A Violação de Direitos Humanos na Perpetuidade das Medidas de Segurança Aplicadas como Instrumento de Punição às Pessoas com Transtornos Mentais

Autor (a): Bárbara Leilane Pereira Barbosa, Bacharela em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT. Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade Venda Nova do Imigrante e Pós-graduanda em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade Legale. Advogada. E-mail: [email protected].

Autor (a): Kalita de Castro Rodrigues, Bacharela em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT. Pós-graduanda em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes. Assessora Jurídica do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. E-mail: [email protected]

Resumo: Os indivíduos submetidos às medidas de segurança penal, na maioria das vezes, recebem um tratamento inapropriado, notadamente em razão da falta de condições adequadas dos locais de internações e de sua coisificação e submissão a tratamentos cruéis e degradantes, bem como em virtude da violação do disposto no art. 5º, inciso XLVII, da Constituição Federal de 1988, que proíbe prisões perpétuas e submissões a tratamentos desumanos e degradantes. Diante disso, considerando a perpetuidade da execução das medidas de segurança prevista no Código Penal, surge a necessidade de debater a respeito das graves violações aos direitos humanos das pessoas com transtornos metais, inclusive em razão do descumprimento de preceitos fundamentais consagrados constitucionalmente, especialmente da dignidade da pessoa humana desses indivíduos. Assim, a pesquisa se desenvolve a fim de apresentar como a imposição de medida de segurança como sanção penal à pessoa com transtorno mental representa vilipêndio aos seus direitos humanos e fundamentais. Para isso, utiliza-se o método dedutivo e realiza-se uma pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Medida de Segurança. Pessoas com Transtornos Mentais. Perpetuidade. Violação. Direitos Humanos.

 

Abstract: Individuals submitted to criminal security measures, in most cases, receive inappropriate treatment, notably due to the lack of adequate conditions of the places of internment and their reification and submission to cruel and degrading treatment, as well as due to the violation of the provisions of article 5th, item XLVII of the 1988 Federal Constitution, which prohibits perpetual imprisonment and submission to inhuman and degrading treatment. In view of this, considering the perpetuity of the execution of the security measures foreseen in the Penal Code, the need arises to debate the serious violations of the human rights of people with mental disorders, including due to the noncompliance with fundamental precepts constitutionally enshrined, especially the dignity of the  human person of these individuals. Thus, the research is developed in order to present how the imposition of a security measure as a criminal sanction to the person with mental disorder represents a vilification of their human and fundamental rights. For that, the deductive method was used and a bibliographical research was conducted.

Keywords: Security Measure. People with Mental Disorders. Perpetuity. Violation. Human Rights

 

Sumário: Introdução. 1. Conceituação da Medida de Segurança, Finalidade, Pressupostos, Espécies e o Incidente de Integridade Mental. 2. A Divergência sobre o Prazo de Duração da Medida de Segurança e a Desinternação. 3. Os Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. 4. A Perpetuidade das Internações e a Violação dos Direitos Humanos das Pessoas Submetidas à Medida de Segurança. Conclusão. Referências.

 

Introdução

As pessoas com transtornos mentais, muitas vezes, são privadas de gozarem de seus direitos, condicionadas a uma vida miserável e sujeitas a tratamentos degradantes e desumanos, tendo sua dignidade humana aniquilada. Nessa toada, os indivíduos com transtornos mentais submetidos à medida de segurança acabam sendo segregados da sociedade em locais insalubres e sem assistência psiquiátrica.

Por consequência, o que ocorre é uma coisificação do ser humano deficiente mental, uma vez que há a exclusão social desses indivíduos, privados eternamente da convivência externa. Desse modo, indivíduos com transtornos mentais são “esquecidos” propositalmente pelo Estado em virtude da sua potencial periculosidade, demonstrando o total descaso estatal em relação a esses seres humanos, decorrência de grave violação aos direitos humanos e fundamentais.

Nessa perspectiva, a presente pesquisa critica o tratamento inapropriado que recebem os indivíduos submetidos às medidas de segurança, em razão da falta de condições adequadas dos locais de internações, bem como da perpetuidade da execução das medidas de segurança enquanto sanção penal, visto que, como consequência disso, ocorrem graves violações aos direitos humanos e fundamentais dessas pessoas.

Porquanto, o presente trabalho tem como tema as medidas de segurança enquanto sanção penal aplicáveis às pessoas com transtornos mentais e a violação aos direitos humanos e fundamentais na execução dessas medidas, com especial atenção para o caráter perpétuo das medidas de segurança como instrumento de punição destinado às pessoas com transtornos mentais, na tentativa de abordar o seguinte problema: por que a imposição de medida de segurança como sanção penal à pessoa com transtorno mental representa violação dos seus direitos humanos? Por essa razão, são abordados os principais conceitos e divergências relacionados ao assunto, bem como são apresentados os dados disponibilizados no Relatório de Inspeção Nacional de 2018 e no Relatório Brasil de 2015.

Além disso, o objetivo geral deste trabalho é abordar as medidas de segurança como sanção penal aplicadas às pessoas com transtornos mentais e a perpetuidade das referidas medidas de segurança, que se traduz em graves violações aos direitos humanos, especialmente no que tange à inobservância da dignidade da pessoa humana. Para alcançar os resultados pretendidos, é utilizado o método dedutivo, partindo das disposições legais e doutrinárias. Portanto, a técnica de abordagem da pesquisa a ser utilizada é a pesquisa bibliográfica, por meio da utilização de livros, revistas científicas, artigos, dissertações de mestrado, jurisprudências e dados disponibilizados no Relatório de Inspeção Nacional e no Relatório Brasil.

 

1. Conceituação da Medida de Segurança, Finalidade, Pressupostos, Espécies e o Incidente de Integridade Mental

A medida de segurança é instrumento cuja conceituação técnica é própria do ramo do direito, especialmente da seara penal. Desse modo, é possível inferir que não se trata de um instrumento amplamente conhecido pela maioria das pessoas não atuantes no ramo jurídico. Nesse interim, resumidamente, na esfera jurídica, pena e medida de segurança são espécies de sanções penais aplicáveis no direito penal brasileiro. Portanto, medida de segurança não se trata de pena, embora também seja espécie de sanção penal.

Nesse sentido, a pena possui caráter retributivo, ao passo que o fundamento da medida de segurança é preventivo, que tem por intuito cessar a periculosidade do indivíduo considerado inimputável. O ilustre professor Cléber Masson (2016, p.935) deixa evidente que “medida de segurança é a modalidade de sanção penal com finalidade exclusivamente preventiva, e de caráter terapêutico, destinada a tratar inimputáveis e semi-imputáveis portadores de periculosidade, com o escopo de evitar a prática de futuras infrações penais”.

No mesmo contexto, para Cunha (2016, p.505), “a medida de segurança tem finalidade essencialmente preventiva (prevenção especial), é dizer, sua missão maior é evitar que o agente (perigoso) volte a delinquir. Volta-se para o futuro e não para o passado, como faz a pena”. Portanto, de acordo com os ensinamentos do autor, a medida de segurança deve incidir apenas sobre indivíduos que sejam realmente perigosos e, quando cessada sua periculosidade, a medida de segurança não deve mais prevalecer. Deve-se destacar também o entendimento da Ministra Jane Silva que:

“A medida de segurança deve atender a dois interesses: a segurança social e principalmente ao interesse da obtenção da cura daquele a quem é imposta, ou a possibilidade de um tratamento que minimize os efeitos da doença mental, não implicando necessariamente em internação. (BRASIL, 2008, p.1). ”

Além disso, em relação ao assunto, esclarece Cunha (2016, p.506) que, em observância ao princípio da proporcionalidade, “o magistrado na determinação da medida de segurança (e sua duração), não observa a gravidade do fato, mas, especialmente, o grau de periculosidade do agente”, em função da missão da medida de segurança, que é evitar que o agente volte a delinquir.

De acordo com o que evidenciam os autores Portella e Junior (2019, p.2), as nomenclaturas nem sempre foram as mesmas, mas, desde o princípio do direito penal, a aplicação da lei penal para os considerados como inimputáveis sempre se apresentou de forma distinta da aplicação destinada às demais pessoas. No Direito Romano, existiam sanções preventivas. Por sua vez, a Idade Moderna influenciou a criação do primeiro manicômio judiciário em 1800 na Inglaterra. No Brasil, o conceito de periculosidade foi previsto no Código Penal de 1940. Já com a reforma do Código Penal em 1984, como esclarecem Portella e Júnior (2019, p.4), as modalidades de medidas de segurança se restringiram, passando a existir somente medidas pessoais, que consistiam em hospital de custódia ou tratamento ambulatorial, bem como o sistema duplo binário fora substituído pelo sistema vicariante.

