A Covid – 19 no Sistema Penitenciário Brasileiro: Breve Recorte Acerca das Medidas Nacionais e no Âmbito do Estado da Paraíba

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Autor: Arthur dos Santos Souza – Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: [email protected]

Autor: Ramyrez Ramonn Tavares Antunes – Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: [email protected]

Orientadora: Rosimeire Ventura Leite – Pós-doutora em Direito pela Universidade de Bolonha – Itália (2015-2016), Juíza de Direito (TJPB) e Professora do Curso de Direito da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Resumo: O trabalho busca conhecer as principais medidas colocadas pelo Estado brasileiro, com a finalidade de prevenir e controlar a Covid-19 dentro do Sistema Penitenciário nacional, bem como é pretendido vislumbrar os fatores que, mesmo com ações governamentais de higienização e desencarceramento, ainda causam uma grande vulnerabilidade da população carcerária em uma pandemia como a do novo Coronavírus. A metodologia se pautou no uso do método indutivo, analisando casos particulares com a finalidade de se alcançar uma noção geral acerca das principais medidas tomadas pelo Estado a fim de conter o vírus nas Unidades Prisionais. Em termos de resultados, foi visto que a superlotação, a insalubridade e as dificuldades de acesso aos direitos básicos, fazem da população penitenciária uma das mais frágeis e inseguras em relação à Covid-19, assim como, as medidas estatais esbarram nas imensas dificuldades e problemas do sistema penal e de execução penal do Brasil. Destarte, é necessário rever de imediato a política criminal e carcerária brasileira, pois a execução da pena no país não oferece as reais condições dignas para o seu cumprimento, como também o Estado realize a sua responsabilidade constitucional, que é efetivar os direitos humanos de todos e todas, construindo civilidade e uma sociedade menos desigual.

Palavras-chave: Covid-19. Sistema Penitenciário. Medidas Estatais. Vulnerabilidade.

 

Abstract: The work search to know the main measures presented by the Brazilian State, with the purpose of preventing and controlling the Covid-19 inside of the national Peninentiary System, as well it’s intended glimmer the factors that, even with governmental hygiene and liberation actions, still cause a great vunerability of the prision population in a pandemic such as the new Coronavírus. The methodology was based on the use of the inductive method, analyzing particular cases in order to achieve a general notion about the main measures taken by the State in order to contain the virus in the Prison Units. According to the results, it was seen that overcrowding, the unhealthiness and difficulties in accessing basic rights, make the prison population one of the most fragile and insecure in relation to Covid-19, as well as measures State colide with the immense difficulties and problems of Brazil’s penal system and penal execution. Therefore, it is necessary to immediately review the Brazilian criminal and prison policy, because the execution of the sentence in the country does not offer the real conditions worthy of its enforcement, as well as the State realizing his constitutional responsibility, which is to effectuater the humans right so fall, building civility and a less unequal society.

Keywords: Covid-19. Prison System. State Measures. Vulnerability.

 

Sumário: Introdução. 1. As condições do Sistema Penitenciário Brasileiro. 1.1. Condições precárias e superlotação das prisões brasileiras. 1.2. A precariedade do Sistema de Saúde dentro das penitenciárias brasileiras. 2. Medidas em Âmbito Nacional. 2.1. A Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 3. Medidas no Âmbito do Estado da Paraíba. 3.1. Plano de Contingência da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) da Paraíba e outras iniciativas de Órgãos Estaduais. Considerações Finais. Referências.

 

Introdução

A Covid-19 já está na memória das sociedades como uma das maiores pandemias da história das civilizações humanas, com números astronômicos de óbitos e infectados, sendo ainda mais destrutiva em países que já têm problemas históricos e crônicos quando se referem a direitos sociais básicos, como é o exemplo do Brasil. Um desses problemas são as condições desumanas do Sistema Penitenciário brasileiro, que, além da insalubridade dos próprios ambientes onde as pessoas deveriam cumprir de forma digna as suas penas, ainda conta com uma superlotação que desrespeita não apenas os direitos garantidos pelo ordenamento jurídico pátrio, mas também os tratados internacionais de direitos humanos, que asseguram dignidade e segurança às pessoas privadas de liberdade. É nesse contexto desolador do cárcere brasileiro que a pandemia da Covid-19 está presente, trazendo ao Estado um grande desafio a ser enfrentado de forma imediata e urgente.

