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Tatiana Dias Claro[1]
Resumo: A legislação trabalhista sofreu, recentemente, importante impacto com as alterações introduzidas pelas leis 13.429/2017 e 13.467/2017, tornando necessário um estudo acerca das inovações, as quais, em sua maioria, implicaram restrições dos direitos trabalhistas há muito assegurados pela legislação anterior.
Com o enfraquecimento dos entes sindicais pela retirada da compulsoriedade da contribuição sindical e a inserção do poder de negociação amplo e quase irrestrito, a Reforma Trabalhista trouxe temas de constitucionalidade e convencionalidade duvidosas, flexibilizando, desregulamentando e precarizando direitos, em evidente retrocesso social, o que clama por um efetivo controle dessas novas normas e seus dispositivos através do controle de constitucionalidade e de convencionalidade, assunto do qual trataremos no presente estudo.
Palavras-chave: Reforma trabalhista. Flexibilização. Desregulamentação. Negociado sobre legislado. OIT. Controle de convencionalidade.
Abstract: The labor legislation has recently suffered an important impact with the changes introduced by Laws 13.429/2017 and 13.467/2017, making it necessary to study innovations, which, for the most part, implied restrictions on labor rights that were long assured by previous legislation.
With the weakening of union entities due to the removal of compulsory union dues and the insertion of broad and almost unrestricted bargaining power, the Labor Reform brought up questions of dubious constitutionality and conventionality, making rights more flexible, deregulating and precarious, in an evident social setback, which calls for an effective control of these new norms and their devices through the control of constitutionality and conventionality, a subject which we will deal with in this study.
Keywords: Labor reform. Flexibilization. Deregulation. Negotiated over legislated. OIT Conventionality control.
Sumário: Introdução. 1. Breve histórico da legislação trabalhista. 2. Flexibilização versus desregulamentação. 3. A reforma trabalhista de 2017 e a prevalência do negociado sobre o legislado (Art. 611-A da CLT). 4. Status das normas internacionais no ordenamento jurídico brasileiro e o controle de convencionalidade. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
Desde o final do século XIX, a legislação trabalhista vem sendo editada na intenção de equilibrar as partes polos da relação de trabalho, com a inserção de patamares mínimos assegurados aos assalariados, pelo Estado, os quais não poderiam ser transacionados pelas partes. A partir de então o Direito do Trabalho tem passado por modificações, sendo que estas se intensificaram recentemente com a crescente onda de defesa governamental em prol do liberalismo e a invocação da volta da abstenção estatal nas relações desse ramo do Direito e da liberdade das empresas na contratação, uso e remuneração da força de trabalho.
Com efeito, em 2017, com a promulgação da lei 13.467, a reforma no âmbito do Direito do Trabalho foi mais agressiva, com a redução de direitos há muito conquistados pela luta dos trabalhadores e de seus entes representativos. Com a novel legislação, houve a restrição e até mesmo a retirada de proteção social da classe assalariada, ao argumento de que a diminuição de direitos e a consequente desoneração da folha de pagamento das empresas fariam aumentar a empregabilidade e alavancariam o investimento de empresas estrangeiras no Brasil.
Porém, de acordo com estudos, a flexibilização dos direitos trabalhistas não implicou geração de emprego e precarizou as relações de trabalho, levando muitos à informalidade, a exemplo do aumento da pejotização[2] e uberização[3]. Outrossim, a Reforma Trabalhista veio regulamentar a prevalência das normas autônomas, fruto da vontade das partes (negociado), sobre as normas decorrentes da edição de leis.
Diante disso, o presente estudo se destina a questionar a validade de tal alteração, fazendo um paralelo com as normas internacionais ratificadas pelo Brasil e a possibilidade de um controle de convencionalidade para afastar as negociações que não decorram de uma transação válida e sim de mera renúncia onde somente uma parte se beneficia, havendo manifesto prejuízo à outra.
Demonstrar-se-á, após breve histórico da legislação trabalhista no Brasil, o limite tênue entre a flexibilização e a desregulamentação. Por conseguinte, o estudo abordará a reforma trabalhista de 2017 em uma análise crítica de algumas modificações relevantes introduzidas na Consolidação das Leis do Trabalho no que tange à prevalência do negociado sobre o legislado.
Será enfrentado o entendimento prevalente sobre o status das normas internacionais no ordenamento jurídico brasileiro e, ao final, tratar-se-á da possibilidade do controle de convencionalidade das alterações inseridas pelo art. 611-A da CLT.
- Breve histórico da legislação trabalhista
Durante o Estado Liberal, a regra era o distanciamento entre Estado e a sociedade civil, com a ausência de interferência do Poder Público nas relações privadas, entre elas a relação capital-trabalho. Com a crescente exploração sem limites do trabalho humano iniciada a partir da Revolução Industrial, os movimentos operários avançaram, conferindo um caráter mais publicista ao Direito do Trabalho, trazendo necessária intervenção estatal e o início de regulamentações nessa esfera.
