Resumo: O presente artigo pretende discutir uma questão problemática do crime de estelionato: a figura da pessoa induzida em erro. Para isso, aborda seus elementos constitutivos para, depois, tratar de três casos específicos: o estelionato contra a pessoa jurídica, a fraude no uso de telefone público ou outras máquinas e a fraude por meio de manipulações informáticas.
Palavras-chave: Estelionato. Fraude. Erro. Estelionato contra a pessoa jurídica. Fraude no uso de telefone público. Fraude por meios informáticos.
Sumário: 1. Introdução 2. Elementos do estelionato 3. Questões controversas 3.1. Sujeito passivo: a questão da pessoa jurídica 3.2. Fraude no uso de telefone público ou outras máquinas 3.3 Fraude por meio de manipulações informáticas 4. A fragmentariedade do Direito Penal 5. Conclusões.
1. Introdução
O estudo do crime de estelionato é um dos mais instigantes, dentre os diversos crimes descritos no Código Penal Brasileiro, quer pela sua estrutura típica, quer pela imensurável gama de formas de se cometê-lo. Até mesmo a figura alegórica do estelionatário contribui para o interesse do estudo.
Trata-se de um crime patrimonial importante, no qual não há a gravidade dos crimes violentos, como o roubo (art. 157), a extorsão (art. 158, CP) ou a extorsão mediante sequestro (art. 159, CP), tampouco a singeleza do furto (art. 155, CP) ou da apropriação indébita (art. 168, CP).
A verdade é que o estelionato é um crime extremamente intrincado,[1] seja pelos diversos elementos constitutivos, que devem coexistir em uma sequência causal, seja pela não rara difícil tarefa de distinguir o estelionato de um mero ilícito civil. Por isso, tantas controvérsias ocorrem na interpretação do crime de estelionato, no Brasil e alhures.
Não raro, ocorre uma absoluta simplificação da interpretação do estelionato, de modo a enxergá-lo como se fosse apenas a obtenção de vantagem com fraude, quando, a rigor, o tipo é bem mais que isso.
Dentre as situações controversas, surge a questão da possibilidade de prática de estelionato contra a pessoa jurídica, a obtenção de vantagem com a manipulação de máquinas (telefone público ou máquinas de refrigerante), bem com a fraude cometida por fraude em sistemas informáticos.
Antes que se ingresse em cada um desses três temas, é essencial que se exponha brevemente o tipo objetivo do estelionato.
2. Elementos do estelionato
Trata-se de um tipo que exige o que se chama de cadeia causal, ou seja, uma sequência ordenada de atos cometidos: a) fraude; b) erro; c) vantagem indevida; e d) prejuízo alheio.
a) “artifício, ardil ou outro meio fraudulento”
O primeiro elemento, a fraude, vem descrito como “artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. A rigor, a diferença entre artifício e ardil não tem relevância, sendo ambos compreendidos pelo sentido mais amplo de fraude.
De qualquer modo, pode-se afirmar que o artifício é a fraude material, na qual há uma alteração exterior da coisa: falsidade, disfarce, uso de aparelhos eletrônicos etc. Ardil já é a astúcia, a malícia, ou seja, uma fraude puramente intelectual, sem a base material do artifício.[2]
A lei ainda se vale da fórmula mais genérica, “outro meio fraudulento”, impondo ao intérprete o uso da interpretação analógica, de modo a que tal locução deve ser interpretada analogamente ao artifício ou ardil. Tanto doutrina e jurisprudência entendem que a mentira[3] e, até mesmo, o simples silêncio[4] podem ser tidos como meio fraudulento.
Como se disse, a distinção entre o artifício e ardil é supérflua, podendo ser definido pelo gênero fraude.[5]
b) “induzindo ou mantendo alguém em erro”
O segundo elemento constitutivo do estelionato é o erro, ao qual “alguém” deve ter sido induzido ou mantido. O erro nada mais é que a falsa percepção da realidade, com o que o enganado não possui a perfeita noção do que está acontecendo.
