A aplicação da Justiça Restaurativa na resolução de conflitos envolvendo crimes de violência doméstica contra mulher: a desconstituição da cultura do modelo penal punitivista

Valderi Pontes da Silva Júnior[1]

Cláudia de Moraes Martins Pereira[2]

Resumo: Este artigo tem como principal objetivo verificar a possibilidade da aplicação da Justiça Restaurativa como uma nova forma de pacificação social, notadamente nos delitos envolvendo violência de gênero e doméstica contra mulher. Com isso, este estudo utilizou o método dedutivo, com delineamento voltado para pesquisa bibliográfica, procedimento pelo qual reúne obras e produções científicas do âmbito jurídico. Deste modo, ficou evidenciado que ordenamento jurídico pátrio não dispõe de leis que contemplem este modelo de forma expressiva, mas encontra-se compatível a este modelo jurídico-penal. A respeito da violência contra mulher, constatou-se a existência de espaços normativos que podem ser utilizados para sua aplicação, mediante análise cautelosa de cada situação conflituosa. Nessa senda, conclui-se que a Justiça Restaurativa é considerada um modelo jurídico alternativo, que visa dar resoluções às infrações penais, baseadas em princípios e valores, e tem como premissa reparar os danos oriundos dos delitos causados às partes envolvidas: vítima, ofensor e comunidade. Sendo assim, este ideal restaurativo, compreendido como proposta de justiça almeja o entendimento mútuo para uma construção efetiva da cultura de paz e o restabelecimento da convivência social.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Violência doméstica. Mulher.

 

Abstract: This article aims to verify the possibility of applying Restorative Justice as a new form of social pacification, notably in crimes involving gender and domestic violence against women. With this, this study used the deductive method, with an outline aimed at bibliographic research, a procedure by which brings together scientific works and productions from the legal scope. In this way, it became evident that the country’s legal system does not have laws that consider this model in an expressive way, but is compatible with this legal-penal model. Regarding violence against women, it was found that there are normative spaces that can be used for their application, through careful analysis of each conflictual situation. In this way, it is concluded that the Restorative Justice is considered an alternative legal model, which aims to give resolutions to criminal offenses, based on principles and values, and has as premise to repair the damages arising from the offenses caused to the parties involved: victim, offender and community. Therefore, this restorative ideal, understood as a proposal of justice, aims at mutual understanding for an effective construction of a culture of peace and the restoration of social coexistence.

Keywords: Restorative Justice. Domestic violence. Woman.

 

Sumário: Introdução. 1. A criminologia na ótica da Justiça Restaurativa e suas construções conceituais. 2. Justiça Restaurativa: de seus marcos iniciais aos seus conceitos flexíveis e abertos. 3. Justiça Retributiva versus Justiça Restaurativa. 4. Diferenças entre Justiça Retributiva e Justiça Restaurativa. 5. Justiça Restaurativa no Brasil. 6. A possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa no contexto da violência doméstica contra mulher. 7. Argumentos contraditórios à aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica contra a mulher. Conclusão. Referências.

 

Introdução

O debate acerca da aplicação da pena a infratores que transgridem a lei e cometem atos delituosos que causam lesões e danos a terceiros abre margem para diversas interpretações jurídicas. Desde os primórdios até os dias atuais a sociedade civilizada vem criando métodos e modelos de sistemas penais para coibir os atos de violência praticados por indivíduos, bem como realizar a pacificação social para a realização do bem comum. A ideia central da função da pena do sistema penal brasileiro atual, além de ser a de intimidar e reeducar, é tê-la como uma característica de retribuição do mal causado pelo ofensor à vítima.

A respeito da violência doméstica contra mulher, o ordenamento jurídico brasileiro trouxe diversos avanços, como a Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/2006), visando aplicação penal ao agente agressor. Para tanto, a justiça retributiva dificultou a possibilidade de conciliação entre as partes conflitantes, dando ênfase a culpabilidade e estigmatização do infrator. Com isso, surge o seguinte questionamento: a punição do agressor que cometeu crime de violência, como consequência do dano causado corresponde verdadeiramente ao sentimento de justiça da vítima?

A partir dessas noções, foram levantadas as seguintes hipóteses: a ineficácia das soluções punitivas tradicionais está fazendo com que as práticas restaurativas sejam aplicadas com mais frequência nos casos de violência doméstica contra mulher, onde a vítima e o ofensor mutuamente buscam resolver seus conflitos. Com isso, o cárcere e os mecanismos tradicionais do sistema jurídico-punitivo não são suficientes para a prevenção e solução de problemáticas desta natureza.

O surgimento da Justiça Restaurativa como modelo jurídico alternativo visa coibir crimes de violência doméstica contra mulher por meio do direito ao diálogo entre as partes envolvidas, podendo ser realizada a reintegração do ofensor, a reparação dos danos, ou de outras formas de reestabelecer a paz social interrompida pelo delito.

O sistema jurídico retributivo e o restaurativo podem coexistir, sendo necessário que cada caso seja analisado criteriosamente, levando em consideração as circunstâncias peculiares, os papéis da vítima e do infrator frente à situação conflituosa, cabendo a necessária aplicação da lei penal.

Nesse novo modelo de justiça, vítima, ofensor e sociedade são os protagonistas na busca de solução para o conflito. Permeada pelos princípios da sensibilidade e cordialidade, a justiça restaurativa traz em seu bojo um modelo reformador de aplicar o direito, deixando de lado a velha forma de aplicação da pena, tendo em vista a elevação da taxa de criminalidade na sociedade contemporânea.

Partindo dessas premissas, o presente trabalho tem como objetivo central, o de verificar a possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa na resolução de conflitos envolvendo crimes de violência doméstica contra mulher. Os específicos consistem em: evidenciar os principais elementos que constituem a justiça restaurativa enquanto modelo jurídico alternativo; apresentar as diferenças entre justiça retributiva e justiça restaurativa; refletir sobre a importância da aplicação da justiça restaurativa na superação da cultura punitiva na sociedade brasileira.

A metodologia aplicada neste estudo tem como método de abordagem o dedutivo, que visa explicar o conteúdo das premissas, de análise do geral para o particular até chegar a uma conclusão. Foi elaborada por meio de pesquisa descritiva, com delineamento voltado para pesquisa bibliográfica, sendo elencados artigos, obras, monografias, dissertações e teses na área do Direito, preceitos jurídicos, no intuito de atualizar conhecimento sobre o tema em questão, bem como evidenciar possíveis resoluções sobre a violência doméstica contra a mulher à luz da Justiça Restaurativa.

Ademais, este estudo justifica-se pela necessidade de refletir sobre o atual sistema jurídico punitivo, evidenciando se a Justiça Restaurativa, pode oferecer propostas alternativas com uma forma de solução para problemática dos objetivos da pena que perduram há bastante tempo em nossa sociedade.

Sendo assim, este trabalho está estruturado da seguinte forma: inicialmente, apresenta-se as origens, conceitos e princípios da justiça restaurativa. Em seguida, expõe-se o papel da criminologia como ciência geral da criminalidade sob a ótica da justiça restaurativa. O estudo prossegue explicando ao leitor as diferenças e os contrapontos entre a justiça convencional (retributiva) e justiça restaurativa de modo a explicar a importância dos mecanismos de diálogos na solução de conflitos entre as partes envolvidas. Posteriormente, tornam-se evidenciadas a realização e aplicabilidade da Justiça Restaurativa no Brasil. E, por fim, chega-se à parte central do trabalho que consiste na possibilidade de aplicar a justiça restaurativa para a solução dos crimes de violência doméstica contra mulher, reconhecendo-se a importância da integração do papel da vítima, do ofensor e da comunidade em solucionar os conflitos existentes.

