Imputação objetiva e fato típico culposo

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Os elementos do fato típico culposo,
segundo a doutrina tradicional, são representados pela conduta humana de fazer ou não fazer, inobservância do dever objetivo
de cuidado, previsibilidade objetiva, ausência de previsão (ou previsão com
culpa consciente), resultado involuntário, nexo de causalidade e tipicidade
(1). Vejamos o exemplo seguinte:

José, um exímio atirador, realiza a conduta voluntária de limpar sua pistola
em um quarto onde seus sobrinhos estão brincando. Age com inobservância do cuidado objetivo manifestado através da
imprudência, que é a prática de um ato perigoso. Embora saiba os riscos de
acidente que a limpeza de arma de fogo traz, espera levianamente que nada
ocorra, pois confia na sua perícia no trato com armas. Dessa forma, dá um golpe
de segurança na arma para que se houvesse algum cartucho na câmara este fosse
ejetado, retira o carregador e começa a limpeza da arma apontando-a sempre no
sentido oposto do que brincam seus sobrinhos. Durante a limpeza a arma dispara,
o projétil atinge a janela, ricocheteia e lesiona um de seus sobrinhos. Ocorre
que José deveria antes de dar o golpe de segurança, ter retirado o carregador,
pois da forma como agiu, colocou um projétil na câmara da arma.

Percebe-se, no exemplo citado, que o
homem prudente e de discernimento (2) (homem médio) colocado nas condições de
José não agiria como ele agiu, pois não precisa ser um atirador experto para
saber do perigo na limpeza de um armamento. Dessa forma, configurada está a previsibilidade objetiva. Quando José
prevê o resultado lesivo mas torce para que o mesmo não ocorra estamos diante
da previsão com culpa consciente. Com
o resultado involuntário, o nexo de causalidade e a tipicidade (CP, art. 129, § 6º.) temos
todos elementos do fato típico culposo. Vale lembrar que mesmo se José não
tivesse previsto o resultado (ausência de previsão), ainda assim o resultado
seria típico e existiria a previsibilidade objetiva mencionada acima.

Quando ao comparar a conduta do
sujeito com o dever de cautela genérico, observa-se que ele não se conduziu da
forma imposta pelo cuidado objetivo, facilmente conclui-se que o fato é típico.
A problemática existe quando a capacidade individual do agente está superior ao
padrão objetivo. Em outras palavras, o homo
medius
agiria como o sujeito agiu, porém o sujeito possui aptidões e
conhecimentos que deveriam impor comportamento diverso do que ele teve. Pela
doutrina tradicional a ausência da previsibilidade objetiva tornaria o fato
atípico e o sujeito não responderia pela conduta, uma vez que a análise da
previsibilidade subjetiva, ou seja, o que era exigível do sujeito, segundo suas
aptidões pessoais nas circunstâncias em que se viu envolvido, projeta-se no
campo da culpabilidade (3). Vejamos o seguinte caso (4):

“Um pai pediu para seus dois filhos
menores auxiliá-lo na reparação (“ dar fundo ”) da cisterna de sua chácara. Os
dois filhos entraram na cisterna e sentaram em uma taboa improvisada para que
fossem enchendo o balde com os entulhos que entupiam a cisterna, puxando a
corda como sinal para o pai suspender o balde quando este estava cheio. Em
determinado momento, devido o sol ter mudado de posição, o interior da cisterna
ficou muito escuro e os filhos reclamaram da falta de luminosidade ao pai. Este
providenciou um holofote alimentado por um gerador de energia a diesel. Ligou o
aparelho, que iluminou por completo a cisterna, com o cuidado de posicioná-lo
de forma que a fumaça emitida tomasse direção oposta à mesma. Os garotos
reiniciaram então a tarefa. O pai, percebendo a demora na emissão do sinal de
balde cheio, resolveu olhar para o fundo do poço e percebeu os dois meninos
deitados inertes na tabua. Estavam mortos. O laudo pericial constatou que
devido à combustão incompleta do combustível, além da água e gás carbônico foi
liberado um gás extremamente tóxico, o monóxido de carbono (CO). Como é um gás invisível e sem cheiro, não foi
percebido e tomou conta do ambiente onde os garotos se encontravam.  Uma quantidade equivalente a 0,4% no ar em
volume é letal para o ser humano, em um tempo relativamente curto. Esse gás se
combina com a hemoglobina do sangue e esta combinação é extremamente estável.
Devido a esta combinação, os glóbulos vermelhos não podem transportar o
oxigênio e o gás carbônico, e os tecidos deixam de receber o oxigênio. A morte
dos garotos ocorreu por asfixia química. Para se ter uma idéia do potencial
tóxico do gás, se um carro ficar ligado em uma garagem fechada de 4 m de
comprimento, 4 m de largura e 2,5 m de altura, tendo, portanto, um volume de 40
000 litros, à temperatura ambiente e a pressão ao nível do mar, durante
aproximadamente 10 minutos, a quantidade de monóxido de carbono produzido já
atingirá a quantidade letal.”

