Aplicabilidade ou não da Lei Maria da Penha para defesa do homem

Resumo: Abordar-se-á neste artigo a possibilidade ou não da aplicação da Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340 de 07 de agosto de 2006), na defesa do homem. Utilizamos a metodologia bibliográfica, com intuito de nos embasarmos, além da própria legislação, mas também, através de jurisprudências sobre o tema. Desta feita, tendo como propósito, alicerçar e fornecer ao leitor maior compreensão sobre o respectivo assunto.

Palavra-chave: Lei Maria da Penha; Lei n° 11.340/2006; aplicabilidade; defesa do homem.

Abstract: It will be discussed in this article the possibility or not of the application of the Law Maria da Penha (Law n ° 11.340 of August 07, 2006), in the defense of the man. We use the bibliographical methodology, with the intention of basing ourselves, besides the legislation itself, but also, through jurisprudence on the subject. This time, with the purpose of establishing and providing the reader with a better understanding of the subject.

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Keywords: Maria da Penha Law; Law No. 11.340/2006; applicability; defense of man.

Introdução

A Lei Maria da Penha, Lei n° 11.340/2006, foi criada com o intuito de coibir a violência contra mulher. Alicerçada pelo artigo 226, § 8°, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme transcrito:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.[1]

Fundamentada, também, pelos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres, de 18 de dezembro de 1979, promulgada pelo Decreto Lei n° 4.377, de 13 de setembro de 2002. Por seu turno, encontra-se embasada de acordo com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada pela Assembleia da Organização dos Estados Americanos em 1994 – Convenção do Belém do Pará (1994), ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995, traz disposto em seu preâmbulo:

“A Assembleia Geral […] Preocupada porque a violência em que vivem muitas mulheres na América, sem distinção de raça, classe, religião, idade ou qualquer outra condição, é uma situação generalizada; […] Convencida da necessidade de dotar o sistema interamericano de um instrumento internacional que contribua para solucionar o problema da violência contra a mulher; […]”[2]

Cristalino, também, apesar de não explícito na Lei n° 11.340 de 07 de agosto de 2006, que a Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, através da resolução 48/104, de 20 de dezembro de 1993, teve grande influência e impacto, como podemos notar através da transcrição de um pequeno trecho desta resolução:

“Reconhecendo que a violência contra as mulheres constitui uma manifestação de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres, que conduziram ao domínio e à discriminação das mulheres por parte dos homens e impediram o progresso pleno das mulheres, e que a violência contra as mulheres constitui um dos mecanismos sociais fundamentais através dos quais as mulheres são forçadas a assumir uma posição de subordinação em relação aos homens,[…]”[3]

Por fim, após este breve relato, nos resta apresentar no transcorrer deste trabalho um breve histórico no que tange a Lei Maria da Penha, para posteriormente aprofundarmo-nos no desenvolvimento do propósito temático deste artigo.

1. Breve histórico quanto a prevenção e combate à violência contra as mulheres no Brasil.

O Brasil teve sua legislação inicialmente constituída pelas Ordenações Filipinas, leis compiladas por ordem de D. Felipe I. As mulheres, segundo estas Ordenações, deveriam ser tuteladas na vida civil, devido sua “fraqueza de entendimento”.

Destarte, caso a mulher fosse casada, a incapacidade seria suprida pelo marido, caso solteira pelo respectivo representante legal. As Ordenações Filipinas deixam de reger a sociedade brasileira a partir da publicação do Código Civil de 1916.

Com brilhantismo Mary Del Priore leciona:

“Pobre ou rica, as mulheres possuíam um papel: fazer o trabalho de base para o edifício familiar – educar os filhos segundo os preceitos cristãos, ensinar-lhes as primeiras letras e atividades, cuidar do sustento e da saúde física e espiritual deles, obedecer e ajudar o marido. Ser, enfim, a “santa mãezinha”. Se não o fizesse, seria confundida com um “diabo doméstico”. Afinal, sermões difundiam a ideia de que a mulher podia ser perigosa, mentirosa e falsa como uma serpente. (…) O modelo ideal era Nossa Senhora, modelo de pudor, severidade e castidade.