Nessa perspectiva, conforme os ensinamentos de Greco (2015, p. 753), no Código Penal de 1940, predominava o sistema duplo binário, no qual o juiz aplicava pena e medida de segurança às pessoas com transtornos mentais. Assim, de acordo com o autor supracitado, após o término do cumprimento da pena, iniciava-se o cumprimento da medida de segurança, de acordo com o artigo 82, incisos I e II, do referido diploma legal. Atualmente, após reforma promovida no Código Penal brasileiro, de acordo com o que esclarece Nucci (2016, p. 550), prevalece o sistema vicariante, no qual o juiz pode aplicar apenas pena ou medida de segurança. Assim, como explica o referido autor, como regra, caso o réu seja considerado imputável, recebe pena e, sendo inimputável ou semi-imputável, recebe medida de segurança ou pena, e não ambas.

Destarte, elucida Masson (2016, p.936) que a aplicação da medida de segurança depende da verificação de três pressupostos. O primeiro é a prática de um fato típico e antijurídico, o segundo é a periculosidade do agente, visto que, sem periculosidade, é impraticável a aplicação dessa espécie de sanção penal. A periculosidade é aqui entendida como “a potencialidade para a pratica de novos delitos”, de acordo com o que destaca Zilberman (2009, p.92). Nesse sentido, Silva e Fioratto ensinam que:

“A opção do legislador foi a de excluir a culpabilidade do agente doente mental, atribuindo-lhe, em contrapartida, uma dose de periculosidade, proporcional ao seu estado de insanidade e ao fato praticado. É contra a periculosidade do agente inimputável que incide o instituto da medida de segurança. (SILVA E FIORATTO, 2014, p.9). ”

Por fim, o último requisito, de acordo com Masson (2016, p.936), é a não ocorrência da extinção da punibilidade, ou seja, o Estado ainda deve ter o direito de aplicar punição ao infrator. Para melhor ilustrar o entendimento de Cleber Masson, destaca-se o seguinte trecho de sua obra:

“Destarte, o simples fato de ser a pessoa portadora de periculosidade não permite a incidência da medida de segurança. É imperioso o respeito ao devido processo legal, com o exercício do contraditório e da ampla defesa. Exemplificativamente, um inimputável que tenha praticado um fato típico em estado de necessidade não comete crime, razão pela qual não se aplica medida de segurança. Da mesma forma, não incide essa espécie de sanção penal quando ausentes provas inequívocas da autoria e da materialidade do fato. (MASSON, 2016, p.937). ”

Por outro lado, o instrumento apto a averiguar a periculosidade é o incidente de insanidade mental, cujo procedimento é disciplinado nos artigos 149 a 154 do Código de Processo Penal. Neste viés:

“Para que seja possível a imposição de medida de segurança ao inimputável ou ao semi-imputável é imprescindível que seja instaurado o incidente de insanidade mental, para verificar o estado mental do acusado no momento atual e ao tempo da conduta delituosa, aferindo a sua capacidade de autodeterminação e de entendimento do caráter ilícito do fato. (SILVA E FIORATTO 2014, p.4). ”

No mesmo sentido, é o entendimento do Ministro Jorge Mussi do Superior Tribunal de Justiça:

“Nos termos do artigo 149 do Código de Processo Penal, “quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal”. Da leitura do mencionado dispositivo legal, depreende-se que a implementação do exame não é automática ou obrigatória, dependendo da existência de dúvida plausível acerca da higidez mental do acusado. (BRASIL, 2013). ”

Nessa linha, convém frisar que de acordo com o Código Penal, a periculosidade pode ser real ou presumida. Conforme destaca Masson (2016, p.938), a periculosidade será presumida quando a lei considerar de forma expressa que determinado indivíduo é perigoso e é aplicável aos inimputáveis, conforme artigo 26, caput, do Código Penal. Tal presunção é absoluta (juris et de iure) e o juiz tem o dever de aplicar a medida de segurança. Por sua vez, explica Masson (2016, p.939), que a periculosidade real deve ser provada no caso concreto, ou seja, não existe presunção acerca da sua existência, sendo cabível aos semi-imputáveis, de acordo com o artigo 26, parágrafo único, do Código Penal. Da mesma forma, para Fernando Capez:

“Na inimputabilidade, a periculosidade é presumida. Basta o laudo apontar a perturbação mental para que a medida de segurança seja obrigatoriamente imposta. Na semi-imputabilidade, precisa ser constatada pelo juiz. Mesmo o laudo apontando a falta de higidez mental, deverá ainda ser investigado, no caso concreto, se é caso de pena ou de medida de segurança. (CAPEZ, 2011, p.468). ”

Acerca do assunto, Rogério Sanches Cunha realiza importante ponderação:

“Concluindo a perícia que o réu, além de portador de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, será considerado inimputável (art. 26, caput, do CP). Respeitado o devido processo legal, o inimputável será absolvido com imposição de medida de segurança (absolvição imprópria). (CUNHA, 2016, p.508). ”

Nesse sentido, elucida Cleber Masson (2016) que se trata de sentença absolutória imprópria pelo fato de recair sobre o indivíduo uma sanção penal, nos moldes definidos pelo artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, nos casos de resultado de inimputabilidade. No entanto, caso o resultado do laudo pericial conclua que o agente possui perturbação da saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado e não é inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato, é determinado como semi-imputável, impondo-lhe a aplicação de causa de diminuição de pena ou medida de segurança, a depender do caso concreto, o que se chama de periculosidade real. Nesse sentido são os ensinamentos de Rogério Sanches Cunha:

“Se a conclusão dos expertos for de que o agente, além de portador de perturbação de saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era, ao tempo do fato, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, será rotulado como semi-imputável (art. 26, parágrafo único, do CP). Depois de processado, deve ser condenado, decidindo o juiz se impõe pena, diminuída de 1/3 a 2/3 (art.98, do CP) ou medida de segurança (esta quando demonstrada a sua necessidade). (CUNHA, 2016, p.508). ”

No entanto, há de ressaltar, em respeito ao que preceitua o artigo 98, do Código Penal (BRASIL, 1940), que, se for constatado que o condenado necessita de especial atendimento curativo, a pena reduzida aplicada pode ser substituída por medida de segurança, quer seja internação, quer seja tratamento ambulatorial. Nesses casos, denota-se que o Código Penal adota o sistema vicariante, aplicando-se ao semi-imputável a pena reduzida, conforme o artigo 26, parágrafo único, do Código Penal, ou medida de segurança, quando comprovada a sua periculosidade.

Em outra toada, as espécies de medida de segurança estão elencadas no artigo 96, incisos I e II, do Código Penal, e consistem em internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, e, na falta destes, em outro estabelecimento que se mostre adequado ou tratamento ambulatorial. De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o inimputável não pode ser mantido em estabelecimento prisional comum. Nesse sentido:

“A teor da pacífica orientação desta Corte, o inimputável submetido à medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico não pode permanecer em estabelecimento prisional comum, ainda que sob a justificativa de ausência de vagas ou falta de recursos estatais. (BRASIL, 2013, p.1). ”

Assevera Zilberman (2009) que as medidas de segurança previstas no inciso I, do artigo 96, do Código Penal, recebem o nome de detentivas. Já as previstas no inciso II do referido artigo são chamadas de medidas restritivas. Convém anotar a lição do referido autor:

“A medida de segurança detentiva é obrigatória quando a pena cominada ao delito for de reclusão, consoante questionável critério adotado pelo artigo 97 do Código Penal. (…). Já a medida restritiva pode ser aplicada aos fatos punidos com detenção, nos termos do que dispõe o artigo 97 do Estatuto Repressivo. (ZILBERMAN, 2009, p.97). ”

Algumas ponderações acerca desse ponto merecem destaque. De acordo com Cunha (2016), no que tange às medidas de segurança detentivas, o que é levado em consideração é apenas, e tão somente, a gravidade da infração, e não a real periculosidade do agente, o que representa afronta ao princípio da proporcionalidade, quando analisado por este ângulo. Neste mesmo diapasão é a crítica de Nucci (2009, apud CUNHA 2016, p.507) ao afirmar que: “esse preceito é nitidamente injusto, pois padroniza a aplicação da sanção penal e não resolve o drama de muitos doentes mentais que poderiam ter suas internações evitadas”. No mesmo sentido, para Cleber Masson:

“O rígido critério adotado pelo Código Penal é alvo de críticas, por estabelecer um modelo padrão para medidas de segurança e levar à internação de diversas pessoas que poderiam ser tratadas de forma mais branda. Cria, inclusive, distinções injustas entre imputáveis e inimputáveis. O condenado pela prática de crime de furto simples dificilmente será submetido ao cárcere, pois teria direito a diversos institutos que evitam a privação da liberdade, tais como penas restritivas de direitos, sursis etc. Se inimputável, contudo, seria inevitavelmente internado, por se tratar de crime punido com reclusão. (MASSON 2016, p.940). ”

Para Greco (2015, p.756), “independentemente dessa disposição legal, o julgador tem a faculdade de optar pelo tratamento que melhor se adapte ao inimputável, não importando se o fato definido como crime é punido com pena de reclusão ou de detenção”. Inclusive, o entendimento do Ministro Joel Ilan Paciornik caminha no mesmo sentido ao afirmar que:

“Segundo entendimento desta Corte, nos termos do art. 97 do CP, em regra, ao agente inimputável que tenha praticado fato previsto como crime punível com reclusão, o juiz determinará sua internação. Todavia, excepcionalmente, à luz dos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade, é possível que o julgador determine o tratamento ambulatorial, pois não se encontra vinculado apenas à gravidade do delito perpetrado, mas também à periculosidade do agente. (BRASIL, 2019). ”

Desse modo, o critério levado em consideração deixaria de ser a gravidade do delito praticado e passaria a ser a periculosidade do agente. No entanto, como mais adiante se critica, a previsão expressa na legislação do dever de atribuição de internação de inimputáveis que tenham praticado crime punido com reclusão e a ausência de vinculação dos precedentes no sistema jurídico brasileiro acaba por trazer insegurança jurídica e violação, em muitos casos, do princípio da igualdade.  Portanto, faz-se apropriado adentrar no campo da duração da medida de segurança.

 

2. A Divergência sobre o Prazo de Duração da Medida de Segurança e a Desinternação

Em seguida às discussões já arguidas alhures, manifestam-se Silva e Fioratto (2014, p.331) que, “com o trânsito em julgado de sentença absolutória imprópria, ou de sentença condenatória de semi-imputável em que há a substituição da pena por medida de segurança, será ordenada a expedição de guia para a execução”. De acordo com Masson (2016), tal guia é imprescindível, uma vez que, sem ela, ninguém será submetido a cumprimento de medida de segurança. É o que se verifica nos artigos 171 e 172 da Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984).

Conquanto, no que tange ao cumprimento da medida de segurança, o artigo 97, parágrafo primeiro, do Código Penal (BRASIL, 1940), estipula que o prazo mínimo de internação ou tratamento ambulatorial ao qual é submetida a pessoa com transtornos mentais em conflito com a lei deve ser de um a três anos. Assim, de acordo com o que preceitua a primeira parte do artigo 97, parágrafo primeiro, do referido diploma legal, “a internação ou tratamento ambulatorial será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação da periculosidade” (BRASIL, 1940). No mesmo sentido, preconiza Rogério Greco que:

“A medida de segurança, como providência judicial curativa, não tem prazo certo de duração, persistindo enquanto houver necessidade do tratamento destinado à cura ou à manutenção da saúde mental do inimputável. Ela terá duração enquanto não for constatada, por meio de perícia médica, a chamada cessação da periculosidade do agente, podendo, não raras as vezes, ser mantida até o falecimento do paciente. (GRECO, 2017, p.757). ”

Portanto, de acordo com a legislação atual, o prazo da medida de segurança tem um patamar mínimo, mas não tem um limite máximo de execução previsto expressamente na lei. Assim, pelo texto legal, a execução da medida de segurança pode ser eterna. Nesse panorama, há discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema. Alguns doutrinadores elucidam que as medidas de segurança têm natureza administrativa e que, por consequência disso, não podem ter limitação temporal, pois a sua continuidade ou não deve ser determinada pela cessação da periculosidade do agente.

No entanto, segundo Cunha (2016), a opção legislativa recebe duras críticas, especialmente pelo fato de a doutrina e a jurisprudência argumentarem que a indeterminação do prazo de duração da medida de segurança é incompatível com a Constituição Federal de 1988, justamente pela proibição das sanções de caráter perpétuo, conforme artigo 5º, XLVII, alínea “b” da Carta Magna. No que tange ao assunto, Rodrigues (2016, n.p.) realiza sensata ponderação a respeito do assunto ao enfatizar que “a falta de determinação do prazo máximo de duração da medida de segurança incorre em uma explicita inconstitucionalidade, visto violar os princípios da proporcionalidade, da igualdade e da não-perpetuação das penas”.

O ilustre autor Cezar Roberto Bitencourt (2012) também sustenta em sua obra que pena e medida de segurança são duas espécies do gênero sanção penal e que não há distinção ontológica entre elas, de modo que a previsão constitucional de proibição de prisões com caráter perpétuo deve ser aplicada a ambos os institutos. Veja-se:

“Pode-se, assim, atribuir, indiscutivelmente, o caráter de perpetuidade a essa espécie de resposta penal, ao arrepio da proibição constitucional, considerando-se que pena e medida de segurança são duas espécies do gênero sanção penal (consequências jurídicas do crime). Em outros termos, a lei não fixa o prazo máximo de duração, que é indeterminado (enquanto não cessar a periculosidade), e o prazo mínimo estabelecido, de um a três anos, é apenas um marco para a realização do primeiro exame de verificação de cessação de periculosidade, o qual, via de regra, repete-se indefinidamente. No entanto, não se pode ignorar que a Constituição de 1988 consagra, como uma de suas cláusulas pétreas, a proibição de prisão perpétua; e, como pena e medida de segurança não se distinguem ontologicamente, é lícito sustentar que essa previsão legal— vigência por prazo indeterminado da medida de segurança — não foi recepcionada pelo atual texto constitucional. (BITENCOURT, 2012, p.317). ”

Além disso, o doutrinador Bitencourt (2012) também indica a forma de delineamento dessa limitação considerando o máximo da pena abstratamente cominada ao delito, pois esse seria o limite possível de intervenção estatal. Outrossim, de acordo com Zaffaroni (2007, apud MASSON 2016, p.942), “se o imputável é protegido pelo limite de 30 anos de cumprimento de pena privativa de liberdade, não poderia um inimputável, doente, ser internado por prazo indeterminado”. Tal posição é também o entendimento reinante no Supremo Tribunal Federal, nesse sentido foi a manifestação do Ministro Ricardo Lewandowski:

“Já no que concerne à indeterminação do prazo de duração da medida de segurança, conforme preceitua o art. 97, § 1º, do Estatuto Repressor, esta Corte já se pronunciou no sentido de que deve ser observado o que dispõe o art. 75 do mesmo diploma, que restringe a 30 anos o período máximo de cumprimento de pena privativa de liberdade. (BRASIL, 2011). ”

Denota-se que a Corte Suprema faz uma analogia com a antiga redação do art. 75, do Código Penal (BRASIL, 1940), todavia, com a recente alteração do mencionado artigo pela Lei 13.964/2019 – Pacote Anticrime (BRASIL, 2019), seria necessária a atualização da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. No entanto, a doutrina não vê razão para essa modificação de entendimento, uma vez que novas medidas devem ser tomadas para respeito à dignidade das pessoas humanas submetidas às medidas de segurança.

