O Princípio da Intervenção Mínima na ótica da Ciência Total do Direito Penal

Resumo: o presente artigo tem por base um dos princípios fundamentais do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito: o princípio da intervenção mínima. Sendo este entendido, em linhas básicas, que o Direito Penal só deve intervir na sociedade quando os demais ramos do direito fracassarem na tutela de determinado bem jurídico. Por isso se fala que o Direito Penal deve se manter subsidiário e fragmentário. Contudo, buscamos fazer essa análise não só do ponto de vista do Direito Penal, mas na ótica da Ciência Total do Direito Penal, isto é, do Direito Penal, da criminologia e da política criminal.


Palavras-chave: Princípio. Intervenção Mínima. Direito Penal. Política Criminal. Criminologia.


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Abstract: this article is based on a fundamental principle of criminal law in a democratic state: the principle of minimum intervention. This being understood, at baseline, the criminal law should only intervene in society when others fail branches of law in the protection of a good law. So it comes that the criminal law should remain subsidiary and fragmentary. Nevertheless, we seek to do this analysis not only from the standpoint of criminal law, but from the perspective of Science Total Criminal Law, that is, criminal law, criminology and criminal policy.


Keywords: Principle. Minimum Intervention. Criminal Law. Criminal Policy. Criminology.


Sumário: 1. A Ciência Total do Direito Penal. 1.1 A Criminologia; 1.2 A Política Criminal; 1.3 A Dogmática Penal; 2. O Princípio da Intervenção Mínima na ótica da Ciência Total do Direito Penal. 3. Outras Questões Relevantes: 3.1 Intervenção mínima e contravenções penais; 3.2 Princípio da intervenção mínima e o direito penal mínimo: a descriminalização, a despenalização e a diversificação; 3.3 Princípio da intervenção mínima e o combate diário contra os meios massivos de comunicação. Bibliografia.


1. A CIÊNCIA TOTAL DO DIREITO PENAL


O professor Alberto Silva Franco (2001, p. 13) asseverou “no fundo, com uma maioria nas Casas do Congresso e um Diário Oficial (…) é sempre possível o Poder Executivo, tangenciar os princípios da legalidade e da exclusiva proteção de bens jurídicos e apontar o Direito Penal para o equacionamento de todo e qualquer conflito social, transformando-o num expediente corriqueiro, de uso comum”.


Quando o aludido autor tece críticas à utilização corriqueira do Direito Penal para a solução de qualquer problema social, busca demonstrar a falta de preocupação do legislador na análise de postulados básicos de política criminal no momento da tipificação de determinadas condutas como criminosas. Comumente, isso se dá, em especial, pela inflação da mídia, e a moda do momento: a cobertura policial (fashion of the moment: police coverage), modismo este que de forma sórdida, pela busca da tão sonhada audiência televisava, encontra ambiente propício para inflar a população que clama por justiça e, que, confunde justiça (aplicação rápida e eficaz da lei penal) com expansão e recrudescimento do Direito Penal (criação de crimes inúteis e endurecimento das penas etc.), e, é claro, para impulsionar o legislador a mostrar serviço – criando mais crimes e aumentado de forma desproporcional as penas.


Para se fazer uma verdadeira construção crítica acerca da função do direito penal e o princípio da intervenção mínima, não basta esmiuçar os conhecimentos do Direito Penal, é preciso ir além, isto é, é preciso desvendar a Ciência Total do Direito Penal. É sobre tal Ciência que discorremos a seguir.


A verdadeira essência do Direito Penal não se extrai apenas do Direito Penal, mas da compreensão da Ciência Total do Direito Penal. Pode se dizer que o fenômeno criminal passa a ser visto de outra forma, mais rebuscado, conglobado, quando se analisa o Direito Penal sobre a ótica da criminologia e sobre a ótica da Política Criminal. São, assim, três vertentes singulares, mas que devem ser vistas como um todo. Conforme Lélio Braga Calhau (2011, p. 25) “trata-se de uma forma diferente de se refletir sobre o fenômeno criminal. (…) Este “modelo rompe com aquela visão formal e abstrata do intérprete da norma penal que fica postado em uma torre de marfim, alijado da realidade social”.