A Soma dessa tradição portuguesa com a colonização agrária e escravista resultou no chamado patriarcalismo brasileiro.”[4]

O Código Civil de 1916, por seu turno, não avançou no que tange os direitos da mulher, proporcionando a continuidade da hierarquização familiar e instituindo o pátrio poder e a incapacidade da mulher casada. Deste modo, o marido caracterizava-se como chefe da sociedade familiar, com plenos poderes de representação legal dos membros da família, da fixação de domicilio, da autorização para o trabalho da mulher, da administração dos bens, dentre tantos outros.

No que tange a esfera criminal, apesar de extinta no Código Criminal de 1830 a possibilidade, autorizada, dos maridos matarem as mulheres, em caso de adultério ou de mera suposição desta ocorrência, o Código Penal de 1890 e em seguida o de 1940 trata dos crimes passionais, com a alegação de legítima defesa da honra, apesar de constar no corpo do Código Penal de 1940, em seu art. 28: ”a emoção ou a paixão não excluem a responsabilidade penal”.

Segundo Mariza Correia:

“O período romântico acabara e, lançado o novo argumento, a absolvição tornar-se á um pouco mais complicada, parecendo passar a ser, de fato, privilégio de poucos, já que será preciso “demonstrar” não só a infidelidade da companheira, mas também a honorabilidade de seu assassino. A dupla definição desta honorabilidade, através do trabalho, do valor social do homem e da necessária fidelidade de sua companheira, passa a estar ligada de forma permanente na argumentação da legítima defesa da honra.”[5]

Somente em 1991, a legítima defesa da honra, foi afastada através de decisão do Superior Tribunal de Justiça, conforme expomos:

“RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JURI. DUPLO HOMICIDIO PRATICADO PELO MARIDO QUE SURPREENDE SUA ESPOSA EM FLAGRANTE ADULTERIO. HIPOTESE EM QUE NÃO SE CONFIGURA LEGITIMA DEFESA DA HONRA. DECISÃO QUE SE ANULA POR MANIFESTA CONTRARIEDADE A PROVA DOS AUTOS (ART. 593, PARAGRAFO 3., DO CPP).

NÃO HA OFENSA A HONRA DO MARIDO PELO ADULTERIO DA ESPOSA, DESDE QUE NÃO EXISTE ESSA HONRA CONJUGAL. ELA E PESSOAL, PROPRIA DE CADA UM DOS CONJUGES. O MARIDO, QUE MATA SUA MULHER PARA CONSERVAR UM FALSO CREDITO, NA VERDADE, AGE EM MOMENTO DE TRANSTORNO MENTAL TRANSITORIO, DE ACORDO COM A LIÇÃO DE HIMENEZ DE ASUA (EL CRIMINALISTA, ED. ZAVALIA, B. AIRES, 1960, T.IV, P.34), DESDE QUE NÃO SE COMPROVE ATO DE DELIBERADA VINGANÇA.

O ADULTERIO NÃO COLOCA O MARIDO OFENDIDO EM ESTADO DE LEGITIMA DEFESA, PELA SUA INCOMPATIBILIDADE COM OS REQUISITOS DO ART. 25, DO CODIGO PENAL.

A PROVA DOS AUTOS CONDUZ A AUTORIA E A MATERIALIDADE DO DUPLO HOMICIDIO (MULHER E AMANTE), NÃO A PRETENDIDA LEGITIMIDADE DA AÇÃO DELITUOSA DO MARIDO. A LEI CIVIL APONTA OS CAMINHOS DA SEPARAÇÃO E DO DIVORCIO. NADA JUSTIFICA MATAR A MULHER QUE, AO ADULTERAR, NÃO PRESERVOU A SUA PROPRIA HONRA.

NESTA FASE DO PROCESSO, NÃO SE HA DE FALAR EM OFENSA A SOBERANIA DO JURI, DESDE QUE OS SEUS VEREDICTOS SO SE TORNAM INVIOLAVEIS, QUANDO NÃO HA MAIS POSSIBILIDADE DE APELAÇÃO. NÃO E O CASO DOS AUTOS, SUBMETIDOS, AINDA, A REGRA DO ARTIGO 593, PARAGRAFO 3., DO CPP.

