Resumo: O presente estudo volta-se ao exame da competência para julgamento de ações rescisórias calcadas no art. 485, V, do CPC, quando algumas das afrontas legais ocorridas no processo de conhecimento tiverem sido perpetradas pelo TRF ou TJ; e outras, pelo STJ ou STF, no julgamento de Recursos Especiais ou Extraordinários. Expõe-se a controvérsia sobre qual seria o órgão com atribuição para apreciar esses vícios; apresentam-se os riscos atinentes à perda do prazo decadencial bienal; e, ao fim, propõe-se como solução processual mais eficaz o ajuizamento de duas ações rescisórias distintas – uma reunindo os vícios atinentes ao Tribunal inferior e outra abordando as afrontas legais referentes à Corte superior. Demonstra-se, ainda, com base em considerações sobre a causa de pedir na ação rescisória e sobre a natureza jurídica desse instituto processual, a plena viabilidade do manejo de duas ações rescisórias pela mesma parte, em face da mesma coisa julgada, desde que por diferentes violações à lei, sem que se possa falar em litispendência ou em preclusão consumativa.
Palavras-chave: Direito Processual Civil, ação rescisória, causa de pedir, competência, litispendência.
Sumário: Introdução. 1. Da competência para apreciação de ações rescisórias que argúem vícios perpetrados por órgãos jurisdicionais distintos no processo de conhecimento: controvérsia jurisprudencial e Súmulas 249 e 515 do STF. 1. Da competência para apreciação de ações rescisórias que argúem vícios perpetrados por órgãos jurisdicionais distintos no processo de conhecimento: controvérsia jurisprudencial e Súmulas 249 e 515 do STF. 2. Dos precedentes dos Tribunais Superiores e do risco da incompetência: exaurimento do prazo decadencial em relação aos pedidos não apreciados. 3. Da solução processual mais eficaz para garantia do acesso à Justiça: ajuizamento de duas rescisórias distintas. 4. Do ajuizamento de duas ações desconstitutivas em face da mesma coisa julgada, por vícios distintos: ausência de litispendência e de preclusão consumativa. Considerações sobre a causa de pedir na ação rescisória. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
A ação rescisória é um dos institutos mais técnicos do ordenamento jurídico-processual moderno. Seja pela causa de pedir vinculada, pelas peculiaridades atinentes à competência ou pelo prazo peremptório, cuida-se de demanda na qual a falha do operador do Direito representa, diversas vezes, a perda definitiva da oportunidade de corrigir a res judicata, com prejuízos irreversíveis para o direito material tutelado.
Nesse contexto, o presente estudo se volta à análise de uma relevante controvérsia quanto à competência para julgamento de rescisórias calcadas no art. 485, V, do Código de Processo Civil, quando os vícios argüidos para lastrear o pedido rescisório tiverem sido perpetrados por órgãos jurisdicionais distintos, no processo de conhecimento.
Como sabido, a definição do Tribunal competente para apreciar as ações desconstitutivas de coisas julgadas por violação a literal dispositivo de lei variará conforme o Juízo que afrontou o ordenamento jurídico no processo originário. Se o órgão responsável pela violação à lei foi o Juízo de Primeiro Grau ou um Tribunal inferior, será do mencionado Tribunal a competência para a análise da rescisória. Se, por outro lado, a violação à lei tiver sido empreendida por um Tribunal superior, será ele o responsável pelo judicium rescindens.
Entretanto, a prática forense demonstra que podem surgir coisas julgadas com várias afrontas à lei, sendo que somente algumas delas foram perpetradas pelo Juiz de Primeiro Grau ou pelo Tribunal de base, enquanto as outras advieram da atuação do Tribunal superior.
Suponha-se, por exemplo, uma sentença com dois capítulos distintos, em que cada um deles contém vícios, e ambos foram confirmados pelo Tribunal Regional Federal ou Tribunal de Justiça, no julgamento da apelação. A parte sucumbente, então, interpõe Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça ou Recurso Extraordinário para Supremo Tribunal Federal, apenas tratando do segundo capítulo da sentença (não do primeiro), e o Tribunal superior, ao adentrar o mérito da causa, nega provimento ao apelo.
Ao pretender a desconstituição dessa coisa julgada, é necessário ter em mente que o vício constante em um dos capítulos foi analisado somente pelo Juízo de Primeiro Grau e pelo Tribunal inferior (o que conduziria à conclusão de que a competência para julgamento da rescisória é desse Tribunal), porém o vício atinente ao outro capítulo foi perpetrado pelo Tribunal superior (o que atrai para essa Corte o exame da demanda desconstitutiva quanto a esse tema).
