O estupro de vulnerável frente ao Estatuto da Pessoa com Deficiência: uma análise à luz da capacidade civil e dos direitos sexuais

Resumo: Este artigo se propõe a analisar se existe conflito entre o Estatuto da Pessoa Com Deficiência (Lei 13.146/2015), em vigor desde janeiro de 2016, e o artigo 217-A do Código Penal, que tipifica o estupro de vulnerável. Parte-se da ideia de que, enquanto o Estatuto garante, em seu artigo 6º, que a limitação não afeta a plena capacidade civil individual para, entre outros pontos, exercer direitos sexuais e reprodutivos, o dispositivo penal considera como crime ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com alguém que, por enfermidade ou deficiência, não tem o discernimento necessário para consentir. Para tanto, faz-se uma revisão bibliográfica sobre o assunto, trazendo ainda jurisprudência, de modo a corroborar com as discussões. Conclui-se que, de fato, a consciência é elemento preponderante para incorrer ou não em crime, inexistindo contradição entre os dispositivos legais, porém se ressalvam as falhas nesse processo, referentes à determinação da condição de incapacidade relativa.[1]

Palavras-chave: Estatuto da Pessoa Com Deficiência. Capacidade Civil. Direitos Sexuais. Estupro de Vulnerável. Vulnerabilidade.

Abstract: The objective of this paper is to analyze if there is any conflict between the Brazilian People with Disabilities Statute (Law 13.146/2015), valid since January 2016, and the Criminal Code’s 217-A article, which describes the rape of vulnerable persons. We start off by acknowledging that the Statute is clear in its 6th article that the disabilities don’t affect people’s full legal capacity of having sexual and reproductive rights, amongst others, while the criminal code considers having sex or any kind of libidinous act with a disabled person as a crime, due to the lack of necessary understanding to consent the act. In order to reach the purpose of this paper, a literature review was produced, as well as discussed case law on the matter. After all of this, it’s clear that conscience is a keyword to determine whether there is a crime or not, and therefore there isn’t any contradiction between both legislations, but it’s important to mention the various flaws in the process of identifying the existence or not of incapacity.

Keywords: People With Disabilities Statute. Legal Capacity. Sexual Rights. Rape of vulnerable persons. Vulnerability.

Sumário: Introdução. 1. A capacidade civil e a pessoa com deficiência. 2. Estatuto versus nova teoria das incapacidades no CC/2002. 3. O estupro de vulnerável. 4. Capacidade relativa e compatibilidade penal. Conclusão.

Introdução

O Estatuto da Pessoa Com Deficiência (Lei 13.146/2015), em vigor, no Brasil, desde 2 de janeiro de 2016, consolida uma luta cujo fundamento está no reconhecimento da dignidade humana a todos os indivíduos. Definindo pessoa com deficiência como aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, suscetível a ter limitada sua participação plena e efetiva na sociedade diante de uma ou mais barreiras, enfatiza a necessidade de todos serem considerados iguais em sua humanidade, sem discriminações de qualquer natureza.

No plano do direito civil, um dos efeitos práticos da vigência da lei é a mudança substancial do artigo 3º da codificação de 2002: deixam de ser considerados absolutamente incapazes, para os atos da vida civil (como celebrar contratos, matricular-se em cursos ou casar), os portadores de enfermidades ou deficiências mentais, bem como aqueles que, por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. A regra, portanto, é a capacidade, sendo secundariamente possível o reconhecimento de uma incapacidade relativa, com a adoção de mecanismos como a curatela ou a tomada de decisão apoiada para assuntos de cunho meramente patrimonial ou negocial.

No plano existencial, por sua vez, o Estatuto é enfático ao asseverar, em seu artigo 6º, que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, que pode, entre outros aspectos, exercer direitos sexuais, reprodutivos, à família e à convivência familiar, escolher o número de filhos que desejar e possuir igualdade de oportunidades, seja no trabalho ou em qualquer outra área.

No entanto, ainda que tais garantias pareçam estar hoje bem esclarecidas, observa-se que a legislação brasileira, à primeira vista, ainda não conseguiu fazer-se clara quanto a determinados aspectos, tendo que recorrer ao entendimento do judiciário, para solucionar os chamados hard cases, isto é, aqueles casos em que não se pode simplesmente empregar um raciocínio lógico-dedutivo ou subsuntivo. Um deles, que corresponde à inquietação que motivou este trabalho, diz respeito especificamente aos direitos sexuais.

Se, por um lado, o Estatuto enfatiza, em seu artigo 8º, que é dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, entre outros direitos, aquele relativo à sexualidade (adiantado no art. 6º), o Código Penal traz, no § 1º do artigo 217-A, um texto normativo aparentemente contraditório, tendo em vista que classifica como estupro de vulnerável ter conjunção carnal ou a prática de ato libidinoso com “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” (BRASIL, 1940).

