A amplitude do acesso à justiça e o problema da legitimidade ativa concorrente nas ações de indenização por morte

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Resumo: O trabalho busca, através de argumentos de ordem material e processual e regras de hermenêutica, construir uma nova sugestão ao problema da legitimidade ativa nas ações de indenização por morte.


Palavras-chave: Legitimidade concorrente – Indenização – Morte – Razoabilidade.


Abstract: The report aims, through the arguments of material and procedural order and hermeneutics rules, to build a new suggestion to the problem of the legitimacy in the death suit damages.


Keywords: Competitive legitimacy – Suit for damages – Death – Reasonability


Sumário: 1. Introdução. 2. Acesso à justiça.  3. Legitimidade ativa nas ações indenizatórias. 3.1 Legitimidade na regra geral. 3.2 Legitimidade nas ações de indenização por morte. 3.2.1 Correntes tradicionais da legitimidade nas ações indenizatórias por morte. 3.2.2 Análise crítica às soluções existentes. 3.2.2.1 Crítica à solução que adota as regras do direito sucessório. 3.2.2.2 Crítica à solução que considera legitimados todos os lesados. 3.2.3 Nova proposta de solução do problema. 3.2.3.1 Aspectos materiais. 3.2.3.1.1 Regras da linha sucessória. 3.2.3.1.2 Sugestão da solidariedade ativa. 3.2.3.2 Aspectos processuais. 3.2.3.3 Aspectos relacionados à segurança jurídica. 3.2.3.4 Aspectos hermenêuticos – postulado da razoabilidade. 4. Conclusões. 5. Referências


1. INTRODUÇÃO


O presente estudo principia constatando que as tradicionais correntes doutrinárias e jurisprudenciais acerca da legitimidade ativa, nas ações de indenização, não são mais aptas a solucionar uma infinidade de casos relacionados às ações de reparação por morte.


Demonstra-se que as teorias existentes ora deixam um sem número de vítimas sem direito à demandar indenização pela morte do ente querido, ora proporcionam condições a que membros de uma mesma família ajuízem diversas ações autônomas em virtude de um mesmo fato.


Diante de tal cenário é que se propõe, através de argumentos de ordem material e processual e regras de hermenêutica, construir uma nova sugestão ao problema da legitimidade ativa concorrente, nas ações de indenização por morte.


2. ACESSO À JUSTIÇA


A função de solucionar as pretensões conflitantes dos particulares em litígio é do Estado-juiz, a quem cumpre, de forma única e exclusiva, aplicar o direito ao caso concreto, solucionando o conflito com pacificação social e justiça (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2001, 24).


Nesse contexto, onde os particulares, em regra[1], não podem satisfazer suas pretensões com as próprias mãos, sob pena de incorrerem em exercício arbitrário das próprias razões, foi que surgiu a necessidade do Estado garantir a todos os cidadãos o acesso amplo e irrestrito à justiça, a fim de que possam postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória de um direito individual, coletivo ou difuso (DIDIER JR., 2007, 79).


É importante destacar que, atualmente, vivenciamos o estágio da terceira onda renovatória de acesso à justiça (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, 67/73), onde devem ser adotadas medidas visando a qualificação do acesso à justiça como acesso à ordem jurídica justa, consubstanciada em uma prestação jurisdicional célere, adequada e eficaz.


Objetivando apresentar contribuição à essa terceira onda renovatória de acesso à justiça, é que elaboramos uma proposta de solução ao problema da legitimidade ativa concorrente nas ações de indenização por morte, visando evitar iniquidades tanto para as eventuais vítimas, como para o réu.


Assinale-se, por oportuno, que apesar da legitimidade ser uma das condições da ação, entendemos que não há óbice para se analisá-la em estreita conexão com a relação jurídica substancial deduzida, pois comungamos com a tese de que não há como se extremar as condições da ação do mérito da causa, na tutela jurisdicional individual, ao menos nos casos de legitimidade de agir ordinária e possibilidade jurídica do pedido (DIDIER JR., 2007, 161/163).   


3. LEGITIMIDADE ATIVA NAS AÇÕES INDENIZATÓRIAS


3.1 Legitimidade na regra geral


A princípio, não há maiores questionamentos acerca da legitimidade tanto ativa como passiva, relativamente, às ações de indenização.