Em relação à problemática da pesquisa, assenta-se em dois pontos. O primeiro deles é demonstrar os fatores e motivos que deixam a população carcerária tão vulnerável em um contexto pandêmico como o do novo Coronavírus. O segundo busca analisar quais foram às principais medidas tomadas por parte do poder público para a prevenção da Covid-19 dentro das unidades prisionais do Brasil. Com relação ao segundo ponto de abordagem, foram investigadas as ações tidas como basilares que o Estado procurou implementar, sem ser elemento do presente trabalho elencar todas as iniciativas executadas pelas instituições públicas no enfretamento à pandemia no interior das prisões brasileiras, tendo em vista a natureza do trabalho não permitir tal aprofundamento e extensão.

No que se refere à justificativa, faz-se mais do que necessária uma investigação, mesmo que não adentre de forma tão estrutural e profunda, acerca das condições que contribuem com uma intensa vulnerabilidade da população penitenciária frente à pandemia da Covid-19, bem como averiguar as principais determinações estatais perante uma crise de saúde pública que afeta sistematicamente o Sistema Penitenciário nacional.

No que tange aos objetivos, além de pretender tomar conhecimento sobre as principais medidas efetuadas pelo Estado no âmbito da população carcerária em relação à Covid-19, é buscado também, através dos dados e números sobre a realidade da pandemia dentro do sistema carcerária (número de infectados e óbitos), mostrar os fatores e nuances que, mesmo com ações e planos de contingência por parte do poder público, dificultam a prevenção e controle da Covid-19 nas penitenciárias do Brasil.

Em referência a metodologia, a partir da aplicação do método indutivo, este que por sua vez é um procedimento do raciocínio que, a partir da análise de dados particulares, encaminha-se para noções gerais, a pesquisa empenhou-se em observar casos de incidência do novo Coronavírus na população carcerária, para alcançar uma noção geral acerca das principais medidas tomadas pelo Estado para prevenção e controle da Civid-19 nas Unidades Prisionais. Para além, foi utilizada a pesquisa bibliográfica em sites, revistas, artigos científicos e na legislação brasileira.

 

  1. As condições do Sistema Penitenciário Brasileiro

1.1. Condições precárias e superlotação das prisões brasileiras

O sistema penitenciário brasileiro e a sua política voltada ao encarceramento, aliado a um Estado que não cumpre com a sua responsabilidade constitucional, que é estruturar e oferecer as circunstâncias mínimas de bem estar social para todos e todas, diminuindo com isso às desigualdades e efetivando os direitos sociais básicos da nossa Carta Política, gerou um complexo de ilegalidades e condições desumanas no interior de prisões e presídios do Brasil, em que o caráter punitivo da pena ultrapassa a privação de liberdade dos presos e presas, resultando em violências das mais inimagináveis, bem como deixando o princípio da pessoalidade apenas no mundo das ideias, sendo punidos, também, os amigos e familiares da pessoa que cumpre uma pena privativa de liberdade, pois eles também passam a fazer parte dos estigmas sociais que circundam a vida de um apenado.

A normatividade brasileira, ao menos em seu aspecto formal, garante o respeito aos direitos da pessoa privada de liberdade, a exemplo do próprio art. 5º da Constituição Federal de 1988, em seus incisos XLIX e L, quando diz que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (BRASIL, 1988), bem como “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação” (BRASIL, 1988), sendo o Estado obrigado pela garantia desses direitos.

A questão é que, em sua grande maioria, esses direitos não têm a sua efetivação material e social cumprida, demonstrando, ao contrário dos textos legais, um cenário de insalubridade e superlotação do sistema, em que presos e presas dormem no chão bruto das celas, muitas vezes ao lado de vasos sanitários e buracos de esgoto. Fora isso, outros problemas e atentados à dignidade humana fazem parte do cotidiano das prisões, como bem pontuaram Barros, V. e Barros, C. (2020, p. 96 – 97):

“Soma-se a esse cenário as condições degradantes de vida intramuros prisionais: precária alimentação, alta insalubridade, doenças crônicas como diabetes e hipertensão, forte incidência de doenças de pele, epidemia de tuberculose, infecções sexualmente transmissíveis (IST) e hepatites, com elevado índice de contágio posto que sem tratamento adequado e sem medidas de prevenção”.

