A influência do paradigma racionalista no processo civil

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Introdução


O processo civil brasileiro sofreu uma forte influência do paradigma racionalista. Tal influência pode ser percebida na premissa sob a qual se fundamenta o sistema recursal, qual seja, a de que há uma verdade a ser “desvelada” no processo, de tal sorte que o ele é conduzido, pela via recursal, aos Tribunais Superiores, teoricamente compostos por juízes capazes de revelar o verdadeiro e único sentido da lei, de acordo com a visão racionalista.


1. A ORIGEM DO RACIONALISMO


1.1 O papel do mito na sociedade


Jaques Lenoble e François Ost analisam a influência racionalista nas instituições do mundo moderno através de um resgate histórico da humanidade. Segundo estes autores, para o homem primitivo o mundo era uma profusão, na qual não se distinguiam o homem e a natureza. Tudo se reduzia a uma mesma comunidade, toda ela subordinada às ordens emanadas de seres míticos, sobrenaturais, sobre os quais a humanidade não tinha qualquer controle. [1]


O pensamento mítico, que sustentava a realidade primitiva, é a expressão das emoções humanas, regido por uma lei que assimila as coisas mais distintas entre si, que ignora o princípio da não-contradição. É natural, porém, que o homem primitivo, em processo de elaboração lingüística, tivesse um reduzido grau de distinção entre sua expressão e suas emoções. [2]


Na fase inicial de apreensão do mundo pelo pensamento, o mito exerce uma função de regulação da vida social, pois é através dele que o homem pode se situar na escala de valores, e encontrar seu lugar no mundo.[3] O mito é, assim,


“toda a cristalização de uma imagem pura e transcendente que não permita resolver o existente a partir de um projeto autônomo de crítica às estruturas do comportamento individual ou social.”[4]


É a partir do mito que ocorre a apreensão e compreensão do mundo, através da substituição do tempo histórico por fábulas, nas quais as ações e os acontecimentos são enquadrados em protótipos eternos. A funcionalidade do mito descansa, por conseguinte, “no estar fora e acima do tempo, ou em sua historicidade”.[5]


Entretanto, a determinante concepção de mundo, fundada na visão do homem filtrada pelos mitos, foi, aos poucos, sendo superada pela concepção de que o mundo e o estado das coisas nada mais são do que uma teia de causas e efeitos.


No mundo moderno, o pensamento mítico, alijado do universo das ciências naturais, deixou marcas determinantes nas ciências sociais, especialmente na política, onde remanesce a tendência dos homens a se submeterem ao controle da “vontade sobrenatural” de divindades, que povoam o imaginário social.


Os ranços da mitificação sobre os quais se estruturou a sociedade primitiva, estão presentes na moderna concepção de mundo, segundo a qual a coletividade tem a oportunidade de eleger um super-homem, onisciente e onipotente, que tem a missão de conduzi-la. Esta visão mítica “como processo simbólico pelo qual se pretende fixar critérios de conformismo social”[6] encontra seu correspondente, no mundo moderno, nas mais diversas instituições, dentre as quais a mais relevante talvez seja a figura do próprio Estado, forjado a partir de teorias que tentavam explicar a sua natureza coletiva, mesmo diante das evidências de que ele, mormente nos primórdios de seu surgimento, servia apenas a uma pequena facção da coletividade, sem que sequer fosse cogitada sua função de promoção do bem estar comum. Seria o mito, assim,


“um discurso cuja função é esvaziar o real e pacificar as consciências, fazendo com que os homens se conformem com a situação que lhes foi imposta socialmente, e que não só aceitem como venerem as formas de poder que engendram essa situação.”[7]


Conforme analisa Rogério Viola Coelho[8], ao comentar a obra de Ost e Lenoble,


“o homem moderno cria entidades imaginárias, entes de razão a que são atribuídas relevantes funções na vida social, conferindo-lhes atributos humanos – vontade, poder, sentimentos, etc… – sem observar, na fixação destes atributos, os limites inerentes ao homem. Estes seres fictícios, sobre-humanos, são também a personificação de desejos coletivos.”


Na sociedade moderna, os mitos, muitas vezes, são criados por uma minoria, para consumo da maioria mediante a indução da construção de desejos coletivos que sustentarão os mitos. Desnecessário mencionar que a criação de tais mitos contribui para o atual estabilishment social.


2. A INFLUÊNCIA DO PARADIGMA RACIONALISTA NA DOGMÁTICA JURÍDICA


Dentro da lógica da influência do pensamento mítico na formação do mundo moderno, a concepção de Estado ultrapassa a noção de sociedade civil e, no imaginário coletivo, ele passa a exercer o papel de instituidor da sociedade.


O imaginário coletivo, imbuído do pensamento mítico remanescente dos primórdios da humanidade, dissolvido no todo social, encontra no Estado o braço de Deus na terra. Esta transferência é fruto da constatação de que o Estado-instituição é o único recurso de que o homem comum dispõe para garantir sua segurança, além de outros serviços básicos, muitas vezes inacessíveis através de recursos cuja origem não esteja na prestação estatal, seja em face do monopólio de alguns serviços pelo Estado, seja em face da incapacidade individual de obtenção dos meios necessários.


A figura divinizada do Estado é, pois, a sustentação do ideário coletivo, que coloca acima dos três poderes um ente dotado de vontade, e que visa o bem comum, para o qual aqueles seriam apenas a manifestação palpável, como órgãos que expressam sua vontade onipotente.


Desta forma, a lógica jurídica se insere num contexto marcado por “significações sacralizadas”[9], estruturadoras  de uma esfera de categorias fixas, essencialmente míticas, dentro da qual se desenvolve um discurso marcado pelo dogma. O próprio direito é “um princípio de uma autoridade eterna fora do tempo e mistificante, conforme as exigências dos mecanismos de controle burocrático num contexto centralista.”[10]


Assim se originou e desenvolveu o mito do legislador racional, braço do Estado, capaz de construir e delinear a lógica perfeita, tradução da vontade coletiva. Este resultado é, pois, fruto do culto à razão, difundido pelo Iluminismo, que criou uma ordem universal através da qual o avanço da humanidade foi impulsionado. Warat refere, a propósito, que o mito é fundamento da racionalidade moderna. Racionalidade esta que é impessoal e anônima, e que age como lei universal, ocultando a presença de grupos ou setores sociais que emitem tais mensagens, sendo que, no direito, “a idéia do emissor universal pode ser identificada com o culto ao espírito do legislador”.[11]