Diante de tal margem de dúvida, questiona-se: há como conciliar o direito ao próprio corpo/à sexualidade das pessoas com deficiência à legalidade penal? Em que medida se pode verificar/dimensionar que não há discernimento necessário para a prática de atos existenciais, quando o Estatuto e o Código Civil devolvem ao indivíduo com limitações intelectuais o controle, ainda que relativo, sobre sua vida civil? O Código Penal não estaria reafirmando o instituto da incapacidade absoluta, ao presumir que alguém com déficit intelectual não seria capaz de discernir o melhor para si? Ou estaria o Estatuto, ao buscar uma igualdade formal, ignorando determinadas situações, em que, de fato, pode ser considerado crime ter relações sexuais com alguém com deficiência?

Não se busca, neste artigo, chegar a respostas definitivas, mas, sim, suscitar interpretações e possibilidades, diante da pluralidade semântica da lei.

1 A capacidade civil e a pessoa com deficiência

O Código Civil de 2002 traz, em seu artigo primeiro, a declaração de que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (BRASIL, 2002). A essa capacidade, inerente a todo ser humano, dá-se a denominação de capacidade de direito ou de gozo. Ao lado desta, para compor a capacidade civil plena, existe ainda outro tipo, a capacidade de fato ou de exercício, inerente apenas a algumas pessoas, excluindo-se aqueles indivíduos descritos no Código como incapazes (TARTUCE, 2016).

Haja vista toda pessoa ter capacidade de gozo para direitos e deveres na ordem civil, entende-se por incapacidade a restrição para o exercício, por si, de atos da vida civil. Assim, estariam os incapazes limitados para atividades como a compra e venda, o casamento, o ato de registro em cartório e demais situações ordinárias do dia a dia, a depender do tipo de incapacidade que lhes é imposta, ou melhor, se está em pauta a absoluta ou a relativa.

Conforme se verá detalhadamente no tópico subsequente, o Código Civil considera atualmente, como absolutamente incapazes, apenas os menores de 16 anos, sendo, por consequência, absoluta[2] a sua limitação ao exercício, por si só, de atos da vida civil, os quais somente poderão ser realizados por meio de representante, que os substituirá. Essa limitação, contudo, não se restringe a aspectos patrimoniais, já que também existe ao se requerer, por exemplo, a expedição de uma simples carteira de identidade. Já a incapacidade relativa decorre de uma redução relativa da autonomia, aqui entendida como a liberdade de tomar as próprias decisões, com independência. Do ponto de vista patrimonial/negocial, ao contrário do absolutamente incapaz, não há o instituto da representação, mas da assistência, tendo em vista a restrição da capacidade não ser plena (GONÇALVES, 2012). Assegura-se, porém, a referida autodeterminação nos demais assuntos.

Historicamente, a sociedade sempre observou as pessoas com deficiência, sobretudo mental, intelectual e sensorial, como pessoas incapazes. Tal perspectiva encontra reflexo no Código Civil de 1916, que afirmava serem absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, entre outros, os loucos de todo o gênero e os surdos mudos que não puderem exprimir sua vontade, nos termos empregados por seu artigo 5º. Por sua vez, mesmo o Código Civil de 2002, como se verá adiante, dava prosseguimento à associação das deficiências intelectuais com a incapacidade absoluta.

Cabe ressaltar, todavia, que os dois códigos não trataram a questão do mesmo modo, e isso se deve, em grande parte, à luta crescente, nas últimas décadas, das pessoas com limitações. Assim, frente às políticas de reconhecimento que deram maior visibilidade às demandas sociais, notam-se, por exemplo, mudanças claras no texto normativo: enquanto o CC/1916 falava nos mencionados loucos de todo gênero (reflexo de um pensamento carregado de noções pré-concebidas, tendo em vista a falta de conhecimento, à época, sobre o tema), o segundo, de 2002, discorre sobre aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil. Ameniza-se, pois, a carga pejorativa pré-existente.

De qualquer modo, apesar dos avanços, reforça-se que o Código de 2002 continuou presumindo, em seu texto original, que a pessoa com tal deficiência seria absolutamente incapaz, ainda que essa compreensão já fosse questionada antes mesmo da vigência do CC. Em 2000, começou a ser discutido, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 3638/00, de autoria do deputado Paulo Paim, buscando instituir o Estatuto do Portador de Necessidades Especiais. Tal projeto, contudo, não chegou a ser aprovado em comissão especial, pois foi apensado a outra proposta, o PL 7699/06, também de autoria de Paulo Paim (esse último projeto viria a se transformar, no dia 06 de julho de 2015, na Lei Ordinária nº 13.146/2015, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, popularmente conhecida como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, aqui trabalhado).

Marco fundamental ocorre, porém, em março de 2007, com a Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em conjunto com seu protocolo facultativo, em Nova Iorque. Tal documento foi aprovado pelo Estado brasileiro através do Decreto 186/2008, de julho de 2008, com quórum qualificado de três quintos, em dois turnos, nas duas casas do Congresso Nacional, o que, lembra Menezes (2015), fez com que o conteúdo da Convenção alcançasse a hierarquia de emenda constitucional, vigente já em agosto do mesmo ano. Um posterior decreto (nº 6.949), de agosto de 2009, confirma a aprovação do texto anterior, garante sua execução integral e assegura que qualquer modificação no texto normativo deverá ser submetida à aprovação do Congresso, cumprindo, portanto, o rito de ratificação dos tratados internacionais no país (MENEZES, 2015).