 

Além do contexto constitucional garantidor de direitos (que em grande parte só existe no aspecto formal), abaixo da Constituição Federal de 1988 (na pirâmide normativa) ainda temos a Lei de Execução Penal (LEP), que em seu art. 85 prevê que “o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade” (BRASIL, 1984). O que demonstra, mais uma vez, que a realidade social e penitenciária brasileira está longe de cumprir com tal dispositivo infraconstitucional.

Toda essa realidade, além de grande risco à integridade física e moral das pessoas que cumprem pena privativa de liberdade, também coloca em perigo os servidores e demais funcionários que trabalham no sistema penitenciário, desempenhando suas funções em condições adversas e ainda encontrando barreiras para uma efetiva aplicação de políticas públicas dentro do cárcere, seja pelo precário estado do sistema ou seja pela falta das próprias políticas públicas e investimentos voltados para o âmbito penitenciário.

Mediante essas circunstâncias de ilegalidades e violações aos direitos humanos no sistema penitenciário pátrio, o Supremo Tribunal Federal, em 2015, reconheceu o cárcere brasileiro como “estado de coisa inconstitucional”, na decisão proferida em caráter liminar pelo Ministro Marco Aurélio na ADPF 347, entendendo que além da ofensa a inúmeros princípios constitucionais, o contexto carcerário brasileiro também fere diversas normas que garantem os direitos das pessoas privadas de liberdade, como a Convenção contra a Tortura e o Pacto Internacional dos Direitos Civis (ROSA; TONIAL; WENDRAMIN, 2020).

Mais em específico à superlotação do sistema prisional pátrio, o Estado brasileiro, fazendo uso de um Direito Penal de prima ratio, seguiu, e continua seguindo, uma política voltada ao encarceramento, acreditando que é o Direito Penal que resolverá os problemas sociais do país, quando na realidade é apenas através de políticas públicas com a finalidade de efetivação dos direitos sociais e diminuição das desigualdades, com acesso de todos e todas à educação, saúde, moradia e emprego, que poderemos construir humanidade e civilidade, e consequentemente um país melhor.

Trazendo à baila dados do Departamento Penitenciário Nacional (2017), que foram levantados pela Professora Natália Lucero Frias Tavares e pelos Professores Rodrigo Gazinoli Garrido e Antonio Eduardo Ramires Santoro, no Brasil existe cerca de 726 mil pessoas privadas de liberdade, entre presos provisórios e aqueles com condenação criminal (Dados da 2ª edição do Boletim Monitoramento CNJ Covid-19 – Efeitos da Recomendação 62/2020,  demonstram um número de 754,6 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil). Com esse número, o Brasil chegou à terceira posição entre as maiores populações prisionais do mundo, ficando atrás de Estados Unidos e China, mostrando que de 1990 a 2017 o Brasil foi 90 mil a cerca de 726 mil pessoas encarceradas. Além disso, o Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça, em pesquisa recente, demonstrou um número de cerca de 812.564 pessoas privadas de liberdade no Brasil.

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Há um outro número do total de população carcerária, não muito recente, mas que é importante pontuar pela forma como ele demonstra que a população carcerária tem uma determinada classe social, etnia e escolaridade.

Uma pesquisa com dados também trazidos pelo Depen, feita ainda em 2014, mostrou que das 773 mil pessoas encarceradas naquele ano, 61,7% eram negros ou pardos, além de que 75% desse mesmo total têm baixo grau de escolaridade, ou sequer tiveram acesso à escola. São desempregados e com estrutura familiar carente, compondo a clientela do Direito Penal (CALVI, 2018).

É necessário ainda levar em consideração duas variantes que podem concorrer para um maior número de pessoas presas. Primeiro é que os números do contingente carcerário nem sempre são disponibilizados por todas as unidades prisionais; e segundo, levando em conta que cerca de 40% da população carcerária é formada por presos provisórios (prisões cautelares), a quantidade de pessoas que passarão pelas prisões brasileiras em um ano deixará as cifras bem maiores que as apresentadas pelos números oficiais (TAVARES; GARRIDO; SANTORO, 2020).