Nasce, deste modo, a razão de ser do direito, que instrumentaliza a dominação coletiva, produzindo a coesão social necessária à manutenção da estabilidade social, sendo que o êxito do direito “depende de dar um significado efetivo à idéia de um governo do direito como algo unificado e racional”.[12]


O mito do legislador racional é um dos fundamentos do fato de que a hermenêutica jurídica, desde os primórdios do desenvolvimento da idéia de um método jurídico, persegue não apenas um significado para a lei, mas sim “el significado de la ley o, com mayor precisión, el sentido objetivo depoistado em la letra de la ley.”[13] A persecução do significado espiritualmente vinculado ao texto legal, segundo assevera Manuel Calvo García, representa a vontade do legislador, que  o intérprete há de descobrir com sua atividade hermenêutica.[14] Neste contexto


“se hace transcender la objetividad de la interpretción más allá de la superfície textual, ligándola a um significado profundo cuya autoridad sería incontestable y sentandolas bases de um saber legítimo, um orden dogmático que al mismo tiempo que introduce márgenes de flexibilidad necesarios elimina cualquier obstáculo, opacidad o distorción que pudiera menoscabar la autoridad legisladora. Al identificar el sentido objetivo depositado em la letra de la ley como la voluntad de um legislador o uma instancia racional profunda se circunscribe, primero, la validez procedimientos adecuados para alcanzar esse sentido objetivo a aquellos que son reconocidos como tales dentro de la comunidad que administra esa racionalidad profunda e, segundo, de la misma manera, lãs interpretaciones realizadas según esos procedimientos, esto es, lãs interpretaciones autorizadas, expresarían sin opacidad ni distorción alguna el pensamiento o la voluntad incorporada como instancia espiritual de la letra de la ley.”[15]


Tal mística teve sua origem na Revolução Francesa, manifestando-se na transição do poder das mãos do monarca para a lei escrita que, convertida em monopólio do Estado moderno, persegue a estabilização das relações jurídicas. Tal estabilização, apresentada como conveniente para toda a sociedade foi, na verdade, perseguida pelas classes dominantes emergentes naquele período histórico, para garantir a fluidez das operações mercantis em desenvolvimento.


Para garantir sua legitimação, a lei é apresentada como a vontade geral do povo, manifestada através da assembléia legislativa. Esta razão, conquanto oriunda de uma suposta vontade do povo, é distinta da razão divina. Permanece, no entanto, caracterizada pelos mesmos atributos da onisciência e onipotência que delineavam a razão divina e absoluta, mitificada na figura do Estado.


Este contexto importou, ainda, na redução do direito ao significado e aos valores contidos na lei escrita, em detrimento de outras fontes de direito, como o direito natural e as regras de direito moral que conduziram ao desenvolvimento da sociedade e das relações fomentadas no seio desta[16].


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Em torno deste aspecto, relevante a visão de Arthur Kaufmann[17], para quem as concepções de direito natural e de direito positivo não são excludentes uma da outra. Ambas formam sistemas fechados de proposições jurídicas aptas a resolverem todos os casos possíveis, de acordo com as premissas que sustentam, cada qual a seu modo. A diferença entre ambos, segundo leciona, está nos primeiros princípios de cada sistema. Para os jusnaturalistas, eles são obtidos pela via da evidência, enquanto que, para os positivistas, são obtidos a partir do material legislativo.


Leonel Ohlweiler também ressalta a influência do racionalismo na formação do Estado Moderno, moldado na passagem do século XV para o século XVI, em face da insatisfação com os postulados do mundo medieval e das necessidades das demandas capitalistas em surgimento.


A necessidade de racionalização do poder, somada à crescente necessidade de segurança e previsibilidade estão, segundo ele, na “gênese do Estado Moderno”. Nessa esteira, o poder foi despatrimonializado – como condição para a superação do feudalismo – e despersonalizado, passando o Estado à detenção da sua titularidade. A ciência, como suporte desse processo de racionalização, forneceu ao pensamento elementos de segurança calcados em valores baseados na abstração, como forma de construção de um paradigma oposto àquele cuja superação se impunha, fundado que estava no pensamento desenvolvido a partir de coisas ou casos particulares.[18]


Ao subordinar a validade do conhecimento ao seu desenvolvimento a partir de “categorias gerais”, dissociadas da realidade, a ciência jurídica, na esteira do processo de racionalização que dominou o Estado Moderno, “no intuito de dotar-se de objetividade, deixou de questionar os próprios juízos prévios determinantes de toda a compreensão dos entes jurídicos”[19].


Nesse cenário dominado pela racionalidade, o legislador, orientado pela busca da perfeição, propagada como suporte da arquitetura do Estado Moderno – fruto da vitoriosa Revolução Francesa, que consagrou o modelo de atuação parlamentar já em voga há anos na Inglaterra , onde se fizera legítima para propagar os interesses sociais universais – optou por transferir todo o seu saber para os textos legais organizados em códigos, tidos como compilações aptas a resolver, como um problema matemático, todos os conflitos que poderiam surgir do contexto social, na sua exata extensão.


Tércio Sampaio Ferraz Júnior pondera, por sua vez, que, na ânsia social pela formação de um modelo coeso de solução dos conflitos, a dogmática jurídica não pode, sequer, ser desenvolvida como uma ciência, sob pena de aumentar as angústias sociais.  Por isso, a dogmática jurídica


“se desenvolve antes como uma tecnologia que tem, para aqueles que não a conhecem, aspectos de um rito cerimonial, os quais a respeitam como uma constante busca dos princípios da coerência jurídica.”[20]


Leonel Ohlweiler também ressalta a influência da Revolução Francesa no processo de elevação da lei ao papel central do universo jurídico. Segundo observa, no movimento racionalista fomentado na Revolução Francesa


“a lei constituiu-se um instrumento de representação da razão, da racionalidade, pois por intermédio dela estar-se-ia garantindo estabilidade, em oposição ao particularismo, bem como salvaguardando o “interesse geral”, devido ao seu caráter impessoal, capaz de criar uma unidade. Neste aspecto, foi significativo o contributo de Rosseau ao construir o dogma da vontade geral, caracterização nitidamente metafísica.”[21]


Arthur Kaufmann desvenda o pensamento jurídico a partir da lógica, quase matemática, pela qual ele se apresenta. O mesmo autor registra, além disso, que os dogmas jurídicos, apresentados como verdades amparadas na ciência, são carregados de intencionalidade. Nas suas palavras:


“La irreflexión tradicional de la dogmática y de los prácticos del derecho acerca de sus supuestos cognoscitivos conlleva el peligro de una ideologización del derecho, en que opiniones son presentadas como verdades, amparadas por la ciencia, y decisiones cargadas de intencionalidad como actos aplicadores de normas generales en que no interviene elemento alguno que no sea cognoscitivo. Es indudable que en la manera de pensar de los juristas han influido poderosamente el esquema mental del racionalismo y el dogma político, emparentado con éste, de la separación de poderes. En virtud del primero, se ha creído posible derivar de normas generales, sin que medie acto de voluntad, una solución sistemáticamente correcta para cada caso concreto; la albor del juez se asemeja, de acuerdo con esta concepción, al trabajo realizado por una moderna computadora alimentada de fórmulas que, combinadas conceptualmente, resuelven diversos problemas concretos. En virtud del dogma de la separación de poderes aparece como herejía afirmar que los jueces realizan respecto a la norme general un acto más complejo que la mera subsunción lógica de lo particular (caso) en lo general (norma).” [22]


Não tardou para que as imperfeições dos textos legais aparecessem, reveladas pelas contradições e omissões inerentes ao processo de aplicação destes. Tal problema, entretanto, foi resolvido através da criação da ficção de que uma coisa é o texto da lei, sujeito às imperfeições humanas; outra, bem distinta, é o significado que o legislador pretendeu conferir ao mesmo, este sim, racional e perfeito. Esse traço metafísico traduz-se, segundo definição de Rogério Viola Coelho[23], de “um pensamento que adere ao texto como a alma adere ao corpo, sem confundir-se com ele.”


A lição supra, aliás, já era ditada por Hobbes, para quem o texto da lei não poderia se confundir com o a intenção do legislador, à qual deve se ater, estritamente, o julgador.


Na esteira desse raciocínio, registrou Hobbes que:


“Nossos juristas concordam com o fato e a Lei nunca ser contrária à razão, e dela não ser a Letra (isto é, cada um das suas frases), mas a Intenção do legislador. Apesar disto ser verdadeiro, subsiste a dúvida sobre qual Razão deve ser aceita como Lei. Não deverá ser alguma razão privada, o que ocasionaria tantas contradições nas Leis como as há nas Escolas. Nem, tampouco, (como pretende Sir Edward Coke) de uma perfeição Artificial da Razão, obtida através de muito estudo, observação e experiência (como era a dele). É possível que muito estudo fortaleça e confirme Sentenças errôneas e, quando se constrói sobre falsos fundamentos, quanto mais se constrói maior é a ruína. Além disso, as razões e resoluções dos que estudam e observam com igual diligência e durante o mesmo tempo são e sempre serão discordantes. Portanto, o que fez a lei não é a Juris Prudentia ou sabedoria dos juízes subordinados, mas a Razão deste Homem Artificial, o Estado, e suas Ordens. Tendo em vista que o estado é, em seu Representante, uma só Pessoa, não é fácil surgir uma contradição nas Leis, e quando tal acontece a mesma razão é capaz, por interpretação ou alteração, de eliminar a contradição. Em todos os Tribunais de Justiça que julga é o Soberano (que é a Pessoa do Estado). O Juiz subordinado deve considerar a razão que levou o Soberano a fazer determinada Lei, para que sua sentença esteja conforme com ela e, neste caso, será a Sentença do Soberano, caso contrário será a sua e, portanto, injusto.” [24]


Trata-se, conforme já enunciava o próprio Hobbes, de um legislador sobre humano, que está acima das imperfeições mundanas, e que transpassa a sua perfeição ao sentido do texto legal por ele elaborado.[25]


Este é o mito do legislador racional: uma ficção legitimada pelo pensamento mítico e produzida no seio do pensamento iluminista, caracterizada pela perfeição de seus atos e do resultado destes.


O desvelamento da vontade perfeita deste ente fictício requereu a formulação de um sistema processual racional que conduzisse, necessariamente, ao verdadeiro sentido da lei produzida pelo legislador, legitimado por traduzir a “vontade geral do povo”.


A função de julgar, segundo esta concepção, tem apenas o sentido de revelação da vontade do legislador racional, de modo que o Poder Judiciário nada mais é do que um órgão de execução do Poder Legislativo.


As reiteradas constatações de que as leis deixam lacunas, agregadas à constatação de que os juízes acabavam por conferir distintas interpretações ao mesmo texto legal, conduziram, porém, à necessária superação de tais desencontros nos pronunciamentos judiciários.


Tais dificuldades acabaram por ser supridas com a formatação da estrutura centralizada e piramidal do Poder Judiciário, capaz de harmonizar todos os desencontros do sistema jurídico, mediante a uniformização do sentido legal, pois


“o saber jurídico aposta na racionalidade para garantir o poder, incrementar a organização hierarquizada do espaço  social e regular, veladamente, o imaginário jurídico-político de nossa experiência cotidiana.”[26]


Conforme registra Rogério Viola Coelho, os juízes, no exercício de sua função, haveriam


“de afastar qualquer consideração valorativa, abstrair inteiramente os princípios de justiça próprios ou da sociedade, controlar inteiramente suas paixões, olvidar inteiramente sua concepção de mundo e de sociedade, enfim, despojar-se de toda sua subjetividade humana para poder  – como um verdadeiro oráculo – auscultar aquele legislador hipotético, captando com absoluta fidelidade sua vontade, imperfeitamente expressa no texto da lei. A decisão judicial seria, assim, a manifestação dessa vontade onisciente e onipotente no caso concreto, a realização dos desígnios desse ente divinizado no mundo real.”[27]


Neste sistema mítico, perfeito,


“(…) as leis correspondem aos evangelhos que, embora escritos por homens, seriam a materialização (imperfeita) da vontade de Deus, cabendo aos sacerdotes, seus representantes na terra, desvenda-la. Os juízes singulares – sujeitos a invencíveis limitações e paixões humanas – tenderiam, naturalmente, a agir como oráculos fragmentários, díspares, habitualmente contraditórios, na tradução da vontade divinizado legislador hipotético. Assim como a necessidade de revelar uma vontade divina unívoca deu ensejo a estrutura hierarquizada da Igreja, entronizando no seu topo a autoridade infalível do Papa, a estrutura monárquica do Poder Judiciário encontra seu fundamento na natureza divinizada do legislador racional. Ao órgão situado no topo desta estrutura – guardião supremo da lei – caberia a função maior de assegurar a uniformidade dos oráculos, conferindo à lei aquele caráter majestático que lhe era tão necessário para afirmar o seu império.” [28]