Em regra, tem legitimidade para figurar no pólo ativo de ação indenizatória quem suportou dano (a vítima) e, no pólo passivo, quem ocasionou a lesão (agente).


Tal ilação pode ser facilmente extraída dos inc. V e X, do art. 5º da CF[2] e, dos arts. 187[3] e 927[4] do Código Civil.


3.2 Legitimidade nas ações de indenização por morte


No entanto, a questão da legitimidade ativa ganha relevo, quando se trata de ação de indenização decorrente de morte.


Com efeito, se o “ofendido direto” faleceu, é óbvio que a legitimidade para propor a ação de indenização será atribuída a outrem. Aí surge a primeira dúvida, a legitimidade, nessa hipótese, decorrerá: (a) da transmissão do direito de exigir reparação, tal como estabelece o art. 943 do CC ou, (b) do fato de que pessoa próxima do de cujus (pai, esposa, filho) é que sofre o dano, tendo, pois, direito a pleitear reparação em nome próprio?


Entende-se que a pessoa próxima do “ofendido direto” suporta dano com a morte, de forma que sua legitimidade decorre de tal fato, e não em virtude de “transmissão com herança” ou, qualquer outra forma de substituição ou sucessão (MONTENEGRO, 2007, 113).


3.2.1 Correntes tradicionais da legitimidade nas ações indenizatórias por morte


Questão mais complexa consiste em saber quem são os “legitimados atípicos” hábeis a promover a ação indenizatória decorrente de morte. Qual o critério a ser adotado? A legitimidade de um exclui a dos demais?


Duas correntes doutrinárias respondem essa questão. De um lado os que defendem que o “legitimado atípico” deverá ser apontado pelas regras do direito sucessório (art. 1.829 CC)[5], onde os herdeiros mais próximos excluem os mais remotos. De outro, os que sustentam que a legitimidade para pleitear indenização deve ser estendida a todos quantos sofreram dano com a morte do “ofendido direto” (MONTENEGRO, 2007, 114; GONÇALVES, 2003, 536/543).


Discordamos dessas alternativas, porque ambas são capazes de gerar injustiças e distorções, de forma que nos propomos a elaborar uma nova sugestão, baseada em aspectos substanciais, regras processuais, princípios constitucionais e em postulados hermenêuticos, visando evitar iniquidades tanto para as eventuais vítimas, como para o réu.


3.2.2 Análise crítica às soluções existentes


A primeira das alternativas, de atribuir legitimidade de acordo com as regras do direito sucessório, pode ensejar algumas injustiças, em virtude das peculiaridades da sociedade contemporânea.


Atualmente, é comum casais conviverem em regime de união estável; somam-se os casos de sociedade homoafetiva; de concubinato e filhos havidos fora do casamento, de forma que regras do direito sucessório tornam-se insuficientes para reger tais situações.


Por outro lado, a adoção da segunda alternativa, que dá azo a que pessoas de uma mesma família ajuízem diversas ações autônomas em virtude de um mesmo fato, pode gerar um cenário de grave insegurança jurídica, já que novas ações continuarão podendo surgir, mesmo após o réu ter reparado o dano.


3.2.2.1 Crítica à solução que adota as regras do direito sucessório


Imagine-se um casal sem filhos que convivia em regime de união estável, vindo o cônjuge varão a falecer vítima de atropelamento. Nessa hipótese, em consonância com as regras do direito sucessório, a legitimidade para propor a ação seria dos ascendentes da vítima (art. 1.829, II, CC). Logo, indaga-se, essa solução seria justa?


Suponha-se, ainda, um casal que convivia há anos em sociedade homoafetiva. Seria justo que o sobrevivente fosse preterido pelos ascendentes, ou parentes colaterais do falecido?


Essas indagações são mais que suficientes para demonstrar a irrazoabilidade da primeira corrente.


3.2.2.2 Crítica à solução que considera legitimados todos os lesados


A segunda corrente também enseja distorções.


Temos notícia de caso em que uma criança faleceu vítima de atropelamento e seus pais ajuizaram ação, vindo a receber indenização. Anos mais tarde, os irmãos da vítima alegando que presenciaram o momento do acidente e que sofreram com a perda do ente querido, ajuizaram nova ação, assistidos pelo mesmo advogado que patrocinou seus pais. Nesse caso, seria razoável condenar o réu a pagar uma nova indenização?