Pelos últimos dados levantados pelo Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), cerca de apenas 21% das unidades prisionais do Brasil detêm uma população carcerária que está dentro da sua capacidade prevista. Os outros dados são assustadores em termos de superlotação, com 41% demonstrando dados de ocupação entre 101% e 200%; demais 20% apresentando dados de ocupação entre 201% e 300% da sua capacidade total; outros 5% dos estabelecimentos prisionais totalizam um contingente de pessoas presas entre 301% e 400% da sua capacidade total; e 11%, que equivale ao número de 155 unidades prisionais, apresentam taxa de ocupação que supera 401% da sua capacidade total. Dessa forma, as penitenciárias do Brasil possuem um índice de ocupação média de 197,4%, estando superlotadas e não tendo as mínimas condições para o cumprimento da pena de forma digna pelo apenado, e sem oferecer segurança para as pessoas privadas de liberdade e os servidores públicos que trabalham nos estabelecimentos penais, além de ser quase impossível a efetiva realização da ressocialização (TAVARES; GARRIDO; SANTORO, 2020).

Outro ponto importante é que 40% de toda a população carcerária é constituída por presos provisórios, pessoas que nem tiveram ainda a sua culpa formada juridicamente e o trânsito em julgado do seu processo.

É nesse cenário e nessas condições que as autoridades terão que tomar as providências mais do que necessárias para frear e prevenir ao máximo a Covid-19 dentro do sistema penitenciário brasileiro. Uma complexidade que, diante da postura do Estado brasileiro em relação à população carcerária, bem como a política de encarceramento cada vez mais presente nesse país, fica difícil acreditar que todas as medidas colocadas pelos governos e autoridades serão realmente efetivadas.

 

1.2. A precariedade do Sistema de Saúde dentro das penitenciárias brasileiras

Com o avanço da pandemia em território nacional, não demoraria para que o novo Coronavírus chegasse às prisões, atingindo os apenados, servidores e gestores das penitenciárias do país. O Estado brasileiro defronta-se com mais uma dificuldade, para além das tantas que já enfrenta quando o assunto é política carcerária. Ora, se a situação da saúde no panorama nacional já é deficitária, dentro dos presídios a matéria ainda é mais complexa.

Já era problemática a questão da saúde e salubridade no sistema penitenciário, advindos principalmente da superlotação das cadeias antes da pandemia. Doenças como tuberculose, hanseníase e aids assolam de forma silenciosa as prisões do país. De acordo com a pesquisa realizada em 2017 pelo jornal O Globo, a incidência do vírus HIV nas carceragens do Brasil foi de cerca de 2 mil casos para 100 mil detentos. No mesmo ano, dados da Defensoria Pública do Rio de Janeiro mostram que nas 58 unidades prisionais do Estado, 517 presos morreram em decorrência de enfermidades (COSTA; BIANCHI, 2017).

A insalubridade das celas e a quantidade de pessoas que convivem no mesmo espaço, que compartilham dos próprios objetos e do sanitário, inclusive que ao lado deste se alojam, tornam propício o contágio e a proliferação de epidemias:

“Os fatores estruturais são agravados pela má-alimentação dos detentos, seu sedentarismo, o uso de drogas, a falta de higiene e toda a lugubridade da prisão fazem com que o preso que ali adentrou numa condição sadia, de lá não saia sem ser acometido de uma doença ou com sua resistência física e saúde fragilizadas (MENEZES, B.; MENEZES, C., 2014)”.

A superlotação é um dos principais fatores que contribuem para a disseminação e contágio de doenças. Um preso contaminado é um risco para os demais da cela. O cenário é preocupante desde o momento em que o novo Coronavírus adentrou nos presídios, tendo em vista sua capacidade de transmissão aérea e seus impactos destrutivos. A pandemia se alastra de maneira funesta.

O processo de contágio desencadeado pelo problema da superlotação ocasionou um avanço do novo Coronavírus na população carcerária brasileira. Dados do CNJ, divulgados a partir do Boletim Semanal sobre Contágios e Óbitos no Sistema Prisional, atualizados até o dia 14/12/2020, totalizam o número de 53.656 casos confirmados de Covid-19 no Sistema Penitenciário brasileiro, entre as pessoas privadas de liberdade e servidores (41.070 pessoas presas e 12.586 servidores). Em relação ao número de óbitos, o Boletim demonstra o total de 216, também até o dia 14/12/2020 (126 pessoas presas e 90 servidores). Dados que exibem a vulnerabilidade do cárcere brasileiro, com a sua falta de investimento, estrutura e políticas públicas.