A corte suprema do Poder Judiciário, além de revelar o unívoco sentido dos textos legais, foi investida da função de controlar os magistrados das instâncias inferiores, a fim de consagrar sua hegemonia sobre todos os membros do poder. Warat também refere que o direito, na qualidade de discurso que determina um espaço de poder, é obscuro, permeado por segredos e silêncios, os quais constituem efeitos mágicos e mecanismos de ritualização, que contribuem para a “ocultação e clausura das técnicas de manipulação social”.[29]


Ainda no magistério de Rogério Viola Coelho,


“Este poder – hoje exacerbado pela faculdade conferida aos Tribunais Superiores de sumular preventivamente matérias tidas por relevantes – submete a atividade judicante à autoridade de “artigos de fé”, da mesma forma que as bulas papais se impõem aos sacerdotes sepultando os entendimentos divergentes sobre as matérias versadas.” [30]


O fato é que, pronunciando-se a Corte Suprema de Justiça sobre determinado tema, poucos são os que ousam dela discordar, como se, antes mesmo da institucionalização da tão falada “súmula vinculante” esta já existisse, pois, na estrutura vertical na qual é baseada a organização judiciária brasileira, o “juiz sábio é aquele que esforça-se para mostrar que não tem opinião própria sobre nada”, conforme observa Guéhenno[31].


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Tendo originariamente analisado as relações de poder existentes em presídios e instituições psiquiátricas, Foucault estendeu a validade de suas análises às relações de poder existentes em exércitos, escolas e fábricas. Em tais relações ocorre, segundo afirma, o desenvolvimento de mecanismos de controle que “asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade”.[32] A vigilância exercida pelo poder, que muito bem se aproxima do caso em comento, atua na formação de um homem adequado ao funcionamento da sociedade industrial, atendendo à necessidade de um comportamento racional, intenso e economicamente maximizado.[33]


Os julgamentos proferidos pelos Tribunais Superiores exercem, sobre os magistrados das instâncias inferiores, efeitos semelhantes àqueles produzidos pelo olhar vigilante do Estado sob os presos, dos patrões sob os operários ou dos médicos psiquiátricos sob seus pacientes. E o olhar vigilante, que teve um grande papel nas técnicas de poder desenvolvidas na época moderna, exige poucos recursos e dispensa “armas, violências físicas, coações materiais”, pois basta


“apenas um olhar. Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo assim, cada um exercerá esta vigilância sobre e contra si mesmo. Fórmula maravilhosa: um poder contínuo e de custo afinal de contas irrisório”.[34]


O poder não pode ser reduzido à legislação, à Constituição ou ao âmbito de atuação do Estado. Conforme assevera Foucault, o poder é muito mais denso ou difuso do que isto, e sem esta percepção não se poderia pretender compreender o “desenvolvimento das forças produtivas próprias do capitalismo”[35]O poder tampouco é identificado com um indivíduo específico, ele é uma maquinaria da qual ninguém é titular, na qual alguns ocupam um lugar de supremacia, de modo a “assegurar a dominação de classe, na medida em que dissociam o poder do domínio individual.”[36]


O resgate do precedente paradigmático, somado à análise retrospectiva da construção do mito do legislador racional no imaginário coletivo, como também da importação deste modelo mítico para o Poder Judiciário (tanto na sua estruturação como na autoridade das decisões proferidas pela cúpula deste poder), evidencia a necessidade de se repensar o processo de interpretação que, muito além de mero método de reprodução do sentido da lei, é elemento essencial da construção do direito.


Acerca da criação do direito através das decisões judiciais, Mauro Capelletti observa que, atualmente, é impensável a discussão em torno deste aspecto, pois a criação do direito pelo processo de interpretação é incontestável, seja em face das distintas interpretações conferidas aos precedentes judiciais, seja em razão do fato de que toda a interpretação, cujo objeto sejam a linguagem e as palavras, é fonte de transformação. [37]


Com o surgimento do Estado do Bem Estar Social, as ações humanas assumiram um caráter coletivo, em face do fenômeno da massificação, que atingiu todos os setores da sociedade, de tal maneira que


“cada vez mais freqüentemente, a complexidade das sociedades modernas gera situações nas quais um único ato pode beneficiar ou prejudicar grande número de pessoas, com a conseqüência, dentre outras, de que o esquema tradicional do processo judiciário como “lide entre duas partes” e “coisa das partes” resulta inadequado.”[38]


Na sociedade moderna, os indivíduos mostram-se incapazes de defender a si próprios de forma adequada, já que “o indivíduo isolado é desarmado”.[39] Em tal contexto, a função judicial, em sua vertente criadora de direito, através dos processos de interpretação, torna-se cada vez mais relevante, pois, tratando-se de direitos sociais, principalmente, “as leis e direitos são freqüentemente muito vagos, fluidos e programáticos”, de modo que “torna-se inevitável alto grau de ativismo e criatividade do juiz chamado a interpretá-lo.”[40]


Assim, em face de sua função transformadora do presente, os direitos sociais impõem um importantíssimo papel aos juízes, papel este que se desenvolve principalmente através de uma postura crítica, atuante e criativa. Mesmo que a postura inicial da magistratura seja a de negar a relevância desse papel, e negar sua função criativa do direito, o fato é que, como assevera Cappelletti, mais cedo ou mais tarde, conforme ocorreu na Itália e em outros países, “os juízes deverão aceitar a realidade da transformada concepção do direito e da nova função do estado, do qual constituem, também, um ramo”[41], quando, então, será difícil para eles resistir à sua função de imprimir conteúdo às finalidades e princípios encartados no texto constitucional do Estado.