 

1. A criminologia na ótica da Justiça Restaurativa e suas construções conceituais

Segundo Porto e Simões (2013, p. 7), pela combinação entre os vocábulos grego e latino, a palavra Criminologia aparece pela primeira vez intitulando a principal obra de Raffaelle Garofalo (Itália, 1851 a 1934). Para outros autores, há indícios que o termo seria utilizado antes por Topinard (França, 1830-1911). Incialmente tal expressão fazia referência somente ao estudo do crime, mas com o passar do tempo recebeu destaque a ponto de estudiosos elevarem-na ao de ciência geral da criminalidade. Dessa forma, segundo Isabelle Lucena Lavor (2016, on-line):

 

“A palavra Criminologia vem do latim crimino e do grego logos, que significa o “estudo do crime”, podemos então conceituá-la como uma ciência empírica, ou seja, aquela que se apoia na observação e na indução, e que é caracterizada pelo senso comum. É também uma ciência interdisciplinar, pois deve ser estudada em conjunto com os demais ramos de conhecimento, principalmente com o Direito Penal”.

 

Conforme disserta Santos (2011, p. 54) a criminologia, compreendida como ciência de cunho social, permite aduzir que o sistema penal atua numa realidade, que na maioria das vezes não espelha toda a verdade dos fatos, pois apresenta-se incompleta, gerando um vício no denominado discurso jurídico-penal, tido como contraditório. É um instrumento técnico-científico voltado para construção de novos paradigmas e teorias, na intenção de identificar as problemáticas solucionáveis do crime, propor novas maneiras de sancionamento, assim como entrelaça a questão criminal com outras ciências, como a Sociologia, a Antropologia e o Direito.

Amanda Almeida Waquim (2011, p. 14) afirma que seu arcabouço teórico pode ser identificado como campo favorável ao surgimento das ideias da Justiça Restaurativa, que por sua vez, perpassa pelas construções conceituais: teoria do Labeling Approach, a Criminologia Crítica, Abolicionismo e Vitimologia.

A partir dos anos 60, um no paradigma científico – denominado de reação social ou labeling approach ultrapassou o pensamento patológico e clínico. Esse paradigma serviu de base para diversas tendências da nova criminologia, cujos aspectos fundamentam-se na consideração do crime como um comportamento definido pelo direito, e no repúdio ao determinismo e à consideração do criminoso como um indivíduo diferente (BARATTA, 2011 apud CAMARGO, 2017, p. 25).

Também conhecida nos países de língua portuguesa como “Teoria do Etiquetamento”, essa percepção do fenômeno criminal demonstra como uma conduta só é tomada como criminosa quando adquirir tal “status” por meio de uma lei que o descreva como ato defeso, proibido, mediante o disposto pelo interesse criminal. (PORTO; SIMÕES, 2013, p. 10). Conforme o labeling approach,

 

 

“o crime não tem existência autônoma, isto é, independente da intervenção das instituições de controle social. Por assim dizer, um comportamento só pode ser tio como um crime quando for assim definido pelas instâncias de reação social ao crime, de acordo com as regras estatuídas em um processo político, em que diversos interesses entram em conflito” (BENEDETTI, 2005, p. 211).

 

 

A respeito do abolicionismo penal, infere-se que é uma corrente política-criminal constituída por alguns pensadores, como Look Hulsman e Nils Christie, contrários à existência e à operacionalidade do sistema penal, seletivo e excludente. Além disso, advém das políticas contraculturais dos anos 60, propiciando o surgimento da teoria do etiquetamento e da nova criminologia ou criminologia crítica (ACHUTTI, 2014 apud DIEHL; PORTO, 2018, p. 692).

O abolicionismo nega a legitimidade do sistema penal tal como atua na realidade contemporânea. Por isso, nega também a legitimação de qualquer outro sistema penal que se possa imaginar no futuro, como alternativa a modelos formais e abstratos de solução de conflitos. Postula-se a abolição radical dos sistemas penais e a solução de conflitos por meio de instâncias ou mecanismos informais (ZAFFARONI, 2001 apud CAMARGO, 2017, p. 33).

Na busca pelo rompimento de proposições excludentes, Diehl e Porto (2018, p. 697) enfatizam a Criminologia Crítica, teoria pela qual é representada pelo paradigma da reação social e da vitimologia, que surgem para confrontar a postura assumida pelo direito penal, apontando para um caminho conciliador entre as partes envolvidas no conflito. Surge da integração dos processos subjetivos de construção social da criminalidade, estudados pelo labeling approach, consoante aos processos objetivos estruturais e ideológicos das relações sociais de produção da vida material, definidos pela teoria marxista (SANTOS, 2007 apud NEVES, 2010, p. 8).

A Vitimologia corresponde a corrente de cunho científico que se desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial, na década de 1940, acerca das vítimas de delitos. Inicialmente, preocupou-se com as razões da vitimização, com os fatores e causas que predispõem os indivíduos a tornarem-se vítimas. Mais tarde, passou a interessar-se aos efeitos da vitimização (JACCOUD, 2005 apud WAQUIM, 2011, p. 37).

Segundo Santos (2011, p. 47), para a Justiça Restaurativa os estudos da vitimologia contribuíram para identificar o prestígio da vítima em todo o procedimento que, para o modelo jurídico convencional, não se tem essa percepção, mesmo nos procedimentos que a lei prevê alguma participação.

Dado o seu objeto de estudo, a criminologia pode ser definida como uma ciência social, que envolve pesquisa que buscam esclarecer dúvidas sobre o fenômeno da criminalidade, suas causas, personalidade do ofensor, sua conduta delituosa e a maneira de ressocializá-lo. Sua interdisciplinaridade é histórica, sendo acompanhada por três correntes: a clínica, a sociológica e a jurídica (PORTO; SIMÕES, p. 7). Isso implica correlacionar que ela “não se limita ao comportamento delitivo em si, visto que mais longe, procurando descobrir sua gênese, retrocedendo, como um historiador do crime, em busca das suas possíveis causas” (sic) (GRECO, 2009 apud SANTOS, 2011, p. 52).

Assim, Porto e Simões (2013, p. 10), a Criminologia volta-se então, para o estudo dos mecanismos sociais responsáveis pela definição das ofensas e dos ofensores, das consequências vinculadas, bem como os múltiplos sujeitos que se veem envolvidos em complicadas relações.

Ademais, quando se fala em criminologia deve-se vir à mente a ideia de estudo do crime, tanto em seu aspecto geral, quanto histórico, filosófico e social para a compreensão do processo regulador de limitação da liberdade dos indivíduos, da garantia da segurança da coletividade e o controle da paz social.