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RECURSO PROVIDO PARA CASSAR A DECISÃO DO JURI E O ACORDÃO RECORRIDO, PARA SUJEITAR O REU A NOVO JULGAMENTO.” (REsp 1.517/PR, Rel. Ministro JOSE CANDIDO DE CARVALHO FILHO, SEXTA TURMA, julgado em 11/03/1991, DJ 15/04/1991, p. 4309)[6]

Instituídos em 1995, através da Lei n° 9.099, os Juizados Especiais para julgar delitos de menor potencial ofensivo. A lei demonstrou-se incompatível com os casos de violência doméstica, revelando-se um retrocesso no que tange os direitos das mulheres. A Lei n° 9.099/95 restou por banalizar a violência contra a mulher, aplicando simples sanções como multa, serviços comunitários, desta forma, expondo a autora a maior risco de violência e segurança.

Este efeito catastrófico causado pela Lei n° 9.099/95 levou o movimento de mulheres a propor a criação de lei específica, com intuito na proteção das mulheres em situações de violência. Surge, então, a Lei n° 10.788/2003, que define violência contra a mulher de forma mais abrangente em conformidade com a Convenção de Belém do Pará, todavia inerente somente aos casos atendidos pelos serviços de saúde, assim a referida lei dispõe: “Estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados”.[7]

Crime de lesão corporal, de acordo com o Código Penal, sofre alterações explícitas na Lei n° 10.886, de 17 de junho de 2004, criando um tipo especial de lesão, denominado “Violência Doméstica”:

“Art. 1o O art. 129 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 9o e 10:

"Art. 129…..

Violência Doméstica

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.

§ 10. Nos casos previstos nos §§ 1o a 3o deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9o deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço).”.

Apesar das alterações legislativas ocorridas, até a época apresentada, já se vislumbrava em 2002 a necessidade da construção de um marco legal com foco na violência contra as mulheres. A organização não-governamental CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), com auxílio de outras organizações, promove o estudo e apresenta proposta de lei através da Carta da Cepia.[8]

A metodologia aplicada na elaboração da Carta da Cepia seguiu os seguintes parâmetros: análise dos efeitos da aplicabilidade da Lei nº 9.099/95 em relação a violência doméstica; análise de projetos em tramitação no Congresso Nacional; comparativo de leis especiais estrangeiras sobre violência doméstica.

Em relação aos efeitos da Lei nº 9.099/95, com brilhantismo, explicam Calazans e Cortes:

“No balanço dos efeitos da aplicação da Lei 9.099/95 sobre as mulheres, diversos grupos feministas e instituições que atuavam no atendimento a vítimas de violência doméstica constataram uma impunidade que favorecia os agressores. Cerca de 70% dos casos que chegavam aos juizados especiais tinham como autoras mulheres vítimas de violência doméstica. Além disso, 90% desses casos terminavam em arquivamento nas audiências de conciliação sem que as mulheres encontrassem uma resposta efetiva do poder público à violência sofrida. Nos poucos casos em que ocorria a punição do agressor, este era geralmente condenado a entregar uma cesta básica a alguma instituição filantrópica”.[9]

Após dois anos de debates e estudos, os quais contaram com a colaboração dos Juizados Especiais Criminais, é elaborado um anteprojeto, que possui como intuito a ampliação da discussão, visando adesão de parlamentares, magistrados e atores sociais.

Desta feita, o anteprojeto apresentava a seguinte proposta: conceituação da violência doméstica de acordo com a Convenção de Belém do Pará (1994); elaboração de uma Política Nacional de combate à violência contra a mulher; medidas preventivas de proteção à vítima; medidas cautelares aos agressores; criação de serviços públicos para atendimento domiciliar; adoção de Juízo Único, com competência tanto cível, quanto criminal, através de varas especializadas para julgar os respectivos casos de violência doméstica contra as mulheres e relacionados; encerramento da aplicabilidade da Lei n° 9.099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher.

No ano de 2004 é instituído, através da Ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, um Grupo de Trabalho, conforme Decreto Lei n° 5.030, de 31 de março do referido ano, com o seguinte escopo: “Institui o Grupo de Trabalho Interministerial para elaborar proposta de medida legislativa e outros instrumentos para coibir a violência doméstica contra a mulher, e dá outras providências”.

Recebido o Projeto de Lei n° 4.559 em 25 de novembro de 2004, sendo esta data, 25 de novembro emblemática, visto que, a Organização das Nações Unidas o declarou como Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher.