É de registrar-se que


“É manifesto o caráter acentuadamente criativo da atividade judiciária de interpretação e de atuação da legislação dos direitos sociais. Deve reiterar-se, é certo, que a diferença em relação ao papel mais tradicional dos juízes é apenas de grau e não de conteúdo: mais uma vez impõe-se repetir que, em alguma medida, , toda interpretação é criativa, e que sempre se mostra inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional. Mas obviamente, nessas novas áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, espaço para mais elevado grau de discricionariedade e, assim, de criatividade, pela simples razão de que quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço  deixado à discricionariedade das decisões judiciárias. Esta é, portanto, poderosa causa da acentuação que, em nossa época, teve o ativismo, o dinamismo e, enfim, a criatividade dos juízes.”[42]


A mera reprodução, pelos magistrados de primeiro grau, das decisões proferidas pelos tribunais superiores, sem a leitura da questão sob exame a partir de um olhar histórico, está na contramão do papel atribuído à magistratura, pois


“o homem ausculta sua temporalidade. Nesta temporalidade o homem peregrina e deixa sinais ao longo do caminho. O sinal mais decisivo é a linguagem. A força do tempo reside na historicidade do homem e desabrocha na palavra. É por isso que a paisagem humana se povoa de verbos. Eles conjugam a unidade das dimensões do homem na temporalidade. A exegese do verbo, a hermenêutica da palavra, é a exploração de nossa condição humana que acontece como história.”[43]


2. O MITO DO LEGISLADOR RACIONAL E O SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO: ELEMENTOS PARA O DEBATE


Efetuado o resgate histórico acerca da influência do racionalismo na construção do Estado, é de se analisar quais são os impactos da referida influência no processo civil brasileiro, como forma de se buscar alternativas à situação posta.


2.1. Apontamentos acerca das conseqüências do racionalismo no processo civil brasileiro


O paradigma racionalista, que prega a existência de um “verdadeiro sentido da lei” tem duas conseqüências que merecem ser apontadas.


Em primeiro lugar, no processo civil, a existência de um mito segundo o qual a lei tem um sentido verdadeiro a ser desvelado permanece arraigado na estruturação do organograma judiciário, que conduz a lide às mais altas escalas do poder – no caso, ao Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho – mediante um sistema recursal que afunila a esfera daqueles que estão legitimados a pronunciar o “verdadeiro sentido da lei”.


 A lei passa, desta forma, a ter o “sentido do poder”. Acerca desta questão, relevante a lição de Lenio Luiz Streck, para quem a tentativa de manutenção do establishment jurídico, através da uniformização do sentido da lei é, na verdade, uma espécie de violência simbólica. Trata-se, segundo refere, “do poder capaz de impor suas significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundo da própria força[44]. O poder, nesta concepção, é traduzido pelo controle que afasta significações alternativas. Conseqüência disso é o papel determinante atribuído, pelos juristas, à jurisprudência dominante, por exemplo, bem como a conduta dos operadores do direito, que, em face da publicação de uma nova lei, permanecem à espera de uma decisão que lhes mostre o que ela pretendeu dizer. [45]


A revelação de que a ciência jurídica foi concebida a partir da premissa racionalista, segundo a qual a lei possui um sentido unívoco, é desvelada mediante a análise atenta do sistema recursal vigente, que privilegia a atuação dos tribunais superiores – como os únicos capazes de revelar o real sentido da lei -, em detrimento da atuação dos juízes monocráticos, que, ao julgar, expressam suas convicções pessoais.


No processo civil brasileiro, o percurso que conduz à verdade, e que deve, portanto, ser percorrido, encontra sua tradução no procedimento ordinário. É claro que não se ignoram as diversas espécies processuais de tutela específica, como a de urgência, por exemplo. Contudo, não se pode olvidar que a prática jurídica evidencia que o procedimento ordinário foi por esta consagrado como o mais seguro dos procedimentos, razão pela qual, aliás, é o procedimento a ser utilizado em todas as situações para as quais não existe outro procedimento específico, ou quando as circunstâncias causais não ensejam algum tipo de tutela especial.


O procedimento ordinário, contudo, se tornou obsoleto e insuficiente para garantir aos cidadãos a efetividade da prestação jurisdicional, pois o tempo necessário ao seu desenvolvimento não condiz com o “tempo” no qual vive a sociedade, em plena era da informática. Conforme observa o Professor Ovídio Baptista da Silva,


“(…) os procedimentos plenários, apesar de sua intrínseca morosidade, não atendem nem à certeza de uma justiça tão perfeita quanto seu custo, nem muito menos à segurança de um julgamento produzido pela suposta univocidade lógica do raciocínio silogístico, que foi a generosa esperança nutrida pela doutrina moderna.” [46]


É claro que os inúmeros atos processuais que consubstanciam o procedimento ordinário, assim como as diversas espécies recursais, não são apresentadas à coletividade a partir do aspecto ora abordado. O longo caminho a ser percorrido pelos litigantes até o pronunciamento final do judiciário, incluindo-se aí as fases recursais, é socialmente apresentado sob o rótulo da garantia da “ampla defesa”.


Não basta, sob este enfoque, que ao autor e ao réu sejam garantidas as oportunidades necessárias à real composição da lide, aí compreendidos os momentos processuais aptos a oportunizarem a oitiva das partes e a produção das provas pertinentes à sustentação da cada ponto controverso.  O alcance da ampla defesa requer, segundo entendimento que vem sendo construído nos mais diversos nichos da atuação jurídica, que os Tribunais Superiores manifestem-se acerca da lide, ou, ao menos, que seja garantido às partes a possibilidade de tentarem levar a questão ao conhecimento destes.


Analisando a questão do alcance e das conseqüências da ampla defesa, Ovídio Baptista da Silva[47], em mais uma lição de extrema relevância, aduz que este caminho, além de não fazer eco à eloqüência de sua “versão retórica”, ainda compromete a efetividade da prestação jurisdicional, pois torna a justiça brasileira tão “lenta, inoperante e anacrônica” quanto o era antes da consagração do princípio à categoria da constitucional. Questionando a real finalidade do instituto, ele próprio declara que as respostas comumente dadas a esta  indagação seria a questão da proteção do réu contra eventuais injustiças que este possa sofrer na tentativa de comprovar a falsidade das alegações de seu adversário. Contudo, no seu entender,


“(…) esta forma maniqueísta de compreender os fatos processuais, como se a função do processo civil fosse, como muitos ainda supõem, a descoberta da verdade, nada mais é do que uma doce ilusão, que os tribunais quotidianamente se encarregam de desmentir. Uma lide, ou, se quisermos, o processo que a contém, oferece ao julgador – e nos juízos colegiados isso se torna mais evidente – inúmeras “verdades” ou incontáveis alternativas de solução do conflito, todas elas plausíveis e verossímeis, postas à disposição do magistrado, que acabará formando o convencimento, escolhendo, dentre a multidão de fatos, circunstâncias e indícios existentes nos autos, aqueles que o tenham impressionado mais fortemente, que mais se harmonizem com a sua compreensão do direito e das funções que o ordenamento jurídico haverá de desempenhar, que mais se aproximem da sua visão particular de justiça, a ser feita naquele caso particular, que mais se coaduna com as suas inclinações pessoais, com sua formação moral e com seus compromissos ideológicos. Somente os ingênuos e aqueles que apenas conhecem o direito pelos livros e pelo que se ensina nas universidades não sabem disso!” [48]


Estas considerações nos conduzem, assim, ao segundo aspecto decorrente da influência racionalista no processo civil que merece ser analisado, qual seja, o fato de que os pronunciamentos dos juízes monocráticos acerca da melhor solução da lide não merecem maior atenção, porque tais pronunciamentos não são legítimos veículos do “verdadeiro sentido da lei”.