 

2. Justiça Restaurativa: de seus marcos iniciais aos seus conceitos flexíveis e abertos

O termo Justiça Restaurativa foi utilizado inicialmente em meados de 1950, pelo pesquisador e psicólogo americano Albert Eglash, na obra Beyond Restitution: creative restitution, que visa criar um modelo terapêutico alternativo de reabilitação do ofensor. Pautava-se basicamente na utilização de um supervisor que auxiliaria o ofensor a procurar formas de pedir e alcançar o perdão da vítima, no intuito de restaurar o que antes havia sido “quebrado” (ALVES, 2012, p. 8).

Neste contexto, é importante mencionar que os movimentos pelos direitos civis e das mulheres nos anos de 1960 foram considerados fundamentais para o surgimento da Justiça Restaurativa, antes mesmo do projeto de reconciliação canadense. Esses movimentos evidenciavam a discriminação racial no sistema de justiça e indicavam políticas de desencarceramento, enfatizando a criação de alternativas ao sistema prisional e a necessidade de se respeitar os direitos dos presos (DALY; IMMARIGEON, 1998 apud CAMARGO, 2017, p. 57).

O marco inicial da Justiça Restaurativa remonta à prática de mediação entre réus condenados e as vítimas de seus crimes, promovida por movimentos de assistência religiosa em presídios do Estados Unidos a partir da década de 70. A partir dessas práticas, alguns teóricos e pensadores resolveram contribuir significativamente para sua construção no campo das ideias, sendo o mais notável, o norte-americano Howard Zehr, autor da obra intitulada Trocando Lentes, considerada seminal na expansão do movimento restaurativo no mundo, onde buscou-se reformular o conceito de crime e do próprio conceito de justiça (BRANCHER, 2012 apud BESTER, 2013, p. 640). Ainda neste período foram reconhecidas como iniciativas restaurativas:

 

“Direitos dos prisioneiros e alternativas às prisões; resolução de conflitos; projetos de reconciliação vítima-ofensor; mediação vítima-ofensor; grupos de defesa de direitos das vítimas (victum advocacy); conferências de grupos familiares (family group conferences); círculos de sentença (sentencing circles), dentre outras práticas” (DALY; IMMARIGEON, 1998 apud CAMARGO, 2017, p. 57).

 

Segundo Orsini e Lara (2013, p. 307) em 1989, a Justiça Restaurativa foi positivada no ordenamento jurídico da Nova Zelândia, fato este que deu notoriedade à metodologia no cenário internacional. Diante disso, o país tornou-se pioneiro na introdução do modelo restaurativo, com a edição do Children, Young Persons and Their Families Act, norma que estabeleceu o mecanismo das conferências de grupo familiar e de outras abordagens restaurativas para o conflito juvenil. Devido às experiências satisfatórias desse modelo, em 2002 as práticas restaurativas também passaram a ser consideradas opcionais ao sistema de justiça criminal tradicional.

Ainda conforme os autores, a partir dos anos 90, os programas de Justiça Restaurativa se expandiram mundo afora, Austrália, Canadá, Estados Unidos, África do Sul, Argentina, Colômbia, dentre outros. Por conta disso, o modelo de Justiça Penal Retributivo começou a receber inúmeros questionamentos da doutrina especializada.

De acordo com Santos (2011, p. 31), a harmonia social é considerada o escopo da Justiça Restaurativa, ou seja, as disposições constitucionais devem ficar evidenciadas no processo restauratório, visto que os direitos fundamentais  ladeiam o objetivo de resolver o conflito, uma vez que a determinação da culpa e da respectiva punição não permite que haja conscientização do dano e do sofrimento causado.

Neste diapasão, Alves (2012, p. 9) assevera que a Justiça Restaurativa diz respeito ao modelo jurídico-penal em que a busca pela solução de conflitos, oriundos de uma infração penal, abarca ativamente o infrator, a vítima e a sociedade, no intuito de constituir uma solução consensual. Se estabelece por meio de um processo eminentemente voluntário, sem a práxis do ambiente judicial, fazendo-se uso de técnicas de mediação, conciliação e transação para alcançar o resultado restaurativo.

Após a justiça identificar o prejuízo advindo da quebra da ordem social, ou seja, da violação das leis, almeja-se a restauração, incumbindo oportunizar um acordo, uma composição eficaz com a assunção da responsabilidade pelo criminoso, buscando uma função reabilitadora da pena e se alcançado, consequentemente haverá um resultado satisfatório com fins terapêuticos (ALVES, 2012, p. 9).

Para Dick e Malacarne (2015, p. 4) a Justiça Restaurativa emerge como uma esperança diante do clima de insegurança que marca o mundo contemporâneo, diante dos altos índices de violência e criminalidade. Evidencia a urgência de aprimoramento do sistema judiciário, para sociedade e o Estado oferecer não apenas uma resposta monolítica ao crime, mas dispor de um sistema multiportas, com outras resoluções que pareçam adequadas frente à complexidade do fenômeno criminal.

Porto e Simões (2013, p. 3) argumentam que, para ter um conceito do que é Justiça Restaurativa, é preciso aprender a aceitar que essa pode ser uma herança cultural, um conjunto de práticas conciliatórias, um movimento jurídico, uma alternativa ao defasado sistema retributivo-penal. De qualquer maneira, em origem, todas as suas interpretações podem ser traduzidas em uma única coisa: uma proposta de se repensar a justiça enquanto valor.

Howard Zerh (2008, p. 24) considera que para essa corrente, devem ser atendidas inicialmente as necessidades imediatas, especialmente as da vítima. Em sequência, devem ser analisados as necessidades mais amplas. Para isso, é preciso que o processo restaurativo atribua poder e responsabilidade aos envolvidos diretamente em um conflito, quais sejam a vítima e o ofensor, abrindo também espaço para a comunidade. Posteriormente, deve buscar a interação entre os envolvidos e a troca de informações sobre os mesmos e sobre os acontecimentos (conflito).

Na concepção de Oliveira (2017, p. 238) a noção de Justiça Restaurativa desponta, com forte influência abolicionista e das diretrizes da vitimologia, com a pretensão de promover uma reação diferente da reposta fornecida pelo sistema de justiça criminal tradicional, fundamentada na democratização do processo, assim como na recusa do autoritarismo que permeia o direito penal, visando obter respostas mais humanas ao crime.

Sendo assim, a Justiça Restaurativa consiste em um caminho democrático, que visa superar as perplexidades da jurisdição ordinária que ao verticalizar as relações, assumiu domínio sobre o discurso, o que dificultou aos sujeitos integrantes do conflito a possibilidade de conhecerem ou elaborarem os seus desejos insatisfeitos (TIVERON, 2014 apud OLIVEIRA; SANTANA; CARDOSO NETO, 2018, p. 163).

Como marco legal, tem-se a Resolução da ONU n° 2002/12, de 24.07.2002, a qual dispõe sobre os princípios Básicos para a utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal. Ficou estabelecido que a utilização desses programas somente poderá ocorrer quando livre e voluntário o consentimento das partes, devidamente informadas de como se realiza e que podem desistir a qualquer momento durante o processo. Seu funcionamento deve conter linhas de orientação e regras que apontem as condições de encaminhamento dos casos, as qualificações, treino e avaliação dos facilitadores, as regras de competência e normas éticas (FABENI, 2013, p. 24).