Na expressão de Vives Antón, trata-se de um “estado psicológico de error”. Para González Rus, erro é “uma representación mental que no responde a la realidad”. [6] Muñoz Conde fala em “uma suposición falsa”.[7] Dentre os autores brasileiros, não há discrepância, como se vê na posição de Hungria, segundo o qual o erro é “a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, funcionando como vício do consentimento da vítima”.[8] Costa Jr. diz que erro é “um fato meramente cognoscitivo”[9] e Regis Prado, que o “erro consiste em uma representação mental que não corresponde à realidade”.[10]
Pois bem, antes de tudo, convém apontar o óbvio: segundo a dicção do tipo é necessário, para a configuração do crime, que seja induzido ou mantido “alguém” em erro, e este não é outro, senão a pessoa humana. Tanto isso é certo que no homicídio, o objeto material da ação de matar é alguém, representando a pessoa humana titular do bem jurídico vida.
Impossível cogitar-se, portanto, em induzimento de pessoa jurídica, de um animal ou uma máquina a erro, porque estes, simplesmente, não são alguém.
Ademais, é gritante que o erro, como estado cognitivo, é atributo exclusivo do ser humano, já que apenas este pode representar a realidade. Em outras palavras, a pessoa jurídica, o animal ou uma máquina, além de serem alguém, não podem ser induzidos a erro, pela simples razão de que não podem ter representação da realidade, nem certa, nem errada.
Mesmo dentre os humanos, há os que, por não possuírem discernimento, não são suscetíveis de erro,[11] como as crianças, os portadores de doença mental, as pessoas em coma ou com embriaguez total.
Por fim, a diferença entre induzir e manter, é que naquele o agente se vale da fraude para criar o erro na vítima, enquanto na segunda hipótese a vítima, por qualquer outra razão, enganou-se e o autor se vale da fraude para manter a vítima sob erro, “fortalecer o erro de alguém”[12], ou ainda, “evitar que este se liberte do engano”.[13] Na manutenção do erro, é factível que o simples silêncio exista como o meio fraudulento usado para perpetuar o erro já existente, configurando-se o estelionato.[14]
c) disposição patrimonial: obtenção de “vantagem ilícita, em prejuízo alheio”
Se no furto a vítima tem a coisa subtraída, sem notar ou sem que possa impedir a subtração, no estelionato, há uma clara defasagem entre o que está acontecendo e entre a suposição da vítima, razão pela qual a vítima realiza o ato de disposição patrimonial, que é a tônica do estelionato.
Tal ato de disposição pode ser a entrega, a cessão ou a prestação patrimonial. É sabido que o ato de disposição pode recair em coisa que não pertença à pessoa induzida em erro, como no singelo exemplo do empregado que entrega coisa do empregador a alguém que, fraudulentamente, se diz enviado por este.[15]
Do ato de disposição patrimonial decorre o binômio prejuízo alheio e vantagem ilícita, ambos imprescindíveis para a configuração do estelionato.
A vantagem ilícita nada mais é que qualquer utilidade, que decorre da entrega de coisa, pelo seu uso ou gozo, ou qualquer situação em que o agente obtenha proveito.[16] Ilícita é a vantagem ilegal, que não seja devida ao agente.
Como decorrência da vantagem ilícita, há o prejuízo da vítima que nada mais é que um dano patrimonial efetivo. Inexiste o estelionato se, apesar de obter vantagem ilícita, a vítima não sofre prejuízo.
É o que ocorreu em caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal, quando Hungria compunha aquela corte: proprietários de uma fábrica de balas, para o aumento de vendas, propagandearam que seriam sorteados prêmios para os que adquirissem as balas. Houve aumento das vendas, mas não se configurou o estelionato, segundo voto de Hungria, porque ao valor pago pelos consumidores, havia a contraprestação da entrega da bala, não se podendo falar em prejuízo, apesar de frustrada uma expectativa de ser sorteado com o prêmio.[17]
d) nexo causal
Uma questão extremamente relevante, e — ousa-se dizer — descuidada em alguns julgados, é a necessidade de que exista entre os elementos assinalados uma relação de causalidade.