Não é difícil observar o eco que esta falsa constatação produziu na prática jurídica, pois atualmente as decisões monocráticas não passam de “obstáculos” a serem superados para que a questão litigiosa seja analisada pelos Tribunais Superiores, por mais elaborados que sejam os seus fundamentos e coerentes que sejam os julgados nelas contidos.


Contudo, conforme os argumentos supra transcritos, este ranço racionalista também deve ser superado, e substituído por um modelo processual que prestigie o direito enquanto ciência reguladora das relações sociais, cuja fonte supera a lógica matemática propagada pelos racionalistas, e não apenas como instrumento de estabilização social que clama pela busca e preservação de um único e correto sentido da norma, com vistas a garantir aos cidadãos uma certa previsibilidade acerca das manifestações judiciais.


Os elementos para este debate – acerca do rechaço da racionalidade como viga mestra do processo civil – impulsionado pela constatação de que a verdade no processo não existe, requer sejam construídas vias alternativas para a prestação da tutela jurisdicional, através do processo de interpretação.


Interessante notar que não são raros os juristas que contribuem para que o direito seja enxergado a partir da perspectiva hermenêutica, em detrimento do paradigma racionalista. Neste sentido, Lênio Streck[49] pondera que:


“É preciso ter claro que as palavras da lei não são unívocas, são plurívocas. O“elo” (imanência) que “vinculava” significante e significado está irremediavelmente perdido nos confins da viragem lingüística ocorrida no campo da filosofia. Isto porque (…) alterou-se radicalmente a noção de conhecimento como relação entre pessoas (atores sociais) e proposições. Daí que, pelo processo interpretativo, o jurista “não reproduz ou descobre o verdadeiro sentido da lei, mas cria o sentido que mais convém a seus interesses teórico e político. Neste contexto, sentidos contraditórios podem, não obstante, ser verdadeiros. Em outras palavras, o significado da lei não é autônomo, mas heterônomo. Ele vem de fora e é atribuído pelo intérprete.”


Embora a eloqüência de pronunciamentos semelhantes ao transcrito acima, o fato é que tais palavras não encontram eco na prática judiciária. Portanto, deve-se pensar na aceitabilidade da hermenêutica, não apenas como método subsidiário, mas sim como verdadeiro instrumento de criação do direito, na qualidade de proposta alternativa à interpretação lógica, prestigiando-se a razoabilidade das decisões judiciais.


Com efeito, para que este ponto do estudo seja concluído, a fim de que passemos à análise de métodos alternativos no processo de interpretação, conveniente ressaltar a lição de Luis Recaséns Siches, para quem o direito deve ser pensado não a partir de proposições como “verdade” ou “falsidade”, pois as normas jurídicas, positivas ou ideais, não são verdadeiras ou falsas, certas ou erradas. O direito, segundo leciona, deve ser pensado a partir de predicados como justiça, dignidade da pessoa humana, critérios de liberdade, de igualdade, de serviço ao bem estar geral ou bem comum, de adequação das circunstâncias, de eficácia e de prudência, dentre outros. [50]


2.2. A lógica do razoável


A partir dos pressupostos acima, acerca de métodos alternativos de interpretação legal, é interessante registrar a defesa da lógica do razoável efetuada por Luis Recasens Siches. O autor se dedica ao estudo de tal método que, conforme registra, é uma espécie da lógica tradicional, bem distinta da lógica pura empregada na matemática ou na física. [51]


Segundo narra, a lógica tradicional é eficiente para a apreensão dos fatos da natureza física, apenas. Entretanto, esta lógica físico-matemática não é adequada para tratar da existência humana, razão pela qual não se presta para tratar da interpretação do direito.


O direito, como ciência humana, deve ser desvelado não pela lógica tradicional/racional, mas sim pela lógica do razoável. Esta é uma lógica impregnada de “puntos  de vista estimativos, de criterios de valoración, de pautas axiológicas, que, además, lleva a sus espaldas como aleccionamineto las enseñanzas recibidas de la experiencia, de la experiencia propria y de la experiencia Del prójimo a través de la historia.”[52]


Siches refere, ainda, que a crítica contra o emprego da lógica na interpretação do direito se dirige contra a aplicação de tal método ao conteúdo das normas jurídicas, justamente o objeto da racionalidade até aqui analisada. A lógica tradicional, entretanto, é corretamente empregada quando da sua utilização nos conceitos jurídicos essenciais, como o são os conceitos de norma jurídica, relação jurídica, direito subjetivo, etc… Tal aspecto é fundamental na defesa da lógica do razoável: a aplicação da lógica tradicional é útil na fixação de definições a priori. No entanto, o método não é aconselhável para a formação de silogismos jurídicos, de validez intrínseca pura, como se o seu objeto fosse uma verdade absoluta.


Os conceitos oriundos da lógica tradicional são apenas “etiquetas clasificatorias para uma buena ordenación de los conociminetos jurídicos; pero no eran ideas com validezesencial em sí por si.” Por esta razão, “los contenidos de las normas jurídicas, no pueden, no deben ser tratados como verdades mediante el instrumento de la lógica de lo racional. (…)” , porque a experiência demonstra que a utilização de tal método para definir o conteúdo da norma pode levar ao cometimento de “injustiças monstruosas.”[53]


Constatados os resultados reprováveis que podem advir da utilização do metido lógico tradicional/racional na interpretação do conteúdo da norma, o autor propõe a utilização de outra espécie de lógica na aproximação da interpretação jurídica ao conceito de justiça: a lógica do razoável, que também pertence ao campo da razão, mas que não se confunde com o campo do racional. Esta, contudo, é uma “especie de la razón vital e histórica, o, mejor dicho, una lógica de la acción, la qual es tambien razón, logos, pensamiento justificado. (…) Pues la física se limita a explicar nexos causales entre hechos ininteligibles, mientras que la razón vital no acepta nada como mero hecho en bruto, sino que quiere comprender.”[54]


O jurista aduz que tal espécie de interpretação se faz necessária porque, não raro, as leis se apresentam injustas, ou a sua aplicação de faz injusta, mesmo que a lei seja justa em seus termos gerais. Nestes casos, muitos acreditam ser o caso de “corrigir a lei” quando da sua aplicação. Contudo, ele defende que não se trata de corrigir a lei, mas sim de interpretá-la razoavelmente.