A Resolução n° 2002/12 também enfatiza que os princípios restaurativos são flexíveis e permitem a adaptação de forma ampla aos diversos sistemas de justiça. Assim, o processo restaurativo pode ser definido como aquele no qual a vítima e o ofensor, quando apropriado, quaisquer outros membros da comunidade afetados, participam ativamente da resolução de conflitos criminais e de suas consequências danosas, sendo subsidiada com o auxílio de um facilitador imparcial (PALLAMOLLA, 2009 apud KAY, 2018, p. 26-27).

Diante disso, registre-se, ainda, que a Justiça Restaurativa não pretende ser uma resposta universal para todos os casos ou uma solução dos problemas do sistema penal. O que este modelo repudia é a concepção de que a pena de prisão seja elevada ao patamar de principal forma de sansão estatal, prestigiando-se o caráter retributivo, vinculado a um discurso pseudo preventivo da pena, sendo desprezada as peculiaridades e dimensão humana de cada conflito (OLIVEIRA, 2017, p. 238).

 

3. Justiça Retributiva versus Justiça Restaurativa

O sistema jurídico-penal tradicional atribui às instituições responsáveis prerrogativa de regulamentar a pacificação dos conflitos por meio do monopólio estatal e do exercício do jus puniendi utilizando-se de seus mecanismos de controle social com o objetivo de censurar os que transgrediram as normas impostas. Deste modo, o exercício do jus puniendi configura-se também como escopo de extirpar o conflito penal, ainda como reflexo indireto ou utópico, as angústias e sofrimentos do sujeito vitimizado no caso concreto (OLIVEIRA, 2011 apud FURQUIM, 2015, p. 1903).

Uma das principais características da Justiça Retributiva é a prevalência do direito penal dogmático com a utilização dos procedimentos formais rígidos com foco direcionado ao infrator. Para essa corrente, aquele que comete um ato criminoso contra a sociedade, contra o Estado, deve responder por meio da pena privativa de liberdade. Trata-se de um modelo de justiça que dá espaço à existência de penas desumanas e degradantes, sem que haja qualquer preocupação com a vítima ou mesmo com a relação vítima/infrator (OLIVEIRA; SANTANA; CARDOSO NETO, 2018, p. 159).  Assim, considera-se que, “o crime é uma violação contra o Estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre o ofensor e Estado, regida por regras sistemáticas” (ZEHR, 2008, p. 9).

Deste modo, a punição, objeto de estudo da penologia, está associada à ideia de penalidades autorizadas pelo Estado, em resposta ao crime. Seus critérios consistem em: deve envolver um mal, um desagrado à vítima; deve ser por uma ofensa, real ou suposta; dever ser de um ofensor, real ou suposto; dever ser imposta por uma autoridade conferida ou pelas instituições, contra as regras que a infração foi cometida. Neste último, se apresentam o direito penal e o sistema penal (HUDSON, 2003 apud OLIVEIRA; SANTANA; CARDOSO NETO, 2018, p. 160).

Ao compreender o peso dos malefícios que o modelo penal tradicional vigente agrega, uma vez que seguindo o conceito de justiça adotado, exerce forte pressão para atribuir a permanência do sujeito no papel de “ofensor” e “criminoso”, sujeito estigmatizado, ao invés de se recuperar, ganha uma confirmação de sua identidade enquanto desviante, passando a ser criador e reprodutor da violência e criminalidade (PORTO; SIMÕES, 2013, p. 10). Com os insucessos do paradigma retributivo, voltado para coação, foram abertos espaços para novas formas de política criminal. Nessa perspectiva, a Justiça Restaurativa surge como um caminho democrático frente a essa crise paradigmática (OLIVEIRA; SANTANA; CARDOSO NETO, 2018, p. 162).

Para Granjeiro (2012, p. 37), diferente da justiça tradicional, a Justiça Restaurativa visa a resolver os conflitos por meio da voluntariedade das partes, do diálogo, da escuta e principalmente do respeito mútuo. A tipologia das práticas restaurativas é, na medida do desejável, buscar a reparação do dano causado, sendo assumido pelas partes envolvidas a responsabilidade pela reparação.

Há três modelos distintos que tendem a dominar a prática restaurativa: os encontros vítima-ofensor; as conferências de grupos familiares e os círculos de Justiça Restaurativa. No entanto, esses modelos têm se misturado, e novas formas que aproveitam elementos de cada um deles tem surgido de acordo com as necessidades e particularidades de cada caso concreto (ALVES, 2018, p. 18).

Muito além de ser um método de resolução não violenta de conflitos, a Justiça Restaurativa consiste em um novo modelo de justiça que assume as relações fragilizadas por situações violentas como preocupação central, que se orienta pelas consequências e danos causados, não pela definição de culpados e punições, mas pela responsabilização do dano causado.  Este modelo, valoriza a autonomia e o diálogo entre as pessoas, criando oportunidade para os envolvidos (ofensor, vítima, familiares, comunidade) de participarem na construção de ações concretas que possibilitem prevenir a violência e lidar com suas implicações (DICK; MALACARNE, 2015, p. 4).

Para Pedro Scuro Neto (2000, p. 32), “fazer justiça” do ponto de vista restaurativo significa dar resposta sistemática às infrações e suas consequências, elucidando a cura das feridas sofridas por meio da sensibilidade e dignidade. Destacam-se neste processo a dor, a mágoa, o dano, a ofensa, o agravo causado pelo malfeito, contando com a participação de todos os envolvidos (vítima, infrator, comunidade) na resolução dos conflitos criados por determinados incidentes.

Nessa perspectiva, a Justiça Restaurativa se revela como procedimento alternativo capaz de resolver conflitos de forma mais eficaz, abrangente e pacífica, preocupando-se em não retribuir o mal por outro mal como acontece na prática com o sistema penal convencional que encarcera e abala o psicológico de criminosos e vítimas, mas empenhado na tentativa de restauração dos danos e na pacificação social.

Nesta feita, Rubens (2017, p. 23) menciona que os indivíduos são considerados o centro em torno do qual deverão gravitar todas as questões atinentes ao crime, ou seja, o crime representa uma violação de pessoas e suas relações interpessoais. É a partir desta premissa que o crime deverá ser analisado segundo a ótica restaurativa.

Deste modo, a Justiça Restaurativa é, essencialmente, uma abordagem estrutural que procura encontrar soluções para as inúmeras questões relacionadas à prática de qualquer tipo de crime. Fundamenta-se num conjunto de princípios e processos variados que buscam enfrentar os conflitos (crimes), onde o envolvimento procedimental da vítima é tão importante quanto o sancionamento (SANTOS, 2011, p. 35).

 

4. Diferenças entre Justiça Retributiva e Justiça Restaurativa

Para compreender as diferenças básicas entre o modelo retributivo e o modelo restaurativo, os dois foram expostos em formato de quadros, destacando os valores, procedimentos, resultados e efeitos que cada um deles projetam para a vítima e para o infrator.

