Poder punitivo estatal: justificativas e limitações

Resumo: A sociedade moderna clama pela condenação e punição daqueles que, de alguma forma, violam as normas do sistema penal. No atual contexto do endurecimento do controle social, a lógica do processo penal como instrumento de garantia acaba por ser subvertida, deixando-se em segundo plano a proteção dos direitos individuais do acusado, cujo império é ditado pela Constituição da República de 1988.

Palavras-chave: Poder Punitivo. Seletividade. Limitações. Abusos. Estado Democrático de Direito.

Sumário: Introdução; 1. A seletividade do sistema penal; 2. O garantismo penal; 3. A limitação do poder de punir; Conclusão; Referências bibliográficas.

Introdução

Sob o título de garantidor da ordem social justa, o Estado tem a prerrogativa de submeter à sua força aqueles que não se integram às normas jurídico-penais.

Em nossa sociedade, tendemos a pensar que os delitos se exaurem quando condenamos o delinquente. Por isso, confundimos pena com castigo; justiça com vingança. A expansão do poder punitivo é fomentada pelos clamores populares por segurança pública.

Contudo, o agir repressivo das forças policiais não soluciona questões sociais – que, em sua maioria, são causadas pela omissão do próprio Estado em difundir reais oportunidades de ascensão econômica e oferecer condições que possibilitem ao indivíduo uma perspectiva de vida fora do crime. Isto porque as questões coletivas vêm sendo suprimidas das pautas políticas, de modo a, praticamente, reduzir o direito público ao direito penal. Assim, o Estado distancia sua atuação das demais esferas de interesse da população, limitando-se a exercer o monopólio legítimo da força.

1. A seletividade do sistema penal

O sistema penal pretende se afirmar democrático, de modo a atingir igualmente os cidadãos, baseando-se, exclusivamente, nas condutas praticadas. No entanto, em verdade, está muito distante de honrar seus ideais. Além de seletivo, pois, em sua maioria, recai sobre integrantes de classes sociais menos abastadas, o sistema penal é estigmatizante, impondo seu peso ao investigado antes que seja aferida a culpabilidade. Caso seja declarado inocente, o réu já terá sofrido males decorrentes do processo penal.

Ignorar tais características centrais do sistema repressivo é fechar os olhos para o funcionamento das instituições brasileiras e para a evidente degradação humana advinda das campanhas de “lei e ordem”, em que determinadas parcelas da população são postas à margem da sociedade e apontadas como inimigos públicos.

Afirma Zaffaroni (2014) que assistimos a um progressivo desbaratamento dos limites do poder punitivo repressivo e controlador como resultado de uma crescente vitimização dos mais humildes e uma redução dos espaços de liberdade de todos os cidadãos.

O que se pretende com as grandes campanhas midiáticas de combate pontual à violência é apontar determinados grupos sociais menos favorecidos como causadores da desordem social, afastando a responsabilidade do Estado pelas condições de vida degradantes suportadas pela população. Dessa forma, os receptores dos meios de comunicações são induzidos a fielmente acreditar que não há outra solução senão a repressão. Vivemos a rotina do medo e da descrença num futuro melhor solidamente construído a longo prazo. Em meio a isso, as supostas soluções imediatas se tornam altamente atrativas e não demonstram dificuldade em captar seguidores, que, contudo, não se atentam para o fato de os excessos do poder punitivo podem ser mais perigosos que os delitos que se deseja coibir.

Padecemos de um processo penal que reflete a falta de democracia das persecuções e execuções penais, que tem como resultado a opção pelos pobres. Nas palavras de Nilo Batista:

“(…) vivemos a contradição entre um texto constitucional democrático formal e procedimentos reais que respiram a cultura discriminatória, racista e exterminadora da característica de nossa formação social.“[1]

Karam (2009), ex Defensora Pública e Juíza de Direito aposentada pelo Estado do Rio de Janeiro, afirma que a identificação do criminoso em alguém facilmente reconhecível produz alívio, causando nos que não foram acusados uma sensação de inocência, de modo que a imposição de pena a alguém identificado como autor de um crime opera uma espécie de absolvição de todos os demais, que podem, confortavelmente, se intitular “cidadãos de bem”, contrapostos aos “maus”.