Esta temática foi abordada inicialmente pelo professor alemão Franz Von Liszt, que, inclusive, concedeu a nomenclatura “Ciência Total do Direito Penal”, devendo esta compreender a dogmática penal, criminologia e política criminal. Hodiernamente, o professor português Jorge de Figueiredo Dias trouxe novamente à tona a discussão acerca da “Ciência Conjunta do Direito Penal”, demonstrando a sua importância para a compreensão do fenômeno criminal. Assevera o aludido autor (1999, p. 48) que “política criminal, dogmática jurídico-penal e criminologia são assim, do ponto de vista científico, três âmbitos autônomos, ligados, porém, em vista do integral processo da realização do Direito Penal, em uma unidade teleológico-funcional”.


É neste sentido que Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2002, p. 164-165) aduzem “que a criminologia, a Política Criminal e o Direito Penal são os três pilares do sistema das ciências criminais, inseparáveis e interdependentes. E, de forma elucidativa, distinguem os três da seguinte forma:


“A criminologia deve se incumbir de fornecer o substrato empírico do sistema, seu fundamento científico. A Política Criminal deve se incumbir de transformar a experiência criminologia em opções e estratégias concretas assumíveis pelo legislador e pelos poderes públicos. O direito Penal deve se encarregar de converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias, o saber criminológico esgrimido pela política criminal, com estrito respeito às garantias individuais e aos princípios jurídicos de segurança e igualdade típicos do Estado de Direito.”


De forma a diferenciar os três pilares fundamentais das Ciências Criminais propomos o seguinte exemplo: imagine o fato humano de adentrar em presídios portando aparelhos celulares. Ora, a parte especial do nosso Código Penal permanece da década de 1940. Não tinha como o nosso legislador conceber naquela época a evolução do sistema de telefonia móvel, bem como que essa tecnologia seria utilizada para a prática de crimes. Feita esta explanação passamos a seguinte análise.


O fenômeno de celulares no interior dos presídios eclodiu por volta do início do ano 2000. No entanto, a utilização dos aparelhos celulares estava adstrito a manutenção do comando das facções criminosas de dentro das prisões. Assim, os governantes buscaram medidas para frear (controlar) essa prática de dentro dos presídios, podemos citar como exemplo, muito divulgado à época, os famigerados bloqueadores de celulares e detectores de metais nas entradas dos presídios. Acontece que, embora realizada essas medidas, de “algum jeito” os presos estavam mantendo contato com o ambiente externo através dos aparelhos celulares que entravam nos presídios. É neste contexto que, no dia 06 de agosto de 2009 o legislador ordinário insere no Código Penal brasileiro o art. 349-A, tipificando, justamente, o crime de inserção de aparelho telefônico móvel em estabelecimento prisional.


Do exposto no caso acima, dividimos nossa análise da seguinte forma: a Criminologia estudou o novo comportamento, demonstrando que as práticas delituosas permaneciam de dentro das prisões, em especial com a utilização de aparelhos celulares. Assim as práticas cotidianas de dentro dos presídios começam a ser transformadas em estudos sólidos e de forte embasamento teórico, podendo tais conhecimentos ser utilizados na prática; diga-se, na prática de políticas alternativas à pena de prisão, e isso quem vai se servir é justamente a Política Criminal, que busca meios de conter a criminalidade (utilização de bloqueadores e detectores de metais); por fim, o meio mais drástico que a política criminal poderá utilizar para conter a criminalidade é o Direito Penal, através da criminalização de condutas (no nosso caso a tipificação do art. 349-A, CP).


Feita essas considerações, veremos de forma resumida esclarecimentos sobre a Criminologia, a Política Criminal e a Dogmática Penal. Ou seja, esclarecimentos sobre a Ciência Total do Direito Penal (Ciência Conjunta do Direito Penal ou Ciências Criminais).


1.1. A Criminologia


Para entendermos a criminologia em seu aspecto total partimos do conceito fornecido pelos professores Antonio Garcia-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2002, p. 39), onde esclarecem que a criminologia pode ser definida como:


“Ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime – contemplado este como problema individual e como problema social -, assim como sobre programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no homem delinquente e nos diversos sistemas de resposta ao delito.”