 Também temos conhecimento de caso em que um adulto faleceu vítima de eletroplessão, tendo o filho menor, representado pela mãe, ajuizado ação em face da concessionária de energia e recebido indenização. Anos depois, a esposa do falecido vem a juízo, patrocinada pelo mesmo advogado do seu filho, pleiteando indenização em nome próprio. Seria justo que a autora saísse vencedora nessa demanda?


Há, ainda, um caso em que, em decorrência da morte do filho menor em acidente automobilístico, a mãe ajuizou ação, tendo se sagrado vencedora e auferido reparação. Posteriormente, o pai da vítima intenta nova ação indenizatória com fulcro no mesmo fato. Tem o mesmo direito à reparação?


Ora, esses exemplos demonstram à saciedade a insuficiência dessa corrente.


3.2.3 Nova proposta de solução do problema


O escopo do presente estudo é construir uma sugestão própria, através de argumentos de ordem material e processual, princípios constitucionais e em postulados hermenêuticos que, a um só tempo, possa ser aplicada ao maior número de casos possíveis, sem que se enseje injustiças em virtude das peculiaridades dos casos concretos.


3.2.3.1 Aspectos materiais


3.2.3.1.1 Regras da linha sucessória


Apesar de se admitir que mais de uma pessoa sofra dano com a morte de um parente ou ente querido, deve-se priorizar a legitimidade excludente à concorrente, de forma que aqueles que suportaram o dano mais diretamente afastem os demais co-legitimados.


Com efeito, na hipótese de falecimento de homem casado que tinha filho, pais e irmãos vivos, as regras de experiência demonstram que quem sofre mais diretamente os efeitos lesivos da morte é o filho e/ou a viúva, de forma que a ação deve ser ajuizada pelo primeiro, pela segunda ou por ambos. Seria irrazoável que o filho e o cônjuge da vítima ajuizassem uma ação; que os pais promovessem outra e, assim também, os irmãos.


Por conseguinte, “as regras da linha sucessória”, inobstante não sejam a solução pronta e acabada, podem ser utilizadas como ponto de partida, na medida que, normalmente, as pessoas que sofrem mais diretamente os efeitos danosos da morte são justamente aquelas previstas na ordem sucessória, ou seus equiparados legalmente.[6]


É importante destacar que essa opção pelos parentes que sofreram mais diretamente os efeitos danosos, exclui a legitimidade dos demais, pois não é justo, nem razoável que o réu pague mais de uma indenização em decorrência de um mesmo fato.


O Superior Tribunal de Justiça, através de vários precedentes[7], tem atribuído legitimidade concorrente a todos que sofreram dano com a morte do “ofendido direto”. Acreditamos que assim tem decidido por não ter se deparado com casos concretos de mais de uma ação decorrente de um mesmo óbito.


Com efeito, encontramos um único acórdão em que se vislumbrou a possibilidade de mais de um parente ajuizar ação autônoma em virtude de um mesmo fato e, justamente neste caso, somente se reconheceu a legitimidade à irmã da vítima, ante a ausência de ascendente, descendente ou cônjuge[8].


Ressalte-se que os tribunais estaduais, ao se depararem com uma segunda ação fundada em óbito já reparado a um parente próximo da vítima, vêm negando pleito, consoante se depreende dos arestos transcritos, in verbis:


“Acidente de trânsito – Indenização – Dano moral – Reparação pleiteada pelos irmãos da vítima – admissibilidade somente se devidamente comprovada a dor e o sofrimento resultantes do evento danoso – Verba indevida na hipótese em que os pretendentes demoraram no ajuizamento da ação, não conviviam com o de cujus e houve o pagamento da indenização aos pais e filha da vítima, fator que impede a formulação de outro pedido pelos demais familiares.” (RT, 772:253)


“Acidente de trânsito – Indenização – Danos material e moral – Reparação pleiteada pelo pai e irmão da vítima – Verba indevida se ao tempo do sinistro a de cujus não mais vivia em companhia dos pais biológicos, por ter sido adotada por outra família, que, por sua vez, em pleito anterior, foi indenizada pelo causador do dano.” (RT, 778:282)


Observe-se que o problema da legitimidade ativa concorrente nas ações de indenização por morte só aflora mesmo, quando surge uma segunda ação decorrente de um dano já reparado, pois o fato de vários parentes da vítima figurarem, em litisconsórcio, no pólo ativo de uma ação, não traz qualquer prejuízo ao réu, que pagará um única indenização. Com efeito, o problema ganha relevo, quando os parentes do falecido ajuízam ações autônomas e sucessivas, já que nesse caso o réu pagará duas indenizações em virtude de um mesmo fato e, pior, sem que o juiz, ao fixar o quantum indenizatório, tenha levado em consideração que estava indenizando apenas um dos muitos possíveis familiares do “ofendido direto”.