Diversamente, o Superior Tribunal de Justiça entende, por meio da Súmula nº 527 (BRASIL, 2015), que “o tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado”. Isso em estrita obediência aos princípios da isonomia e da proporcionalidade, conforme orienta Masson (2016). Com efeito:

“(…) a posição lançada pelo Superior Tribunal de Justiça desponta como a mais adequada acerca do máximo de duração da medida de segurança, especialmente no tocante à internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico. Com efeito, se uma pessoa culpável (imputável ou semi-imputável), e, portanto, dotada de livre arbítrio e responsável por uma conduta reprovável, pode ser apenada até o limite previsto em lei, não há razão para permitir que um indivíduo envolvido pela periculosidade (inimputável ou semi-imputável), normalmente portador de doença mental, receba uma medida de segurança por período superior. (MASSON 2016, p.942-943). ”

Em outra perspectiva, Greco (2017) entende que o Estado não oferece o melhor tratamento aos doentes e, em muitos casos, o regime de internação piora a condição do indivíduo submetido à medida de segurança. Rogério Greco informa, ainda, que:

“Casos existem em que o inimputável, mesmo após longos anos de tratamento, não demonstra qualquer aptidão ao retorno ao convívio em sociedade, podendo-se afirmar, até, que a presença dele no seio da sociedade trará riscos para sua própria vida. Por essas razões é que o Código Penal determina, nos §§ 1″- e 2º- do art. 97, que a internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade, cujo prazo mínimo para internação ou tratamento ambulatorial deverá ser de um a três anos. Após esse prazo mínimo, será realizada perícia médica, devendo ser repetida de ano em ano, ou a qualquer tempo, se assim determinar o juiz da execução. (GRECO, 2017, p.757). ”

Destarte, de acordo com o que explica Greco (2017), caso a internação não apresente resultado para o problema mental do paciente internado em regime de medida de segurança, a solução a ser adotada será a desinternação. Entretanto, não é possível haver a liberação completa desse paciente caso seja constatado que, se não for submetido a tratamento médico, retornará a trazer perigo para si mesmo e para aqueles com quem convive. Merece ser esclarecido, segundo a lição de Greco (2017) que, na desinternação, a pessoa com transtornos mentais deixará o tratamento no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e iniciará o tratamento em regime ambulatorial. Porém, o indivíduo continua em tratamento, mas sem a necessidade de permanecer internado. Tal entendimento está em harmonia com o notável ensinamento de Cleber Masson:

“Cuida-se da conversão da internação para tratamento ambulatorial, durante o prazo de duração da medida de segurança, como forma de preparar o sentenciado, progressivamente, para o retomo ao convívio social, nos casos em que a internação não se mostra mais necessária, embora o agente dependa da manutenção dos cuidados médicos. Essa providência, nada obstante não prevista em lei, tem sido admitida na prática forense, uma vez que a medida de segurança não possui o caráter de castigo, podendo ser abrandada quando a situação fática dispensar a privação da liberdade do agente. (MASSON, 2016, p.946). ”

Por outro lado, Greco (2017) esclarece que pode acontecer de se verificar que o paciente se encontra restabelecido “do mal que o afligia”, neste caso, o juiz determina sua liberação, assim, não há mais a obrigatoriedade de continuar o tratamento, seja em regime de internação, seja em tratamento ambulatorial. Em síntese, ocorrendo a cessação da periculosidade, comprovada por perícia médica, a medida de segurança será revogada pelo prazo de um ano, com a desinternação ou liberação do agente. Após esse lapso temporal, sem ocorrência de fato indicativo da persistência da periculosidade, há a extinção definitiva da medida, porém, se houver, a situação anterior será restabelecida, de acordo com o que estabelece o artigo 97, §3º, do Código Penal (BRASIL, 1940).

Por conseguinte, após breves considerações acerca da medida de segurança, bem como da divergência sobre o prazo de sua duração, é fundamental adentrar no campo da realidade dos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil.

 

3. Os Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico                                                                                        

De acordo com o Parecer sobre Medidas de Segurança e Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, elaborado pelo Ministério Público Federal e pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (2011), funcionavam no Brasil, em 2011, cerca de trinta hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e uma ala de tratamento psiquiátrico em penitenciária comum, segundo os dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça de 2010. Dissertando sobre o tema, Gustavo Moizes Carvalho esclarece que:

“Os 30 (trinta) hospitais de custódia e a ala de tratamento psiquiátrico estão divididos em 19 (dezenove) estados, estando a maior parte deles no estado do Rio de Janeiro, que possui 7 (sete), seguido do estado de São Paulo com 4 (quatro) e Minas Gerais com 3 (três). No entanto a situação de todos é degradante, segundo a I Caravana Nacional de Direitos Humanos, realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em 2000, os manicômios apresentavam uma situação de total descaso com a saúde mental e sugerindo mudanças urgentes. (CARVALHO, 2018, n.p.). ”

Em outra toada, a I Caravana Nacional de Direitos Humanos, realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em 2000, enfatiza que:

“O relatório, não obstante, apresenta uma situação que está a indicar a permanência de um modelo anacrônico de atenção à saúde mental no Brasil e, portanto, indica a necessidade de mudanças urgentes. Este relatório é, também, uma resultante de uma tomada de posição em favor daqueles seres humanos com os quais nos avistamos ao longo de 12 dias e que permanecem esquecidos e abandonados atrás dos muros e das grades dos manicômios brasileiros. (…) Em uma instituição visitada, perguntamos a um paciente a quanto tempo ele estava internado e sua resposta pronta foi – ” Há 600 anos”. Talvez, do ponto de vista daqueles submetidos a um sofrimento infinito, a própria idéia de tempo se confunda com a eternidade. É o que pretendemos contribuir para superar. (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS, 2000, p.3). ”

Além disso, relata a I Caravana (2000, p.5) que, em uma das clínicas visitadas, denominada Clínica Isabela, situada em Goiás, havia a aplicação de eletroconvulsoterapia, conhecida como eletrochoque, além da “prática de realização de neurocirurgias”.  Outro caso é o do Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, no estado do Amazonas, no qual foram flagrados três pacientes em situação de contenção mecânica, sendo que dois deles estavam amarrados pelos pulsos e tornozelos.

Nesse desiderato, a justificativa de instituições que adotam esse tipo de conduta é de que o isolamento, a contenção e o castigo são as únicas medidas a serem tomadas, no entanto, não encontra qualquer fundamento legal, tampouco terapêutico, e, assim fazendo, admitem a prática de tratamento cruel, desumano e degradante, conforme descreve o Relatório de Inspeção Nacional elaborado em 2019 (p. 219).

Além disso, em 2015, conforme explicam Mattos e Oliveira (2015), o Conselho Federal de Psicologia junto ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e a Associação Nacional do Ministério Público em Defesa da Saúde se uniram para a realização da inspeção nacional aos manicômios judiciários, hospitais de custódia, alas psiquiátricas e similares. O documento elaborado é o Relatório Brasil 2015: inspeções aos manicômios. Sendo realizadas inspeções em 17 estados do país e no Distrito Federal, das 17 inspeções, algumas merecem destaque nas linhas que sucedem.

“Quanto à estrutura física podemos fazer um resumo em apenas uma palavra: precariedade. Chuveiros insuficientes e com apenas água fria, os presos/pacientes não têm acesso sequer à válvula de descarga dos banheiros as celas de isolamento possuem um vaso sanitário, mas sem válvula de descarga. Foi-nos informado que, externamente, um funcionário dava descarga três vezes ao dia (por segurança – sic), regra geral “fossa turca” (buraco no chão, como nas cadeias). Além das péssimas condições de limpeza (mesmo quando “preparados” para a inspeção), o cheiro é repugnante em todas as unidades visitadas, não há equipe específica para limpeza, os banheiros e alojamentos são imundos, os pacientes também sofrem com as vestes muito sujas da instituição, pouco dadas a lavagem periódica (MATTOS E OLIVEIRA, 2015, p.18). ”

De acordo com os dados disponibilizados no Relatório Brasil 2015, apenas 17% dos exames de cessação de periculosidade são realizados dentro do prazo de periodicidade e, em 35,29%, ou em mais de um a cada três casos, não é cumprida a periodicidade estabelecida no artigo 97, parágrafo primeiro e parágrafo segundo do Código Penal e artigos 175 e 176 da Lei de Execução Penal, é o que esclarecem Mattos e Oliveira (2015).

Além de quê, conforme o Relatório Brasil (2015, p.23), no Distrito Federal, a inspeção foi realizada no dia 11 de maio de 2015, cuja instituição inspecionada foi a Ala de Tratamento Psiquiátrico, espaço anexo ao Presídio Feminino do Distrito Federal, popularmente conhecido como “Colmeia”, que tem capacidade para 101 internos do sexo masculino, porém, não há espaço específico construído para as mulheres na instituição, sendo o espaço compartilhado com as mulheres detidas no regime comum semiaberto.