No
exemplo citado facilmente percebemos que o fato seria atípico por ausência de
previsibilidade objetiva, ou seja, não é exigível do homem médio agir de
maneira diversa (5). Ocorre, porém, que o pai citado era Engenheiro Químico com
especialização em Processos Petroquímicos pela Universidade de Bologna, tendo
conhecimentos mais que suficientes para prever o resultado fatal. Mesmo assim,
segundo a sistemática tradicional o fato seria atípico devido à ausência de
previsibilidade objetiva. Ou seja, quando perguntamos se um homem prudente e de
discernimento, colocado na situação do agente, teria ligado o gerador, a
resposta é positiva. Logo, não existe dever de cuidado necessário objetivamente
previsível.

Como
adverte FÁBIO ROBERTO D’ ÁVILA, “é indubitável a absoluta impropriedade de tais
critérios, em aberrante afronta aos princípios gerais de direito e o tecnicismo
sistemático da legislação repressiva” (6).

Parece
contrário ao senso comum de justiça permitir a quem, devido seu estado pessoal,
tem condições de prever o perigo que se comporte de acordo o dever de prudência
do “homem-médio” que não pode antever o resultado.

Buscando
dar solução a tais casos alguns penalistas procuraram a teoria da imputação
objetiva, que pode ser conceituada como “atribuir a alguém a realização de uma
conduta criadora de um relevante risco juridicamente proibido e a produção de
um resultado jurídico” (7). Dessa forma, não se dá a imputação objetiva do
resultado quando o risco criado é juridicamente permitido, como a ação da
esposa que desejando a morte do marido, sugere que o mesmo peça peixe como
prato principal em um restaurante, esperando que o mesmo se engasgue com um
espinho e morra, o que de fato vem a acontecer. Outro exemplo é o do fabricante
de armas de fogo que cria um risco aceito e permitido pela sociedade, logo a
morte de alguém pela arma é um fato atípico em relação ao mesmo.

O
caso dos meninos na cisterna seria mais bem solucionado com base no que
preceitua CLAUS ROXIN, um dos grandes sistematizadores da teoria da imputação
objetiva. Afirma o penalista que nos crimes culposos deve-se levar em
consideração a capacidade individual do agente apenas na hipótese de ser esta
superior ao padrão objetivo, sendo inferior, mantém-se o padrão estritamente
objetivo, relegando a análise individualizada para o âmbito da culpabilidade
(8). Ou seja, quando não houver previsibilidade objetiva, não devemos concluir
de imediato pela atipicidade da conduta como quer a doutrina tradicional. Antes
devemos verificar se a capacidade pessoal do agente não possibilitaria antever
o resultado danoso.

Dessa
forma, devido o pai dos meninos possuir conhecimentos acima da média, deveria
ser antecipada a análise da previsibilidade subjetiva (que pela doutrina
tradicional seria considerada apenas como requisito da culpabilidade) para não
ser afastada a tipicidade da conduta.

Como
bem leciona MARTINEZ ESCAMILLA, “habrá que incluir en el juicio de adecuación
aquellas circunstancias conocidas o reconocibles por un hombre prudente en el
momento de la acción más todas las circunstancias conocidas o reconocibles por
el autor en base a sus conocimientos excepcionales o al azar” (9).

No
mesmo sentido propugna GÜNTHER JAKOBS que o injusto depende da capacidade do
autor específico em evitar a ação, pois justamente de seus efeitos surge a
concretização do tipo (10). Dessa forma,
se após um forte temporal, dois amigos resolvem fazer um “mutirão” para
consertar as telhas de suas casas, e, se um deles, por já ter trabalhado como
pedreiro, tem conhecimento que os fragmentos das telhas, caso caiam, podem
lesionar um transeunte que esteja até 20 metros da casa, agirá com imprudência
somente este último, não o outro leigo.