O Direito do Trabalho nasce, então, como uma reação dos operários à exploração do trabalho humano, quando o direito comum passou a ser insuficiente para regular as relações entre patrão e empregado. Para Cassar (2018, p.21), a necessidade de o Estado intervir na relação contratual para proteger a parte hipossuficiente, até então regida pelas leis de mercado, foi movida pela pressão da sociedade operária, pelas relações internacionais (Declaração Universal dos Direitos do Homem e Tratado de Versailles, OIT) e pela ação da Igreja (Encíclica Rerum Novarum).
No Brasil, o Direito do Trabalho evoluiu de forma tardia quando comparada ao movimento social mundial. Desta forma, pode-se dizer que o marco do início de uma consolidação histórica das relações trabalhistas data de 1888, ano da abolição da escravatura pela Lei Áurea, não havendo, antes disso, trabalho livre propriamente dito que pudesse viabilizar o crescimento do ramo justrabalhista (DELGADO, 2019, p.126).
Como leciona Leite (2018, p.37),
“O surgimento do direito do trabalho no Brasil sofreu influência de fatores externos e internos. Os fatores externos decorreram das transformações que ocorriam na Europa com a proliferação de diplomas legais de proteção ao trabalhador, o ingresso do nosso país na OIT – Organização Internacional do Trabalho, criada pelo Tratado de Versalhes (1919). Os fatores internos foram basicamente o movimento operário influenciado por imigrantes europeus (final de 1800 e início de 1900), o surto industrial (pós-primeira guerra mundial) e a política de Getúlio Vargas (1930).”
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve a evolução do Estado Social para o chamado Estado Democrático de Direito, cujo fundamento é o limite do poder político do Estado pela lei, com ampla participação e fiscalização do povo, titular de tal poder. Com a influência das Constituições Mexicana (1917) e de Weimar (1919), a nova Constituição formou um novo epicentro axiológico no ordenamento jurídico, retomando o homem como figura principal a ser protegida, incluindo a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e a livre iniciativa como fundamentos da República – art. 1ª, III e IV[4] – na intenção de harmonizar essas forças que alavancam o sucesso de uma nação.
Contendo diversos artigos que tratam dos direitos trabalhistas individuais e coletivos, a Constituição Federal de 1988 elevou esses direitos ao patamar de direitos sociais fundamentais ao inseri-los em seu Título II (Dos direitos e garantias fundamentais), assegurando aos trabalhadores urbanos e rurais, num rol não exaustivo, além de outros direitos que visem a melhoria de sua condição social, jornada mínima, irredutibilidade salarial, férias remuneradas e reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.
Entretanto, diante das lutas que sempre foram travadas, uma vez que na economia capitalista e na sociedade de classes verifica-se manifesta desigualdade evidenciada mormente pelo confronto entre capital e trabalho, a partir de 2015, intensificou-se o processo de reforma das leis trabalhistas no Brasil, que culminaram em flexibilização e desregulamentação de direitos de constitucionalidade e convencionalidade duvidosas.
2. Flexibilização versus desregulamentação
O Direito, por seu uma ciência social e dinâmica, está em constante modificação para acompanhar as transformações ocorridas no âmbito social, econômico e político. Fruto da globalização, a flexibilização nasceu com vistas a estabelecer um ponto intermediário entre os modelos de pleno intervencionismo estatal e a plena negociação, no intuito de quebrar a rigidez da heterorregulação. Para Cassar (2018, p. 33), flexibilizar pressupõe a manutenção da intervenção estatal assegurando as condições mínimas de trabalho (mínimo existencial), mas autorizando, em determinados casos, exceções ou regras menos rígidas, de forma que possibilite a manutenção da empresa e dos empregos.
“A crise econômica dos anos 1980, causada pelo choque dos preços do petróleo que assolou diversos países da Europa, bem como da América, principalmente do Sul, provocou o surgimento de novas formas de contratação geradoras de relações de trabalho atípicas. (…) Em função dessa nova realidade, contraposta à rigidez da legislação trabalhista, surgiu na Europa um movimento de ideias, que cada vez mais ganha novos adeptos: a flexibilização. Trata-se de um processo de quebra da rigidez das normas, tendo por objetivo, segundo seus defensores, conciliar a fonte autônoma com a fonte heterônoma do direito do trabalho, preservando, com isso, a saúde da empresa e a continuidade do emprego. (LEITE, 2018, p. 312).”
A Constituição Federal de 1988 autoriza a flexibilização, a institucionalizando no art. 7º, incisos VI (redução salarial por meio de acordo ou convenção coletiva), XIII (labor além do limite legal de jornada com previsão de compensação em instrumento coletivo) e XIV (negociação coletiva da jornada para o turno ininterrupto de revezamento).