Por isso é que sugere a adoção, como ponto de partida, “das regras da linha sucessória”.


Não é ocioso destacar tal sugestão também encontra fundamento na interpretação sistemática, já que, nos termos do art. 948, II, do CC[9], em caso de homicídio, o autor do fato deve indenização, na forma de alimentos, às pessoas a quem o de cujus os devia.


Adotando-se tal norma, alcançaremos as mesmas conclusões “das regras da linha sucessória”, pois, em geral, o falecido, quando casado, prestava alimentos aos filhos e esposa; quando solteiro e em companhia dos pais, a estes, e assim sucessivamente.


Neste particular, “as regras previdenciárias” podem emprestar importante auxílio ao esclarecimento da questão, pois o art. 16 da Lei nº 8.213/91 estabelece uma ordem daqueles que têm direito à pensão morte, onde os primeiros excluem os demais, consoante se depreende da transcrição, ipsis litteris:


Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:


I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;


II – os pais;


III – o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;


IV – (Revogado pela Lei nº 9.032, de 28.04.1995)


§ 1º. A existência de dependente de qualquer das classes deste artigo exclui do direito às prestações os das classes seguintes.


§ 2º. O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.


§ 3º. Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal.


§ 4º. A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada.” (grifo nosso)


3.2.3.1.2 Sugestão da solidariedade ativa


Outrossim, quando um parente próximo já houver ajuizado ação, outro de mesmo grau ou de grau mais distante não tem legitimidade para demandar em face do agente danoso.


É que o art. 942 do CC estabelece que: “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.”


Ora, se havendo vários agentes, todos respondem solidariamente pela reparação, é conclusão lógica que, existindo várias vítimas, haja solidariedade ativa[10] na percepção da indenização, de forma que cada um dos lesados possa receber sozinho a indenização devida a todos (arts. 264 e 267 CC)[11]. E o que isso quer dizer? Significa que se um dos lesados ajuizou ação e auferiu sozinho a indenização devida a todos os demais; findou-se a relação jurídica existente entre esses e o agente danoso (art. 269 CC)[12], de forma que devem pleitear a parte da indenização que lhes cabe em face do co-legitimado que a recebeu (art. 272 CC)[13]


A interpretação analógica do art. 1.817[14] do CC também conduz à semelhante ilação. É que nos, termos de tal dispositivo, se um co-herdeiro aliena a terceiro de boa-fé os bens hereditários e, posteriormente, é excluído da partilha; os herdeiros prejudicados não têm qualquer direito em face do terceiro de boa-fé, mas sim em face do herdeiro excluído. Ou seja, equiparando-se o herdeiro excluído, à vítima que recebeu indenização em primeiro lugar; os demais herdeiros, aos co-legitimados e, o terceiro de boa-fé, ao agente; chegaremos à mesma conclusão de que: eventuais prejuízos suportados pelos co-legitimados devem ser resolvidos entre estes e o que primeiro recebeu indenização; já que a relação jurídica outrora existente com o agente encontra-se resolvida.


3.2.3.2 Aspectos processuais


A outra sugestão que erigimos, com o escopo de evitar o ajuizamento de ações em “cascata”, consiste na atribuição de legitimidade ativa ao “núcleo familiar”, a ser “representado” pelos seus integrantes em litisconsórcio ou isoladamente.


Nessa perspectiva, é que os pais, ou apenas um deles, quando ajuíza ação reparatória “representando” o núcleo familiar, age também representando um ao outro, assim como aos filhos, até como conseqüência lógica do exercício do poder familiar.


A Constituição Federal estabelece que aos pais cabe o dever de assistir os filhos enquanto menores, bem como o de conduzir o núcleo familiar, senão vejamos:


Art. 226 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§ 4º – Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.