Nesta linha, não se pode cogitar da interpretação literal da lei, pois o legislador não tem o poder de definir o método de interpretação de seus mandatos. Assim, declara Siches que “esencial y necesariamente está fuera del poder de legislador el decidir y regular algo que no cabe jamás incluir dentro del concepto del legialación: el regular el método de interpretación de las normas generales que él emite. Pero, en fin, a veces los legisladores, embriagados de petulancia, sueñan en lo imposible.”[55]


A interpretação literal equivale, segundo o jurista, a negar o próprio sentido da linguagem, porque esta não consiste numa série de palavras, mas sim numa série de sentidos simbolicamente contidos em frases textuais. O verdadeiro sentido das palavras aparece somente no contexto da frase, mas também no contexto real ao qual a frase se refere, ou seja, com relação à situação e intencionalidade intentadas na frase.[56] Por fim, há que se registrar que, ao legislador, não cabe a individualização da lei, mesmo porque, tal tarefa não lhe compete.


O que deve, assim, orientar o processo de interpretação da lei na lógica do razoável é a equidade que, conforme Siches é “el método obligado para la interpretación y la individualización de todas lãs  normas jurídicas generales.”[57]


Ainda segundo Siches[58], a lógica do razoável, para melhor defini-la, possui as seguintes características:


1. Está limitada e condicionada pela realidade concreta do mundo que opera, ou seja, pela realidade de um mundo social e histórico particular, no qual com o qual e para o qual são produzidas as normas jurídicas;


2. A lógica do razoável está impregnada de valorações, critérios valorativos ou axiológicos. Esta característica, aliás, é determinante na distinção que se estabeleceu entre a lógica do razoável e a lógica do racional;


3. As valorações acima referidas são concretamente consideradas, ou seja, dizem respeito a uma situação específica da realidade e, conseqüentemente, devem ser consideradas, no processo interpretativo, todas as possibilidades e limitações reais;


4. As valorações são a base da formulação das finalidades que impregnam a lógica do humano ou do razoável e dão a este sua característica de estrutura especial;


5. A formulação de finalidades  se apóia não apenas em valorações, mas também está condicionada pelas possibilidades que lhe oferece a realidade humana social concreta. A fixação de fins/objetivos é o resultado da combinação do conhecimento sobre uma realidade humana social particular com as valorações concebidas como pertinentes a respeito do que se deve fazer com tal realidade;


6. Conseqüentemente, a lógica do razoável é regida por razões de congruência e adequação:


a) Entre a realidade social e os valores, ou seja, quais são os valores apropriados para a ordenação de uma determinada realidade social;


b) Entre os valores e os fins, isto é, quais são os objetivos valiosos;


c) Entre os objetivos e a realidade social concreta, ou seja, quais são os propósitos de possível e conveniente realização;


d) Entre os fins e os meios, enquanto adequação dos meios para os fins;


e) Entre os fins e os meios, relativamente à correção ética dos meios, a fim de evitar que se caia na máxima de que “os fins justificam os meios”;


f) Entre os fins e os meios no que se refere à eficácia destes últimos;


7. A lógica do razoável está orientada pelos ensinamentos extraídos da experiência histórica, isto é, a experiência individual associada à experiência social – presente e passada – e se desenvolve instruída por esta experiência.


Efetuadas estas considerações, é de se notar que, ultrapassada a errônea premissa segundo a qual o processo é o caminho que conduz, necessariamente, à verdade, é possível que se construam caminhos alternativos para a prestação da tutela jurisdicional aos cidadãos, dentre os quais o da “Lógica do Razoável”.


É claro que os caminhos alternativos ao atual quadro processual prestigiam, necessariamente, a razoabilidade das decisões – monocráticas, principalmente – em detrimento dos juízos de certeza/verdade que estamos condicionados a buscar. Acerca do conceito de razoabilidade, Linares Quintana[59] declarou que esta:


“(…) consiste en la adecuación de los medios utilizados por el legislador a la obtención de los fines que determina la medida, a efectos de que tales medios no aparezcan como infundados o arbitrarios, es decir, no proporcionados a las circunstancias que los motiva y a los fines que se procura alcanzar con ellos. (…) Tratase, pues, de una correspondencia entre los medios propuestos y los fines que a través de ellos deben alcanzarse”. 


Tal aspecto tem outra conseqüência que talvez, a alguns, possa parecer verdadeira heresia nos dias atuais: o parcial sacrifício da infinidade de mecanismos recursais que temos hoje a nosso alcance, o que acarretará, certamente, na “relativização da ampla defesa”, eis que aquilo que o extenso caminho processual que conhecemos pelo rótulo de “devido processo legal” haverá de ser encurtado, mesmo porque este perderá a razão de ser quando o senso comum dos operadores do direito passar a aceitar que não existem decisões certas ou erradas, o que existem são decisões razoáveis que, quando calcadas em juízos de justiça, dignidade da pessoa humana, preservação da liberdade e promoção da igualdade e do bem estar geral ou bem comum estão aptas a ser absorvidas pela coletividade, sem que sejam necessários anos e anos para que o Poder Judiciário as profira.


3. Conclusão


A partir do resgate histórico da evolução da humanidade, pode-se perceber a determinante influência do racionalismo nas instituições contemporâneas, influência esta para a qual a  Revolução Francesa foi um marco fundamental, pois, mediante a mitificação do Estado e das suas instituições, este movimento foi fundamental na formação do mito do legislador-racional, um ser acima da humanidade, capaz de captar e transferir a “vontade geral do povo” para o texto legal.


Tal ficção, por sua vez, foi determinante na configuração da atual estrutura judiciária, piramidal e centralizada, bem como para a premissa sobre a qual se funda o processo civil brasileiro, qual seja, a de que este deve ser o caminho a ser percorrido pelas partes até que o Poder Judiciário tenha, finalmente, condições de dizer qual é a verdade naquele processo que se desenvolve.