Percebe-se, desta forma, que a flexibilidade de direitos trabalhistas é permitida no Brasil e para Souza Júnior et al. (2017, p. 197), “a flexibilização das regras trabalhistas é inerente ao Direito do Trabalho, como instrumento de conquista de novas garantias aos trabalhadores. Porém, nos últimos tempos passou a ser enxergada como retrocesso social”. E, ao citar Carmem Carmino, observa que, no século XIX, os trabalhadores obtinham, com a negociação coletiva, as primeiras normas de proteção e hoje a pressão é para negociar parte do capital, em busca da reversão do direito tutelar.
A flexibilização se desdobra em duas vertentes, sendo elas: flexibilização heterônoma e flexibilização autônoma. Configuram-se como heterônoma as situações em que a norma jurídica estatal realiza a própria atenuação da regra legal abstrata em referência ou estipula autorização para que outro agente o faça e tem como limite o disposto na Constituição Federal. Já a flexibilização autônoma trata-se das situações em que a negociação coletiva sindical é que realiza a atenuação da regra legal abstrata. Esse tipo de flexibilização tem como limite não só a Constituição, como também o disposto na legislação heterônoma estatal e em normas de tratados e convenções internacionais ratificados. Isso quer dizer que essa flexibilização tem de se posicionar dentro dos limites fixados pela ordem jurídica heterônoma estatal. (DELGADO, 2019, p. 73).
Dias (2009, p. 146) ressalta que os defensores da flexibilização partem do falso pressuposto de que o trabalho perdeu sua essencialidade para o capital e, citando lição de Passos (2007, p. 193), afirma que, para estes, “a nossa falta de competitividade internacional está diretamente ligada ao peso e rigidez na forma de legalização do contrato de trabalho, bastando-lhe sonega-la, no todo ou em parte”.
É evidente que a flexibilização das leis trabalhistas, da forma como se deu no Brasil, com a reforma de 2017 – em meio à crise econômica e política, quando a classe trabalhadora se encontra mais vulnerável para negociar com o setor econômico face à ameaça de desemprego -, se traduz em redução dos salários e, consequentemente, do potencial de consumo, o que, certamente, enfraquece o mercado econômico.
Não há dúvida de que há de ser admitida a flexibilização das normas trabalhistas, tendo em vista que a CLT data de 1943 e o avanço da sociedade, sobretudo nos setores da tecnologia e dos novos modos de controle dos empregados pugna por adequações. Entretanto, flexibilizar a legislação trabalhista em tempo de crise, seria pressupor a quebra da harmonia entre a força capitalista e de trabalho, isto porque é exatamente nos tempos de crise que a proteção, ainda que mínima, de posições sociais, parece ser imprescindível. (ALEXY, 2015, p. 507).
Nota-se, portanto, que a flexibilização pensada a princípio vem se tornando, cada vez mais desregulamentação que, segundo Delgado (2018, p. 75), pode ser conceituada como a retirada, por lei, do manto normativo trabalhista clássico sobre determinada relação socioeconômica ou segmento das relações de trabalho, de maneira a permitir o império de outro tipo de regência normativa. Nessa medida, a ideia de desregulamentação é mais extremada do que a ideia de flexibilização, pretendendo afastar a incidência do Direito do Trabalho sobre certas relações socioeconômicas de prestação de labor.
Desta forma, conclui-se que desregulamentação pressupõe a ausência do Estado, permitindo a livre manifestação de vontade e autorizando a regulação da relação de trabalho pela autonomia privada individual ou coletiva. Outrossim, “os pontos de desregulamentação e flexibilização são claros na Lei 13.467/2017, a começar pela rejeição à principiologia de proteção ao trabalho humano demarcada pela Constituição e pelos diplomas internacionais trabalhistas” (DELGADO e DELGADO, 2017, p. 73).
3. A reforma trabalhista de 2017 e a prevalência do negociado sobre o legislado (Art. 611-A da CLT)
Com o neoliberalismo chegando ao Brasil na década de 1990, os direitos sociais passaram a ser vistos pelas empresas e pelo Estado como símbolo de rigidez, nascendo aí as posições pró-flexibilização do mercado de trabalho na tentativa de diminuir os custos dos empregadores, havendo, nesta época, a intensificação de argumentos no sentido de extinção da Justiça do Trabalho. Porém, as alterações na estrutura e funcionamento da Justiça do Trabalho pelas Emendas Constitucionais 24/1999 e 45/2004, não foram nesse sentido, tendo a última ampliado a competência desta Justiça Especializada.
Entretanto, devido à necessidade de geração de empregos e aos argumentos trazidos pela classe patronal de dificuldade de empreender pelos altos custos de contratação de trabalhadores, a Reforma Trabalhista começou a ganhar força no Brasil. Com isso, houve a aprovação do PL 4302/1998 que culminou na lei 13.429/2017 e PL 6787/2016 (que foi substituído pelo PLC 38/2017 no Senado Federal), o qual evoluiu para a promulgação da lei 13.467/2017.