Do conceito apresentado acima, podemos extrair três vertentes: a) Método criminológico; b) Objeto criminológico e; c) Funções criminológicas.


O método criminológico – ou seja, o seu meio de estudo é empírico e interdisciplinar. Mas, antes de se utilizar o método empírico e interdisciplinar cabe aduzir que a criminologia é uma ciência, assim, fornece informações válidas e confiáveis sobre a problemática criminal. O método empírico deve ser concebido como aquele que parte da análise e observações da realidade, buscando conhecer melhor a realidade, para só assim poder explica-la, em outras palavras, na experiência vivida. Já o método interdisciplinar, parte do pressuposto que diversas são as disciplinar que integram a criminologia, sendo que elas nunca se repelem, mas estão sempre associadas (diga-se, inter-relacionadas), formando um todo. Como exemplos de disciplinas científicas que se ocupam do estudo do criminoso têm: a Biologia criminal, a Psicologia Criminal e a Sociologia Criminal.


O objeto criminológico – parte da análise do delito, do delinquente, da vítima e do controle social. O conceito de delito da criminologia difere do conceito penal, porquanto para a criminologia o delito se apresenta primeiramente como um problema social e comunitário, enquanto para o direito penal o conceito de delito é formal e normativo (fundado no princípio da legalidade – Art. 1º, CP: Não há crime sem lei anterior que o defina, não há pena sem prévia cominação legal). Assim, conforme Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes (2002, p. 70;77) “O conceito penal de delito é um conceito jurídico-formal, normativo e estático. O conceito criminológico é um conceito empírico, real e dinâmico”. Outro objeto de estudo da criminologia é o delinquente – não vê o delinquente como uma pessoal anormal, mas como um ser aberto e inacabado, ou seja, “em um permanente e dinâmico processo de comunicação, de interação; condicionado, com efeito, muito condicionado, porém com assombrosa capacidade para se transformar e transcender o legado que recebeu e, sobretudo, solidário com o presente e com a visão no seu próprio futuro ou no futuro alheio”.


Ainda como objeto de estudo da criminologia temos a vítima, que durante muito tempo ficou esquecida dos estudos criminológicos. No entanto, hodiernamente, ganha especial destaque, sobretudo nas reformas legislativas nacionais[i]. Por fim, o último objeto de estudo da criminologia é o controle social. Definir controle social não é tarefa fácil, sabe-se que em uma determinada sociedade vários fatores repercutem no controle social, como, por exemplo, a mídia, educação, políticas sociais etc. Assim, o controle social poderá ser exercido de várias formas. Contudo, o ponto central do controle social é para Lélio Braga Calhau (2011, p. 46-47) “transformar o padrão de comportamento de um determinado indivíduo, adaptando-o aos padrões de comportamento sociais dominantes”.


As funções criminológicas são: ministrar explicações e modelos de prevenção da criminalidade, explicar as formas de se intervir na pessoa do infrator e, avaliar os modelos de resposta à criminalidade.


1.2. A Política Criminal


Segundo relatos históricos a terminologia “política criminal” começou a ser empregada por volta do século XVIII. Naquela época sua terminologia possuía vários sentidos, mas a que prevaleceu foi a de dar sentido à proteção eficaz da sociedade contra atos criminosos. No passado a política criminal era concebida com saber restrito ao legislador. Conduto, hodiernamente, a política criminal ganha um enfoque mais dinâmico, abrangendo outras pessoas além dos legisladores, como por exemplo, o intérprete e o aplicador das leis. Tal ponto de vista é concebido pelo professor Eugenio Raul Zaffaroni (2006, 274), assim “dessa perspectiva, sua função não se limita tampouco ao legislador, pois o juiz também toma decisões políticas (porque expressa uma decisão do poder estatal) e, logo, o dogmático não pode ficar à margem de tais valorações”.