Quadro 1: Valores

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Conceito jurídico-normativo de Crime – ato contra a sociedade representada pelo Estado – Unidisciplinariedade Conceito realístico de Crime – Ato que traumatiza a vítima, causando-lhe danos. – Multidisciplinariedade
Primado do Interesse Público (Sociedade, representada pelo Estado, o Centro) – Monopólio estatal da Justiça Criminal Primado do Interesse das Pessoas Envolvidas e Comunidade – Justiça Criminal participativa
Culpabilidade Individual voltada para o passado – Estigmatização Responsabilidade, pela restauração, numa dimensão social, compartilhada coletivamente e voltada para o futuro
Uso Dogmático Direito Penal Positivo Uso Crítico e Alternativo do Direito
Indiferença do Estado quanto às necessidades do infrator, vítima e comunidades afetados – desconexão Comprometimento com a inclusão e Justiça Social gerando conexões
Monocultural e excludente Culturalmente flexível (respeito à diferença, tolerância)
Dissuasão Persuasão

Fonte: Pinto (2005, p. 24)

Conforme Porto e Simões (2013, p. 5), o que diferencia a Justiça Restaurativa de maneira geral dos outros métodos de resolução de conflitos é a sua forma de enfrentar e agir, fundamentada em valores e princípios como: respeito, honestidade, humildade, responsabilidade, esperança, empoderamento, interconexão, autonomia, participação e busca de sentido e pertencimento na responsabilização pelos danos causados. Suas bases estão firmadas numa ética de inclusão e de responsabilidade social, promovendo o conceito de responsabilidade ativa.

Por intermédio das práticas restaurativas, almeja-se demonstrar que a simples punição não considera os fatos emocionais, estes fundamentais para que as pessoas afetadas pelo delito reparem o trauma emocional, assim como os sentimentos e os relacionamentos abalados. Nesta perspectiva, este modelo alternativo de justiça se propõe a preencher essas necessidades, além de promover o desenvolvimento de uma cultura voltada à paz social (PINTO, 2005, p. 38).

 

Quadro 2: Procedimentos

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Ritual Solene e Público Comunitário, com as pessoas envolvidas
Indisponibilidade da Ação Penal Princípio da Oportunidade
Contencioso e contraditório Voluntário e colaborativo
Linguagem, normas e procedimentos formais e complexos – garantias Procedimento informal com confidencialidade
Atores principais – autoridades (representando o Estado) e profissionais do Direito Atores principais – autoridades (representando o Estado) e profissionais do Direito
Processo Decisório a cargo de autoridades (Policial, Delegado, Promotor, Juiz e profissionais do Direito – Unidimensionalidade Processo Decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (vítima, infrator e comunidade) – Multidimensionalidade

Fonte: Pinto (2005, p. 25)

Para que as práticas de resolução de conflito sejam restaurativas é importante que o instrumento de sua efetivação seja o empoderamento das partes. Assim, elas não somente assistirão ao que acontece no processo penal, de forma passiva, como também poderão ter uma participação ativa nas tomadas de decisão, visando resolver o conflito (SILVA, 2007 apud KAY, 2018, p. 25).

Uma das grandes diferenças da Justiça Restaurativa consiste na ausência de uma forma solene de enfrentar as situações de conflito. Com isso, as práticas devem empoderar as partes conflitantes oferecendo-lhes uma sensação de integração e bem-estar com o processo (MORRIS, 2005 apud HUBER, 2018, p. 18).

Entre os argumentos favoráveis à Justiça Restaurativa de Peres e Godoy (2015, p. 2) destaca-se a informalidade relativa, que se refere ao uso de um procedimento comunitário, com as pessoas envolvidas. As sessões ocorrem, preferencialmente em locais comunitários, sem o ritual solene e o cenário jurídico. Ao se afastarem desse ambiente, vítima e ofensor ficam mais acessíveis a propostas de reconciliação.

 

Quadro 3: Resultados

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Prevenção Geral e Especial – Foco no infrator para intimidar e punir Abordagem do Crime e suas Consequências – Foco nas relações entre as partes, para restaurar
Penalização

Penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, multa, Estigmatização e Discriminação

Pedido de Desculpas, Reparação, restituição, prestação de serviços comunitários

Reparação do trauma moral e dos Prejuízo emocionais – Restauração e Inclusão

Tutela Penal de Bens e Interesses, com a Punição do Infrator e Proteção da Sociedade Resulta responsabilização espontânea por parte do infrator
Penas desarrazoadas e desproporcionais em regime carcerário desumano, cruel, degradante e criminógeno – ou – penas alternativas ineficazes (cestas básicas) Proporcionalidade e Razoabilidade das Obrigações Assumidas no Acordo Restaurativo
Vítima e Infrator isolados, desemparados e desintegrados Reintegração Infrator e da Vítima Prioritárias
Paz Social com Tensão Paz Social com Dignidade

Pinto (2005, p. 25-26).

A Justiça Retributiva defende a ideia de que o objetivo da punição judicial é atribuir culpa moral ao ofensor pelo crime cometido e que sua conduta futura ou de outros membros da sociedade não é uma preocupação apropriada da punição (HUDSON, 2003 apud OLIVEIRA; SANTANA; CARDOSO NETO, 2018, p. 158).

Stellet e Meirelles (2016, p. 12), dissertam que, ao passo que a Justiça Retributiva culmina na discriminação do infrator, a restaurativa busca como seu resultado a reparação do dano, responsabilização e reintegração da vítima e do acusado. Nessa esteira, aplicação desse modelo possibilita a criação de um novo direito penal, mais preocupado com a inclusão social e a com a dignidade, tanto das vítimas quanto dos infratores.

Diante disso, busca-se alcançar efetivar propostas inovadoras que viabilizem a possibilidade de resolução de conflitos, envolvendo as partes integrantes do processo, beneficiando a vítima, responsabilizando o agressor, oportunizando a estes uma ressocialização e reintegração.

 

Quadro 4: Efeitos para vítima

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Pouquíssimas ou nenhuma consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo. Não tem participação, nem proteção, mal sabe o que se passa Ocupa o centro do processo, com um papel e com voz ativa.

Participa e tem controle sobre o que se passa

Praticamente nenhuma assistência psicológica, social, econômica ou jurídica do Estado Recebe assistência, afeto, restituição de perdas materiais e reparação.
Frustração e Ressentimento com o sistema Tem ganhos positivos. Supre-se as necessidades individuais e coletivas da vítima e comunidade

Pinto (2005, p. 26).

Observa-se que o sistema de Justiça Retributiva não trouxe, satisfatoriamente, muitos benefícios para a sociedade, pois baseia-se na punição como forma de retribuir o mal causado pelo infrator. É neste momento que a Justiça Restaurativa entra em cena, com um novo olhar acerca do crime e dos envolvidos, disponibilizando alternativas para se chegar a um consenso de restauração entre os envolvidos no conflito.

É um processo conduzido por autoridades e facilitadores, sendo dada oportunidade de fala para cada parte, para exporem seus sentimentos e emoções de modo a perceberem e corrigir suas ações errôneas e mutuamente acharem o caminho para restauração dos sentimentos ruins. O autor do delito, ao reconhecer e assumir a responsabilidade de sua péssima conduta, se compromete a reparar o mau causado à vítima e não tornar a delinquir, a vítima, por outro lado, tem a possibilidade de expor seus traumas e sentimentos decorrentes da injustiça que sofreu de modo a sensibilizar o infrator acerca de seus atos, e a comunidade tem a oportunidade de dar assistência e apoio para a reestruturação dos laços perdidos no conflito.