Durante a tramitação ocorreram contribuições significativas da sociedade ao projeto original, tais como: criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência tanto cível, quanto criminal; penas pecuniárias e cesta básica foram vedadas; dano moral e patrimonial são incluídos no conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher; reforço para as Delegacias de Atendimento à Mulher; possibilidade de inclusão da vítima em programas assistenciais, de proteção a vítima e a testemunha, acesso a transferência de local de trabalho, se servidora pública e estabilidade por motivo de afastamento do emprego, por 6 (seis) meses, e acesso aos benefícios de desenvolvimento científico e tecnológico; substituição das medidas cautelares por medidas protetivas; criação obrigatória de centros de atendimento psicossocial e jurídico, casas de abrigo, delegacias especializadas, núcleos de defensoria públicas, dentre diversos serviços de atendimento; comparecimento do acusado a programas de recuperação e reeducação de acordo com a Lei de Execução Penal, artigo 152.

Após apreciação e votação, o projeto foi sancionado e denominado Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/2006), homenageando Maria da Penha Fernandes, que é exemplo de luta tanto na esfera jurídica nacional e internacional de direitos humanos, a fim de exigir que a violência que sofreu por seu ex-marido não ficasse impune.

2. Lei n° 11.340, de 07 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha.

Como exposto, a Lei Maria da Penha provoca uma ruptura com o modelo existente na Lei n° 9.099/95, inaugurando, assim, uma nova análise referente ao elevado potencial ofensivo dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, aplicando medidas de proteção, prevenção e penalização.

O artigo 5º, da Lei n° 11.340/2006 – Lei Maria da Penha (LMP), traz explícito em seu caput o seguinte texto:

“Artigo 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – No âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – No âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – Em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.”[10]

Por certo, a referida lei, ao dispor a proteção baseando-se no gênero, definiu-o em relação aos aspectos sociais, ou seja, os papéis masculino e feminino na relação íntima familiar, ou seja, teve como cerne as expectativas da sociedade a respeito do homem e da mulher, diante dos demais atores sociais.

De acordo com os ensinamentos de Marcela Cardoso, Herbert Mendes e Fernanda Martins: “A Lei abriga a mulher, não fazendo distinção de sua orientação sexual, à normal chega ao alcance tanto para as lésbicas como travestis, transexuais e transgênicos os quais mantêm relação íntima em ambiente ou de convívio”.[11]

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Destarte, em concordância com a citação acima exposta, a Lei Maria da Penha abrange os indivíduos, independente de orientação sexual, que desenvolvam o papel cultural e histórico existente em nossa sociedade, como já exposto no primeiro item deste artigo, de homem na relação íntima familiar.

Desta feita, resta apresentar na íntegra julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que corrobora com nosso entendimento acerca da Lei:

“TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PODER JUDICIÁRIO. São Paulo. Registro: 2015.0000770986. ACÓRDÃO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Mandado de Segurança nº 2097361-61.2015.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, em que é impetrante GABRIELA DA SILVA PINTO, é impetrado MM. JUIZ (A) DE DIREITO DA VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DO FORO CENTRAL.

ACORDAM , em 9ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Por maioria de votos, concederam a segurança para aplicar em favor de GABRIELA DA SILVA PINTO as medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22, inciso III, alíneas a,b e c, da Lei nº 11.340/06, vencido o E. Desembargador Roberto Solimene, que a denegava e não declara.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores SÉRGIO COELHO (Presidente) e ROBERTO SOLIMENE.

São Paulo, 8 de outubro de 2015. ELY AMIOKA (RELATOR). VOTO Nº 718

MANDADO DE SEGURANÇA 2097361-61.2015.8.26.0000. COMARCA DE SÃO PAULO (VARA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA). IMPETRANTE: GABRIELA DA SILVA PINTO NOME SOCIAL (JEAN CARLOS DA SILVA PINTO NOME CIVIL). IMPETRADO: MM. JUIZ DO JUIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS. IMPETRANTE BIOLOGICAMENTE DO SEXO MASCULINO, MAS SOCIALMENTE DO SEXO FEMININO. VIOLÊNCIA DE GÊNERO. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. SEGURANÇA CONCEDIDA.