Exsurgem, então, inúmeros questionamentos: deverá ser ajuizada uma rescisória com base em ambos os vícios perante o Tribunal superior (empreendendo-se uma espécie de atração por conexão, apesar de se tratar de competência funcional vertical e, portanto, absoluta)? Dever-se-á, ao contrário, ajuizar uma rescisória perante o Tribunal inferior, tratando apenas do vício ali perpetrado, e outra perante o Tribunal superior, versando sobre o vício que lhe toca? Seria tecnicamente possível o ajuizamento de duas rescisórias pela mesma parte, buscando a desconstituição da coisa julgada, com base em vícios distintos? Não haveria preclusão consumativa com o ajuizamento da primeira demanda ou litispendência entre elas?
É o que se passa a examinar.
1. Da competência para apreciação de ações rescisórias que argúem vícios perpetrados por órgãos jurisdicionais distintos no processo de conhecimento: controvérsia jurisprudencial e Súmulas 249 e 515 do STF.
Nos termos da Constituição Federal de 1988, compete a cada Tribunal julgar as ações rescisórias de seus julgados; e, no caso dos Tribunais inferiores, também as referentes aos julgados dos juízes de primeiro grau. Especificamente no que se refere às demandas calcadas no art. 485, V, do Código de Processo Civil (ações rescisórias por violação a literal dispositivo de lei), observam-se duas clássicas súmulas do Supremo Tribunal Federal, que dão concreção ao preceito constitucional: a Súmula 249/STF e a Súmula 515/STF.
“SÚMULA Nº 249
É competente o Supremo Tribunal Federal para a ação rescisória, quando, embora não tendo conhecido do recurso extraordinário, ou havendo negado provimento ao agravo, tiver apreciado a questão federal controvertida.”
“SÚMULA Nº 515
A competência para a ação rescisória não é do Supremo Tribunal Federal, quando a questão federal, apreciada no recurso extraordinário ou no agravo de instrumento, seja diversa da que foi suscitada no pedido rescisório.”
Conforme se depreende desses verbetes, a competência para apreciar pedidos rescisórios atinentes a questões federais não suscitadas no Recurso Especial (ou questões constitucionais não veiculadas no Recurso Extraordinário) não seria, em princípio, do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, mas sim do Tribunal Regional Federal ou do Tribunal de Justiça.
Nesse sentido, verificam-se, inclusive, recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal, como se observa:
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO RESCISÓRIA. RECURSO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU SEGUIMENTO AO PEDIDO, POR MANIFESTAMENTE INCABÍVEL. MANUTENÇÃO DA DECISÃO QUE DESOBRIGOU OS AGRAVADOS DO RECOLHIMENTO DO IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO INTER VIVOS DE BENS IMÓVEIS – ITBI – PELO SISTEMA DE ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS. LEI MUNICIPAL PAULISTA N. 11.154/91. (…) 3. A competência rescisória deste Supremo Tribunal Federal para processar e julgar ação rescisória restringe-se aos casos em que ela é ajuizada contra os seus próprios julgados. A pretensão rescindenda deveria ter sido interposta contra o julgado do Tribunal Estadual Paulista. Súmula 515 do Supremo Tribunal Federal. 4. Agravo regimental ao qual se nega provimento.” (AR 1778 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2010, DJe-154 DIVULG 19-08-2010 PUBLIC 20-08-2010 EMENT VOL-02411-01 PP-00063)
No caso acima, o STF havia conhecido e julgado o Recurso Extraordinário examinando a inconstitucionalidade da cobrança de um tributo, concluindo pelo deferimento do pedido do Autor da ação originária quanto ao não pagamento da exação. Então, o Réu manejou rescisória suscitando existência de coisa julgada anterior, e o STF afirmou que essa rescisória deveria ter sido ajuizada perante o Tribunal de Segundo Grau, pois a questão jurídica da existência ou não de coisa julgada era questão distinta da examinada pelo STF no julgamento do RE no processo de conhecimento.
Apenas para ilustrar, confira-se outro exemplo clássico do entendimento do Pretório Excelso no exame da AR 1175, Relator Min. SOARES MUNOZ, TRIBUNAL PLENO, julgado em 12/09/1984. Nesse caso, tratava-se de ação ordinária sobre indenização, e o Recurso Extraordinário da parte foi conhecido, tendo o STF adentrado o mérito no que tange à referida indenização, especificamente quanto aos juros de mora e à correção monetária (matérias federais que, à época, ainda pertenciam à competência daquela Corte). Posteriormente, o Réu manejou rescisória alegando dolo e violação a lei quanto à citação; e o STF afirmou que não seria competente para julgamento do pleito rescisório, pois, embora houvesse adentrado o mérito da causa no exame do RE, as questões federais examinadas (leia-se: as teses jurídicas discutidas) na rescisória eram distintas das apreciadas no julgamento do mencionado RE.