Art. 229  – Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”


Por conseguinte, jamais se admitiria que um “núcleo familiar” postulasse em juízo a reparação pelos danos e, posteriormente, cada um dos demais parentes do “ofendido direto” (componentes desse mesmo “núcleo familiar”) continuassem legitimados a demandar em nome próprio, em virtude do mesmo fato.


Parece óbvio que a resolução definitiva da primeira ação judicial proposta por parente do “ofendido direito”, faça coisa julgada (arts. 472 e 474, CPC) para todos os integrantes do núcleo familiar, já que parentes próximos como cônjuges, pais, filhos e irmãos, em hipótese alguma, podem ser considerados terceiros, uns para com os outros.


Como efeito, não é razoável admitir que um cônjuge ajuíze ação de indenização em decorrência da morte do filho, sem que esse fato seja de conhecimento do outro cônjuge; ou que o pai ajuíze ação pela morte do filho, sem que o filho sobrevivente saiba do fato.


Ora, se os parentes mais próximos são co-legitimados, qual a razão de um parente permanecer inerte mesmo sabendo que o outro vai demandar em virtude da morte do ente querido? Nessa hipótese, poderia o parente desidioso propor ação autônoma em virtude do mesmo fato?


Não podemos admitir uma resposta positiva a essa questão, sob pena de grave afronta ao princípio segundo o qual “ninguém pode se valer da própria torpeza” (Nemo auditur propriam turpitudinem allegans).


Em que pese haver grande controvérsia doutrinária a respeito dos limites subjetivos da coisa julgada, entendemos que a regra geral do art. 472 do CPC deve ser mitigada nos casos de co-legitimação, mormente, quando um co-legitimado tinha conhecimento de ação proposta por outro e preferiu permanecer inerte.


Com efeito, defendemos que, nos casos de legitimação concorrente, o co-legitimado, que poderia ter sido parte no processo, na qualidade de litisconsorte unitário facultativo ativo, mas não foi, ficará vinculado aos efeitos da coisa julgada produzida pela decisão proferida na causa (MOREIRA, 1971, 273/294; TUCCI, 2001, 229).


Não é ocioso destacar que há autores que são contra a extensão da coisa julgada ao co-legitimado (TALAMINI, 2004, 210/211; GRINOVER, 2006, 221/229; BUENO, 2009, 483/484) e, outros, que se posicionam numa linha intermediária, condicionando tal extensão da coisa julgada à prévia intimação do co-legitimado para figurar no pólo ativo da demanda (DIDIER JR., BRAGA, OLIVEIRA, 2007, 490; MARINONI, MITIDIERO, 2007, 101). Essa última hipótese parece ser a mais consentânea com os princípios da inafastabilidade do judiciário e do devido processo legal, mas é insuficiente para resolver o problema, quando só se descobre a existência de um co-legitimado com o ajuizamento da segunda ação, posteriormente, à reparação da primeira.


3.2.3.3 Aspectos relacionados à segurança jurídica


A análise do tema proposto, não pode negligenciar os reflexos que tem causado sobre a segurança jurídica, sobre a estabilização das demandas.


É que, se as teorias hoje existentes acerca da legitimidade ativa nas ações de indenização por morte permitem o ajuizamento de várias ações de indenização em virtude de um mesmo fato, é óbvio que não se encontram em conformidade com a Constituição, na medida em que concorrem para a instabilidade, para a insegurança jurídica.


Com efeito, de acordo com as teorias vigentes, nada garante que o réu, em ação de indenização por morte, não seja novamente demandado, mesmo depois de configurada a coisa julgada e reparado o dano.


Ora, a segurança é pressuposto fundamental da vida humana; necessidade das mais urgentes e primitivas e que resulta da própria natureza do homem (NÓBREGA, 2007, 101).


O direito é a técnica da segurança, o que não significa que não tenha por finalidade a justiça. A justiça, porém, está muito além das possibilidades humanas, o que faz com que nos contentemos com a segurança, como seu sucedâneo (Idem, 2007, 101).


A segurança é a base da justiça. Um regime social em que haja segurança, em que haja ordem e estabilidade, será por isso só um regime justo. O fim do direito é realizar esse regime, conseguir o máximo possível de segurança, eliminando o máximo possível de arbitrariedade, de anarquia, de incerteza e instabilidade (Idem, 2007, 102).