No estado da Bahia, de acordo com o Relatório Brasil (2015), a inspeção ocorreu no Hospital de Custódia e Tratamento, única instituição do estado destinada ao cumprimento de Medida de Segurança e à realização de exames de sanidade mental. Na inspeção, resta constatado que a situação da instituição é caótica, visto que ela apresenta diversos problemas, dentre eles: as instalações são cercadas com grades de ferro e há ausência de ações e serviços terapêuticos, o que deixa evidente a submissão forçada dos internos a tratamentos de saúde em condições inadequadas. E, além disso, “o fluxo burocrático de lenta operacionalidade mantém os internos sob restrição de liberdade por tempo sempre muito superior aos prazos legalmente estabelecidos”, segundo o Relatório Brasil (2015, p.27).

Ainda em harmonia com o Relatório Brasil (2015), no que diz respeito ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Pará, constata-se que a capacidade máxima da instituição é de 120 pessoas, entretanto, no dia em que a inspeção foi realizada, o número de acolhidos era de 197 pessoas, sendo 180 homens e 17 mulheres. Assim, os internados são alocados em celas coletivas, na quais permanecem entre cinco e seis pessoas, celas que são escuras, quentes, úmidas e pouco ventiladas. Além disso, “algumas celas individuais são reservadas para pacientes portadores de HIV e pessoas consideradas “prêmio” pela prática de delitos relacionados à pedofilia”, é o que se identifica no Relatório Brasil (2015, p.36).

Destaca-se, ainda, que:

“Por meio dos dados fornecidos pela instituição, pode-se calcular que o tempo médio de internação dos pacientes em Medida de Segurança é de 5,08 anos. Dentre estas, sete pessoas estão internadas há mais de 10 anos (entre 12 e 18 anos). Em cumprimento de prisão/internamento provisório, observa-se uma média de 1,74 anos de internação, sendo identificadas cinco pessoas próximas ou com mais de cinco anos nesta condição. (RELATÓRIO BRASIL, 2015, p.35). ”

E mais:

“Das 197 pessoas internadas, 67 (34%) estão em cumprimento de Medida de Segurança, os demais são presos em cumprimento de pena que apresentam sintomas de transtorno mental ou presos provisórios aguardando decisão declaratória de inimputabilidade, sendo que, no último mês, foram realizados três exames de insanidade mental/responsabilidade penal, os quais não contaram como exame toxicológico e nenhum exame de cessação de periculosidade. Nos cinco meses de 2015, são contabilizados 22 exames de insanidade/ responsabilidade penal e três exames de cessação de periculosidade. (RELATÓRIO BRASIL, 2015, p.37). ”

Ademais, conforme dados do Relatório Brasil (2015, p.38), no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Pará, encontravam-se “cinco pessoas com sentença/decisão de desinternação, mas que permanecem em razão da “inexistência de vínculos familiares ou sociais”, evidenciando a omissão do Estado na implantação de residências terapêuticas, estabelecidas por lei”. O que também fica evidenciado na Penitenciária Psiquiátrica Forense do estado de Paraíba, unidade ligada à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária, onde quatro pacientes com a periculosidade cessada (“exame conclusivo”) permaneciam internados, Relatório Brasil (2015, p.48).

Diante do exposto, verifica-se a falta de preocupação por parte do Estado e da sociedade com as pessoas portadoras de transtornos mentais, que são esquecidas e abandonadas nas instituições. Digna de nota, também, é a situação do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Espírito Santo, tendo em vista que foi proposta, pelo Relatório Brasil (2015, p.56), a extinção dessa instituição devido às graves violações dos direitos humanos dos indivíduos que se encontram lá internados. A saber:

“Percebe-se que as instalações e acomodações são extremamente adoecedoras, cheias de grades e sem nenhuma expressão das individualidades dos sujeitos. Os únicos pertences presentes nas celas são: um colchão, uma colcha, um lençol, uma tolha de banho e um rolo de papel higiênico. E todas as pessoas estavam uniformizadas. Vale destacar que os métodos tendentes a anular a personalidade da pessoa humana, ou diminuir a sua capacidade física ou mental, também podem ser considerados como tortura. (RELATÓRIO BRASIL, 2015, p.56 – grifos nossos). ”

No Brasil, o anexo XXV, da Portaria de Consolidação nº 5, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde (BRASIL, 2017), é categórico ao afirmar que é “proibida a existência de espaços restritivos (celas fortes) ” dentro dos hospitais psiquiátricos, como é o caso das celas com grades de ferros nas quais as pessoas em sofrimento psíquico ficam confinadas, de acordo com o Relatório de Inspeção Nacional de 2018 (2019, p.213). Extrai-se do referido relatório que:

“A prática segregativa e discriminatória não encontra ressonância nem nas diretrizes formuladas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nem na legislação específica dos direitos dessa população. Mesmo em casos extremos, como os de privação de liberdade em penitenciária, ficam proibidas restrições ou sanções que impliquem em confinamento, uso de instrumentos de imobilização e perda de contato familiar, conforme a regra 43 das Regras de Mandela, que são voltadas para o tratamento mínimo das Nações Unidas a ser dispensado à população carcerária (…). (RELATÓRIO DE INSPEÇÃO NACIONAL, 2019, p. 216). ”

Em contrapartida, o Relatório de Inspeção Nacional de 2018 (2019, p.15) realizou inspeções em 40 hospitais psiquiátricos no Brasil em dezesseis estados, tratando-se de uma ação organizada pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Conselho Nacional do Ministério Público, Ministério Público do Trabalho e Conselho Federal de Psicologia. No entanto, o resultado não foi muito diferente do Relatório Brasil de 2015, conforme é possível verificar:

A Inspeção Nacional verificou que a prática da contenção mecânica é corriqueira no cotidiano nas instituições visitadas. Em trinta e uma instituições foi possível averiguar tal prática, seja com o flagrante de pessoas contidas no dia da inspeção, seja através dos registros nos prontuários ou relatos de usuários e trabalhadores. Chamou atenção que, em muitos momentos, a contenção mecânica foi utilizada como estratégia de castigo, disciplinarização e retaliação, o que fere tanto os princípios da atenção à saúde quanto os direitos humanos das pessoas privadas de liberdade. (RELATÓRIO DE INSPEÇÃO NACIONAL, 2019, p. 222 – grifos nossos). ”

Assim, diante do exposto no Relatório Brasil, aponta Coelho (2015, p.9) que, dentre os principais fatores que contribuem para a realidade tormentosa e desesperadora dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, estão “a falta de avaliação psicológica regular, a ausência de política estatal de reinserção dos doentes e a grave omissão do Judiciário em autorizar a saída dessas pessoas”. Nesse sentido:

“Na medida em que o Hospital de Custódia caracteriza-se como presídio, distanciado do clima de cuidado terapêutico, percorre o sentido contrário ao proposto pela Reforma Psiquiátrica, revivendo os antigos hospícios, na medida em que o encarceramento se torna o principal instrumento de intervenção para uma problemática que, contemporaneamente, pressupõe além do monitoramento clínico, a liberdade, a interação social, o acompanhamento multidisciplinar e a vivência de relações de afeto. (RELATÓRIO BRASIL, 2015, p.65). ”

É possível perceber, assim, que ocorrem graves violações dos direitos humanos e fundamentais das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei nos procedimentos a que elas são submetidas, sendo, muitas vezes, confinadas a um local degradante que possui apenas uma cama, um lençol e nada mais e, em outros casos, são acorrentados pelos pés por serem são considerados “perigosos”, além de não receberem os medicamentos com a periodicidade correta.

Desse modo, é possível concluir que as inspeções realizadas pelos profissionais do Relatório Brasil 2015 serviram como “ferramenta fundamental para a verificação de irregularidades nos estabelecimentos, a fim de que seja resguardada a dignidade dos seres humanos que sofrem por transtornos mentais e são submetidos a tratamento em razão da prática de infração penal”, como bem destaca Coelho (2015, p.9). Nessa esteira, vale destacar que:

“É preciso darmos um basta ao modelo manicomial, ilegal, inconstitucional (por violar garantia de inexistência de pena de caráter perpétuo, por violar a dignidade da pessoa humana, a inexistência de tratamento desumano ou degradante e o princípio da igualdade), custoso e sem retorno nenhum a ninguém. (DINIZ, OLIVEIRA E MATTOS, 2015, p.157). ”

E ainda:

“Nos termos dos Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de transtorno Mental e a Melhoria da Assistência à Saúde Mental (Princípio 11, item 11), os castigos e o isolamento devem ser práticas abolidas imediatamente das instituições psiquiátricas, sob pena de punição dos responsáveis, tendo em vista os direitos das pessoas internadas. (RELATÓRIO DE INSPEÇÃO NACIONAL, 2018, p.220). ”

Conquanto, além dos problemas expostos nas linhas que antecedem, que são enfrentados pelos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil que, por si só, já representam uma grande violação dos direitos humanos, problema muito maior, é exatamente o caráter perpétuo das internações das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei, que viola diretamente o disposto na Constituição Federal, conforme se explana no tópico seguinte. Portanto, diante do caráter perpétuo das medidas de segurança e a forma como são executadas, há dupla violação da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos dos inimputáveis e semi-imputáveis submetidas a elas.