A
despeito desse assunto, Claudia López Díaz adverte que quando não se conta com
normas jurídicas ou técnicas que indiquem padrões seguros, deve-se tomar como
modelo a conduta que haveria seguido um homem prudente e diligente, na situação
em que se encontrava o autor. Neste caso, o padrão de comportamento deve
basear-se na conduta que realizaria uma pessoa pertencente ao mesmo âmbito de
relação do autor. Isto significa que não se toma como ponto de referência um
homem qualquer, mas sim um titular de uma arte ou ofício idêntico ao
desempenhado por quem executou a conduta. Por exemplo, se uma empregada
doméstica realiza um comportamento perigoso, as expectativas devem inferir-se
nas condutas gerais que são exigidas a qualquer titular dessa função (11).

É
injusto, no caso de uma pessoa qualificada ou com conhecimentos especiais,
determinar a previsibilidade do resultado segundo uma medida inferior a sua
situação pessoal. Da pessoa capaz de prever a periculosidade de certo
comportamento, deve-se exigir que atue de maneira que tenda a evitar que este
perigo se concretize (12). Dito de outra maneira, a ordem jurídica impõe a
obrigação de respeitar os bens jurídicos de terceiros, de ter cuidado ao
efetuar ações perigosas. Em resumo, de agir com a prudência devida.

No caso citado o pai dos garotos atua culposamente, pois não se
absteve de executar um comportamento proibido que não se encontrava dentro dos
limites do risco permitido.

 

Bibliografia:

BITENCOURT,
Cezar Roberto. Manual de direito penal, Parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

CLAUDIA
LÓPEZ DÍAZ. Introducción a la imputación
objetiva
, Bogotá, Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia
del Derecho, Universidad Externado de Colômbia, 1996.

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de Direito Penal. 1. ed. São
Paulo: Saraiva, 1991. vol. 1

D’ÁVILA,
Fábio Roberto. Crime culposo e a teoria
da imputação objetiva.
1. ed. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais,
2001.

JAKOBS, Günther, apud, D’ÁVILA, Fábio Roberto. Op. cit.

JESUS,
Damásio E. de. Direito Penal. 26. ed.
São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 1.

______.Imputação Objetiva. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002.

MARTÍNEZ ESCAMILLA, Margarita: La imputación objetiva del resultado,
Madrid: Edersa.

POZO, José
Hurtado. Nociones básicas de Derecho
penal.
Disponível em:
http://www.unifr.ch/derechopenal/obras/hurtadoPozo1/nociones2.5.pdf. Acesso
em:13 Abr 2003.

ROXIN,
Claus, apud, D’ÁVILA, Fábio Roberto. Op. cit.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5.
ed. São Paulo: Saraiva, 1984.

 

Notas:

(1) 
Nesse
sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual
de direito penal,
Parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 262;
COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de
Direito Penal.
1. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. vol. 1, p. 86; JESUS,
Damásio de. Direito Penal. 26. ed.
São Paulo: Saraiva, 2003. vol. 1, p. 300 e 301; entre outros.

(2) 
Nesse
sentido: TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios
básicos de Direito Penal.
5. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 301.

(3) 
Nesse
sentido: JESUS, Damásio de. Direito Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
vol. 1, p. 299 e 300.

(4) 
Exemplo
adaptado de um caso verídico citado em sala de aula pelo Desembargador Edson
Smaniotto no Curso Preparatório para
Magistratura e Carreiras Jurídicas
do Instituto dos Magistrados
do Distrito Federal.

(5) 
Não
trataremos do perdão judicial previsto no art. 121, §5º do Código Penal por não
ser objeto deste artigo.

(6) 
D’ÁVILA,
Fábio Roberto. Crime culposo e a teoria da imputação objetiva. 1. ed. São
Paulo: Editora Revista Dos Tribunais, 2001. p. 82.

(7) 
JESUS,
Damásio E. de. Imputação Objetiva. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 34.

(8)  ROXIN, Claus. apud, D’ÁVILA, Fábio
Roberto. Op. cit., p. 95.

(9)  MARTÍNEZ ESCAMILLA, Margarita: La imputación objetiva del resultado,
Madrid: Edersa, p.81.

(10)  JAKOBS,
Günther, apud, D’ÁVILA, Fábio Roberto. Op. cit.,
p. 97.

(11)  CLAUDIA LÓPEZ DÍAZ. Introducción a la imputación objetiva, Bogotá, Centro de
Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia del Derecho, Universidad Externado
de Colômbia, 1996, p. 116 e 117.

(12)  Nesse
sentido, ao citar a doutrina comentada: JOSÉ HURTADO POZO. Nociones básicas de Derecho penal. Disponível em:
http://www.unifr.ch/derechopenal/obras/hurtadoPozo1/nociones2.5.pdf.  Acesso em:13 Abr 2003.


Informações Sobre o Autor

Yuri Santana de Brito Rocha

O autor é Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília.


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