Nesta perspectiva, sob a influência racionalista que impregna o atual modelo processual brasileiro, este é voltado à descoberta de verdades (verdade da lei/verdade do processo). Como conseqüência, pode-se apontar a estruturação centralizadora do judiciário, de modo a fazer com que a lide seja conduzida às mais altas escalas do poder – no caso, ao Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho – mediante um sistema recursal que afunila a esfera daqueles que estão legitimados a revelar o verdadeiro sentido dos textos normativos. Pode-se, ainda como conseqüência da influência do paradigma racionalista sob o sistema processual brasileiro, registrar o fato de que os pronunciamentos dos juízes monocráticos acerca da melhor solução da lide não merecem maiores atenções, porque tais pronunciamentos não estão imbuídos do “verdadeiro sentido da lei”.


Contudo, atualmente é assente o fato de que a verdade não pode ser resgatada no processo, como também o é o fato de que a lei não tem um sentido unívoco, pois ela não passa de mera possibilidade de produção de sentido. Por tais razões, a atual sistemática do processo civil brasileiro merece, ao menos, ser criticamente analisada, pois foi concebida para alcançar objetivos impossíveis.


 


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Notas:

[1] LENOBLE, Jaques; OST, François. Droit, Mythe et Ración. Essai sur la dérive mito-logique de la rationalité juridique. Bruxelles: Facultés Universitaries Saint-Louis: 1980, p. 03-80.

[2] Idem, p. 03-80.

[3] LENOBLE, Jaques; OST, François. Droit, Mythe et Ración. Essai sur la dérive mito-logique de la rationalité juridique. Bruxelles: Facultés Universitaries Saint-Louis: 1980, p. 03-80.

[4] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, p. 106.

[5] Idem, p. 104.

[6] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, p. 106.

[7] Idem, p. 104.

[8] COELHO, Rogério Viola. O Mito do Grande Oráculo. Revista Crítica Jurídica. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, n. 16. 1995.

[9] LENOBLE, Jaques; OST, François. Droit, Mythe et Ración, p. 04.

[10] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1998. P. 174.

[11] WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito, p. 105.

[12] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica, p. 175.

[13] GARCIA, Manuel Calvo. Los Fundamentos Del Método Jurídico. Madrid: Tecnos, p. 31.

[14] Idem, ibidem.

[15] Idem, ibidem.

[16] COELHO, Rogério Viola. O Mito do Grande Oráculo, p. 74-5.

[17] KAUFMANN, Arthur. Analogia y Naturaleza de la Cosa. Chile: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p. 26.

[18] OHLWEILER, Leonel. Os Princípios Constitucionais da Administração Pública a partir da Filosofia Hermenêutica: Condições de Possibilidade para Ultrapassar o Pensar Objetificante, p. 4.

[19] Idem, ibidem.

[20] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica, p. 176.

[21] OHLWEILER, Leonel. Os Princípios Constitucionais da Administração Pública a partir da Filosofia Hermenêutica: Condições de Possibilidade para Ultrapassar o Pensar Objetificante, p. 7.

[22] KAUFMANN, Arthur. Analogia y Naturaleza de la Cosa, p. 19.

[23] COELHO, Rogério Viola. O Mito do Grande Oráculo, p. 76.

[24] HOBBES, Thomas. Leviatã ou a Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico Civil. São Paulo: Ícone, 2000, p. 196-7.

[25] Idem, p. 197.

[26] WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito II. Epistemologia Jurídica da Modernidade. Porto Alegre: SAFE, 1995, p. 58.

[27] COELHO, Rogério Viola. O Mito do Grande Oráculo, p. 80-1.

[28] COELHO, Rogério Viola. O Mito do Grande Oráculo, p. 81.

[29] WARAT, Luiz Alberto. Introdução Geral ao Direito II, p. 57.

[30] COELHO, Rogério Viola. O Mito do Grande Oráculo, p. 81.

[31] GUÉHENNO, Jean-Marie. O Fim da Democracia: Um Ensaio Profundo e Visionário Sobre o Próximo Milênio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 74.

[32] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 235.

[33] Idem, ibidem.

[34] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 218.

[35] Idem, p. 221.

[36] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 219.

[37] CAPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: SAFE, 1999, p. 24-5.

[38] CAPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: SAFE, 1999, p. 57.

[39] CAPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: SAFE, 1999, p. 59.

[40] Idem, p. 60.

[41] Idem, p. 42.

[42] Idem, ibidem.

[43] STEIN, Ernildo. História e Ideologia, p. 21.

[44] Streck, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado: 2003. Página 85.

[45] Idem, ibidem.

[46]Baptista da Silva, Ovídio Araújo. Celeridade Versus Economia Processual. Da Sentença Liminar à Nulidade da Sentença. Rio de Janeiro: Editora Forense: 2001. Pág. 223.

[47]Idem, p. 124-125.

[48]Baptista da Silva, Ovídio Araújo. A “Plenitude da Defesa” no Processo Civil in Da Sentença Liminar à Nulidade da Sentença. Rio de Janeiro: Editora Forense: 2001. Pág. 124-125. 

[49] Baptista da Silva, Ovídio Araújo. A “Plenitude da Defesa” no Processo Civil in Da Sentença Liminar à Nulidade da Sentença. Rio de Janeiro: Editora Forense: 2001. Pág. 92.

[50] Siches, Luis Recaséns. Experiencia Jurídica, Naturaleza de la Cosa y Lógica “Razonable”. México: Fondo de Cultura Económica – Universidad Nacional Autónoma de México: 1971. Página 499.

[51] Idem, ibidem.

[52] Siches, Luis Recasens. Introduccion al Estudio Del Derecho. México: Editorial Porrúa, S.A.: 1981. Página 232.

[53] Idem, pág. 235.

[54] Idem, pág. 236.

[55] Siches, Luis Recasens. Introduccion al Estudio Del Derecho. México: Editorial Porrúa, S.A.: 1981. Página 240.

[56]Idem, pág. 240.

[57] Idem, pág. 254.

[58] Idem, pág. 240. 

[59] QUINTANA, Segundo V. Linares. Reglas para la Interpretación Constitucional. Buenos Aires: Plus Ultra: 1987. Página 128.


Informações Sobre o Autor

Melissa Demari

Advogada


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