Não restam dúvidas de que isso significou um grande avanço para os direitos das pessoas com deficiência. Ficaram estabelecidos, por exemplo, direitos nos âmbitos do mercado de trabalho, da educação, da saúde e da acessibilidade. Desde então, mudanças importantes continuaram a ser observadas, particularmente no léxico empregado ao se referir a esse grupo social. Por exemplo, com a vigência da contemporânea Lei 12.015/2009, que veio instituir, no Código Penal, entre outros pontos, o estupro de vulnerável (de que se falará adiante), deixou-se de usar, por exemplo, os termos alienado ou débil mental para qualificar os indivíduos com restrições. Com o Estatuto de 2015, enfim, em vigor desde janeiro de 2016, coroou-se, de forma definitiva, o uso da expressão pessoa com deficiência – emprestando-se da definição da Convenção e focando a qualidade de pessoa e sua dignidade –, de modo que a deficiência passa a ser lida como uma condição, em detrimento do vocábulo deficiente ou portador de deficiência, como se fosse algo acessório.

Sobre a questão da igualdade e da não discriminação, o Estatuto, no artigo 6º, inciso II, afirma que a deficiência não afeta a plena capacidade da pessoa para exercer direitos sexuais e reprodutivos. O cuidado que o legislador teve ao escrever tal garantia encontra respaldo tanto na situação fática, quanto na própria Convenção, que, além das exigências apresentadas, observa que os Estados-partes devem-se comprometer com a modificação ou revogação de legislações que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência. No Brasil, isso se reflete na alteração de dispositivos do Código Civil de 2002, em vigor desde janeiro de 2016, a ser detalhada no tópico a seguir.

2 Estatuto versus nova teoria das incapacidades no CC/2002

O art. 3º do Código Civil de 2002, quando de sua publicação, considerava como absolutamente incapazes – isto é, aqueles que não poderiam exercer pessoalmente os atos da vida civil e, sob o instrumento da interdição, precisariam da figura do representante – os a) menores de dezesseis anos; b) os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a prática desses atos; c) e os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir sua vontade. Por sua vez, enquadravam-se como relativamente incapazes – aqueles que teriam certa capacidade, ainda que limitada – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tivessem o discernimento reduzido; além dos excepcionais, sem desenvolvimento mental (segundo a própria redação do artigo).

Conforme adiantado, a partir de janeiro de 2016, contudo, com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), o Código Civil é alterado, de modo que a incapacidade absoluta fica restrita somente aos menores de dezesseis anos. Por outro lado, sob a nova leitura do artigo 4º do CC/2002, são incapazes relativamente os que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, além dos maiores de 16 e menores de 18, dos ébrios habituais, dos viciados em tóxico e dos pródigos, que já figuravam anteriormente.

Complementarmente, acaba-se o instituto da “interdição” no que diz respeito aos aspectos patrimoniais/negociais e passa-se a considerar, como nomenclatura, a curatela[3], fundada no princípio da assistência – e não mais da substituição/representação – para o exercício dos atos da vida civil. Devolve-se, pois, autonomia àqueles com limitações de ordens diversas e abre-se espaço para o novo instituto da tomada de decisão apoiada (com a figura de duas pessoas de confiança sendo auxiliares em assuntos financeiros/contratuais), reduzindo o anterior peso de ser interditado.

A revolução na teoria das incapacidades causada por tal medida, tal como adjetivam autores como Flávio Tartuce (2016), é bastante visível, já que isso significa que as pessoas com deficiência são, por regra, plenamente capazes, “o que visa a sua total inclusão social, em prol de sua dignidade. Valorizando-se a dignidade-liberdade, deixa-se de lado a dignidade-vulnerabilidade” (TARTUCE, 2016, p. 129, grifos do autor). O instituto da curatela e, portanto, a presença de um assistente seriam possibilidades secundárias, restritas ao universo patrimonial/negocial, e não afetariam a plena capacidade desses indivíduos, que poderiam casar e constituir união estável, exercer direitos sexuais e reprodutivos, exercer direitos à família e à convivência familiar e ter igualdade de oportunidades em assuntos como guarda e adoção, tal como se propõe discutir neste artigo.

Não obstante, não é unânime a visão de que o Estatuto representa avanços. Kümpel e Borgarelli (2015) afirmam que é inconcebível o fato de que os “portadores de deficiência mental passam a ter plena capacidade […]”. Pedem, então, que se imaginem um indivíduo “deficiente e que tenha idade mental calculada em 10 anos. Ele, sendo faticamente maior de 18 anos, será tão ou mais capaz que outro indivíduo, não deficiente, de 17 anos” (KÜMPEL; BORGARELLI, 2015). Nessa visão, acreditam que tais indivíduos ficam desprotegidos pelo ordenamento brasileiro, por julgarem que não têm poder de se autodeterminar.