Com efeito, não basta a simples presença dos quatro elementos expostos acima, pois o crime não se perfaz com a mera soma de seus elementos,[18] sendo imprescindível a existência de uma relação de causalidade entre seus elementos. É o que afirma Hungria: “entre os momentos do estelionato deve existir uma sucessiva relação de causa e efeito”.[19] Assim o erro é “ao mesmo tempo efeito e causa. Efeito do meio fraudulento e causa da vantagem ilícita.”[20] Trata-se, segundo Vives Antón, de uma “causalidad ideal o motivación: el engaño ha de motivar (producir) un error que induzca a realizar un acto de disposición que determine un perjuicio”.[21]
Os momentos devem se suceder no tempo de acordo com a ordem exposta. Se o erro é posterior à vantagem não pode ser tido como sua causa, não se configurando o estelionato.[22]
Se a fraude é meio, isso possui uma inquestionável dimensão: o meio só pode ocorrer antes do evento.
Não se pode perder de vista a redação do tipo: “mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. A preposição mediante tem o sentido de “por meio de, por intermédio de”,[23] ou seja, um meio com o qual se atinge algo. Impossível se cogitar que um meio venha depois da ocorrência do evento.
Se a fraude vem depois da vantagem indevida, não se configura o tipo, pois a obtenção de vantagem não foi mediante fraude, pois esta não foi o meio com o qual se alcançou o resultado.[24]
No caso do estelionato, a fraude é a causa do erro, que por sua vez é causa do ato de disposição patrimonial que permite a vantagem ilícita em prejuízo alheio. Se o agente obtém a vantagem e, para ocultá-la, vale-se de fraude, não se configura o crime de estelionato, pois em tais situações a fraude não foi causa do erro e este não foi causa da vantagem patrimonial. Assim, se alguém obtém uma vantagem patrimonial em uma empresa da qual é contador, p.ex., usando a contabilidade falsa para que o conselho fiscal não percebesse o desvio, inexiste estelionato. Há todos os elementos do crime, mas não na sequência exigida: o agente obtém vantagem em prejuízo da empresa e, após, vale-se da fraude para induzir em erro os membros do conselho fiscal. Contudo, o erro não foi causa da vantagem ilícita e do prejuízo, pois este já havia ocorrido.
Após a análise da tipicidade objetiva do crime de estelionato, com uma breve exposição de cada um de seus elementos, será feito um estudo sobre situações controversas em que a análise antes feita será aplicada.
3. Questões controversas
3.1. Sujeito passivo: a questão da pessoa jurídica
Como dito acima, o crime de estelionato, para que se configure exige que um ser humano seja induzido ou mantido em erro. Daí, inevitavelmente, surge a objeção em forma de questionamento: “não pode a pessoa jurídica sujeito passivo do estelionato?”
A resposta é óbvia: a pessoa jurídica figura como sujeito passivo do crime de estelionato, como reconhecido acertadamente pela jurisprudência e doutrina.[25] O que não é possível, obviamente, é que a pessoa jurídica seja induzida em erro, pela simples razão de que a pessoa jurídica não capacidade intelectiva.
Por isso, afirma-se que quanto ao sujeito passivo, tanto pode ter uma pessoa submetida ao erro e outra que sofre o prejuízo patrimonial.[26]
É perfeitamente possível que o agente, valendo-se de meio fraudulento, induza a erro empregado ou funcionário da pessoa jurídica e este realize o ato de disposição patrimonial, causando um prejuízo à pessoa jurídica, em favor do autor. Nesse caso, todos os elementos estão presentes, configurando-se o estelionato. Como dito, o fato de haver diversidade entre o enganado e a pessoa que sofre o prejuízo é irrelevante, pois o tipo não exige que sejam a mesma pessoa.