Importante salientar que o PL 6787/2016, proposto inicialmente, era mais restrito e preconizava, dentre outras alterações, a prevalência do negociado sobre o legislado quando versasse sobre determinados direitos. Juntos, esses diplomas legais, trouxeram alterações em mais de cem artigos da Consolidação das Leis do Trabalho e em legislações esparsas, tal como ocorreu na lei 6019/1964, que passou a regular a terceirização irrestrita, que até então era proibida pela Súmula 331 do Tribunal superior do Trabalho, por força de construção jurisprudencial.
Há argumentos no sentido de que essas normas, ambas aprovadas em 2017, careceram de legitimidade democrática em seu processo de aprovação pelo fato de terem sido aprovadas em um governo não eleito democraticamente pelo povo e por não terem sido objeto de discussão ampla com a sociedade civil e representantes dos empregados e trabalhadores. Isso, aliado ao fato de uma delas ter sido aprovada açodadamente, em apenas sete meses contatos da proposta do projeto de lei, trouxe insegurança jurídica devido às contradições no texto de lei, deixando para jurisprudência a pacificação das diversas interpretações que poderão daí advir.
A lei 13.467/2017 inseriu diversos artigos na legislação trabalhista brasileira, indo de encontro, em muitos aspectos, à Constituição Federal e às normas internacionais, a exemplo da inserção no texto celetista do art. 611-A, o qual prevê que o negociado prevalecerá sobre o legislado, exemplificando as matérias passíveis de negociação e prevalência sobre a lei.
É certo que o pluralismo jurídico, adota pelo Direito do Trabalho, admite o reconhecimento das normas criadas fora do âmbito estatal, possibilitando que os próprios destinatários editem norma jurídica após o processo de negociação coletiva, dando aso a acordos e convenções coletivas de trabalho, conforme previsto constitucionalmente no art. 7º, XXVI[5].
Os diplomas mencionados podem ser entendidos, conforme art. 611, caput e §1º da CLT, como normas coletivas que envolvem o sindicato de trabalhadores, correspondente à categoria profissional, sendo que na convenção coletiva a negociação envolve o sindicato patronal e no acordo coletivo, uma empresa ou um grupo de empresas (SOUZA JÚNIOR et al., 2017, p. 196-197).
Ambas as normas incidem sobre as relações individuais de trabalho, independente da filiação sindical do empregador ou de seus empregados, sendo que a convenção coletiva se aplica a todos os integrantes da categoria, enquanto o acordo coletivo é restrito as empresas acordantes e seus respectivos empregados.
Com a lei 13.467/2017, foi fixada autorização para que o direito negociado se sobressaia ao direito legal, consolidando a autonomia privada coletiva. Desta forma, o art. 611-A da CLT, num rol apenas exemplificativo, lista as matérias passíveis de negociação coletiva, colocando como único limite o rol taxativo do art. 611-B, que transcreveu as garantias constitucionalmente asseguradas.
Com efeito, a partir da Reforma Trabalhista, quando o acordo ou convenção coletiva de trabalho, dentre outros direitos, prescreverem sobre intervalo intrajornada, cargos enquadrados como função de confiança, teletrabalho, trabalho intermitente, remuneração por produtividade, enquadramento de grau de insalubridade, prorrogação de jornada em local insalubre, há de se observar o princípio da intervenção estatal mínima, devendo o julgador, ao exame do instrumento coletivo, se ater aos elementos essenciais do negócio jurídico previsto no art. 104 do Código Civil[6].[7]
Nesta esfera, a lei reformadora intencionou quebrar o princípio fundante do Direito do Trabalho, qual seja, o conceito dinâmico da norma mais favorável. Segundo Silva (2015, p. 159), o Direito do Trabalho lida com a aplicação da energia humana, o que, ligada à dignidade do ser humano, o torna único e inviável de ser comparado com os outros segmentos jurídicos. Para o autor, “o Direito do Trabalho apenas convive com normas de hierarquia superior ansiosas por um aprimoramento, capaz de levar a sua não aplicação, ou seja, autorizadoras de sua própria “derrogação” por norma de hierarquia inferior, se isso for necessário para o bem-estar social.”
Outrossim, o fato de determinado dispositivo estar inserido na legislação pátria, por si só, não é sinal de observância isolada e absoluta, até porque, em contradição normativa – o que há, e muito, no texto reformista – deve o intérprete enxergar o Direito como um conflito apenas aparente de normas, interpretando-o sempre em conformidade com a Constituição (direitos fundamentais) e demais normas do ordenamento, até porque o Direito não deve ser interpretado em tiras, aos pedaços. (GRAU, 2006, p. 44).
Porém, verifica-se, com a previsão da hierarquia do negociado sobre o legislado que a mens legis é de permitir o rebaixamento do mínimo já conquistado pelas lutas da classe trabalhadora. Para Alexy (2015, p. 201), uma posição jurídica já integrada ao patrimônio jurídico do titular do direito não pode ser suprimida:
“Quando o titular de um direito alberga uma posição jurídica de fato, significa que a norma que lhe outorgou essa condição é válida, pois realiza os objetivos de um direito prestacional (direito social). Surge, então, para aquele que detém uma posição jurídica o direito contra o Estado a que este não elimine uma posição jurídica sua e, portanto, não derrogue a norma correspondente.”