 

4. A Perpetuidade das Internações e a Violação dos Direitos Humanos das Pessoas Submetidas à Medida de Segurança

A Constituição Federal (BRASIL, 1988), em seu artigo 1º, inciso III, preconiza que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Além disso, a Constituição Federal também estabelece, em seu artigo 5º, incisos III e XLVII, alínea b, que não haverá pena de caráter perpétuo e que ninguém será submetido a tortura ou tratamento desumano ou degradante. Entretanto, contrariando o que estabelece a Magna Carta, a realidade dos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico é de corriqueira violação dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei, especialmente da sua dignidade humana, conforme narrado alhures. Nesse sentido:

“A realidade “manicomial” brasileira tem sido, infelizmente, palco de grandes violações de direitos. Com o argumento da disciplina, a total submissão e obediência, a crença de que o outro é um ser “perigoso” e “incapaz” têm produzido muitos torturadores nas instituições. (RELATÓRIO BRASIL, 2015, p.56). ”

Oportuna a dicção de Maria Aparecida Diniz, Rodrigo Tôrres Oliveira e Virgílio de Mattos a respeito do assunto:

“No Brasil, as pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei são abandonadas, presas, inúmeras delas há décadas, esquecidas, submetidas a vários tipos de abuso, ainda presente na triste realidade encontrada no momento das inspeções realizadas em Manicômios, Hospitais de Custódia, Alas de Tratamento Psiquiátrico e Similares. (DINIZ, OLIVEIRA E MATTOS, 2015, p.156). ”

Dessa forma, as pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei são tratadas como bichos ou coisas e não como seres humanos, ocorrendo, por consequência, a coisificação do ser humano deficiente mental. Nas palavras de Diniz, Oliveira e Mattos (2015, p.155), “há pacientes detidos há 19 anos, 27 anos. Toda uma vida desperdiçada”. Nesse panorama, destaca-se o pensamento de Mariana Oliva:

“Além disso, são violados direitos tais como: direito à integridade física, direito à dignidade da pessoa humana, direito à liberdade, direito à saúde, e tantos outros que dão garantias mínimas de condições de vida aos internos custodiados. (OLIVA 2009, n.p. – grifos nossos). ”

Em outro viés, de acordo com a discussão das linhas que antecedem, a medida de segurança não tem prazo máximo legal de internação, sendo estabelecido apenas o prazo mínimo de um a três anos, conforme o artigo 97, parágrafo primeiro, do Código Penal (BRASIL, 1940), que perdura enquanto não for verificada a cessação da periculosidade mediante perícia médica.

Além disso, a medida de segurança consistente na internação será obrigatória nos casos de crime punidos com pena de reclusão (artigo 97, caput, do Código Penal). Diante desse panorama, se verifica que o foco está na periculosidade dessas pessoas, assim, a periculosidade é colocada acima do transtorno mental, desconsiderando por completo o problema de saúde e supervalorizando a periculosidade dos inimputáveis e semi-imputáveis.

Nessa toada,  a medida de segurança é uma sanção penal dotada, em tese, de uma característica cruel e de natureza perpétua, a qual viola diretamente a Constituição Federal, ao passo que, embora a Magna Carta não discipline expressamente princípios aplicáveis às medidas de segurança, por ser de natureza jurídica de sanção penal, as regras e princípios aplicáveis às penas devem ser aplicados às medidas de segurança (ambas são sanções penais), inclusive a vedação de pena perpétua e cruel, direito fundamental consagrado na Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido elucida Zilberman que:

“A interpretação sistemática da Constituição Federal conduz à inafastável conclusão de que todos os princípios constitucionais relativos à pena incidem também sobre as medidas de segurança. Na origem, todos eles decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, aplicam-se a toda as expressões do poder punitivo estatal. (ZILBERMAN, 2009, p.160). ”

Porquanto, o indivíduo submetido à medida de segurança não pode permanecer para sempre sob o poder do Estado, privando-o de sua liberdade, ainda que a periculosidade do agente seja o principal fator que vincula o indivíduo à medida por tempo indeterminado (SALVI, 2015). Nesse sentido Mariza Monteiro Borges acrescenta que:

“No cumprimento das chamadas medidas de segurança, o sujeito considerado louco e o autor de crime se encontram em uma só pessoa. Se, na Justiça penal, a imensa maioria dos alvos preferenciais das agências de controle punitivo são emudecidos na condição de criminosos, na medida de segurança dessa mesma Justiça penal, os direitos e a trajetória do sujeito acusado como criminoso e louco são suprimidos de forma ainda mais atroz, com fundamento na indissociabilidade preconceituosa e institucionalizada quase indissociável entre sofrimento mental e perigo. (BORGES, 2015, p.7 grifos nossos). ”

E mais:

“É sob o argumento do perigo – ou da periculosidade social, como dizem os operadores do Direito – que o Estado e nossa sociedade se permitem trancafiar, muitas vezes perpetuamente, o sujeito considerado louco que se depara com as instituições de controle penal, seja por meio das condutas de conflito mais graves, seja por meio das simples e mais banais contravenções à lei penal. Ele é sequestrado pelo Estado e pode nunca mais retornar à liberdade, para tentar um dia voltar perseguir os seus projetos de vida e felicidade em sociedade. (BORGES, 2015, p.7). ”

Diante disso, é perceptível o caráter de perpetuidade da medida de segurança aplicada às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei, mesmo diante da aplicação da regra dos trinta anos prevista no artigo 75, caput, do Código Penal, pelo Supremo Tribunal Federal e da regra prevista na Súmula nº 527 pelo Superior Tribunal de Justiça. Por sua vez, Silva (2017, p.36) acrescenta que isso ocorre porque “o Estado condiciona a desinternação do custodiado à sua cura, ficando aquele responsável por sua reabilitação, porém, não oferece os meios cabíveis para o tratamento previsto o que consequentemente leva a internação eterna”.

Porquanto, a perpetuidade das sanções permanece prevalecendo no contexto atual, especialmente devido à falta de organização por parte do Estado e das instituições de internações no que diz respeito ao acompanhamento do tempo de cumprimento das penas aplicadas aos inimputáveis e semi-imputáveis e também pela falta de profissionais realmente capacitados para a realização do exame de sanidade mental (CARVALHO, 2018).

Outrossim, de acordo com Diniz (2011), o Censo dos Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico encontrou dezoito indivíduos internados há mais de trinta anos em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Essas dezoito pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei “representam 0,5% da população do censo, o que poderia oferecer um falso alento àqueles que acreditam que o sistema é justo ou necessário à defesa social”.

Conquanto, Diniz (2011) esclarece que a realidade é que outra parcela permanece internada há mais tempo que a pena máxima, em abstrato, cominada ao delito, contabilizando um total de 21% da população submetida à medida de segurança no Brasil, sendo 606 pessoas com transtornos mentais nessa situação na época. Oportuna a dicção de Mariana Oliva acerca do assunto:

“O Hospital funciona ao mesmo tempo como um local de tratamento para as pessoas que sofrem de alguma doença mental e como uma prisão (pelo cometimento de ato ilícito e típico) de caráter perpétuo, pois não há prazo para sua liberdade e sua reinserção na sociedade, e ambas estão sujeitas ao resultado de um laudo psiquiátrico que tem natureza extremamente subjetiva, e que pode demorar até anos para ser elaborado. (OLIVA 2009, n.p.). ”

Além disso, importante mencionar que a Reforma Psiquiátrica difundiu a ideia de fechamento progressivo dos manicômios, substituindo-os por instituições em que a pessoa com transtorno mental deixaria de ser paciente e passaria a ser usuário da saúde mental. Assim sendo, a ideia era progredir em direção à tutela geral de direitos da pessoa com transtorno mental, tornando-a em sujeito de direito. (OLIVEIRA e FREITAS, 2019). Nesse sentido, ainda:

“A noção de cura, tal como se acreditava possível em tempos remotos, foi suprimida
diante da realidade apresentada. Os resultados das pesquisas médicas indicaram que a longa internação apenas agravava a situação do paciente, fazendo pouco ou quase nada a longo prazo para responder a uma demanda de normalização imposta pela sociedade civil para tal instituição. (OLIVEIRA E FREITAS, 2019, p. 63). ”

Não obstante as alterações veiculadas pela Lei 10.216/2001 (BRASIL, 2001), a medida de segurança ainda é orientada de acordo com o senso de necessidade de proteção social contra o portador de sofrimento mental, sendo ele, de regra, internado e afastado do convívio social, demonstrando o caráter punitivo da medida de segurança, uma vez que se submete ao Sistema Penitenciário ao invés do Sistema Único de Saúde (OLIVEIRA e FREITAS, 2019).