Semelhante opinião tem José Fernando Simão (2015), que, interpretando o rol de incapazes como algo necessário à proteção dessas pessoas, critica o status de capacidade daqueles com deficiência mental (que terão de exercer pessoalmente os atos da vida civil e possuirão contra si prazos decadenciais para exigir direitos, quando na qualidade de credor), condena a relativa capacidade das pessoas em coma (como poderiam exprimir vontade?) e problematiza a falta de tutela necessária do Estado, que teria deixado os antigos absolutamente incapazes à própria sorte, sob a condição de capazes.

3 O estupro de vulnerável

Os conflitos aparentes entre o direito ao próprio corpo (reforçado com o Estatuto da Pessoa Com Deficiência) e o Código Penal começam a aparecer quando analisado o artigo 217-A do CP, que trata do estupro de vulnerável.

Esse tipo penal surge, no CP, através da Lei 12.015, de agosto de 2009, mesma legislação que ampliou o conceito de estupro, desde então não mais dependente de conjunção carnal vaginal e abrangendo qualquer ato libidinoso praticado mediante grave ameaça ou violência (COSTA, 2012).

Sua vigência revogou o artigo 224º da codificação penal, segundo o qual havia uma presunção de violência para: a) menores de quatorze anos; b) vítimas alienadas ou débeis mentais (nesses termos), conhecendo o agente essa circunstância; c) quem não pudesse, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

Muito se discutiu se essa presunção era absoluta ou relativa[4], o que resultava no fato de que, a depender do magistrado, para meninas da mesma idade, por exemplo, poderia haver decisões completamente distintas, ponderando-se a existência de experiência sexual anterior e, em certo sentido, a consequente consciência das implicações da prática.

Em substituição ao dispositivo eliminado, o referido 217-A estabelece como estupro de vulnerável (vocábulo antes não empregado) ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. A doutrina majoritária, tal como Rogério Greco (2015), Cleber Masson (2014) e Fernando Capez (2012), entende tal texto normativo como absoluto[5], isto é, independentemente do passado do(a) adolescente, trata-se de estupro a prática de sexo, em qualquer de suas modalidades, com pessoas nessa faixa etária. Apesar disso, há ainda divergência doutrinária[6].

É o parágrafo único do mesmo dispositivo, todavia, que estende a classificação ao ponto de interesse deste artigo. Afirma que incorre na mesma pena (oito a 15 anos de reclusão) “quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” (BRASIL, 1940). Nesse sentido, além da vulnerabilidade referente aos menores de 14 anos, há também aquela no que toca às pessoas que, por causa transitória ou permanente (parafraseando expressão do CC/2002), encontram-se desprotegidas.

A questão que se coloca, então, diz respeito ao alcance dessa limitação. Se, por um lado, o novo entendimento do Código Civil (introduzido pelo Estatuto da Pessoa Com Deficiência) vê essas pessoas, em regra, como plenamente capazes, e o Estatuto descreve uma série de direitos que não podem ser negados às pessoas com limitações, como conciliar, por outro lado, a autonomia dada por esses dispositivos com a restrição prevista penalmente quanto à prática sexual? É o que se passa a estudar no próximo item.

4 Capacidade relativa e compatibilidade penal

Embora, em princípio, pareça haver confusão/contradição entre as diferentes ordens normativas, uma análise mais aprofundada dos dispositivos elimina quaisquer dúvidas, ainda que, como se discutirá mais à frente, surjam novos inconvenientes a serem debatidos.

Por mais que os artigos 6º e 8º do Estatuto da Pessoa Com Deficiência garantam direitos subjetivos, tais como aqueles referentes à sexualidade e à reprodução, deve-se ter em mente que a mesma codificação tem, como uma de suas bandeiras, a proteção a esse público, responsabilidade esta bem discriminada em seu artigo 5º (portanto, anterior à apresentação dos direitos assegurados). Diz o texto normativo que “a pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante” (BRASIL, 2015, grifo nosso).

Fica bastante clara uma correspondência com o artigo 217-A do Código Penal, que institui a figura do vulnerável, isto é, aquele que, “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” (BRASIL, 1940). Tutela-se, portanto, a defesa da integridade e da dignidade daqueles em situação de vulnerabilidade. Deve-se, assim, avaliar caso a caso, não sendo a existência de uma deficiência suficiente para tipificar uma conduta sexual como crime, evitando que se restrinjam os direitos sexuais e ao próprio corpo desses indivíduos.

Isso não significa, porém, que o CP produz interferências nos direitos assegurados aos indivíduos. O exercício dessas garantias pressupõe a capacidade para entender a implicação dos atos praticados, o que não ocorre, a priori, com aqueles cuja consciência está afetada por alguma enfermidade, deficiência intelectual ou, nos dizeres do CC/2002, causa transitória ou permanente limitadora.