 

Quadro 5: Efeitos para o agressor

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA
Infrator considerado em suas faltas e sua má formação Infrator visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e consequências do delito
Raramente tem participação Participa ativa e diretamente
Comunica-se com o sistema pelo advogado Interage com a vítima e com a comunidade
É desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a vítima Tem oportunidade de desculpar-se ao sensibilizar-se com o trauma da vítima
É desinformado e alienado sobre os fatos processuais É informado sobre os fatos do processo restaurativo e contribui para a decisão
Não é efetivamente responsabilizado, mas punido pelo fato É inteirado das consequências do fato para a vítima e comunidade
Fica intocável Fica acessível e se vê envolvido no processo
Não tem suas necessidades consideradas Supre-se suas necessidades

Pinto (2008, p. 27).

Silva (2007, p. 32) assevera que, diante do déficit de comunicação atribuído ao sistema retributivo, defende-se a adoção de medidas que potencializem a capacidade do ofensor de compreender o efeito socialmente danoso de sua conduta, levando-o a reinterpretar a realidade e, sob essa nova perspectiva, transforma-se, assim como as relações que foram desestruturadas.

No sistema restaurativo busca-se promover sentimentos e relacionamentos positivos, não se contentando apenas em reduzir a criminalidade, mas ir além, ou seja, promover a regeneração dos vínculos rompidos. Essa ‘neojustiça’ tem a capacidade de preencher essas necessidades emocionais e de relacionamento, que são pontos chaves para a obtenção e manutenção de uma sociedade civil saudável (PORTO; SIMÕES, 2013, p. 4).

 

5. Justiça Restaurativa no Brasil

De acordo com Saulo Ramos Furquim (2015, p. 1912) há autores que sustentam que a Lei n° 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), pode ser vista como uma abertura para as práticas restaurativas. Por ela, os processos criminais e cíveis são constituídos pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. O intuito é sempre que possível promover a conciliação ou a transação, objetivando reestabelecer os danos sofridos pela vítima e responsabilizar o infrator. Sobre isso, Pinto (2005, p. 29) assevera que,

 

“Com as inovações da Constituição de 1988, e o advento, principalmente, da Lei 9.099/95, abre-se uma pequena janela, no sistema jurídico do Brasil, ao princípio da oportunidade, permitindo certa acomodação sistêmica do modelo restaurativo e nosso país, mesmo sem mudança legislativa”.

 

Em 1999, foram realizados os primeiros estudos teóricos a respeito da prática judiciária sob a perspectiva restaurativa no Brasil, liderado pelo professor Pedro Scuro Neto, no Rio Grande do Sul. Para tanto, o tema ganhou expressão nacional após a criação da Secretaria da Reforma do Judiciário, órgão do Ministério da Justiça, em abril de 2003 (ORSINI; LARA, 2013, p. 308).

Quanto aos documentos elaborados pelo Brasil sobre o tema, primeiramente ocorreu nos dias 28, 29, e 30 de abril de 2005, na cidade de Araçatuba, o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa. Neste ato foi elaborada a “Carta de Araçatuba”, posteriormente ratificada em Brasília, na Conferência Internacional sobre acesso à justiça por meios alternativos de resoluções de conflitos, passando a ser denominada “Carta de Brasília” (MEIADO, 2016, p. 78). Conforme Santos (2011, p. 76), “pode-se considerar como o marco inicial da implantação e aplicação de um modelo restaurativo, como forma diversa de solução penal”.

Porto e Simões (2013, p. 6) enfatizam que, a partir do ano de 2005, coube a Porto Alegre a vanguarda dos esforços de aplicação da Justiça Restaurativa, por meio do projeto “Justiça para o Século 21”, que objetivou implantar práticas restaurativas na pacificação de conflitos e violências envolvendo crianças e adolescentes em seu entorno familiar e comunitário. Pioneiro no país, o projeto teve a coordenação da 3° Vara do Juizado da Infância e da Juventude, recebeu apoio institucional da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), por meio da Escola Superior da Magistratura, apoio técnico e financeiro do Ministério da Justiça, através da Secretaria da Reforma do Judiciário, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e do Programa Criança Esperança, em parceria com a Rede Globo.

Atento aos resultados expressivos dos primeiros projetos de Justiça Restaurativa, o Governo Federal reconheceu sua importância ao aprovar o 3° Programa Nacional de Direitos Humanos, por meio do Decreto n° 7.037/2009. Essa norma estabelecia o incentivo a projetos-pilotos de Justiça Restaurativa como forma de analisar seus impactos e sua aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro e a desenvolver ações nacionais de elaboração de estratégias de mediação de conflitos e de Justiça Restaurativa nas escolas (BRASIL, 2009 apud ORSINI; LARA, 2013, p. 309-310).

Oliveira (2017, p. 250) argumenta que a Justiça Restaurativa, outrora considerada para muitos como uma utopia, hoje desponta como uma realidade fática no contexto jurídico brasileiro. Tanto com o advento da Resolução n° 225 do Conselho Nacional de Justiça, aprovada no dia 31 de maio de 2016, quanto como a Resolução n. 118, de 1° de dezembro de 2014, do Conselho Nacional do Ministério Público, as práticas restaurativas emergem como uma alternativa e como um novo paradigma de justiça penal ainda não normatizadas no ordenamento pátrio.

 

6. A possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa no contexto da violência doméstica contra mulher

Tratar de Justiça Restaurativa e violência doméstica cometida contra a mulher pressupõe oferecer destaque protetivo para a vítima. Abordar a complexidade deste fenômeno, requer o envolvimento da mulher, agressor, família e da comunidade (FABENI, 2013, p. 146). Anterior a isso, torna-se pertinente elucidar que este tipo de violência ocorre quando o agressor se perfaz em pessoa que tenha um vínculo doméstico com a vítima, independente da denominação recebida como marido, noivo, amante, namorado, em virtude de existir uma relação afetiva entre vítima e agressor (JESUS, 2015 apud OLIVEIRA; SANTOS, 2017, p. 5). De forma mais ampla, pode ser definido como:

 

“qualquer ação ou omissão de natureza criminal, entre pessoas que residem no mesmo espaço doméstico ou, não residindo, sejam ex-cônjuges, ex-companheiros (as), ex-namorados (as), progenitores de descendente comum, ascendentes ou descendentes, e que inflija sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos e/ou econômicos” (APAV, n.p. apud APPEL, 2017, p. 59).

 

Granjeiro (2012, p. 30) comenta que, por mais que a sociedade tenha avançado no combate à violência doméstica, principalmente com a implementação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), os atos violentos cometidos contra à mulher ainda se encontram bastante persistentes, tanto no espaço público quanto privado, manifestados por meio de agressões psicológicas, físicas, verbais ou simbólicas. Assim, o conflito sempre é colocado nas mãos do Estado para conduzir as decisões de acordo com a racionalidade jurídica, sem levar em consideração outras perspectivas da relação conjugal, que correlacionam as características históricas, psicológicas e sociais que dão legitimidade à violência doméstica.

Segundo Huber (2018, p. 48-49) com o advento da Lei n° 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), o tratamento acerca da resolução dos crimes praticados no âmbito doméstico mudou, sendo estabelecida uma abordagem retributiva.  Diante disso, considera que, se por um lado a Lei Maria beneficiou a vítima, por outro lhe concedeu uma superproteção que a vulnerabilizou ante a diferença de gênero já naturalizadas pela sociedade. Além disso, impossibilitou a viabilidade de conciliação e acordo entre as partes conflitantes.