Ademais, com a obrigatoriedade da participação do sindicato nas negociações coletivas, torna-se imprescindível a representatividade adequada desses entes coletivos na defesa dos interesses da classe, devendo haver harmonia de interesses a fim de consagrar-se a validade do instrumento coletivo e se obter um resultado equânime. E, juntamente com o poder amplo e quase irrestrito dado aos sindicatos para negociar – lembrando que tais normas prevalecerão até mesmo sobre a lei – a Reforma desmontou o tripé da organização sindical, trazendo o fim da compulsoriedade da contribuição sindical e mantendo a unicidade e o efeito vinculante de suas decisões para toda a categoria, enfraquecendo, com isso, a força dos entes sindicais e comprometendo a lisura e o caráter democrático das negociações
Nota-se, desta forma, que foi sobremaneira precipitada a fixação da prevalência do negociado sobre o legislado pela Reforma Trabalhista, diante do desequilíbrio das forças dos seres coletivos atores das negociações, mormente por autorizar o rebaixamento de direitos trabalhistas. Outrossim, em consonância com o parágrafo único do art. 2035 do Código Civil[8], não deve subsistir negociações privadas que contrariarem preceitos de ordem pública.
Conforme ensinamento de Delgado (2019, p. 1686), para se ter a segurança e garantia de um patamar civilizatório mínimo,
“A negociação coletiva trabalhista concerne a poder inerente à sociedade civil e que é amplamente reconhecido e respeitado pela ordem jurídica do País, inclusive a constitucional. Porém não se trata de poder absoluto, incontrolável e avassalador, ou seja, inusitado tipo de super poder que ostente a prerrogativa de atuar no sentido antitético às próprias conquistas firmadas pela Constituição da República, pelas Convenções Internacionais da OIT ratificadas pelo Estado Brasileiro e pela legislação heterônoma estatal da República Federativa do Brasil.”
Assevera-se que o Direito do Trabalho possui como princípio basilar, o da proteção da parte hipossuficiente na relação empregatícia, que se digna a atenuar, no plano jurídico, o desiquilíbrio existente nos fatos da relação de trabalho. Ademais, ainda que superada a inconstitucionalidade de algumas normas reformadas, há de se observar os diplomas internacionais ratificados pelo Brasil, sobretudo as convenções e tratados internacionais que tratem de direitos humanos, consagrados universalmente.
4. Status das normas internacionais no ordenamento jurídico brasileiro e o controle de convencionalidade
Sem tentar esgotar o tema devido à extensão, importante, a princípio, entender com qual status normativo os tratados internacionais adentram o ordenamento jurídico brasileiro. Conforme entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal e ensinamento de Sarlet et al (2012, p. 1.728), os tratados internacionais de direitos humanos aprovados em conformidade com os ditames do §3º do art. 5º da Constituição[9] são equivalentes às emendas constitucionais, os demais tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil constituem direito supralegal – em grau de hierarquia normativa superior ao da legislação infraconstitucional, embora inferior ao da Constituição – e os tratados internacionais que não versem sobre direitos humanos têm valor legal.
Toda lei interna tem sua validade dependente da dupla compatibilidade vertical material: deve ser compatível com a Constituição brasileira e com os tratados de direitos humanos em vigor no país. Isso significa dizer que a norma internacional de direitos humanos ratificada pelo Brasil possui efeito paralisante da eficácia jurídica de toda e qualquer norma infraconstitucional que com ela conflita. Frisa-se que, diante da supremacia da Constituição, a norma internacional não possui o condão de revogar norma constitucional ou infraconstitucional e sim de paralisá-la, fazer cessar sua aplicabilidade.[10] Assim, toda lei que for contrária aos tratados mais favoráveis não possuirá validade.
Desta forma, entende-se que o Estado contemporâneo, que se relaciona em recíproca colaboração com outros Estados constitucionais inseridos numa comunidade, tem capacidade de controlar a legitimidade de lei em face dos direitos humanos tutelados no país e na comunidade internacional. (SARLET et al., 2019, p. 1.729).
O controle de convencionalidade em muito se aproxima do controle de constitucionalidade, uma vez que pode ser feito de forma concentrada pelo Supremo Tribunal Federal ou difusa por qualquer juiz ou tribunal – respeitando-se a cláusula de reserva de plenário no último caso -, quando o parâmetro for norma internacional aprovada pelo Brasil pelo quórum qualificado e de forma difusa quando se tiver por parâmetro tratado ou convenção internacional de direitos humanos de status supralegal.
Importante ressaltar que a validade de uma norma interna pode ser questionada, ainda, diretamente diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanas, conforme previsão no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ao qual o Brasil aderiu. No último caso, a provocação deve ser feita pelos Estados partes ou pela própria Comissão e, apesar de num primeiro momento a Corte entender que não teria competência para análise da norma em abstrato, mas tão somente diante de caso concreto, tal posicionamento foi superado no caso Suárez Rosero v. Equador, no qual declarou a inconvencionalidade de norma independentemente de esta ter sido aplicada a caso concreto. (SARLET et al., 2019, p. 1.734).