A pessoa jurídica pode ser sujeito passivo do crime de estelionato, já que o sujeito passivo é o titular do bem jurídico lesionado, qual seja o patrimônio. Porém, para que isso ocorra é imprescindível a existência de alguém induzido ou mantido em erro. É o que ocorre quando a obtenção de vantagem ilícita consiste na percepção indevida de aposentadoria. Em tais casos, o autor se vale de documentos falsos e induz a erro o funcionário responsável pela análise documental, que autoriza o recebimento da aposentadoria. No momento em que recebe a primeira aposentadoria, há a consumação do estelionato, pois o agente obteve vantagem em prejuízo do INSS.[27]
O que se configura um total despropósito é a afirmativa de que a pessoa jurídica foi induzida em erro.
Primeiro, porque a pessoa jurídica não é “alguém”, pronome cujo sentido é “uma pessoa ou alguma pessoa cuja identidade não é especificada ou definida”[28] Impossível se considerar que pessoa jurídica seja abrangida pelo vocábulo “alguém”, sem que se faça uma fragorosa subversão do conteúdo semântico da palavra.
Tanto é assim que, nos crimes contra a pessoa, o Código Penal se vale do vocábulo “alguém” para indicar o sujeito passivo.[29] Usa-se, pois, a expressão “alguém” sem qualquer adjetivo ou esclarecimento, uma vez que, indubitavelmente, significa pessoa humana ou, para usar a retórica de Hungria, o “ser vivo nascido de mulher”[30].
Saliente-se que não se pode descurar do método sistemático de interpretação da lei, que a considera como um conjunto, interpretando-se a lei de acordo com o ordenamento jurídico.[31] Baseado no pressuposto de que a vontade do legislador é coerente e unitária, de modo que há que se ter uma harmonia no sentido das expressões utilizadas na lei,[32] o método sistemático impõe que não se interprete de modo diverso as palavras usadas em mais de um artigo do Código Penal.[33]
Como dito, se a palavra alguém é usada para indicar o sujeito passivo dos crimes contra a pessoa, não há nenhuma possibilidade de se considerar que pessoa jurídica seja abrangida pelo vocábulo “alguém”, sem que se afronte, também, regras elementares de hermenêutica.
Mas, não bastasse isso, é visível que não se pode falar em pessoa jurídica induzida em erro, pela simples razão que esta não pode errar. Como já dito e redito, o erro, como um estado psicológico, é atributo exclusivo do ser humano. Para se estar sob erro, é imprescindível que se tenha discernimento, capacidade intelectiva, ou seja, que se consiga representar mentalmente a realidade para, só assim, poder representá-la falsa ou corretamente. Afirmar que uma pessoa jurídica foi induzida em erro não pode ser outra coisa que um grande descuido com o verdadeiro sentido do erro e uma completa subversão da tipicidade.
Por tais razões, uma denúncia que impute a conduta de ter induzido em erro uma pessoa jurídica é inepta, por narrar comportamento atípico.
Outra questão, atinente à obtenção de vantagem contra pessoa jurídica, diz respeito ao nexo causal. Confira-se um exemplo: o agente que trabalha em uma empresa e tem acesso a valores obtém vantagem e, depois, se vale de fraude para ocultar a locupletação. Em tal situação também não se pode falar em estelionato, ainda que a denúncia impute ao acusado ter induzido em erro os responsáveis pela fiscalização, os membros do conselho fiscal. Nesse caso, falta a relação de causalidade. O erro, ao qual foram induzidos os membros do conselho, não foi a causa da obtenção da vantagem. Também, nesse caso, a inépcia da inicial é patente.
Em resumo, a pessoa jurídica não pode ser induzida em erro, porque não é “alguém” e porque não tem capacidade intelectiva. O estelionato contra a pessoa jurídica só existirá se, mediante fraude, houver sido induzida em erro uma pessoa humana que realiza o ato de disposição patrimonial em prejuízo da pessoa jurídica, com o qual o autor obtém a vantagem ilícita.
3.2. Fraude no uso de telefone público ou outras máquinas
Uma questão que causou controvérsia na Alemanha e Espanha, e que também ocorreu no Brasil, é relevante para o estudo do estelionato. Certa pessoa utiliza um artifício que lhe permite conversar em um telefone público sem a introdução das correspondentes fichas telefônicas. Esta conduta configura crime de estelionato? Segundo um julgado do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, estaria configurado o estelionato, pois teriam sido induzidos a erro os funcionários e a empresa.[34]
Todavia, analisando-se rigorosamente a conduta, é forçoso reconhecer sua atipicidade, nada obstante se tratar de conduta socialmente danosa.