De forma mais resumida, restringindo a política criminal ao conceito tradicional, trazemos à baila as palavras de Julio Frabbrini Mirabete (2011, p. 14), onde entende-se por política criminal “o conjunto de princípios, produtos da investigação científica e da experiência, sobre os quais o Estado deve basear-se para prevenir e reprimir a criminalidade”. Conforme Alexandre Joppert (2008, p. 10) “não se cuida de ciência, mas de técnica de influência legislativa. Trata-se, portanto, de critérios orientadores de elaboração e modificação da legislação penal”. Há de acrescentar que, embora haja autores que não tratem a política criminal como ciência autônoma, outros, aduzem ser. Dissertando sobre as diferenças entre política penal e política criminal Alessandro Baratta (2002, p. 201) aduz:


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“Impõe-se, assim, a necessária distinção programática entre política penal e política criminal, entendendo-se a primeira como uma resposta à questão criminal circunscrita ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado (lei penal e sua aplicação, execução da pena e das medidas de segurança), e entendendo-se a segunda, em sentido amplo, como política de transformação social e institucional. Uma política criminal alternativa é a que escolhe decididamente esta segunda estratégia, extraindo todas as consequências da consciência, cada vez mais clara, dos limites do instrumento penal. Entre todos os instrumentos de política criminal o direito penal é, em última análise, o mais inadequado.” (grifo nosso).


Por sua vez, a maioria da doutrina refuta a ideia de ser a política criminal uma ciência autônoma, mas um ramo da própria dogmática penal. Ou seja, a política criminal haure do próprio direito penal. Neste sentido o escólio de Antonio José Miguel Feu Rosa (1995, p. 49) “A política criminal não é, portanto, nenhuma ciência autônoma, com finalidades próprias, mas se integra na própria ciência do Direito Penal (…) Quem faz papel relevante de política criminal, sempre, antes de mais nada,  é o legislador penal; quando inclui novos tipos e exclui outros; quando determina o mínimo e o máximo da pena cominada a cada tipo etc.”.


1.3. A Dogmática Penal


Feita essas considerações acerca da Ciência Total do Direito Penal, e, delimitando cada uma das suas vertentes – Criminologia, Política Criminal e Direito Penal -, passaremos a analisar o princípio da intervenção mínima, não somente no enfoque dogmático-penal, mas no enfoque da Ciência Total do Direito Penal. Com isso, buscaremos demonstrar a importância de analisar o aludido princípio na ótica de cada um dos ramos das Ciências Criminais aqui abordados.


2. O PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA


Historicamente, Nilo Batista (2005, p. 84) ressalta que tal princípio está atrelado a “ocasião do grande movimento social de ascensão da burguesia, reagindo contra o sistema penal do absolutismo, que mantivera o espírito minuciosamente abrangente das legislações medievais”. Assim, pode se afirmar nas palavras de Gianpaolo Smanio e Humberto Fabretti (2010, p. 155) que se trata “de um típico princípio liberal tanto que se encontra nas obras dos mais importantes pensadores do liberalismo, tais como John Locke, Montesquieu, Rousseau e Beccaria”.


Conceitualmente, o princípio da intervenção mínima pode ser entendido como a ultima ratio do sistema jurídico, ou seja, conforme Muñoz Conde (1975, p. 59-60) “O Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do Direito”.


Assim, se os outros ramos do direito (direito civil, direito administrativo etc.) conseguirem conter os ataques a determinado bem jurídico não há porque haver a intervenção do direito penal. Por isso se dizer que a intervenção do direito penal deve ser a mínima possível. Afinal, será através do direito penal que o Estado imporá as consequências mais drásticas contra o seu cidadão: a pena de prisão. É neste sentido que asseverou Cezar Bitencourt (2006, p. 35) “se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável”. 


Tal princípio também pode ser denominado de ultima ratio, ou pelo brocardo em latim “Nulla Lex poenalis sine necessitate”, explicado por Bruno Pinheiro (2011, p. 8) como “princípio da necessidade ou da economia em direito penal”. Em suma, o princípio da intervenção mínima fornece critérios básicos e de observância obrigatória para o legislador e aplicador da lei penal. Permitindo-nos segundo Guilherme Merolli (2010, p. 320) a “contenção do possível arbítrio legislativo a identificação de alguns critérios que nos informem acerca da idoneidade da tutela penal”. Ou seja, o conceito esboçado alhures sobre a intervenção mínima está intimamente relacionado com a própria dogmática penal.