O cárcere, para além de um instrumento estatal de punição, deve ser um sistema de reeducação. Nesse sentido, o condenado à prisão precisa ser reinserido à sociedade com a preservação de sua integridade física. Ademais, o fato de o indivíduo encontrar-se preso, não implica dizer que este esteja condicionado a contrair sequelas durante sua permanência na cadeia. Pelo contrário, quando o quesito é o da saúde do preso, o Estado tem o dever de garantir a sua dignidade, tal como prevê o Art. 40 da Lei de Execução Penal (LEP), in litteris: “Art. 40 – Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios” (BRASIL, 1984). Bem como, o já citado Art. 5º, XLIX, da Constituição Federal de 1988, in verbis: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (BRASIL, 1988).

Neste prisma, quando observamos o caso de Lucas Morais da Trindade, de 28 anos, negro, preso por portar 10 gramas de maconha, morto na cadeia cujo atestado de óbito aponta para a causa mortis o Covid-19, torna-se evidente o descaso pelo qual as autoridades estatais tratam da saúde do preso e a aplicabilidade da norma ao caso fático. O evento citado ocorreu na penitenciária de Manhumirim, na Zona da Mata mineira. Neste local, 159 detentos testaram positivo para o novo Coronavírus (ALVES, 2020).

São circunstâncias que de forma conjunta acarretam um verdadeiro bis in idem: da condenação do réu a uma pena privativa de liberdade e o atentado à saúde do preso dentro da unidade prisional.

Com o fim de conter a propagação do vírus e evitar a incidência de casos como o supracitado, o Estado brasileiro tomou algumas medidas em âmbito nacional, orientando os Juízos de instrução e de execução penal a seguirem determinadas diretrizes que serão elencadas adiante. Medidas, que na nossa interpretação, são as principais no que toca o enfretamento e prevenção à Covid-19 nas prisões do país, sem querer adentrar a todas as providências e ações tomadas pelo poder público, tendo em vista que a natureza do trabalho não permite um total aprofundamento.

 

  1. Medidas em Âmbito Nacional

2.1. A Recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

O sistema penitenciário nacional é um dos ambientes mais propícios para a propagação do novo Coronavírus (SARS-CoV-2), por todas as condições precárias e desumanas que marcam o cumprimento da pena no Brasil. Diante disso, o CNJ editou a Recomendação nº 62/2020, de 17 de Março de 2020, com alteração pela Recomendação 68/2020, de 17 de Junho de 2020 (Incluiu diretrizes acerca das audiências de custódia). Tais orientações presentes na Recomendação 62/2020 do CNJ buscam a aplicação de medidas desencarceradoras e preventivas com o fim de evitar à propagação da Covid – 19 nas unidades prisionais e no sistema socioeducativo do país.

Uma das primeiras orientações trazidas pela Recomendação 62/2020, em seu art. 2º, diz respeito aos Juízos que tem competência na fase de conhecimento, dedicada a apuração dos atos infracionais nas Varas da Infância e da Juventude, orientando que as medidas socioeducativas sejam aplicadas em meio aberto, e as decisões de internações provisórias sejam revisadas, principalmente em relação a adolescentes:

“I – gestantes, lactantes, mães ou responsáveis por criança de até doze anos de idade ou por pessoa com deficiência, assim como indígenas, adolescentes com deficiência e demais adolescentes que se enquadrem em grupos de risco;

II – que estejam internados provisoriamente em unidades socioeducativas com ocupação superior à capacidade, considerando os parâmetros das decisões proferidas pelo STF no HC nº 143.988/ES;

III – que estejam internados em unidades socioeducativas que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, estejam sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus; e

IV – que estejam internados pela prática de atos infracionais praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa (CNJ, 2020)”.

Também foram recomendadas, em seu art. 3º, ao juízo competente para execução de medidas socioeducativas, a substituição de internação e semiliberdade para medida em meio aberto, voltada para o mesmo público dos incisos I, II e III do art. 2º (citados anteriormente), bem como uma reanálise das decisões que aplicaram a internação-sanção, prevista no art. 122, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Já no art. 4º, I, é recomendada aos Magistrados com competência para a fase de conhecimento criminal, a reavaliação das prisões provisórias (art. 316, do CPP), com priorização para:

“a) mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência, assim como idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco;

  1. b) pessoas presas em estabelecimentos penais que estejam com ocupação superior à capacidade, que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, que estejam sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus;
  2. c) prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa; (CNJ, 2020)”.

Também sendo orientada a máxima excepcionalidade das decretações de novas prisões preventivas. Decisão que já deve ser tomada apenas em ultima ratio, tendo em vista ser ela a medida cautelar mais extrema em nosso ordenamento jurídico.