Se a fraude não tiver causado (seja induzindo ou mantendo) o erro e se o erro não for causa da disposição patrimonial, não se configura o crime de estelionato.[35] Aliás, para que o erro seja causador da lesão patrimonial, há que ser anterior a esta. O erro posterior não pode ser causa da anterior lesão patrimonial.[36]
É marcante no crime de estelionato, que o enganado, em decorrência do erro, dispõe voluntariamente do patrimônio. O erro é, como já dito, uma falsa percepção da realidade, que vicia a vontade de alguém, fazendo com que este realize a disposição patrimonial, crente que está realizando um negócio jurídico ou até um ato de liberalidade, quando na verdade está sendo logrado.[37]
Portanto, é insustentável a afirmativa de que foi induzida em erro a “própria companhia telefônica”. Falar que uma empresa foi induzida em erro é uma confusão entre a pessoa induzida em erro — que só pode ser a pessoa humana, com capacidade intelectiva — e o sujeito passivo do delito, titular do bem jurídico lesionado, o patrimônio.[38] O sujeito passivo pode ser a pessoa jurídica, desde que haja alguém (pessoa humana) induzido em erro que disponha do patrimônio da empresa, como já asseverado.
Assim, seria possível a existência de estelionato contra a companhia telefônica, se houvesse alguém, que sob erro, realizasse o ato de disposição patrimonial.
A decisão afirma que também teriam sido induzidos a erro “os funcionários” da companhia. O equívoco nesse ponto é outro. Primeiro, porque é imprescindível que o induzido em erro seja pessoa determinada, o que não ocorre. Não se pode ter por configurado o estelionato, baseado em induzimento a erro de pessoas indeterminadas.
Ademais, ainda que se apontassem quais os pessoas supostamente induzidas a erro, não se poderia falar em estelionato, pela falta de nexo causal. Só se pode falar em estelionato, se o erro tiver dado causa à disposição patrimonial. E para ser causa tem de ser anterior ao prejuízo e à vantagem ilícita.
Em que momento os funcionários teriam sido induzidos a erro? No instante da recolha das fichas? A rigor, nessa situação, eles não erram, porque se limitam a trocar a caixa de fichas.[39] Mas, abstraindo-se isso, ainda que tivessem sido enganados, o erro teria sido posterior à vantagem obtida com o telefonema. Como se vê, a causa da vantagem é o artifício utilizado e não o erro de funcionários. Só poderia haver estelionato, se em razão do erro um funcionário dispusesse o patrimônio da pessoa jurídica.[40] O comportamento, portanto, ainda que lesivo ao patrimônio da companhia telefônica, ainda que socialmente danoso, não tem tipicidade.
Por fim, é útil observar que a questão sobre a tipicidade de fraude em telefone público foi amplamente debatida na Alemanha. Lá, foi descoberto que algumas pessoas martelavam uma moeda, para que esta ficasse com um diâmetro correspondente a outra de valor superior; com isso, era possível se falar no telefone com uma moeda de valor inferior ao exigido pelo aparelho. Segundo entendeu o Tribunal Alemão, tal conduta não configurou crime de estelionato (§ 263), nem subtração de energia elétrica (Lei de 9 de abril de 1900), nem falsificação de moeda (§ 146).[41]
Na Espanha, em casos semelhantes, em que os agentes realizavam manobras físicas sobre máquinas automáticas (cabines telefônicas, máquinas de tabaco, bebidas, etc.) não foram consideradas como crime de estelionato, “pues no se engaña a otro sino a una máquina”.[42]
3.3 Fraude por meio de manipulações informáticas
Com o aumento transações econômicas realizadas por meio da internet, surgem, evidentemente, “golpes” patrimoniais efetuados por meio de fraude informática. Surge, em decorrência disso, a discussão sobre a eventual tipicidade da conduta.