Convém destacar, ainda, que os mecanismos de enfrentamento à violência doméstica anteriores à criação da Lei Maria da Penha estavam previstos na Lei n° 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais). No que tange à violência doméstica, particularmente nos crimes de ameaça e lesão corporal, eram tratados como “infrações penais de menor potencial ofensivo”, sendo admitidas a conciliação, transação penal assim como também a suspensão condicional do processo. Tais mecanismos impediam a incidência de medidas cautelares, prisão em flagrante ou decretação de prisão preventiva, face a estrutura da justiça penal consensual e que por sua vez foram afastados por meio da Lei Maria da Penha, que deixou de considerar a violência doméstica contra mulher como delito de menor potencial ofensivo (PADÃO; CAMPOS, 2018, p. 130).

Nas palavras de Fabeni (2013, p. 136), a Lei Maria da Penha consiste em um grande avanço no espaço jurídico do país no que cerne os direitos humanos. Entretanto, cabe distinguir a natureza agressiva de cada caso particular. Não se pode generalizar, ou igualar agressores pontuais que passavam por problemas pessoais no momento da agressão àqueles que usam a violência de modo permanente. Por isso, evidencia-se a necessidade de singularizar os casos e entender as motivações dos agressores antes de ser estabelecer uma pena.

A aplicação da Justiça Restaurativa no trato da violência doméstica apresenta-se como um importante instrumento na busca da restauração dos laços afetivos fragilizados pela violência e a possibilidade de oferecer condições adequadas de segurança, bem como na condução do procedimento de resolução de conflitos (FABENI, 2013, p. 151). Dessa maneira,

 

“a Justiça Restaurativa pode ser qualificada com um instrumento eficaz para resolução de casos que envolvem violência doméstica, uma vez que permite que questões íntimas sejam resolvidas pelos próprios agentes – agressor e vítima – e concede aos mesmos o papel ativo na resolução de seus conflitos particulares” (STELLET; MEIRELLES, 2016, p. 11).

 

Para Howard Zerh (2008, p. 18), nos casos de violência doméstica, não basta somente a reparação dos danos, mas a supressão dos episódios de violência que indiquem a verdadeira mudança no relacionamento entre as partes envolvidas, e não apenas a volta ao estado anterior. Neste processo, as vítimas precisam ser empoderadas, ou seja, devem ser a peça principal na determinação de suas necessidades, como e quando deverão ser atendidas.

Quando se pensa em Justiça Restaurativa e violência doméstica, a necessidade de resgatar a confiança, recriar laços e fortalecer relações recebe um amplo sentido, especialmente no tocante à mulher (CARAVELLA, 2009 apud RUBEN, 2017, p. 24). Diehl e Porto (2018, p. 699-700) esclarecem que, de qualquer sorte, não se espera com a forma alternativa de enfrentamento ao conflito reaproximar o casal para a convivência matrimonial. O que se almeja é que ambos percebam que é possível seguir em frente, apoderando-se de suas vidas, bem como acabando com os ciclos de reprodução de papéis e da própria violência.

Fabeni (2013, p. 147) enfatiza que a Justiça Restaurativa precisa ser vista como um instrumento adequado, quando cuidadosamente utilizada para a solução dos conflitos envolvendo a violência doméstica contra a mulher. Neste processo, a vitimização ou a conduta violenta, como código de linguagem, ambos podem ser aspectos a serem contemplados em um procedimento restaurativo. Neste sentido,

 

“A Justiça Restaurativa, então, configura-se tanto como um método de aplicação, como uma forma de se conceituar o que é “justiça”, voltando o foco das atenções para as relações prejudicadas por situações de violência, utilizando-se de escuta respeitosa e do diálogo com linguagem não-violenta, oferecendo oportunidades para que as partes envolvidas no conflito entendam a causa do acontecido e restaurarem a paz e o equilíbrio nas suas relações, nos seus vínculos” (PORTO; SIMÕES, 2013, p. 8).

 

Desta feita, o uso de práticas restaurativas na resolução de crimes praticados no âmbito doméstico promove a maior adesão das vítimas em denunciar casos de violência, uma vez que estas deixam de procurar a tutela jurisdicional pelo fato de não confiar no sistema de justiça ou porque a resposta retributiva não é o desfecho esperado para seu caso (COSTA; MESQUITA apud HUBER, 2018, p. 54).

Através da implementação de programas, projetos e experiências de práticas restaurativas em casos de violência doméstica, foi possível verificar que este modelo jurídico restaurativo apresenta resultados bastante significativos às partes evolvidas no conflito.

Pode ser dado como exemplo a adoção da Justiça Restaurativa pelo município de Caxias do Sul no ano de 2010, sendo utilizado o Programa Justiça para o Século XXI. Dentre os resultados de sua implantação Brancher (2013 apud ZELL; PORTO, 2015, p. 9) enfatizam que as vítimas se sentiram escutadas e reconhecidas, receberam repostas para suas dúvidas pessoas, tiveram a sensação de segurança aumentada, e em alguns casos, ainda receberam a restituição financeira.

Ademais, há relações familiares que extrapolam a simples relação entre vítima e agressor, de forma, que, por vezes, a preocupação maior compreende em estabelecer um canal aberto a respeito de diálogo entre ambos (e não a reconciliação do casal) decorrente da necessidade de decisões futuras concernentes aos filhos (SILVA; LIMA, 2019, p. 21).

De acordo com Gomes e Graf (2016, p. 4-5), a violência doméstica não começa ou termina com a lesão e/ou ameaça. Ela abarca, na maioria dos casos, divergências quanto à guarda dos filhos, divisão de bens, dentre outros. Com isso, projetos de práticas restaurativas, almejam resgatar a autoestima e o empoderamento da mulher vítima de violência e refrear as constantes reincidências dos agressores, o alastramento da violência familiar, bem como a preservação da integridade física e moral dos filhos.

Dentre as práticas restaurativas, destaca-se os círculos de construção de paz, no qual seu processo circular concede às partes envolvidas, subsídios para que possam solucionar os seus próprios conflitos, conhecer quais são suas responsabilidades, a fim de construir um consenso acerca da reparação dos danos, seja ele de forma material ou simbólico. Por meio da aplicação de seus princípios norteadores, cria-se na sociedade um maior senso de idealização comunitária, que permite dissipar os costumes de violência baseada no gênero (GOMES; GRAF, 2016, p. 6).

Nesta feita, corrobora-se que a instituição de práticas restaurativas constitui um novo olhar na esfera judiciária, nas relações familiares e comunitárias, abrindo um horizonte de participação democrática e de autonomia, ao construir espaços que possibilitam o diálogo pacífico entre as partes envolvidas (ZELL; PORTO, 2015, p. 4).

Sendo assim, pode-se afirmar que embora os delitos praticados no âmbito familiar necessitem de tutela fornecida pela ciência jurídica, os danos psicológicos sofridos pelas vítimas de violência doméstica merecem maior destaque do que a punição do agressor. Com efeito, se uma mulher vítima de violência doméstica consegue superar seus danos de caráter emocional e comportamental por meio do apoio psicológico, poderá ocorrer sua plena emancipação. E dessa forma, mudanças gradativas na sociedade possibilitará a quebra do círculo de dominação sobre a mulher, havendo maior implementação da Justiça Restaurativa na solução de conflitos provenientes dessa demanda (HUBER, 2018, p. 62-63).