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Em relação aos Magistrados com competência para a execução penal, o art. 5º, I, da Recomendação 62/2020 orienta a autorização de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto, seguindo as diretrizes da Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal Federal, que proíbe a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, quando houver falta de estabelecimento penal adequado. A concessão dessas medidas são direcionadas as mesmas pessoas previstas nas alíneas a e b, I, do art. 4º, citados anteriormente.

O inciso III, do mesmo art. 5º, também recomenda a concessão de prisão domiciliar para as pessoas que estão cumprindo pena nos regimes aberto e semiaberto, com condições determinadas pelo Juiz da Execução Penal. Já o inciso IV prevê a autorização de prisão domiciliar de pessoa presa suspeita ou já diagnosticada com Covid – 19, na falta de espaço condizente no estabelecimento penal. E no Art. 6º, há também orientação aos magistrados com competência cível, para a consideração de prisão, convertendo-a em domiciliar, nos casos de dívida por pensão alimentícia.

Em relação às audiências de custódia, a Recomendação 62/2020, no art. 8º, permite a não ocorrência destas, acatando, desde que seja observado o contexto local de disseminação do vírus, a pandemia como motivação idônea para a não realização das audiências de custódia, sendo feito o controle da prisão através da análise do auto de prisão em flagrante. Porém, tal dispositivo não previa nenhum elemento normativo que garantisse o contraditório no âmbito das audiências de custódia, o que ensejou o pedido feito pela Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE – GO), requerendo alterações na Recomendação 62/2020, para inserir disposições que viabilizassem as manifestações do Ministério Público e da Defesa Técnica antes da decisão judicial.

A partir do requerimento da DPE – GO, foi editada pelo CNJ a Recomendação 68/2020, que acrescentou à Recomendação 62/2020 o art. 8-A, trazendo mecanismos para que seja feita a abertura prévia de vistas dos autos para o Ministério Público e a Defesa, permitindo e providenciando, além do contraditório, a realização das audiências de custódia, um instrumento extremamente salutar na luta para efetivação das garantias individuais e direitos fundamentais.

Alguns desses mecanismos estão presentes nos incisos I, II e VI do art. 8-A da referida Recomendação, que garantem entrevista, podendo ser por videoconferência, e de forma reservada, entre a Defesa Técnica e a pessoa custodiada; manifestação prévia do Ministério Público e da Defesa antes da análise do Magistrado acerca da prisão processual, possibilidade de prisão que deve ser observada apenas em ultima ratio; e que seja determinada diligências periciais, no caso de haver indícios de tortura ou outros tratamentos cruéis.

Em se tratando dos Magistrados que realizam a fiscalização de estabelecimentos prisionais e unidades socioeducativas, o art. 9º orienta que seja observada à implementação de um plano de contingência elaborado pelo Poder Executivo, que disponha de medidas preventivas de higiene de toda a unidade prisional ou socioeducativa, presença constante de equipes médicas, máscaras, abastecimento de medicamentos e produtos de higiene pessoal, e equipamentos de proteção individual para os agentes que trabalham no sistema penitenciário e socioeducativo.

No tocante a destinação dos recursos advindos das penas pecuniárias, o art. 13º permite que, durante o período de estado de emergência pública, sejam direcionados tais recursos para obtenção de equipamentos de limpeza e proteção para a execução das ações sanitárias e de saúde nas unidades prisionais e de medidas socioeducativas.

No que tange à aplicação das medidas orientadas pela Recomendação 62/2020, o CNJ publicou a 2ª edição do Boletim Monitoramento CNJ Covid-19 – Efeitos da Recomendação 62/2020, com informações coletadas entre os dias 19 a 29 de maio, buscando verificar os dados acerca da aplicação da Recomendação 62 no âmbito da justiça penal brasileira. Em termos de solturas, com dados mostrados até dia 29 de maio, o CNJ verificou que em 25 Unidades Federativas, exceção de Goiás e Roraima, foram identificadas solturas em razão da pandemia pelo novo Coronavírus, e, dentre essas 25, não foram encontradas informações exatas sobre o números de solturas no Acre, Amapá, Ceará e Espírito Santo. Em relação às demais Unidades Federativas que constaram dados exatos, o número de solturas é de cerca de 35 mil, entre presos provisórios e condenados, o que representa apenas 4,64% do total de 754,6 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil.