Por assim ser, muitas vezes, nos vemos seduzidos por discursos sensacionalistas e promessas fartas, que nos conduzem a aceitar, sem receios, a mitigação de direitos fundamentais. A razão disso é a disposição da sociedade em fazer qualquer concessão em troca de segurança. Permitimos, então, o desprezo do imperativo das normas de proteção ao indivíduo, e afastamos os pilares do Estado de Direito. A consequência é que, embora mantida a estrutura formal da democracia, vai tomando força o regime de exceção, que seleciona o “inimigo” de acordo com seus interesses políticos, e não demonstra pudor na utilização de instrumentos de combate capazes de esmagá-lo impiedosamente sob os aplausos populares.

Nesse moldes, Zaffaroni (2007), em sua obra El Enemigo en el Derecho Penal, classifica o agigantamento do poder punitivo como autoritarismo cool, aquele que camufla seus traços opressores para que passem despercebidas aos olhos distraídos da maioria, que aprova seus avanços e caminha célere e cegamente para a negação dos fundamentos do Estado Democrático, sem perceber que podem ser as próximas vítimas dos preconceitos e rejeições ao exercício da defesa no processo penal.

2. O garantismo penal

É lamentável que os direitos dos investigados e acusados sejam muitas vezes deixados de lado em prol do que alguns insistem em denominar “interesse da coletividade”. O objetivo do presente trabalho é alarmar para esquecido campo jurídico-penal, desafiando não só os pensadores do Direito, mas todos os cidadãos a refletirem sobre o dano que a violação de direitos individualmente considerados pode acarretar à sociedade como um todo. As garantias que protegem o réu não devem ser consideradas apenas de maneira individualizada, pois não tutelam somente sua liberdade; mas, ao contrário, destinam-se a proteger toda a coletividade de maneira indiscriminada e isonômica.

Sob essa ótica, aqueles que percebem as manipulações a que são submetidos os ditames constitucionais, bem como a iminência de sua ruína em meio ao caos social são atacados pela incompreensão dos que sustentam a punição a qualquer preço. Reacionários a um processo penal pautado em paridade de armas e presunção de inocência privilegiam a acusação e minimizam o direito do réu a defender-se. Em verdade, o que se apresenta é a concretização da pretensão punitiva em detrimento da própria essência de cidadania, como se os direitos daqueles que estão em conflito com o ordenamento jurídico penal não merecessem proteção.

Nesse contexto, o termo “garantista”, surgido para fazer referência àqueles que pregam a reverência aos direitos constitucionais, independentemente de quem seja seu titular, vem sendo empregado de forma hostil, de modo a, não raras vezes, insinuar conivência com a conduta delituosa do agente.

Assim explica Geraldo Prado:

“O Garantismo não é uma religião e seus defensores não são profetas ou pregadores utópicos. (..) sua principal virtude consiste em reivindicar uma renovada racionalidade baseada em procedimentos que têm em vista o objetivo de conter os abusos do poder e criar condições para eu este mesmo poder possa integrara as pessoas, eliminando dentro do possível todas as formas de descriminação”. [2]

3. A limitação do poder de punir

O processo penal tem como escopo, sobretudo, limitar o poder de punir estatal, evitando o uso arbitrário da força e garantindo ao réu a disponibilidade dos mesmos instrumentos utilizados pela acusação, a fim de equilibrar a relação essencialmente desigual que existe entre o Estado e o particular. Desse modo, não pode ser manuseado apenas sob a ótica técnica; e sim, observando o fim social a que se destina, garantindo um julgamento baseado em pilares verdadeiramente harmônicos com o Estado Democrático de Direito, e não se deixando sucumbir frente aos desejos vingativos revestidos sob a forma de medidas urgentes, defendidas por parte do corpo social.

Segundo Batista (2011), o combate que o direito penal é capaz de produzir atinge apenas os delitos já realizados, sendo precário seu desempenho preventivo. Isto porque a pena não atua na esfera da moralidade; ao contrário, exerce seu papel por meio da coerção. Ao não afetar o indivíduo em sua consciência, não implica o arrependimento necessário à sua ressocialização.