Desta forma, e diante a flagrante contradição dos artigos celetistas 611-A (estabelecendo, de forma muito genérica, os direitos que poderão ser objeto de negociação prevalecendo sobre a lei) e 611-B (limitando num rol taxativo os direitos excluídos da negociação) com o viés humanitário e social da Organização Internacional do Trabalho, estes dispositivos podem ser questionados tendo como parâmetro as normas desta organização. Fundada em 1919 como parte do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial, a OIT tem como objetivo promover a justiça social.[11] A Declaração de Filadélfia de 1944, impôs à OIT a obrigação de fomentar a negociação coletiva em todas as nações do mundo, mediante programas que a reconhecessem como direito.
Dentre as Convenções da OIT ratificadas pelo Brasil, estão as de nº 98, sobre a aplicação dos princípios do direito de organização e de negociação coletiva; nº 135, que trata da proteção de representantes de trabalhadores; nº 144 que versa sobre consultas tripartites para promover a aplicação das normas internacionais do trabalho; nº 154, a qual incentiva a negociação coletiva e nº 155, que trata dobre segurança e segurança dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho. Estas normas, portanto, podem ser utilizadas como fundamento para a declaração de inconvencionalidade dos dispositivos aqui discutidos.
Ressalta-se que antes da aprovação da Reforma Trabalhista, o Ministério Público do Trabalho juntamente com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), levaram o projeto de lei à consulta perante o departamento de normas da OIT, órgão cujo entendimento é o de que estas normas genéricas que autorizam a redução do patamar mínimo assegurado por lei violam as Convenções 98 e 154.
Outrossim, o Comitê de Peritos da OIT – órgão independente competente para verificar a conformidade ou violação das convenções pelos Estados-membros – avaliando precisamente os arts. 611-A e 611-B (negociado sobre legislado) e o art. 444, parágrafo único (trabalhador hipersuficiente) da CLT, divulgou, em seu informe anual, que os dispositivos vão de encontro às normas internacionais de direitos humanos e requereu ao Governo brasileiro que examinasse, após consulta às partes sociais, a revisão dessas normas para adequá-las ao art. 4º da Convenção 98, considerada uma das oito Convenções fundamentais, já que decorrem da própria Constituição da OIT e obriga os Estados-membros, ainda que não a tenham ratificado. (PORTO, 2019)
O colegiado da OIT previu que a amplitude do art. 611-A da CLT pode afetar a finalidade e capacidade de atração do mecanismo de negociação coletiva ocasionando uma redução significativa da liberdade sindical, negociação coletiva e das relações de trabalho. E conforme nota técnica nº 200 do Departamento Intersindical de Estatítica e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) divulgada após a Reforma Trabalhista, houve uma redução de 23% e 25% no número de acordos e convenções coletivas, respectivamente, firmados no Brasil nos primeiros dez meses de 2018.
Como se isso não bastasse, na Conferência Internacional do Trabalho – Assembleia Geral da OIT – ocorrida em junho de 2018, o Brasil foi incluído, ao lado de países como Haiti, Camboja e Birmânia, na chamada short list, a qual consolida as 24 violações mais sérias às Convenções desta organização, demonstrando a seriedade e preocupação com as quais deve ser tratado o assunto “Reforma Trabalhista”.
E não é somente à luz das normas da OIT que a as normas domésticas reformadas devem ser aferidas, mas também à luz dos tratados e convenções firmados no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Diante da obrigação jurídica de respeito aos tratados internacionais com os quais se comprometeu, o Estado-parte deve garantir sua aplicabilidade na defesa dos direitos humanos, conforme art. 2.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, arts. 1º e 2º da Convenção Americana sobre Direito Humanos da OEA (Pacto de São José da Costa Rica) e art. 2º do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da OEA (Pacto de São Salvador), todos ratificados pelo Brasil. (PORTO, 2019).
Cabe mencionar que, diferentemente do que acontece no âmbito da OIT, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, não analisa norma em abstrato, porém, em uma das suas audiências do período de sessões ocorrida em Montevidéu, no Uruguai, os aspectos da Reforma Trabalhista em desconformidade com os tratados internacionais foram levados perante a Comissão pelas Centrais Sindicais com a participação do MPT, sendo que esta manifestou sua preocupação com os direitos sociais no Brasil, no final de 2017.
Como ensina Mazzuoli (2011, p. 96), a validade da lei doméstica não se afere somente na compatibilidade com a Constituição. Para o autor,
“deve a lei ser compatível com a Constituição e com os tratados internacionais (de direitos humanos e comuns) ratificados pelo governo. Caso a norma esteja de acordo com a Constituição, mas não com eventual tratado já ratificado e em vigor no plano interno, poderá ela ser até considerada vigente (pois, repita-se, está de acordo com o texto constitucional e não poderia ser de outra forma) – e ainda continuará perambulando nos compêndios legislativos publicados, mas não poderá ser tida como válida, por não ter passado imune a um dos limites verticais materiais agora existentes: os tratados internacionais em vigor no plano interno. Ou seja, a incompatibilidade da produção normativa doméstica com os tratados internacionais em vigor no plano interno (ainda que tudo seja compatível com a Constituição) torna inválidas as normas jurídicas de direito interno.”