Dados que demonstram um país ainda distante de uma política de desencarceramento, bem como um Estado ainda longe da efetivação dos direitos sociais básicos, que só através deles e de políticas públicas que teremos uma população carcerária em menores índices e números, e com as suas garantias e direitos atendidos.

 

  1. Medidas no Âmbito do Estado da Paraíba

3.1. Plano de Contingência da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) da Paraíba e Outras Iniciativas de Órgãos Estaduais

A Secretaria de Estado da Administração Penitenciária da Paraíba (SEAP) editou o Plano de Contingência para o novo Coronavírus no Sistema Penitenciário do Estado da Paraíba, publicado em 03 de abril de 2020, contendo medidas, orientações e recomendações sanitárias para a prevenção e controle da Covid-19 dentro das Unidades Prisionais paraibanas.

De início, serão citadas algumas primeiras medidas colocadas pela SEAP, em âmbito mais geral, na prevenção e controle da Covid-19, entre elas estão à intensificação da higienização das celas e demais ambientes coletivos; fortalecimento da alimentação das pessoas privadas de liberdade, aumentando em 30% o abastecimento de alimentos com balanceamento nutricional; fornecimento de medicamentos indicados pela Organização Mundial da Saúde, como dipirona e paracetamol, no tratamento dos primeiros sintomas da Covid-19; obtenção de termômetros de infravermelho, para a identificação de quadros de febre entre as pessoas privadas de liberdade; a solicitação ao Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) para a aquisição de cerca de 300 mil equipamentos de proteção individual e materiais de higiene; presença de uma sala, em cada Unidade Prisional, para isolamento de apenado que apresente sintomas da Covid-19; disponibilidade, 24 horas por dia, de uma equipe da saúde para o atendimento e tirar dúvidas acerca dos casos suspeitos; elaboração de pequenas palestras com o intuito de ensinar e conscientizar servidores e apenados acerca de medidas de higiene pessoal, uso de equipamentos de proteção individual e medidas de etiqueta respiratória, como cobrir nariz e boca com o cotovelo ao tossir ou espirrar; implantação do sistema de videoconferência, através de acordo com o Tribunal de Justiça da Paraíba, com a finalidade da não necessidade de transporte da pessoa presa para a realização de audiências e a modificação da estrutura da Penitenciária de Segurança Média Juiz Hitler Cantalice, localizada em João Pessoa, em unidade específica para o recebimento de pessoas presas com sintomas de Covid-19.

Uma das primeiras ações da SEAP – PB foi a suspensão das visitas de familiares das pessoas privadas de liberdade, sendo necessário, desse modo, a execução de um sistema de visitas virtuais, pois a pessoa presa jamais deverá ter negado o contato com a família, que é um dos importantes elementos na promoção da ressocialização e saúde do apenado e apenada. Dessa forma, segunda a Revista SEAP do mês de Julho, foi implantado um mecanismo de chamadas virtuais entre o preso e sua família, com a realização em uma sala específica onde ficam os equipamentos tecnológicos e com a supervisão de policial penal. Medida que não substitui o contato físico entre os presos e seus familiares e amigos, porém permite algum contato, mesmo que virtual, e garante a segurança das pessoas privadas de liberdade, sua família e os servidores do sistema penitenciário da Paraíba.

Outras orientações se referem à higienização de equipamentos de saúde e ambientes de consultórios do sistema penitenciário, além da limpeza dos instrumentos de segurança, como scanner corporal e algemas. Em relação ao exercício dos profissionais de saúde, o Plano recomenda que sejam aplicados procedimentos que possam averiguar e identificar casos suspeitos de Covid-19, como questionamentos relativos a sinais e sintomas. Tais procedimentos devem ser também aplicados nas pessoas presas que estão chegando ao sistema penitenciário.

No tocante à conduta diante dos casos suspeitos, o Plano de Contingência determina que se coloque de imediato o paciente em isolamento, com a prestação de toda a assistência médica a ele, sendo feita a avaliação clínica do caso.

Já em relação à conduta diante dos casos confirmados de Covid-19, o Plano de Contingência estabelece que a pessoa presa deverá ficar em isolamento na Unidade Prisional ou em outro local preparado pelas autoridades competentes, onde ficará por todo o período de tratamento, com a equipe de saúde prisional acompanhando toda a situação epidemiológica. Em caso de haver necessidade de transportar o paciente para um local mais adequado e com devida estrutura para o seu tratamento, o veículo e demais equipamentos utilizados deverão ser higienizados, com todos os envolvidos no transporte utilizando máscaras e os demais equipamentos de proteção individual.