É certo que, quando tais casos chegam a juízo, o entendimento do que vem a ser o incapaz deverá ser apreciado pelo magistrado, tendo em vista a impossibilidade de mera análise subsuntiva/lógico-dedutiva dos enunciados jurídicos. A jurisprudência demonstra que são várias as interpretações, como as três aqui selecionadas, como exemplos ilustrativos.

A primeira delas trata de caso ocorrido no Rio Grande do Sul, comarca de Arvorezinha (Apelação Crime nº 70050841105, TJ-RS), tratando-se de uma apelação criminal por parte de homem de 40 anos, condenado a oito anos de reclusão por estupro de uma adolescente de 17 anos, alegadamente com deficiência intelectual. No relatório apresentado pelo relator, retoma-se o texto da denúncia elaborada pelo Ministério Público:

“No período compreendido entre os anos de 2008 e 2010, o denunciado M. P. S., em várias oportunidades e em continuidade delitiva, constrangeu, mediante violência legalmente presumida e grave ameaça real, a vítima M. J., de 17 anos e alienada mental (parecer psicológico das fls. 19/20), a praticar consigo conjunção carnal.

Na ocasião, o denunciado, aproveitando-se do fato de ser vizinho da família da vítima, e valendo-se da debilidade mental e inocência desta – circunstâncias que dificultaram que oferecesse resistência à investida criminosa, convenceu a vítima a manter consigo relações sexuais. A fim de garantir o sigilo do ato criminoso, o denunciado dava dinheiro à vítima, além de ameaçar esta de que mataria sua família acaso contasse o ocorrido para alguém”. (Apelação criminal nº 70050841105-RS)

Na avaliação e voto do relator, no entanto, afirma-se que, para que seja comprovado o estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A aqui discutido, é preciso que fique comprovada a falta de discernimento durante a instrução processual, o que não teria acontecido, “pois os dois únicos documentos juntados aos autos não são hábeis para atestar a deficiência da vítima”. Discorre o magistrado que

o parecer psicológico de fls. 22/23 é pobre, feito em uma única entrevista, realizado a partir do que falou a adolescente. Tal laudo não se presta a comprovar a alienação mental, pois é ato médico e deve, para comprovação legal, ser realizado na forma descrita em lei (no caso, no Código de Processo Penal).

O auto de exame de corpo de delito de fl.14, da mesma forma, é insuficiente para a comprovação da debilidade mental, pois nada explicita sobre como chegou a tal conclusão, apenas afirma observar ‘sinais de alienação, como debilidade mental’ e ‘que a periciada apresenta desenvolvimento mental inferior a sua idade cronológica’.

Não foi realizada durante a instrução processual nenhuma perícia para comprovar a alienação da vítima, baseando-se o juiz apenas nos dois documentos juntados no inquérito para reconhecer a deficiência da ofendida e condenar o réu como incurso no §1º do artigo 217-A do Código Penal.

Destarte, não está demonstrada deficiência mental que impeça a vítima de possuir o necessário discernimento para a prática do ato, na forma prevista no artigo em que o réu foi condenado”. (Apelação criminal nº 70050841105-RS, grifos nossos)

O voto do relator, pela absolvição do réu, foi acompanhado por unanimidade pelos desembargadores da Sexta Câmara Criminal do TJ do Estado.

O segundo caso demonstrado é mais recente, julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Apelação nº 0005797-26.2014.8.19.0045), em dezembro de 2015. Trata-se igualmente de uma apelação criminal, movida pela defesa de um indivíduo condenado por estupro de uma adolescente, à época com 16 anos, também tida por vulnerável, em virtude de deficiência mental. Segundo o voto do relator, não ficou caracterizado o tipo penal, por uma série de razões, a saber:

As palavras da ofendida, não deixam claro que não tivesse o necessário discernimento para a prática de atos sexuais, tampouco que não conseguisse expressar o seu consentimento. […] Não foi realizada durante a instrução processual nenhuma perícia para comprovar a ausência do necessário discernimento, baseando-se a juíza apenas nos relatórios juntados no inquérito para condenar o réu como incurso no § 1º do artigo 217-A do Código Penal. O relatório informativo do CAPSi (pastas 23/25) é pobre, realizado a partir do que falou a adolescente. Tal documento não se presta a comprovar a ‘enfermidade ou deficiência mental’, pois é ato médico e deve, para comprovação legal, ser realizado na forma descrita em lei. Malgrado o AECD carreado aos autos (pastas 32/33), tenha constatado a presença de vestígios de desvirginamento recente, não logrou demonstrar a ausência do necessário discernimento da adolescente para consentir com a prática sexual, decorrente da impossibilidade de oferecer resistência (pelo acometimento de transtornos psiquiátricos). Não se pode olvidar também que a prova oral não é conclusiva a esse respeito. Conquanto os depoimentos das testemunhas de acusação sugiram que a ofendida seria incapaz de oferecer resistência às investidas do acusado, lamentavelmente não foi possível averiguar sinais sobre sua condição mental em juízo. Assim, cotejando os elementos acima expostos, tem se que a conduta imputada ao apelante não se enquadra nas hipóteses de vulnerabilidade previstas no artigo 217-A e § 1º do Código Penal”. (Apelação criminal nº 0005797-26.2014.8.19.0045, grifos nossos)

É mister observar, nesta apelação, que nem mesmo os depoimentos da vítima e das testemunhas foram capazes de ser elementos suficientes para uma possível reforço da condenação.