Trata-se de Mandado de Segurança impetrado por GABRIELA DA SILVA PINTO – nome social ( JEAN CARLOS DA SILVA PINTO nome civil) , contra ato do MM. Juiz da Vara Central de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, que indeferiu pedido de concessão de medidas protetivas em seu favor (fls. 01/11).

Indeferida a liminar (fls. 56), vieram as informações solicitadas (fls. 59/65) e a Douta PROCURADORIA GERAL DE JUSTIÇA , no Parecer de fls. 67/70, opinou pela concessão da segurança.

É o relatório.

A segurança deve ser concedida.

Narra a IMPETRANTE que manteve relacionamento amoroso com RAFAEL FERNANDO DA SILVA OLIVEIRA por cerca de um ano, e após o término da relação este passou a lhe proferir xingamentos e fazer ameaças.

Diante dos fatos, a IMPETRANTE registrou a ocorrência perante a Autoridade Policial e, mantidas as ameaças, solicitou a aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha.

O Juízo de origem, contudo, indeferiu as medidas pleiteadas alegando que estas têm por objetivo a prevenção e coibição de violência doméstica e familiar motivada por desigualdade de gênero em face da mulher, excluindo, assim, sua aplicação em favor da ora IMPETRANTE, que biologicamente pertence ao sexo masculino.

Todavia, a lei em comento deve ser interpretada de forma extensiva, sob pena de ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim é que a Lei nº 11.340/06 não visa apenas a proteção à mulher, mas sim à mulher que sofre violência de gênero, e é como gênero feminino que a IMPETRANTE se apresenta social e psicologicamente.

Tem-se que a expressão “mulher”, contida na lei em apreço, refere-se tanto ao sexo feminino quanto ao gênero feminino. O primeiro diz respeito às características biológicas do ser humano, dentre as quais GABRIELA não se enquadra, enquanto o segundo se refere à construção social de cada indivíduo, e aqui GABRIELA pode ser considerada mulher.

A IMPETRANTE, apesar de ser biologicamente do sexo masculino e não ter sido submetida à cirurgia de mudança de sexo, apresenta-se social e psicologicamente como mulher, com aparência e traços femininos, o que se pode inferir do documento de identidade acostado às fls. 18, em que consta a fotografia de uma mulher. Acrescenta-se, por oportuno, que ela assina o documento como GABRIELA, e não como JEAN CARLOS.

Ressalte-se, por oportuno, que o reconhecimento da transexualidade prescinde de intervenção cirúrgica para alteração de sexo. Os documentos acostados aos autos, como acima mencionado, deixam claro que a IMPETRANTE pertence ao gênero feminino, ainda que não submetida a cirurgia neste sentido.

E esta Corte já decidiu, por exemplo, que a alteração do nome civil não exige a realização prévia de cirurgia para mudança de sexo:

“RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL

Pretensão da autora de alteração de prenome feminino para masculino Nome feminino que, em face da condição atual da apelante, a expõe ao ridículo Fotos que demonstram, verdadeiramente, que a aparência da autora é de um home

Laudo psicológico que atesta a necessidade da retificação da pessoa humana Possibilidade de modificação.” (Apelação Cível nº 0055269-67.2008.8.26.0576, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Galdino Toledo Junior, j. em 03/02/2015).

É, portanto, na condição de mulher, ex-namorada de RAFAEL, que a IMPETRANTE vem sendo ameaçada por este, inconformado com o término da relação.

GABRIELA sofreu violência doméstica e familiar, cometida pelo então namorado, de modo que a aplicação das normas da Lei Maria da Penha se fazem necessárias no caso em tela, porquanto comprovada sua condição de vulnerabilidade no relacionamento amoroso.

Nesse sentido são os ensinamentos de Maria Berenice Dias: “(…) Lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenha identidade com o sexo feminino estão ao abrigo da Lei Maria da Penha. A agressão contra ela no âmbito familiar constitui violência doméstica. Ainda que parte da doutrina encontre dificuldade em conceder-lhes o abrigo da Lei, descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher. Felizmente, assim já vem entendendo a jurisprudência (…)” (DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2ª ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010).

Por fim, cumpre observar que o documento de fls. 81, juntado por RAFAEL, em que GABRIELA afirma ter reatado o relacionamento, em nada altera a situação aqui tratada.