Outras iniciativas tomadas no âmbito estadual, além do citado Plano de Contingência editado pela SEAP – PB, também foram trazidas, com a finalidade de oferecer maior suporte às medidas executadas pela Secretaria de Estado da Administração Penitenciária, entre elas está a criação do Comitê de Acompanhamento das Medidas de Enfrentamento à Covid-19, instituído pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) pertencente ao Tribunal de Justiça da Paraíba. O Comitê tem como competência acompanhar a aplicação das medidas presentes na Recomendação 62/2020 do CNJ, bem como outras diretrizes implementadas no Sistema Penitenciário e Socioeducativo Paraibano.

Também foi editado, pelo Tribunal de Justiça da Paraíba e a Corregedoria-Geral de Justiça, o Ato Conjunto nº 05/2020 que determina a destinação dos recursos financeiros advindos de pena de prestação pecuniária, transação penal e suspensão condicional do processo nas ações penais para o enfrentamento da pandemia junto as Unidades Prisionais e Socioeducativas da Paraíba.

Em relação aos números de pessoas presas infectadas, recuperadas e óbitos nas Unidades Penais da Paraíba, um Boletim publicado pela Gerência Executiva de Ressocialização da SEAP – PB, com dados até o dia 02 de agosto de 2020, mostrou que o número de casos confirmados é de 232 pessoas, com 229 recuperados e 02 óbitos. Boletim mais recente encontrado no site da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) da Paraíba até a publicação desta pesquisa.

Esses números demonstram, com grandes chances de serem bem maiores, que as condições de superlotação do sistema penitenciário nacional dificultam e muito a aplicação de medidas imediatas para a preservação da vida e bem estar da população carcerária, ainda mais com um vírus de forte transmissão. O que denota a necessidade de pensar a política criminal e penitenciária no país, passando pela forma de como o Estado deve, pois é sua obrigação constitucional, garantir os direitos sociais básicos de todos os cidadãos, para que só assim se construa um país com menores taxas de criminalidade e de população carcerária.

 

Considerações Finais

No decorrer da pesquisa, constatou-se a preocupação de alguns órgãos do Poder Público em prestar assistência às unidades prisionais com o fim de conter o alastramento do vírus, bem como normativas do Poder Judiciário de forma a orientar magistrados e tribunais do país, com medidas desencarceradoras, planos de contingência e demais ações para enfrentar e prevenir à Covid-19 no Sistema Penitenciário brasileiro.

Porém, muitas penitenciárias tiveram de atuar de acordo com as circunstâncias. Neste viés, a partir da análise da aplicabilidade da norma no plano fático, em que pese às medidas de saúde, sanitárias e outras normativas que as instituições judiciais e carcerárias se vincularam, várias Unidades Prisionais não conseguiram conter de forma eficiente o número de casos e o contágio, levando indivíduos, tanto apenados como servidores, a óbito.

Dada a complexidade do enfrentamento ao vírus, avaliou-se um problema estrutural para além da pandemia. No atual cenário, não há condições para que os gestores e servidores dos presídios atuem de acordo com a norma. Sendo assim, o Estado necessita não somente do empenho dos Poderes da República, como também do apoio de toda a sociedade na criação de uma nova política carcerária com efetivação de profissionais qualificados da saúde e segurança no serviço público, pois, no atual contexto, o sistema penitenciário não alcança a materialização da norma devido tamanha deficiência de recursos materiais e humanos.

Além dessa problemática estrutural, é necessário repensar o direito penal de prima ratio, que há anos estabelece a política criminal brasileira, bem como um Poder Público que, em todas as suas esferas e competências, concretize as suas responsabilidades constitucionais, concedendo, para todos e todas, os direitos sociais, para que com isso haja desenvolvimento social, intelectual e construção de civilidade, e assim possa existir uma sociedade com mais oportunidades e taxas menores de violência e criminalidade.

Por fim, é importante elencar, de forma evidente, que a ressocialização não se sujeita apenas à subjetividade e ao desejo do condenado. Tampouco somente às instituições do Estado. É um dever da sociedade como um todo. Principalmente quando o indivíduo retorna à esfera social, necessitando da solidariedade em comum.

 

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