A terceira narrativa vem do Tribunal de Justiça de Rondônia, julgada em maio de 2015 (Apelação nº 000089628.2012.822.0004), tratando-se de caso de violência contra mulher com problemas mentais. Embora apresente as mesmas características, tais como o abuso sexual e a falta de laudos médicos suficientes para comprovar a deficiência intelectual, o julgamento, neste caso, rejeitou a apelação do réu e manteve a condenação inicial de nove anos e quatro meses de reclusão, tal como se segue:

“Não merece prosperar a preliminar arguida pelo apelante, uma vez que, muito embora tenha o legislador exigido a comprovação durante a instrução processual de que a vítima não tinha o discernimento necessário, tal exigência foi sanada por meio dos depoimentos das testemunhas arroladas, pela confissão do réu na fase inquisitiva, bem como pelo laudo de exame de corpo de delito de fls. 18/19.

Importa ressaltar que, inclusive, as testemunhas de defesa, Welen Scrofani dos Santos (fls. 65) e Inês Coraleski Aneves (fls. 66), ouvidas na fase judicial, afirmaram que a vítima possui problemas mentais visíveis.

No mesmo sentido é depoimento do Policial Militar Josivaldo Carlos de Oliveira, condutor do flagrante, afirmando que a deficiência mental da vítima é visível.

Embora a vítima não tenha sido submetida à perícia para apurar seu grau de deficiência mental, a prova dos autos é inequívoca no sentido de demonstrar sua situação de vulnerabilidade, por ser portadora de retardo mental, cuja ausência de discernimento demonstra que ela não tinha condições de oferecer resistência ao ato.

Sendo assim, se as testemunhas ouvidas no processo e o próprio apelante, ainda que na fase inquisitiva, são uníssonos em reconhecer que a ofendida apresenta retardo mental, não há por que se exigir laudo psiquiátrico para comprovação da falta de discernimento, estando plenamente configurado o requisito previsto no § 1º do art. 217ª do Código Penal, que contém o tipo penal do estupro de vulnerável”. (Apelação criminal nº 000089628.2012.822.0004, grifos nossos)

Vê-se, portanto, que o judiciário exerce papel central na apuração e determinação das incapacidades e, portanto, na defesa da integridade e dignidade das pessoas em situação de vulnerabilidade. No entanto, algumas questões se fazem bastante prementes, a começar pelo que se refere ao laudo psicológico, descartado em dois dos três casos.

Dias e Joaquim (2013) observam que, sempre que o juiz não tiver conhecimento suficiente sobre a demanda em questão, pode-se recorrer a técnicos e especialistas, como os psicólogos, para elaboração de uma perícia a atestar a condição da vítima. O instrumento de que dispõem os profissionais da psicologia são entrevistas, técnicas de exame e investigação, variando conforme a natureza e a gravidade do caso, a partir dos quais se elabora um laudo pericial com um parecer indicativo ou conclusivo (MARQUES, 2015), servindo de subsídio ao magistrado, mas sem poder de obrigá-lo a interpretar da mesma forma. Não tendo o relatório “a informação de que o juiz necessita, este poderá dispensá-lo” (DIAS; JOAQUIM, 2013, p. 302).

No mesmo sentido, o depoimento das pessoas com deficiência de ordem intelectual ou mental pode ser bastante prejudicado, no sentido de que, conforme os últimos autores referidos, a) as vítimas podem não ter consciência de que sofreram qualquer tipo de abuso; b) são facilmente manipuláveis, podendo dizer o que terceiros os aconselhe a afirmar, fazendo falsas declarações; c) “é comum que os interrogadores policiais não tenham qualquer tipo de treinamento para questionar esse tipo de pessoa” (DIAS; JOAQUIM, 2013, p. 298).

Acaba ocorrendo, assim, que a palavra da vítima tende a sofrer descrédito, do mesmo modo como a das testemunhas, pelo fato de que estas últimas, em geral, não presenciaram o abuso sexual e igualmente podem ter interesses alheios à apuração correta do caso. Assim, resumem os pesquisadores que o judiciário encontra um impasse de repercussões tremendas, pois, “ao poder basear-se apenas em dados subjetivos, pode não chegar ao que realmente ocorreu. Afinal, mesmo nos casos em que a vítima está disposta a denunciar seu agressor, sua palavra pode estar viciada” (p. 292), somando-se a tal contexto a falta de preparo adequado de determinadas equipes de investigação.