Diante da imperatividade das mencionadas normas da Organização Internacional do Trabalho, decorrente da sua integração ao ordenamento jurídico brasileiro, estas servem de parâmetro informativo ao legislador e interpretativo ao aplicado do Direito do Trabalho. Destarte, se as normas internas – leis, acordo ou convenção coletiva de trabalho, regulamentos empresarias ou cláusulas contratuais – confrontarem as convenções internacionais de trabalho, se estará diante da inconvencionalidade dessas normas. Frisa-se, ademais, que para realizar o controle de convencionalidade dessas normas, os juízes e tribunais locais não requerem qualquer autorização internacional.
Com efeito, cabe ao Poder Judiciário Nacional, notadamente aos magistrados trabalhistas, em controle difuso, o dever de aferir a convencionalidade dos dispositivos da Reforma Trabalhista interpretando-os sistematicamente, conforme as normas internacionais de direitos humanos ratificas pelo Brasil e, não sendo possível tal interpretação, forçoso será o afastamento dessas disposições. Assim, deve ser descartada qualquer interpretação no sentido de que se é possível negociar direitos de indisponibilidade absoluta ou que signifique renúncia pura e simples de direitos trabalhistas.
Delgado e Delgado (2017, p. 73) defendem que o magistrado trabalhista deverá realizar os controles de constitucionalidade e de convencionalidade dos artigos da Lei nº 13.467/2017 em confronto com a Constituição Federal 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos, notadamente as Convenções da OIT, incidentes nas relações de trabalho brasileiras.
Outrossim, possuem, o legislador e o magistrado do trabalho no exercício do controle difuso, o dever de proteger os direitos humanos perante terceiros – que é uma das funções fundamentais dos direitos humanos. Nesse contexto, não pode o legislativo produzir normas contrárias aos direitos humanos, porém, caso o faça, caberá ao judiciário harmonizar o ordenamento jurídico por meio dos controles de constitucionalidade e de convencionalidade.
Quando houver dualidade de fontes e estas estiverem em conflito, deve o intérprete optar preferencialmente pela fonte que proporciona a norma mais favorável à pessoa protegida (princípio internacional pro homine), pois o que se visa é a otimização e a maximização dos sistemas (interno e internacional) de proteção dos direitos e garantias individuais. Ainda, a prevalência dos direitos humanos, consagrado expressamente pelo art. 4º, II da Constituição brasileira de 1988 faz comunicar a ordem jurídica internacional com a ordem interna, estabelecendo um critério hermenêutico de solução de antinomias que é a consagração do próprio princípio da norma mais favorável, a determinar que, em caso de conflito entre a ordem internacional e a ordem interna, a “prevalência” – ou seja, a norma que terá primazia – deve ser sempre do ordenamento que melhor proteja os direitos humanos. (MAZZUOLI, 2011, p. 30).
Ainda, a princípio, a legislação reformadora foi tida como inconvencional formalmente por ir de encontro à Convenção nº 144 da OIT, que exige que antes de qualquer alteração nas leis internas de cada Estado membro, haja prévia consulta tripartite aos grupos interessados – governo, representante dos empregadores e representante dos trabalhadores. É nesse sentido o enunciado nº 01 da Anamatra, aprovado no 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, sobre o controle de convencionalidade da lei 13.467/2017:
“Enunciado nº 01 – Controle de convencionalidade da reforma trabalhista, ausência de consulta tripartite e de consulta prévia às organizações sindicais – I. Reforma trabalhista. Lei 13.467/2017. Incompatibilidade vertical com as convenções da OIT. Ausência de consulta tripartite. Ofensa à Convenção 144 da OIT. II. Ausência de consulta prévia às organizações de trabalhadores. Ofensa à Convenção 154 da OIT, bem como aos verbetes 1075, 1081 e 1082 do Comitê de liberdade sindical do Conselho de administração da OIT.”
Ressalta-se que a Anamatra também aprovou enunciado nº 48, na 2ª Jornada, que trata do tema “inconvencionalidade” do art. 611-A da CLT:
“Enunciado nº 48 – Negociação in pejus e inconvencionalidade do art. A da CLT – Negociação in pejus. Inconvencionalidade. Efeitos paralisantes. A comissão de expertos em aplicação de convênios e recomendações da OIT (CEACR), no contexto de sua observação de 2017 sobre a aplicação, pelo brasil, da Convenção 98 da OIT, reiterou que o objetivo geral das Convenções 98, 151 e 154 é a promoção da negociação coletiva para encontrar acordo sobre termos e condições de trabalho que sejam mais favoráveis que os previstos na legislação. Segundo a CEACR, um dispositivo legal que institui a derrogabilidade geral da legislação laboral por meio da negociação coletiva é contrário ao objetivo da promoção da negociação coletiva livre e voluntária prevista em tais convenções. O artigo 611-A da CLT “reformada” não é verticalmente compatível com a convenção 98 da OIT e remanesce formalmente inconvencional, circunstância que impede a sua aplicação, em virtude da eficácia paralisante irradiada pelas convenções.”