Com efeito, a reforma psiquiátrica buscou inverter a lógica da internação, notadamente diante da exigência de que a internação fosse apenas o último recurso ao interpretar o art. 97 do Código Penal, todavia, “o Poder Judiciário segue buscando justificar a imposição da medida de segurança na periculosidade do agente” (OLIVEIRA e FREITAS, 2019, p. 64). Nesse sentido:

“A nossa tradição jurídica não se deu conta desse fenômeno ou pelo menos não o fez integralmente. Por causa disso, convivemos com uma incoerência axiológica no ordenamento: por um lado, a reforma psiquiátrica que vem conseguindo importantes vitórias no campo do direito sanitário, alterando leis e normas infralegais para tornarem-se coerentes com os postulados do movimento: desospitalização e desmedicalização da loucura, resgate da humanidade e da cidadania do louco. Por outro, o direito punitivo mantém largas raízes no positivismo penal e no determinismo e continua desconfiando da loucura, promovendo sua exclusão em nome da defesa social centrada no conceito de periculosidade presumida do louco. (JACOBINA, 2008, p. 21-22). ”

E mais:

“Ao contrário do que preceitua a chamada Reforma Psiquiátrica, verifica-se que a internação continua a ser utilizada como primeira opção para muitos juízos que não esgotam os recursos extra-hospitalares. Aliás, é perceptível que a loucura seja uma agravante, pois penaliza o portador de transtorno mental pelo que ele é, mas não pelo crime que cometeu, justificando a segregação social por tempo indeterminado.  (OLIVEIRA E FREITAS, 2019, p.64). ”

Diante disso, a impossibilidade de mensurar o tempo de cumprimento da medida de
segurança dentre os outros aspectos, como o local de tratamento, caráter punitivo, possível responsabilidade objetiva implícita na aplicação das medidas de segurança e, ainda, o aspecto subjetivo do laudo psiquiátrico, conforme linhas anteriores, tornam-nas flagrante violação à dignidade da pessoa humana condicionada a tais fatos (OLIVEIRA e FREITAS, 2019). Além disso, nas palavras de Oliva (2009, n.p.), a segregação das pessoas com transtornos mentais custodiadas é a razão pela qual os direitos humanos “repudiam a indeterminação do tempo de internação no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico”.

Porquanto, não obstante os julgadores tentem garantir que não haja a aplicação da medida de segurança de forma perpétua, o caminho trilhado é o oposto, pois a legislação vigente e o positivismo prevalecente na aplicação do direito aliado à ausência de vinculação dos precedentes do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, convergem para a perpetuidade. Nesse sentido, existem muitas divergências jurisprudenciais em razão das lacunas deixadas na legislação e ignoradas pelos legisladores que silenciam a respeito, gerando demasiada insegurança jurídica e violação ao princípio da igualdade, especialmente pela possibilidade de haver decisões contraditórias dentro de um mesmo tribunal (PORTELLA E JÚNIOR, 2019).

De acordo com o entendimento dos autores Portella e Júnior (2019 p.13), as pessoas internadas nos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico “ficam sujeitos a sorte de, quando do pleito de extinção da medida de segurança, seu pedido chegar às mãos de um julgador ou câmara que possua posicionamento mais benéfico para ele”. Isso porque, nas palavras dos autores, “as soluções encontradas em nossa jurisprudência ainda denotam insegurança jurídica, necessitando o sistema das medidas de segurança de reforma para que se adeque aos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito”. A propósito, no que tange ao assunto:

“Na prática, verificamos que a maioria dos portadores de sofrimento mental é sentenciada com medida de segurança de internação, mesmo se o crime cometido tenha sido um roubo de um tapete de igreja, uma paulada no orelhão público, furto de um anel de plástico que vinha de brinde na compra do doce ―maria mole, vendido na praça da cidade. […]. A razão de a aplicação da sanção penal agravada, nos casos dos portadores de sofrimento mental, deve-se ao princípio da periculosidade que transformou a medida de internamento na rainha das medidas de segurança. Isso explica por que a medida de internação é a mais aplicada pelos juízes criminais. (CARNEIRO, 2011, p. 24). ”

Nesse desiderato, conforme se depreende da colação do julgado a seguir, é possível verificar que se privilegia a periculosidade social do agente em detrimento da sua dignidade humana e de seus direitos humanos, a saber:

“PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. MEDIDA DE SEGURANÇA. CUMPRIMENTO DA MEDIDA EM PRAZO SUPERIOR AO DA PENA MÁXIMA COMINADA AO DELITO. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. INÍCIO DO CUMPRIMENTO. MARCO INTERRUPTIVO. PERICULOSIDADE DO AGENTE. CONTINUIDADE. PRAZO MÁXIMO DA MEDIDA. 30 (TRINTA) ANOS. PRECEDENTES DO STF. DESINTERNAÇÃO PROGRESSIVA. ART. 5º DA LEI 10.216/2001. APLICABILIDADE. ALTA PROGRESSIVA DA MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO DE 6 (SEIS) MESES. RECURSO PROVIDO EM PARTE. (…) 2.In casu: a) o recorrente, em 6/4/1988, quando contava com 26 (vinte e seis) anos de idade, incidiu na conduta tipificada pelo art. 129, § 1º, incisos I e II, do Código Penal (lesões corporais com incapacidade para o trabalho por mais de 30 dias), sendo reconhecida a sua inimputabilidade, nos termos do caput do artigo 26 do CP.

(…) b) processada a ação penal, ao recorrente foi aplicada a medida de segurança de internação hospitalar em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, pelo prazo mínimo de 3 (três) anos, sendo certo que o recorrente foi internado no Instituto Psiquiátrico Forense, onde permanece até a presente data, decorridos mais de 23 (vinte e três) anos desde a sua segregação; (BRASIL, 2011- grifos nossos). ”

Além disso, no Habeas Corpus 97.621/RS, é possível verificar que ao paciente foi imposta medida de segurança de internação pelo prazo mínimo de um ano, pela prática de lesão corporal leve, artigo 129, caput, do Código Penal, todavia permaneceu internado desde 27 de agosto de 1981, totalizando 27 anos e 5 meses internado. Veja-se:

“AÇÃO PENAL. Réu inimputável. Imposição de medida de segurança. Prazo indeterminado. Cumprimento que dura há vinte e sete anos. Prescrição. Não ocorrência. Precedente. Caso, porém, de desinternação progressiva. Melhora do quadro psiquiátrico do paciente. HC concedido, em parte, para esse fim, com observação sobre indulto. (BRASIL, 2009 – grifos nossos). ”

A propósito, se extrai do voto do Ministro Relator Cezar Peluso no Habeas Corpus 97.621/RS que:

“Cumpridos quase 28 anos de medida de segurança, afirma o magistrado, por tudo, que “o caso não é mais um caso penal. O caso é de saúde pública e como tal deve ser tratado” (fl.31, apenso). (BRASIL, 2009). ”

Para Portella e Júnior (2019, p.14), não se deve possibilitar a flexibilização da “concessão de direitos e princípios jurídico-penais sob a justificativa subjetiva de que o indivíduo representa perigo à sociedade, abandonando o portador de enfermidade mental em estabelecimentos psiquiátricos durante grande parte de sua vida”. Nesse sentido, os referidos autores sugerem a reformulação do ordenamento jurídico e adequação da legislação vigente ao texto constitucional. Veja-se:

“O tratamento dispensado aos inimputáveis em razão de doença mental em nosso ordenamento jurídico necessita, urgentemente, ser reformulado para que se tenha uma aplicação constitucional das medidas de segurança. A legislação vigente em nosso país é deficitária e deixa os que mais necessitam de proteção, justamente em razão de suas condições pessoais, à mercê da sorte e desamparados das garantias inerentes ao Estado de Direito em razão destas mesmas condições pessoais. (PORTELA E JÚNIOR 2019, p.15). ”

Porquanto, nas palavras de Portella e Júnior (2019, p.14), “não se pode mais admitir tal justificativa, pois a medida de segurança não passa de uma sanção penal desprovida do mínimo das promessas de nossa Constituição”. Sobre o assunto, algumas percepções merecem destaque:

“Ressalte-se que a medida de segurança é consequência de um crime, mas não se fundamenta no ato passado. Parece paradoxal a ideia de que o inimputável oferece riscos que a sociedade não pode aceitar e que, contudo, não pode ser apenado pelo crime que cometeu, mas deverá ser contido pelo que ainda não fez (e certamente fará, de acordo com o critério da periculosidade). O direito penal mostra-se menos como direito penal do fato e mais como do autor ao persistir na existência da periculosidade como critério autorizador da medida de segurança. (OLIVEIRA E FREITAS 2019, p.64-65 – grifos nossos). ”

Nessa toada, não é plausível que se compactue com a ideia de que a pessoa com transtornos mentais em conflito com a lei mereça ficar isolada pelo resto da vida, em virtude de sua condição especial, na espera de que ocorra uma cura milagrosa. A resposta estatal é desproporcional na grande maioria dos casos, como no caso do paciente do Habeas Corpus 97.621/RS, pois há ausência de autodeterminação por parte dos agentes inimputáveis. Essa ocorrência apenas evidencia que a pessoa com transtornos mentais não goza de seus direitos humanos e fundamentais, tudo em razão do transtorno mental, desde sua submissão aos tratamentos degradantes dos estabelecimentos despreparados e insalubres, destroçando sua dignidade humana, até o seu esquecimento nos estabelecimentos de custódia e tratamento ambulatorial, bombardeando o seu direito à liberdade.

Diante disso, para Portella e Júnior (2019, p.14), “o que se pode concluir é a necessidade de fixação, em lei, de parâmetros claros e objetivos para estabelecimento das medidas de segurança, de modo a garantir, sem margem para interpretações, que não sejam aplicadas sanções penais de caráter perpétuo”. Desse modo, para a prevalência dos direitos humanos no sistema manicomial, em consonância com o entendimento de Coelho (2015, p.10), somente existirá quando a sociedade for “autenticamente democrática”, ou seja, uma sociedade na qual os valores fundamentais sejam afirmados e respeitados, especialmente a “dignidade da pessoa humana e a garantia de liberdade, justiça e fraternidade entre os cidadãos”.

Consequentemente, dada a natureza sórdida da ofensa à dignidade da pessoa humana, conclui-se que a indeterminação do prazo da medida de segurança enquanto sanção penal, não deve ser tolerada, nem tampouco deve-se assentir com juristas mantenedores dessa corrente doutrinária, uma vez que  vilipendia os direitos humanos e fundamentais das pessoas deficientes mentais em conflito com a lei, que são eternamente esquecidas nos estabelecimentos de custódia e tratamento ambulatorial, sendo segregadas do convívio social e familiar, simplesmente por sua potencial periculosidade social. Tal fato apenas reforça o pensamento preconceituoso, segregacionista e ultrapassado da sociedade e do Estado, já que, em não raros casos, os exames de cessação de periculosidade nem chegam a ser realizados, mantendo o indivíduo privado eternamente das relações humanas.

 

Conclusão

Diante de tudo que foi exposto, pode-se concluir que há incompatibilidade do instituto da medida de segurança, conforme prevista na legislação atual, com os princípios explícitos e implícitos da Constituição Federal em vigência, em especial o princípio da dignidade da pessoa
humana, da proporcionalidade, da igualdade, da liberdade e da segurança jurídica. Por consequência, em razão da ausência de previsão legal de limite temporal de duração da medida, há uma grave violação de direitos humanos e fundamentais dos indivíduos submetidos às medidas de segurança, devastando-os quase completamente, tudo em virtude do anseio social e estatal de excluir permanentemente os indivíduos com transtornos mentais em conflito com a lei do convívio coletivo, silenciando o “problema” e fazendo parecer com que ele nunca existira.

Além disso, importa destacar que o Judiciário brasileiro carrega uma tradição segregacionista e preconceituosa e a omissão legislativa com relação ao prazo máximo da medida de segurança ocasiona uma abertura ao subjetivismo ou apego ao formalismo legal do juiz no momento de decretar a medida de segurança e fixar seus limites, desrespeitando, com frequência, até mesmo os entendimentos dos Tribunais Superiores por inexistir sua vinculação a esses entendimentos, produzindo decisões contraditórias e distintas, evidenciado com veemência o desrespeito ao princípio da igualdade, bem como ao princípio da segurança jurídica.

Porquanto, da forma como concebida na legislação atualmente e da forma como aplicada, a medida de segurança consistente na internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico afronta o núcleo essencial de todos os direitos fundamentais: a dignidade da pessoa humana. Ademais, fato esse que fica em maior evidência comparando com a luta antimanicomial estabelecida pela Lei nº 10.216/01, que propõe uma abordagem diferente sobre o problema da loucura, enfatizando o indivíduo portador de sofrimento mental como sujeito de direitos, na tentativa de viabilizar medidas capazes de proporcionar um tratamento humano, digno e efetivo, bem como a reinserção do indivíduo no convívio social.

Nesse sentido, saliente-se que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui o núcleo essencial de todos os direitos fundamentais e até mesmo do ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, o direito penal apenas se legitima se fundado em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Do mesmo modo, as sanções penais, inclusive as medidas de segurança, que não têm diferença ontológica das penas, retiram seu fundamento de validade daquele princípio, devendo ser observado em todas as hipóteses, sob pena de violação de direitos fundamentais.

Assim sendo, a indeterminação do prazo máximo de duração das medidas de segurança não se concilia com a própria proibição constitucional de perpetuidade das sanções penais, bem como a ausência de legislação quanto ao tema não se compatibiliza com o Estado Democrático de Direito, ferindo princípios constitucionais, como a igualdade, segurança jurídica e proporcionalidade.

Diante disso, a respeito do assunto, é essencial uma atuação mais efetiva do poder executivo, com a execução de políticas públicas voltadas à concretização e respeito aos direitos fundamentais das pessoas submetidas à medida de segurança, notadamente na disponibilização de tratamentos, atendimentos e locais adequados, a fim de minorar os efeitos legais decorrentes da submissão ao cumprimento de medidas de segurança.

Além disso, cabe ao legislativo a elaboração de leis e disposições normativas que se preocupem com as pessoas que são submetidas, pelo menos em regra, conforme previsão legal, perpetuamente, à medida de internação, inclusive readequando as disposições infraconstitucionais ao que determina a Magna Carta, de modo que os direitos fundamentais nela consagrados sejam efetivamente concretizados. Portanto, com efeito, a previsão legal de critérios claros e pragmáticos na fixação de medidas de segurança pelo juiz, especialmente com relação ao prazo máximo, terá como consequências bons resultados, reduzindo a violação dos direitos humanos que ocorrem “escancaradamente” em vários estabelecimentos disponíveis para cumprimento das medidas de segurança, especialmente os hospitais de custódias.

No mesmo sentido, saliente-se que é dever do Judiciário a intervenção necessária para que os direitos fundamentais das pessoas submetidas à medida de segurança, inclusive de internação, sejam respeitados, impondo aos representantes do Estado (juízes) uma visão mais humanizada e observância aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade na aplicação de medidas de segurança, sempre com o fim de garantir a dignidade da pessoa humana.

Assim, é perceptível que apenas a atuação do poder judiciário não é suficiente, sendo essencial a atuação de todas esferas de poder do Estado, pois não basta segregar o indivíduo em sofrimento psíquico do convívio social, também é necessária a execução de políticas públicas que garanta a efetivação e concretização dos direitos fundamentais dessas pessoas.

Porquanto, há a necessidade de uma comunidade essencialmente democrática, reafirmando, concretizando e efetivando os valores fundamentais de todas as pessoas, inclusive daquelas que são consideradas minorias, notadamente a dignidade da pessoa humana, garantia de liberdade, igualdade material e fraternidade entre todos os cidadãos que compõem a sociedade.

 

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