Por outro olhar, sabe-se, por exemplo, que boa parte das demandas potencialmente jurídicas não chega a se perfazer como tais, tendo em vista que o acesso à justiça é muitas vezes dificultado, seja por limitações de ordem estrutural (as violações são, muitas vezes, mal apuradas pelos órgãos competentes) ou cultural (distanciadas da justiça formal, a população resolve os impasses por si). Assim, como determinar o nível de consciência de um indivíduo, antes de cometido o ato sexual? De que forma se pode pretender um relacionamento amoroso com uma pessoa, sem que seja acusado posteriormente de estupro de vulnerável? Abre-se, pois, espaço para situações em que a vítima, fora de sua consciência, tome a iniciativa ou insinue desejo em efetivar uma relação sexual, mas, aos olhos da justiça, constate-se uma vulnerabilidade e, por conseguinte, crime de estupro.

Nesse contexto, avalia-se que, no caso das pessoas com deficiência, deve-se atentar para a relatividade de sua vulnerabilidade, tal como esclarece Cleber Couto (2015).

“A vulnerabilidade do portador de enfermidade ou deficiência mental que, em razão da patologia, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, deve ser lida no sentido de que o crime só ocorrerá se a patologia que acomete a vítima lhe retirar o discernimento para a relação sexual […], no sentido de incapacidade biopsíquica de entender o ato sexual e de se autorreger com base nesse entendimento. Em outras palavras, crime só ocorrerá se provada a imaturidade biopsicoética, que afeta a livre determinação no plano das atividades sexuais. E não basta isso, o crime só ocorrerá quando o agente conhecer e se aproveitar dessa situação […]. Afinal, não se pode tolher daquele que possua uma enfermidade ou deficiência mental, o direito de amar e ter uma vida sexual. Assim, inclusive, prevê o Estatuto da Pessoa com Deficiência (art. 6º II da Lei 13146/2015)”. (COUTO, 2015)

Entretanto, a comprovação da falta de discernimento decorrente da deficiência, no entendimento proposto neste artigo, torna-se um parâmetro frágil e suscetível de visões deveras distintas: dos magistrados que avaliarão o caso, bem como do próprio amante ou agressor, a depender de como se enxerga o fato concreto.

Do ponto de vista dos juízes, a jurisprudência apresentada repercute, por si só, as soluções não coincidentes para casos muito semelhantes. Em dois casos, depoimentos das vítimas e das testemunhas, bem como laudos, não são suficientes; em outro, sequer se exige prova médica/psicológica. Por outra perspectiva, há que se ressaltar a problemática valorativa envolvida na interpretação judicial, o que conduz – como a história brasileira já demonstrou em inúmeras ocasiões – a sentenças que refletem bem mais um pensamento individual do magistrado, do que um parecer voltado a alcançar um ideal de justiça, tal como busca o Direito. Nesse diapasão, não raramente são tomadas decisões com base em pensamentos sexistas, que tendem a culpar a vítima por despertar a lascívia masculina, quando, em primeiro lugar, dever-se-ia defender o direito à integridade e à liberdade sexual. Não surpreende que haja, destarte, processos que sejam resolvidos em favor do agressor, por desmerecerem a avaliação psicológica da vítima e a versão por ela relatada.

Pela óptica dos praticantes dos atos sexuais, por sua vez, a segurança jurídica também não é facilmente alcançada, haja vista que se pode alegar o desconhecimento da condição limitada do(a) parceiro(a), o que é bastante possível, ainda que seja reiterado jurisprudencialmente, conforme citação anterior, que o conhecimento prévio desse estado seja agravante na qualificação criminal.

Enfim, não menos importante, abre-se espaço para mais um elemento de conflito, ao se ressaltar que, no processo penal, o ônus da prova cabe à acusação, tendo em vista o princípio constitucional da presunção de inocência, claramente exposto no inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988). Nesse sentido, não se pode tratar o acusado/o réu como se fosse o autor definitivo do ato ilícito, sob pena de violar um princípio constitucional.

Observam-se, portanto, no diálogo entre as duas codificações, pontos de encontro, mas igualmente perspectivas que se mostram frágeis, por dependerem da ponderação humana sobre assuntos não consensuais e, sobretudo, de arcabouços culturais e axiológicos bastante diversos, refletindo a complexidade das relações sociais.

Conclusão

Diante dos argumentos apresentados, é possível assegurar que não há desacordo entre as previsões normativas do artigo 217-A do Código Penal, do atual Código Civil ou mesmo da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Pelo contrário, a tipificação estupro de vulnerável, tal como busca o próprio Estatuto, tem como objetivo a proteção contra violências que afetem a liberdade sexual das pessoas com deficiência, que, de modo algum, poderiam estar desamparadas nesse sentido. Assim, o conflito pensado inicialmente se mostra apenas aparente.

Entretanto, dada a redação do parágrafo único do artigo 217-A, permanece a vulnerabilidade das pessoas com deficiência submetida à determinação/interpretação autêntica/em juízo, só havendo vulnerabilidade absoluta em razão da idade, como demonstram a jurisprudência e a doutrina majoritária. Desse modo, ainda que tal concepção seja positiva (uma possível visão absoluta é incabível e não poderia abarcar todas as situações restritivas, trazendo prejuízos como a negação ao direito à sexualidade e ao próprio corpo àqueles cujo discernimento está presente), corre-se o risco de se cometerem as mesmas arbitrariedades, quando vigente a violência presumida contra os menores de quatorze anos, previstas no revogado artigo 224 do Código Penal (em que a violência era relativizada/amenizada/banalizada em função do passado sexual da vítima ou de uma genérica “falta de inocência”).