O princípio da subsidiariedade ou do caráter residual do Direito Penal. No dizer de Reinhart Maurach (1994, p. 34) a natureza subsidiária do Direito Penal é “uma exigência político-jurídica dirigida ao legislador”. Sobre o aludido princípio esclarece Paulo Queiroz (2006, p. 29) que “a natureza subsidiária – e não principal – do direito penal diante de outras formas de controle decorre, em primeiro lugar, da circunstância de o direito penal constituir a forma mais violenta de intervenção do Estado na vida dos cidadãos”. Em suma, o Direito Penal é a ultima ratio do Estado ou, como afirma Paulo Queiroz “um direito residual” que só deve ser chamado (diga-se, criminalizar condutas) quando os demais ramos do direito que interferem de forma menos drástica da vida do cidadão (por exemplo, civil, administrativo etc.) falharem na tutela de algum bem jurídico. Sobre o assunto arremata Paulo Queiroz (2006, p. 29):


“Assim, já não se justifica, nos dias atuais, a punição do adultério (que inclusive já foi revogado) ou da bigamia, por exemplo, visto ser suficiente a disciplina do direito civil para resguardar a fidelidade conjugal e a preservação da instituição do casamento: separação, divórcio, anulação.”


O princípio da fragmentariedade ou do caráter fragmentário do Direito Penal. O princípio da fragmentariedade é uma decorrência direta do princípio da intervenção mínima, ou seja, é um princípio que deriva, surge, ecoa, diretamente da intervenção mínima. Conforme analisa Cleber Masson (2009, p. 32) “estabelece que nem todos os ilícitos configuram infrações penais, mas apenas os que atentam contra os valores fundamentais para a manutenção e o progresso do ser humano na sociedade”. Para tal autor, o princípio da fragmentariedade deve ser analisado no plano abstrato, isto é, no momento da atividade legislativa. Não concordamos com tal posicionamento. Vejamos: o princípio da insignificância para Claus Roxin é um decorrência lógica do princípio da fragmentariedade. Sendo que o princípio da insignificância é analisado no caso concreto através da atividade judiciária e não legislativa. Logo, quem toma como guia o princípio da fragmentariedade é o aplicador da lei (o juiz) e não o criador da lei (o legislador). Dito isto, estamos com Reinhart Maurach que afirma ser o princípio da subsidiariedade dirigido à atividade do legislador.


Intervenção mínima e política criminal. O princípio da intervenção mínima, embora estudado no direito penal, está intimamente relacionado ao estudo da política criminal. Conforme salienta Claus Roxin (2007, p. 8) “o direito penal seria a ultima ratio (o último recurso) da política social”. O que leva Eugenio Raul Zaffaroni (p. 275) afirmar que:


“O estado de direito contemporâneo acha-se ameaçado por um crescimento ilimitado do aparato punitivo, sobretudo de suas agências executivas penitenciárias. Por isso, a política criminal e, muito especialmente, a engenharia institucional penal, são saberes fundamentais para a sua defesa e fortalecimento. Em suma, a política criminal é resultante da interdisciplinaridade do direito penal com a ciência política com a engenharia institucional.”


Intervenção mínima e criminologia: as quatro vertentes criminológicas do princípio da intervenção mínima. Para entender a temática proposta, devemos levar em consideração que o delito é um fenômeno social e comunitário. Mas, o que levaria este fenômeno social e comunitário a se tornar um delito do ponto de vista formal, isto é, um fato previamente tipificado? Conforme assevera Shecaria (2008, p. 49) “quais são os critérios ensejadores de cristalização de uma conduta como criminosa?”. O aludido autor cita quatro vertentes criminológicas que devem ser observadas previamente pelo legislador antes da tipificação de qualquer conduta como criminosa, vejamos:


a) Incidência massiva do fato na população. Ou seja, não será qualquer fato isolado, ainda que tenha causado certa comoção, que vai ensejar na criação de um crime. Sérgio Salomão Shecaria (2008, p. 49) salienta que “se o fato não se reitera, desnecessário tê-lo como criminoso”.