Nas palavras de Cesare Beccaria, assim se definem as finalidades da pena:

“O fim, portanto, não é outro que o de impedir que o réu cometa novos danos aos seus cidadãos e de demover os outros de fazerem o mesmo. Aquelas penas, portanto, e aquele método de inflingi-las, deve ser eleito de tal forma que, observada a proporção, causará uma impressão mais eficaz e mais durável sobre os ânimos dos homens, e a menos tormentosa sobre o corpo do réu.”[3]

Não restam dúvidas de que, sob os moldes atuais, e diante da falência do sistema carcerário, a imposição de pena não cumpre a função preventiva idealizada por Beccaria. Seu fracasso prático pode ser facilmente extraído dos números que apontam para o crescimento da reincidência e da criminalidade. Por não trazer qualquer benefício à coletividade, implica, unicamente, em castigo para o condenado. Como consequência direta, desperta o ódio em seu destinatário e o sentimento de vingança popular; revolta mais do que coíbe, não desempenhando papel educativo.

O interesse comum não é pautado somente no não cometimento de crimes, mas na aplicação de sanções proporcionais, que, de fato, cumpram a função social da pena. A mão forte do Estado deve ser instrumento de garantia da exata correspondência entre o delito e sua consequência penal. É temerário acreditar que o endurecimento do poder punitivo gere outra consequência que não a violência institucionalizada. São falaciosas as conclusões baseadas na premissa de que o cárcere seja instrumento hábil a controlar a criminalidade. Ao contrário do que é sustentado por grande parte dos agentes políticos, a atuação com maior rigor no regime carcerário não é capaz de coibir a prática de crimes, tampouco de reinserir o indivíduo no convívio coletivo. A implementação de medidas que deleguem à privação de liberdade a tarefa de transformar a realidade social é ineficaz e não atenta para os perigos latentes trazidos por um poder punitivo desenfreado.

Conclusão

Os problemas de segurança pública não servem de fundamento à utilização de vias que a Constituição repudia. Quanto maior for o direcionamento do pensamento crítico à observação da desproporção entre aquilo que é teorizado e a realidade social, menos frequentes serão as ilegalidades e os abusos de autoridade, pois a ignorância sobre a dignidade humana conduz à aceitação da violência praticada pelas instituições responsáveis por combatê-la.

A contenção do poder punitivo é o único modo de prevenir massacres. O século XX provou que a potestade punitiva quando exercida sem limites conduz a genocídios de proporções irrefreáveis. O maior instrumento para submeter a força à ordem jurídica é o Direito Penal, que atua como limitadora da tirania do Estado.

Apenas um Direito Penal Humano para todos os seres humanos é capaz de promover uma força justa.

 

Referências
BATISTA, Nilo. Apresentação In: PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2 ed. 2001. p. xi – xiii
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Penais. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, 2ª edição. Notas do autor à 2ª edição.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin. Clássicos Quartier. 2005. Tradução: Alexis Couto de Brito.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais no Brasil. In: WUNDERLICH, Alexandre (org.). Escritos de direito e processo penal ao Prof. Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 140.
__________. Legibus Solutio: a sensação dos que são contra a reforma global do CPP. Boletim IBCCRIM. n. 210, v. 18, 2010. P. 2.
__________. Um devido processo legal (constitucional) é incompatível com o sistema do CPP, de todo inquisitorial. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo Rudge (coords.).  Processo Penal e Democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do Processo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p.27.
FELDENS, Luciano. Ministério Público, Processo Penal e Democracia: Identidade e desafios. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo Rudge (coords.). Processo Penal e Democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
FERNANDES, Antônio Scarance. Vinte anos de Constituição e o Processo Penal. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo Rudge (coords.). Processo Penal e Democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
 
Notas
[1] BATISTA, Nilo. Apresentação In: PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2 ed. 2001. p. xi – xiii

[2] PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A conformidade Constitucional das Leis Penais. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, 2ª edição. Notas do autor à 2ª edição. p. xxiii.

[3] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Quartier Latin. Clássicos Quartier. 2005. Tradução: Alexis Couto de Brito. P. 57.


Informações Sobre o Autor

Renata Moura Tupinambá

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes aprovada nos concursos públicos para o cargo de analista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e defensor público do Estado da Bahia


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