Por conseguinte, dúvida inexiste que também sobre o prisma da segurança jurídica, faz-se necessária a adoção de novas soluções para o problema da legitimidade ativa concorrente nas ações de indenização por morte.


3.2.3.4 Aspectos hermenêuticos – postulado da razoabilidade


O postulado da razoabilidade pode ser expressado através de três relevantes acepções, quais sejam: primeiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação das normas gerais com as individualidades do caso concreto, quer mostrando sob qual perspectiva a norma deve ser aplicada, quer afastando a aplicação da norma geral, em virtude das peculiaridades do caso individual; segundo, a razoabilidade é empregada como diretriz que exige uma vinculação das normas jurídicas com o mundo ao qual elas fazem referência, seja reclamando a existência de um suporte empírico e adequado a qualquer ato jurídico (deve-se presumir o que normalmente acontece, e não o extraordinário), seja demandando uma relação congruente entre a medida adotada e o fim que ela pretende atingir (a causa eleita pelo legislador para a atuação estatal, deve se respaldar na realidade); terceiro, a razoabilidade é utilizada como diretriz que exige a relação de equivalência entre duas grandezas (necessidade de proporção ente a medida e sua causa) (ÁVILA, 2009, 152).


Essas considerações possibilitam a ilação de que a aplicação da regra geral, em virtude das especificidades do caso concreto, pode ser afastada, apesar de determinado caso se adequar à sua hipótese de incidência (Idem, 2009, 155).


Por conseguinte, em consonância com o postulado da razoabilidade, em casos de morte como os citados no presente trabalho, não se pode admitir a co-legitimação autônoma ensejadora de ações em “cascatas”, tendo em vista a flagrante ausência suporte empírico, já que se deve presumir o que normalmente acontece, e não o extraordinário.


É que não se pode admitir que o falecimento de uma pessoa legitime, de forma independente e autônoma, todos os seus parentes, sem que os mais próximos excluam os mais remotos, pois as regras de experiência demonstram que apenas os parentes integrantes do núcleo familiar é que realmente suportam o dano.


Assinale-se, por oportuno, que os postulados normativos, como a razoabilidade, são normas imediatamente metódicas, que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas no plano do objeto de aplicação. Qualificam-se como metanormas, ou normas de segundo grau, na medida em que se constituem em normas sobre a aplicação de outras normas. Ou seja, quando se está diante de um postulado normativo, há uma diretriz metódica que se dirige ao intérprete relativamente à interpretação de outras normas (Idem, 2009, 122).


Os postulados têm funcionamento próprio e diverso dos princípios e das regras. Primeiro, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objeto de aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. Segundo, porque não possuem os mesmos destinatários: os postulados são diretamente dirigidos ao intérprete e aplicador do Direito; ao passo que os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos jurisdicionados (Idem, 2009, 122).


4. CONCLUSÕES


O presente trabalho buscou, através de argumentos de ordem material e processual, princípios constitucionais e em postulados hermenêuticos, construir uma nova sugestão ao problema da legitimidade ativa concorrente, nas ações de indenização por morte, visando evitar iniquidades tanto para as eventuais vítimas, como para o réu.


A sugestão proposta tem o escopo de ser aplicada ao maior número de casos possíveis, sem que se enseje injustiças decorrentes das peculiaridades do caso concreto.


Nessa linha, foi que se propôs a adoção de diversos critérios de legitimação excludente que, a um só tempo, pudesse dar guarida a vítimas como: a companheira, o filho havido fora do casamento, dentre outros e, evitar o ajuizamento malicioso de diversas ações em virtude de um mesmo fato.


Os critérios sugeridos de legitimação excludentes são: a) a adoção, a priori, das regras da linha sucessória; b) adoção das regras relativas à prestação de alimentos em caso de homicídio, com complementação do art. 16 da Lei nº 8.213/91; c) o reconhecimento de solidariedade ativa, com a extinção da relação entre o agente e as vítimas, mediante o pagamento de indenização a qualquer delas; d) a atribuição de legitimidade ativa ao “núcleo familiar”, com extensão da coisa julgada a todos os seus integrantes; e) a observância do princípio da segurança jurídica e, f) aplicação do postulado da razoabilidade como método de interpretação da questão.