b) Incidência aflitiva do fato praticado. Significa dizer que os fatos sem qualquer relevância para a nossa sociedade sejam incriminados. Por isso se dizer que o direito penal deve intervir quando o fato pernicioso produzir dor na vítima ou na sociedade.


c) Persistência espaço-temporal do fato. Shecaria (2008, p. 50) aduz que “Não há que ter como delituoso um fato, ainda que seja massivo e aflitivo, se ele não se distribui por nosso território, ao longo de um certo tempo”.


d) Inequívoco consenso do fato como criminoso. O fato deve despertar no seio doutrinário um sério comprometimento ao convívio social. Assim, deve haver um consenso na comunidade jurídica que determinado fato deve ser combatido pelo direito penal, e não por outros meios de intervenção na criminalidade.


Sobre o assunto, arremata Shecaria (2008, p. 51) que “qualquer reforma penal deveria averiguar o preenchimento dos critérios acima elencados para a verificação do juízo de necessidade da existência de cada fato delituoso”. Por fim, podemos citar o art. 349-A do Código Penal brasileiro como um fato atual que se encaixa nas quatro vertentes acima analisadas, que, de fato, foi criminalizado pelo nosso legislador. Vejamos:


“Art. 349-A.  Ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional.


Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.”


3. OUTRAS QUESTÕES RELEVANTES


3.1.Intervenção mínima e contravenções penais


Sabe-se que o direito penal brasileiro adota o critério bipartido, onde o gênero infrações penais podem ser subdivididos em duas espécies – crimes (sinônimo de delito) e contravenções penais. Há de salientar que temos no nosso ordenamento jurídico diversas contravenções penais (delito anão, delito vagabundo ou liliputiano) que ofendem claramente o princípio da intervenção mínima, vejamos abaixo dois exemplos:


“Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:


I – com gritaria ou algazarra;


II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;


III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;


IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:


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Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.


Art. 43. Recusar-se a receber, pelo seu valor, moeda de curso legal no país:


Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”


Ora, tais fatos poderiam ser solucionados por outros ramos do direito, não precisando, necessariamente, da intervenção do direito penal. Por exemplo, no caso da perturbação do sossego alheios, o direito civil poderia impor medidas de danos morais ou materiais; no caso de recusa de moeda de curso legal no país, o direito administrativo, através do seu poder de polícia poderia impor restrições a estabelecimentos comerciais que recusassem moeda em curso legal no Brasil. Afinal, não há porque tais condutas ínfimas entrarem na esfera de proteção do Direito Penal.


Assim, preconiza Rogério Greco (2007, p. 51) que “de acordo com o critério proposto pelo princípio da intervenção mínima o direito penal deveria afastar as chamadas contravenções penais, permitindo que a proteção dos bens por elas realizadas fosse destinada a outros ramos do ordenamento jurídico, já que não tem a relevância exigida pelo Direito Penal”. Na mesma linha de entendimento de Luigi Ferrajolli (2002, p. 575), pode-se se dizer que “um redimensionamento do direito penal deveria ser precedido, ao menos, da despenalização de todas as contravenções penais”.


3.2. Princípio da intervenção mínima e o direito penal mínimo: a descriminalização, a despenalização e a diversificação


Segundo relata Yuri Carneiro Coelho (p. 103-104) o princípio da intervenção mínima “decorre do pensamento de uma corrente do Direito Penal adepta do ‘Direito Penal Mínimo’, que se contrapõe ao denominado movimento ‘lei e ordem’, defensor de um processo de expansão do Direito Penal como forma de coerção e de correção de condutas por eles consideradas lesivas ao convívio social (…)”.


Na verdade, o que o direito penal mínimo busca é a descriminalização, despenalização e diversificação do sistema penal – isto é, outras formas de solução que não a prisão. Por isso se falar em deixar com o direito penal as condutas mais atentatórias ao convívio social, e estas deve ser o mínimo possível – surgindo assim, o direito penal mínimo.