Como visto nas decisões judiciais apresentadas neste trabalho, a determinação da vulnerabilidade, feita a critério do próprio judiciário, nem sempre se mostra coerente. Em alguns casos, nem mesmo o laudo realizado pela equipe multidisciplinar é prova suficiente para configurar a falta de discernimento, em razão de sua natureza não vinculante. Desse modo, pode-se falar, em primeiro lugar, em discricionariedade do juiz e em certa insegurança jurídica.

A vítima do estupro de vulnerável, quando pessoa com deficiência ou enferma, torna-se também parte de um processo degradante, em que precisa, ela mesma, provar sua vulnerabilidade, muitas vezes estando fadada ao insucesso, mesmo a partir de depoimentos testemunhais e pareceres médicos ou dos órgãos policiais. Não há dúvida de que tal situação acarreta, de certo modo, o desestímulo em buscar direitos perante os órgãos de justiça, culminando, consequentemente, em ausência de punição e abusos contínuos.

Por outro lado, reforça-se que é necessário zelar sempre pelo princípio da presunção da inocência e garantir os direitos à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal. Há, porém, que se problematizar continuamente a questão da discricionariedade perante as provas apresentadas em juízo, que já são de difícil obtenção, em razão da própria peculiaridade do estupro de vulnerável. Entende-se que seja necessário aperfeiçoar esses instrumentos comprobatórios/indicativos/subsidiários à decisão do magistrado, seja através de treinamentos específicos para os profissionais da psicologia jurídica ou do campo pericial, seja através de um diálogo maior entre juízes e as demais equipes multiprofissionais, incentivando a ideia de que o Direito não pode ser visto como autopoiético, isolado e autossuficiente, mas como uma área que necessita de interlocuções interdisciplinares, sobretudo em casos de gravidade e repercussão preponderantes, como o estupro de vulnerável.

 

Referências
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TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.1: Lei de Introdução e Parte Geral. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
 
Notas
[1] Trabalho orientado pela Profa. Caroline Sátiro de Holanda. Mestra em Direito Constitucional, professora da graduação em Direito da Universidade Federal da Paraíba e da Unifacisa Centro Universitário.

[2] Parte da doutrina fala, todavia, que determinados atos realizados por menores de 16 anos, mesmo assim, podem ter efeitos. Para Flávio Tartuce (2016), a vontade dos impúberes é “juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento suficiente para tanto” (p. 131), como em um contrato de compra de bem de consumo, havendo boa-fé dos envolvidos, ou na expressão de seu desejo em casos de guarda ou adoção.

[3] Vale ressaltar, todavia, que a vigência do Novo Código de Processo Civil, a partir de março de 2016, retomou o termo interdição, necessitando o ordenamento jurídico de nova norma para esclarecer a questão (TARTUCE, 2016).

[4] Costa (2012), fazendo um apanhado histórico, observa que havia duas correntes principais: uma, que chama de conservadora, via o caráter absoluto da presunção de violência em virtude da falta de discernimento ocasionada pela idade, “ingenuidade e inocência” (p. 17), além da deficiência. Uma segunda corrente, denominada como moderna, entendia o caráter relativo da presunção, pois o dispositivo fora criado “na tentativa de proteger [apenas] aqueles que, por sua tenra idade, não compreendiam os atos sexuais, impossibilitando, portanto, de emitir consentimento válido” (p. 19).

[5] Para Masson (2014), “a escolha é objetiva, razão pela qual não há espaço para discutir eventual possibilidade de afastar determinadas pessoas, menores de 14 anos, da definição de vulneráveis, em decorrência de questões ligadas à educação, ao passado repleto de promiscuidade ou ao estilo de vida” (p. 126). Para Greco (2015), “o tipo [pós Lei 12.015] não está presumindo nada, ou seja, está tão somente proibindo que alguém tenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de 14 anos, bem como com aqueles mencionados no §1º do art. 217-A do Código Penal” (p. 541). Capez (2012) tem o mesmo pensamento, não havendo mais que se falar em presunção de violência, e sim na vulnerabilidade, sendo vulnerável “qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc” (CAPEZ, 2012, p. 64).

[6] Um dos representantes da visão contrária é Guilherme de Souza Nucci, para quem “o nascimento do tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência” (NUCCI, 2009 apud GRECO, 2015, p. 541). Pergunta-se se será possível considerar a relativa vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização para a prática do ato sexual, e responde que essa é a posição que lhe parece mais acertada.


Informações Sobre os Autores

Tássio José Ponce de Leon Aguiar

Acadêmico de Direito na Universidade Federal da Paraíba

Thamirys Pereira Soares da Silva

Acadêmica de Direito na Universidade Federal da Paraíba


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