O Mandado de Segurança é ação constitucional que não admite dilação probatória, não cabendo ao agressor juntar aos autos documento assinado pela vítima a fim de afastar a necessidade das medidas pleiteadas.

Caso GABRIELA não pretendesse o seguimento da ação, deveria ter peticionado por meio da Defensoria Pública, que a representa nestes autos.

E apenas como esclarecimento, a assinatura aposta na Declaração de fls. 81 não coincide com a firmada no documento de identidade de GABRIELA, como se observa às fls. 18.

Assim, concede-se a segurança para aplicar em favor de GABRIELA DA SILVA PINTO as medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22, inciso III, alíneas a, b e c, da Lei nº 11.340/06.

ELY AMIOKA (RELATORA).”[12]

Por fim, cabe destaque para o trecho a seguir, referente ao entendimento do STJ quanto a questão de gênero, aqui tratada: “A Lei Maria da Penha atribuiu às uniões homoafetivas o caráter de entidade familiar, ao prever, no seu artigo 5º,parágrafo único, que as relações pessoais mencionadas naquele dispositivo independem de orientação sexual[13].

“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO. 1. Recurso especial tirado de acórdão que, na origem, fixou a competência do Juízo Civil para apreciação de ação de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva, em detrimento da competência da Vara de Família existente. 2. A plena equiparação das uniões estáveis homoafetivas, às uniões estáveis heteroafetivas trouxe, como corolário, a extensão automática àquelas, das prerrogativas já outorgadas aos companheiros dentro de uma união estável tradicional. 3. Apesar da organização judiciária de cada Estado ser afeta ao Judiciário local, a outorga de competências privativas a determinadas Varas, impõe a submissão dessas varas às respectivas vinculações legais construídas em nível federal, sob pena de ofensa à lógica do razoável e, in casu, também agressão ao princípio da igualdade. 4. Se a prerrogativa de vara privativa é outorgada ao extrato heterossexual da população brasileira, para a solução de determinadas lides, também o será à fração homossexual, assexual ou transexual, e todos os demais grupos representativos de minorias de qualquer natureza que tenham similar demanda. 5. Havendo vara privativa para julgamento de processos de família, esta é competente para apreciar e julgar pedido de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva, independentemente das limitações inseridas no Código de Organização e Divisão Judiciária local 6. Recurso especial provido”. (STJ – REsp: 1291924 RJ 2010/0204125-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/05/2013, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/06/2013).

Cristalino que o disposto no artigo 5° da Lei 11.340/2006, a questão de gênero e orientação sexual resta vinculada aos respectivos papéis sociais que os indivíduos, na relação, venham a exercer.

Derradeiro e fundamental a exposição dos ensinamentos de Fausto Rodrigues de Lima e Claudiene Santos:

“A proteção da mulher, preconizada na Lei Maria da Penha, decorre da constatação de sua condição (ainda) hipossuficiente no contexto familiar, fruto de cultura patriarcal que facilita sua vitimação em situações de violência doméstica, tornando necessária a intervenção do Estado, em seu favor, no sentido de proporcionar meios e mecanismos para o reequilíbrio das relações de poder imanentes ao âmbito doméstico e familiar.

Reconhecer a condição hipossuficiente da mulher vítima de violência doméstica e/ou familiar não implica invalidar sua capacidade de reger a própria vida e administrar os próprios conflitos. Trata-se de garantir a intervenção estatal positiva, voltada à sua proteção e não à sua tutela.”[14]

3. Considerações finais

De acordo com o exposto neste artigo, vislumbra-se que a jurisprudência nos remete a interpretação da Lei dentro do contexto atual da sociedade.

Destarte, conforme disposto no art. 5° da Lei Maria da Penha, é plenamente possível a sua aplicabilidade ao sexo masculino, visto que, poderá este desempenhar papel social no contexto familiar de mulher.

Por seu turno, ao homem que desempenha o papel patriarcal, culturalmente e historicamente intrínseco em nossa sociedade, em casos de violência restará amparado pelas leis dispostas no Código Penal e Civil.

Tal diferenciação não infringe qualquer dispositivo constitucional, uma vez que, a igualdade revelar-se-á, no que se refere a esta legislação especifica que tratamos, a partir do instante que eleva-se a condição de proteção, prevenção e punição do mais forte a atos ilícitos cometidos contra o mais fraco, alcançando assim a equidade, ou seja, a respectiva igualdade entre os indivíduos.