Desta forma, não basta que a norma de direito interno seja compatível apenas com a Constituição Federal, devendo também estar apta para integrar a ordem jurídica internacional sem violação de qualquer dos seus preceitos. A contrário senso, não basta a norma infraconstitucional ser compatível com a Constituição e incompatível com um tratado ratificado pelo Brasil (seja de direitos humanos, que tem a mesma hierarquia do texto constitucional, seja um tratado comum, cujo status é de norma supralegal), pois, nesse caso, operar-se-á de imediato a terminação da validade da norma (que, no entanto, continuará vigente, por não ter sido expressamente revogada por outro diploma congênere de direito interno). (MAZZUOLI, 2011, p. 131-132).
Conclui-se, portanto, que as normas internas poderão ser confrontadas com as normas internacionais de direitos humanos no âmbito do controle concentrado e difuso pelo STF quando aprovadas pelo quórum qualificado ou diretamente pela Comissão ou Corte Interamericana. Já no que tange ao controle difuso da validade das normas (dentre elas o art. 611-A da CLT – prevalência do negociado sobre o legislado), a matéria será de competência dos magistrados trabalhistas, que deverão analisar a conformidade da negociação às previsões internacionais, a requerimento da parte ou, conforme Sartet el al. (2012, p. 1187) citando Mauro Cappelletti, até mesmo de ofício.
Conclusão
Por tais razões, o presente estudo sustenta a não consonância da prevalência do negociado sobre o legislado com os ditames sociais constitucional e convencionalmente assegurados, confrontando-se com a dignidade dos trabalhadores e ferindo direitos humanos e fundamentais. É certo que, segundo o princípio da adequação setorial negociada, a criatividade jurídica das negociações coletivas somente pode ser defendida se fixar padrão setorial de direitos superior às normas heterônomas estatais e se transacionarem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade relativa, e não absoluta. (DELGADO, 2019, p. 1577).
Com efeito, a criatividade jurídica decorrente da autonomia privada coletiva não é ilimitada e deve observância aos princípios constitucionais e ao previsto em normas internacionais derivadas de pacto social, no qual um Estado-parte se compromete a seguir as diretrizes ali fixadas. E, nos termos das Convenções 98 e 154 da OIT, as negociações coletivas possuem a finalidade de melhorar as condições de vida dos trabalhadores, não comportando redução dos patamares mínimos assegurados por lei ou renúncias mascaradas.
Nesse contexto, caberá aos profissionais do Direito, sobretudo aos magistrados trabalhistas, o controle de constitucionalidade e convencionalidade das normas negociadas naquilo em que colidir com os direitos fundamentais dos trabalhadores e com os direitos humanos consagrados nos tratados internacionais, notadamente nas convenções da OIT. E, tendo em vista a proibição constitucional do retrocesso social, havendo a violação do núcleo essencial dos direitos fundamentais, há de ser declarada a inconvencionalidade da norma, considerando, para tanto, as normas e jurisprudência internacionais.
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[1] Advogada especialista em Direito Material e Processual do Trabalho e em Direito Constitucional. Mediadora de conflitos. Membro da Comissão de Direito do Trabalho da OAB/Campinas. Endereço eletrônico: [email protected].
[2] Processo de mascaramento e eliminação legal de relações de emprego, consolidando-se pela transformação do empregado em um prestador de serviços legalizado como pessoa jurídica. Trata-se, portanto, de eliminar o vínculo de emprego para reconhecer e estabelecer relações de trabalho com o agora trabalhador autônomo, então desprovido de direitos, proteção e garantias associadas ao assalariamento. (KREIN et al., 2018, p. 104)
[3] Trata-se de uma forma de subordinação obscurecida, na qual o trabalhador parece ter total liberdade sobre seu trabalho. (…) Pode ser enquadrada como parte de um novo passo da flexibilização do trabalho, sendo vetor de informalização e de relação de assalariamento disfarçada. Idem ibidem, p. 107.
[4] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (…)
[5] Art. 7º da CF/88 – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; (…)
[6] Art. 104 do CC – A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei.
[7] Art. 8º da CLT – §3º: No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.
[8] Art. 2.035 do CC – A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
[9] Art. 5º da CF/88 – (…). § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
[10] Voto do Min Gilmar Mendes no RE 466.343, Pleno, rel. Min Cezar Peluso. DJe 05.06.2009.
[11] História da OIT. Disponível em <https://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/hist%C3%B3ria/lang–pt/index.htm>.