Novamente, surgem em tais situações juízos apressados sobre a ocorrência do estelionato, comumente, como já dito, tratado com simplismo como se nada mais fosse que a vantagem ilícita com prática de fraude.
Como já dito, o estelionato possui quatro elementos que, para que configurem a conduta típica, devem ser praticados em nexo causal.
Diversas são as formas de fraude por informática.
Uma das que merece destaque é o envio de e-mail em que se simula ser uma mensagem enviada pelo banco, no qual se solicita que os dados da conta (inclusive senha), sejam digitados. Com tais informações, o agente acessa a conta da vítima e realiza transferência em prejuízo do correntista. Em tais situações, está configurado o estelionato, pois o autor usou a fraude (e-mail fictício do banco) que levou a vítima ao erro (fazendo com ela digitasse seus dados), o que permitiu ao agente que ele obtivesse a vantagem (transferência do dinheiro) em prejuízo alheio. Não só estão presentes os elementos, como há o nexo causal entre cada um deles.
Contudo, há situações mais sofisticadas em que hackers conseguem invadir o sistema de bancos e realizar transferências bancárias. Em tais casos, embora haja a vantagem ilícita em prejuízo alheio, não se configura o estelionato. De fato, não há qualquer pessoa induzida em erro, já que a vantagem foi obtida, sem que houvesse qualquer contribuição do correntista ou de quem o representasse. Por mais lesiva e socialmente danosa que seja a conduta, não existe estelionato em tais situações.
Tanto é assim, que em ante tais situações, a Espanha criou, com a reforma penal de 1995, um tipo equiparado ao estelionato em seu art. 248, 2º, estafas por medios informáticos, pois o tipo básico de estafa era insuficiente para a punição de tais condutas, já “no hay ni engaño ni error, sencillamente porque no se puede, en puridad, ni engañar, ni inducir a error a una máquina, o computador.”[43]
No Brasil, o legislador tão pródigo em criar tipos mal redigidos e desnecessários — ou, ao menos, não tão relevantes — não se deu ao trabalho de definir um tipo equiparado ao estelionato, no qual haja a tipificação de obtenção de vantagem em prejuízo alheio, mediante manipulações de sistema de informática.
Ressalte-se que a lesividade social de tais condutas é semelhante a do estelionato, mas as condutas são atípicas pelo simples fato de que não são previstas como crime pela lei penal.
4. A fragmentariedade do Direito Penal
Antes de concluir sobre as questões específicas do estelionato, parece relevante fazer algumas brevíssimas observações sobre a fragmentariedade do Direito Penal.
Não podemos esquecer que o direito penal possui um caráter eminentemente fragmentário, que significa que tutela apenas alguns bens jurídicos e, mesmo quanto a esses bens jurídicos tutelados, só o protegem de alguns tipos de comportamentos lesivos. Vale dizer o seguinte, embora o Código Penal brasileiro tutele amplamente o patrimônio, nem toda lesão patrimonial configura um ilícito penal.[44]
A fragmentariedade nada mais é que uma descontinuidade, no sentido de que a lei penal recorta algumas condutas que afetam certos bens jurídicos, definindo-as como crime. Há essa descontinuidade, pois a lei penal não pretende abranger todas as condutas lesivas ao bem jurídico tutelado, de modo que as condutas não descritas são penalmente irrelevantes, embora possam atingir o bem jurídico. Apenas nos regimes totalitários a lei penal possui a pretensão de continuidade.[45]
De acordo com o princípio da legalidade, apenas as lesões patrimoniais estritamente tipificadas configuram crime. Logo, não há razão para perplexidade quando nos deparamos com uma lesão patrimonial não definida como crime, porquanto isso é inerente ao direito penal.[46]
Lembremo-nos que o princípio da legalidade rechaça a atividade jurisdicional como fonte criadora de delitos; o que tem como fundamento a teoria da separação dos poderes, pois se o juiz aplica pena por uma conduta não prevista estritamente em lei, mas lesiva a um bem jurídico, estará usurpando função do legislador, representante da vontade geral. Não existe um “delito natural”; uma conduta só é crime se descrito estritamente como tal em uma lei.[47]
A interpretação penal não é uma atividade criativa, mas simplesmente cognitiva. A punibilidade da conduta não decorre da valoração do magistrado sobre se a conduta é ou não ontologicamente danosa; só será punida a conduta que tiver estrita correspondência com a descrição abstrata da lei. Consequentemente, o Direito Penal impõe a completa “submissão do juiz à lei”,[48] o que significa de um lado que o juiz não poderá aplicar pena a uma conduta se esta não for prevista em lei, e, de outro, não pode deixar de aplicar a pena se a conduta estiver descrita em lei, ainda que na sua opinião tal fato não devesse ser punível.