 


Referências

ÁVILA, H. Teoria dos Princípios. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BUENO, C.S. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. 2ªed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

CAPPELLETTI, M., GARTH, B. Acesso à Justiça. Tradutor Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988.

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DIAS, J.A. Da Responsabilidade Civil. 11.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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DIDIER JÚNIOR, F.; BRAGA, P.S.; OLIVEIRA, R. Código de Processo Civill Vol.II. Salvador: JusPODIVM, 2007.

GRINOVER, A.P. “Ações Concorrentes – Pluralidade de partes legítimas à impugnação de um único ato”. In, LIEBMAN, E. T. Eficácia e autoridade da sentença. 4ª. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

NÓBREGA, J.F. Introdução ao Direito. 8.ed. João Pessoa: Edições Linha d’Água, 2007.

GONÇALVES, C.R. Responsabilidade Civil. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D. Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

MONTENEGRO FILHO, M. Responsabilidade Civil: aspectos processuais. São Paulo: Atlas, 2007.

MOREIRA, J.C.B. “Coisa julgada: extensão subjetiva. Litispendência. Ação de nulidade de patente”. In: Direito Processual Civil (ensaios e pareceres). Rio de Janeiro: Borsoi,1971.

NERY JÚNIOR, N.; NERY, R.M.A. Código de Processo Civil Comentado. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

TALAMINI, E. “Partes, terceiros e coisa julgada (os limites subjetivos da coisa julgada)”. Aspectos Polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil e assuntos afins. DIDIER JR., F. e WAMBIER, T.A.A. (Coord.). São Paulo: RT, 2004.

TUCCI, R.C. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. São Paulo: RT, 2001.

 

Notas:

[1] “Ainda, hoje, temos alguns raros exemplos de autotutela: a) desforço necessário (art. 1.210, § 1º, do CC); b) direito de retenção (art. 1.219 do CC); c) o penhor legal (art. 1.470 do CC) e, d) atos praticados em legítima defesa e no exercício regular do direito (art. 188, I e II, do CC).”

[2] “V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

[3] “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

[4] “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

[5] “Art. 1829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.”

[6] A companheira e o sócio homoafetivo, são equiparados ao cônjuge.

[7] Vide: REsp’s 1.101.213/RJ; 978.651/SP; 437.316/MG; 530.602/MA; 23.685/RJ; 254.318/RJ e, 155.895/RO. 

[8] “DIREITO PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. BOLETIM DE OCORRÊNCIA. PROVA. DANOS MORAIS. LEGITIMIDADE ATIVA DA IRMÃ. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE PRESO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. 1. O boletim de ocorrência é um documento público que faz prova da existência das declarações ali prestadas, mas não se pode afirmar que tais declarações sejam verídicas. Precedentes. 2. Portanto, o fato de a agente prisional ter informado no boletim de ocorrência o estado civil da vítima como “convivente” – o que, segundo o recorrente, revelaria a existência de união estável – não afasta, por si só, a legitimidade ativa da irmã da vítima para propor a ação indenizatória. 3. Na ausência de ascendente, descente ou cônjuge, a irmã acha-se legitimada para pleitear indenização por danos morais em razão do falecimento de seu irmão. Precedentes. 4. A responsabilidade civil do Estado nos casos de morte de pessoas custodiadas é objetiva. Precedentes. 5. Recurso especial não provido.” (REsp 1054443/MT, Rel. Ministro  CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/08/2009, DJe 31/08/2009)

[9] “Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:

II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.”

[10] Contrariamente ao nosso entendimento: (DIAS, 2006, 1061/1062).

[11] “Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda.

Art. 267. Cada um dos credores solidários tem direito a exigir do devedor o cumprimento da prestação por inteiro.”

[12] “Art. 269. O pagamento feito a um dos credores solidários extingue a dívida até o montante do que foi pago.”

[13] “Art. 272. O credor que tiver remitido a dívida ou recebido o pagamento responderá aos outros pela parte que lhes caiba.”

[14] “Art. 1817. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da sentença de exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos.”


Informações Sobre o Autor

Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Jr.

Formado pela Universidade Federal da Paraíba, Advogado militante, Especialista em Direito Processual Civil pelaUniversidade Potiguar – UNP, Mestrando em Direito Processual Civil pela UNICAP


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