 

7. Argumentos contraditórios à aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica contra a mulher

Para uma melhor compreensão sobre a abordagem desta temática, serão apresentados a seguir os argumentos contraditórios de pensadores e especialistas sobre a aplicabilidade do modelo restaurativo nos crimes de violência doméstica contra a mulher. A intenção é mostrar as diversas interpretações a respeito da resolução de conflitos presentes nas relações de gênero.

Na concepção de Déborah Duprat (2017)[3] o modelo de Justiça Restaurativa é visto como ineficiente em casos de violência doméstica. Segundo a procuradora, o Brasil acumula um conjunto de experiências mal sucedidas ao tratar este tipo de violência no âmbito dos juizados especiais criminais, principalmente nos casos de lesões corporais leves, pois tais instâncias são condicionadas às práticas de conciliação e, ou então, a soluções alternativas de punição. Diante disso, Duprat (2017, on-line) expõe que,

 

“Nós não venceremos a violência contra a mulher com práticas de conciliação. Nós temos ainda uma situação no Brasil de absoluta assimetria entre homens e mulheres no ambiente doméstico e sem punição nós não vamos conseguir que essas mulheres – espontaneamente e sem políticas públicas voltadas ao seu fortalecimento – consigam vencer essa violência que atravessa a sociedade brasileira desde o seu nascimento.” (sic).

 

Outra crítica relacionada a esta questão é a ideia de que o modelo de Justiça Restaurativa surgiu na perspectiva de desafogar o Poder Judiciário. Com isso, há o risco de ocorrer uma seletividade relacionada à sua persecução penal, assim como a revitimização da mulher que sofre com esta violência (DUPRAT, 2017, on-line). Isso implica considerar que “a Justiça Restaurativa pode aumentar a possibilidade de que outras violências aconteçam às vítima, que acabariam reproduzindo o discurso de harmonia do lar, fortalecendo a culpa e responsabilidade de cuidar, da mulher” (MENDES, 2017 apud SILVA; LIMA, 2019, p. 20).

Outro embate voltado à Justiça Restaurativa consiste em reprivatizar o conflito, trazendo à baila tempos em que o agressor se via “livre” de maiores punições, pois ao pagar uma multa ou cestas básicas, o caso era arquivado. Associa-se também o desequilíbrio de poder entre as partes no âmbito da negociação, haja vista que não haveria uma autoridade para solucionar os conflitos, possibilitando ao ofensor a utilização desse mecanismo para não se responsabilizar em reparar o dano (FABENI; MARQUES, 2016 apud SILVA; LIMA, 2019, p. 18-19).

Com efeito, devido à vulnerabilidade socialmente naturalizada da mulher, a mesma estaria fragilizada nas negociações com o agressor. É que na Justiça Restaurativa as partes conduzem a dinâmica dos encontros, sendo fundamental, assim, a equidade de poder conferida a cada envolvido (GIONGO, 2011 apud HUBER, 2018, p. 57).

De acordo com Giongo (2011 apud HUBER, 2018, p. 58) a problemática gira em torno da tese de que a modelo restaurativo banaliza a gravidade da violência suportada pela mulher. Esta alegação parte dos grupos feministas que acreditam que o tratamento de um problema social como matéria criminal é a solução da violência de gênero. Em consonância com esta ideia, a defensora pública e coordenadora dos núcleos de defesa da mulher da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) Dulcyelle Almeida (2017)3, afirma que é preocupante que a Justiça Restaurativa seja implementada de forma unilateral pelo Poder Judiciário sem que seja realizada uma discussão com o movimento de mulheres, sem o diálogo com os profissionais especializados.

Diante disso, é possível verificar as diversas perspectivas da aplicabilidade deste modelo de justiça no âmbito da violência doméstica. Enquanto alguns grupos de juristas concordam que a aplicação dos métodos restaurativos seria uma resposta muito “branda” frente ao delito, o que se propõe maior intervenção do Estado, outros pensadores buscam relacionar os benefícios auferidos com as práticas restaurativas, priorizando os sentimentos e necessidades da vítima (HUBER, 2018, p. 53).

Neste ínterim, os direitos que as mulheres vêm lutando para conquistar são uma tentativa de vencer séculos de inferioridade, discriminação e violência. O enfrentamento das agressões contra mulher requer uma abordagem multidisciplinar para compreender a razão de tal violência, o porquê da permanência em uma relação abusiva e, principalmente, como o processo penal pode alterar esta realidade (APPEL, 2017, p. 61).

 

Conclusão

O sistema jurídico-penal vigente em nosso país, mesmo sendo eficiente em diversos casos, nada mais é do que instrumento de poder estabelecido pelo Estado, por meio do uso desmedido da força, que visa aplicar a pena como punição e castigo ao transgressor, o que expõe outras fragilidades e conflitos, colocando em risco o equilíbrio da vida em sociedade. Em contraposição a este modelo, surge a Justiça Restaurativa, como solução paralela à violência e criminalidade.

Este modelo jurídico penal traz em seu bojo uma nova perspectiva de justiça, olhando o crime não mais como um conceito normativo punitivista, mas como um conceito amplo de crime. Vem com pressupostos que viabilizam uma melhor forme de resolução de conflitos, mediante a análise de cada caso. Além de ser um procedimento judicial, tem a finalidade de resgatar a convivência pacífica no ambiente afetado pelo delito, em especial naquelas situações nas quais o ofensor e a vítima têm, ou precisam ter, uma convivência próxima ou permanente.

No contexto da violência doméstica, a Justiça Restaurativa deixa de lado a visão punitiva, buscando restaurar os danos sofridos pela mulher, tendo a finalidade de alcançar uma cultura de paz social. Deve-se levar em consideração as circunstâncias peculiares de cada situação conflituosa, a concordância de todas as partes envolvidas no problema, sendo evidenciado que neste processo mais importante que aplicar uma punição é a adoção de medidas que impeçam a instauração de um estado excludente e regresso, bem como agravação do conflito.

Ademais, não se cogita de forma alguma neste trabalho que seja realizada a substituição do modelo penal convencional para o modelo restaurativo. Todavia, sem dúvida há de se afirmar a possibilidade de os dois sistemas coexistirem, de modo que o sistema penal convencional seja a ultima ratio, ou seja, quando não houver meios alternativos para sanar o conflito.

Destarte, buscou-se com este estudo, por meio de pesquisa bibliográfica, atualizar os conhecimentos sobre o tema em questão, bem como ampliar este debate, tão necessário atualmente. A intenção não consistiu em esgotar a referida abordagem a respeito da aplicação da Justiça Restaurativa em crimes de violência doméstica contra mulher, mas estabelecer uma reflexão sobre novos paradigmas e teorias em torno do ordenamento jurídico brasileiro.

 

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[1] Acadêmico de Direito pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. E-mail: [email protected]

[2] Mestre em Direito Privado pela UFPE. Doutoranda em Direito na UFMG. Professora de Direito das Famílias, Sucessões e Criança e Adolescente na UEA. E-mail: [email protected]

[3]  MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria-Geral da República. Especialistas criticam recomendação do CNJ sobre aplicação de Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica. [29 de setembro de 2017]. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/em-audiencia-publica-especialistas-criticam-recomendacao-do-cnj-sobre-aplicacao-de-justica-restaurativa-em-casos-de-/violencia-domestica> Acesso em: 13 de jul. de 2020.

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