Diante de um caso concreto, primeiro é necessária a interpretação da lei penal (que é um processo abstrato), depois a verificação da subsunção, que é a aplicação de um texto legal ao caso concreto.[49] Ou seja a constatação de que uma conduta concreta possui tipicidade, que a perfeita correlação com a conduta abstratamente descrita pela lei penal.[50] Configura equívoco partir do caso concreto e constatar se ele possui danosidade social e depois iniciar a argumentação por derivação, para demonstrar que o fato é típico. Nesse caso, haveria uma inversão do processo lógico que viciaria totalmente a interpretação e a subsunção, levando a erros violadores do princípio da legalidade.[51]
A experiência em sala de aula mostra que diante do estudo de situações como as aqui tratadas, surge a argumentação mediante uma pergunta, como no seguinte exemplo real: “então se alguém falsificar um bilhete do metrô, passar pela catraca e usar o transporte público sem nada pagar, não comete crime de estelionato?”
Já se argumentou sobre o mérito da questão, mas parece relevante é tratar da lógica que está presente nela. Não há em tal argumentação nenhuma pretensa demonstração da presença dos elementos constitutivos do estelionato. Ao contrário, há, implícito na pergunta, um argumento por derivação. Conclui-se que está errado o raciocínio exposto, porque se ele prevalecer não aquela conduta ficará impune. Em outras palavras, a conclusão vem antes do raciocínio lógico e, a argumentação nada mais é que uma forma de justificar a conclusão que houve crime, não porque estejam presentes os elementos do tipo, mas porque a conduta é socialmente reprovável e, por via de consequencia, deve ser tida como típica.
Este parece ser o grande vício do operador do direito, que precisa se conscientizar que o papel da lei penal é a imposição de limites aos aplicadores da lei penal, como forma de garantia da liberdade humana.
5. Conclusões
O estelionato para que se configure não prescinde da existência de alguém — pessoa humana com capacidade intelectiva — induzida em erro.
O sujeito passivo do crime, que é o titular do bem jurídico ofendido (patrimônio), poderá ser a pessoa jurídica, desde que haja uma pessoa humana induzida em erro, que realize o ato de disposição do patrimônio da pessoa jurídica. A pessoa jurídica não pode errar, simplesmente porque este é uma falsa representação da realidade e a pessoa jurídica não possui, como é óbvio, capacidade psicológica.
A fraude contra telefones públicos ou contra outras máquinas, como de venda de refrigerantes, não configura o estelionato, já que não há pessoa humana induzida em erro.
As fraudes realizadas por manipulações de sistemas de informática não configuram o crime de estelionato por não contar com pessoa humana induzida em erro.
A fragmentariedade da lei penal, inerente aos regimes democráticos, traz como consequência que certos atos lesivos ao patrimônio não sejam descritos como condutas típicas. Não se pode, na interpretação da lei, partir da consideração subjetiva do fato, para argumentar que o crime está configurado, pois com isso se faz um argumento por derivação, que prejudica a correta análise dos elementos constitutivos do tipo.
Informações Sobre o Autor
José Nabuco Filho
advogado em São Paulo, mestre em Direito Penal (Unimep), Professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) e de Direito Penal Eleitoral no Curso de Especialização em Direito Eleitoral do Centro Universitário Claretiano