 

Referências
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BRANDÃO, Eliane Reis. "Eu quero saber quais são os meus direitos": A complexa trama entre cidadania e lógica familiar. In: STREY, Marlene Neves; AZAMBUJA, Mariana Porto Ruwer de; JAEGER, Fernanda Pires. (Orgs.) Violência, Gênero e Políticas Públicas. Porto Alegre: EDUPCRS, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 226 § 8°, Distrito Federal, 1988. p. 128. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/15261/constituicao_federal_35ed.pdf?sequence=9>. Acessado em: 18/10/2017.
BRASIL. Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995. Diário Oficial da União (DOU). Distrito Federal. 1995. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acessado em: 18/10/2017.
BRASIL. Lei n° 10.788, de 24 de novembro de 2003. Diário Oficial da União (DOU). Distrito Federal. 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.778.htm>. Acessado em: 18/10/2017.
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Notas
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 226 § 8°, Distrito Federal, 1988. p. 128. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/15261/constituicao_federal_35ed.pdf?sequence=9>. Acessado em: 18/10/2017.

[2] OEA. Organização dos Estados Americanos. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Convenção do Belém do Pará; 1994. Disponível em: < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bissbliotecavirtual/instrumentos/belem.htm>. Acessado em 18/10/2017.

[3] ONU. Organização das Nações Unidas. Declaração sobre a eliminação da violência contra as mulheres. Resolução 48/104. 1993. Disponível em: < http://direitoshumanos.gddc.pt/3_4/IIIPAG3_4_7.htm>. Acessado em 18/10/2017

[4] DEL PRIORE, Mary. Histórias e Conversas de Mulher. 1ª, ed. São Paulo: Planeta, 2013, pp. 9 e 10.

[5] CORREIA, Mariza. Os crimes da paixão. Coleção Tudo é História. Vl. 33. Ed. Brasiliense, 1981. p. 61.

[6] STJ. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.517/PR, Rel. Ministro JOSE CANDIDO DE CARVALHO FILHO, SEXTA TURMA, julgado em 11/03/1991, DJ 15/04/1991, p. 4309. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?id=4085>. Acessado em: 18/10/2017.

[7] BRASIL. Diário Oficial da União (DOU). Lei n° 10.788, de 24 de novembro de 2003. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.778.htm>. Acessado em: 18/10/2017.

[8] CEPIA, Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação. Carta da Cepia. Rio de Janeiro: CEPIA. Ano VIII, n° 10, dezembro 2012.

[9] CALAZANS, Myllena; CORTES,Iáris. O processo de criação, aprovação e implementação da Lei Maria da Penha. In: CAMPOS, Carmem Hein de (org). Lei Maria da Penha Comentada em Uma Perspectiva Jurídico- Feminista. Editora Lumem Juris , Rio de Janeiro, 2011. p. 42.

[10] BRASIL. Diário Oficial da União (DOU). Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, Art.5°. Distrito Federal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acessado em: 19/10/2017.

[11] ARAÚJO, Marcela Cardoso Schütz de; SCHüTZ, Hebert Mendes de Araújo; DIAS, Fernanda Martins. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha na proteção da violência contra a mulher. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 96, jan 2012. Disponível em: <
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[12] TJ-SP – MS: 20973616120158260000 SP 2097361-61.2015.8.26.0000, Relator: Ely Amioka, Data de Julgamento: 08/10/2015, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 16/10/2015.

[13] STJ – REsp: 1291924 RJ 2010/0204125-4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 28/05/2013, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/06/2013

[14] LIMA, Fausto Rodrigues de Lima e SANTOS, Claudiene. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar, 2ª tiragem, p. 54.


Informações Sobre o Autor

Paulo Byron Oliveira Soares Neto

Licenciado e Bacharel em Matemática pela Universidade Ibirapuera; especialista em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica pela Uniasselvi; graduando em Direito (UNIP); Graduando em Engenharia de Produção (UNIVESP); Pós graduando em Ensino de Filosofia (UNIFESP); pós graduado em Direito Tributário e mestrando em Direito e Negócios Internacionais pela Universidade del Atlântico – Espanha.


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