Sobre o tema acrescenta Gianpaolo Smanio e Humberto Fabretti (2011, p. 163 a 165) que “no sentido de se operar uma redução da intervenção punitiva do Estado, normalmente encontram-se os seguintes processos: Descriminalização, Despenalização e Diversificação: A descriminalização é renúncia formal do Estado em punir penalmente determinada conduta”. Podemos citar como exemplo desta vertente a revogação do crime de adultério do Código Penal brasileiro no ano de 2005. A despenalização seria o ato de diminuir a pena de um delito, sem, no entanto, descriminalizá-lo. Citamos como exemplo, o caso do porte de uso de drogas para consumo próprio, previsto no art. 28 da Lei nº. 11.343/2006. “Por fim, a diversificação é a possibilidade de suspensão do processo penal em determinado momento para que se alcance a solução do conflito como de forma não punitiva”. Citamos como exemplo, o art. 89 da Lei nº. 9.099/1995 que trata do instituto da suspensão condicional do processo, onde se o indivíduo seguir determinados requisitos por determinado período de tempo, sua punibilidade restará extinta.


Não por menos, Paulo Queiroz (2005, p. 188) afirma que “tal perspectiva conduz, pois, a um modelo de política criminal radicalmente descriminalizador; conduz, enfim, a um modelo de direito penal mínimo, que julgamos constituir a formulação mais condizente com a Constituição, brasileira, em particular, sobretudo pela sua declarada vocação libertária”.


3.3. Princípio da intervenção mínima e o combate diário contra os meios massivos de comunicação


A ciência penal trava uma luta diária com os meios massivos de comunicação. Enquanto a ciência criminal se preocupa com as bases fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, os meios massivos de comunicação estão preocupados em angariar telespectadores, única forma de manutenção do meio de comunicação “no ar”. Para isso, podem ser valer dos meios mais pecaminosos e daninhos, que terminam por afetar qualquer medida teórica do princípio da intervenção mínima.


É neste campo que surge a denominada fábrica da realidade (Zaffaroni), onde os meios midiáticos abusam dos casos ícones, transformando-os (diga-se os fabricando) em realidades corriqueiras. Sobre o assunto relata Maria Lúcia Karam (1991, p. 200-201) que “esta publicidade enganosa cria o fantasma da criminalidade, param em seguida, ‘vender’ a ideia da intervenção do sistema penal, como a alternativa única, como a forma de se conseguir a tão almejada segurança, fazendo crer que, com a reação punitiva, todos os problemas estarão solucionados”.


Por isso que, na análise de quando deve a haver a intervenção penal (seja por parte do legislador, seja por parte do aplicador da lei), deve-se levar em consideração o afã da população e, bem como esse afã foi criado. Pois, muitas vezes o processo ideológico e psicológico da população de uma forma geral, encontra-se viciado o que termina por manipular a opinião pública. Sobre o assunto Alessandro Baratta (2002, p. 204-205) assevera:


“Na opinião pública, enfim, se realizam, mediante o efeito dos mass-media e a imagem da criminalidade que estes transmitem, processo de indução de alarme social que, em certos momentos de crise do sistema de poder, são diretamente manipulados pelas forças políticas interessadas, no curso das assim chamadas campanhas de “lei e ordem”.”


 


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ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro: primeiro volume: Teoria Geral do Direito Penal. 3. ed.  Rio de Janeiro: Revan, 2006.

 

Nota:

[i] Como exemplo, podemos citar os seguintes artigos do Código de Processo Penal:

Art. 185.

§ 2o  Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades: (Redação dada pela Lei nº 11.900, de 2009)

IIIimpedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código; (Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009)

Art. 201.  Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

§ 2o  O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

§ 3o  As comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele indicado, admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

§ 4o  Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

§ 5o  Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado.  (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

§ 6o  O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)

Art. 240.  A busca será domiciliar ou pessoal. § 1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para: g) apreender pessoas vítimas de crimes;


Informações Sobre o Autor

Marcel Gomes de Oliveira

Advogado. Especialista em Direito do Estado. Professor de Direito Penal e Legislação Penal Especial das Faculdades 2 de Julho. Professor de Ética, Direitos Humanos e Cidadania do Curso de Formação de Oficiais do Estado da Bahia.


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