Nessa linha tem se manifestado – também mediante recentes precedentes – a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, como se verifica:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. REQUERIMENTO DE APRECIAÇÃO DE QUESTÃO PROCESSUAL INCIDENTAL, PREJUDICIAL AO EXAME DE MÉRITO. CABIMENTO. AÇÃO RESCISÓRIA. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 515/STF. DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA O TRIBUNAL DE ORIGEM DIANTE DE PEDIDO EXPRESSO NA INICIAL NESSE SENTIDO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. (…) 4. Assim, a admissão da rescisória por este Tribunal somente seria cabível acaso houvesse discussão acerca das matérias de mérito sobre as quais se manifestou nos autos da ação originária, porquanto o STJ não tem competência para processar e julgar ação rescisória de julgado proferido por outro Tribunal. Nesse sentido, é o enunciado 515 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, do seguinte teor: “A competência para a ação rescisória não é do Supremo Tribunal Federal, quando a questão federal, apreciada no recurso extraordinário ou no agravo de instrumento, seja diversa da que foi suscitada no pedido rescisório”. (…) 6. Na presente rescisória, o autor alegou, para demonstrar o cabimento da ação pelos incisos V e VI, do art. 485 do CPC, que a decisão judicial atacada violou literalmente o disposto no art. 27 do Decreto-Lei n. 3.365/41, visto que a fixação da verba indenizatória considerou tão-somente a prova pericial “extremamente frágil e falsa”, que não considerou “a realidade mercadológica com os parâmetros traçados na legislação” (fl. 10). Postulou, ao final, a procedência do pedido, a fim de que seja rescindido o acórdão atacado para que, em novo julgamento, “seja determinada a realização de nova perícia para fixação do valor justo da indenização, excluída a imposição dos juros compensatórios e revistos os demais consectários, antes da incorporação do imóvel ao patrimônio público”. No entanto, nas razões do recurso especial e no acórdão proferido pela Primeira Turma desta Corte, que ora se pretende desconstituir, não há qualquer referência à licitude do laudo pericial e ao montante a ser pago pelo Estado de São Paulo a título de indenização pela desapropriação do imóvel. Isto porque as matérias submetidas a julgamento por esta Corte se restringiram à ocorrência de violação do disposto no art. 535 do CPC, bem como ao termo inicial da contagem de juros compensatórios e moratórios. 7. Ao que se observa, embora a rescisória tenha sido proposta perante o Superior Tribunal de Justiça com o propósito de desconstituir o acórdão proferido no Recurso Especial n. 132.564/SP, pretende-se, na verdade, a desconstituição do aresto oriundo da Corte Paulista, prolatado nos autos da Apelação Cível n. 009.853-5/6, que permanece intacto no pertinente à adoção da prova pericial e ao do montante fixado a título de indenização. Logo, conclui-se que este Tribunal não é competente para processar e julgar a presente rescisória, mas sim o Tribunal a quo, que expediu a última decisão de mérito sobre a pretensão da demandante (art. 485, caput, do CPC). 8. Impõe-e a remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para apreciação do pedido contra o julgamento por ele lançado, diante da solicitação expressa na petição inicial de declinação da competência àquela Corte Estadual na hipótese de incompetência deste Tribunal. (…) 10. Agravo regimental provido, para reconhecer a incompetência absoluta do Superior Tribunal de Justiça, e declinar da competência para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.” (AgRg nos EDcl no AgRg na AR 2.711/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/08/2010, DJe 19/08/2010)
“AGRAVO REGIMENTAL – AÇÃO RESCISÓRIA DOS FUNDISTAS – PRETENDIDA RESCISÃO DE JULGADO DESTE SODALÍCIO – MATÉRIA AGITADA NA DEMANDA RESCISÓRIA QUE NÃO FOI EXAMINADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – INCOMPETÊNCIA DESTA CORTE SUPERIOR – INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 515 DO STF – INDEFERIMENTO LIMINAR DA AÇÃO. À evidência, a matéria trazida na presente rescisória é estranha àquela decidida por este Sodalício, razão por que incabível sua apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça. O raciocínio ora expendido se amolda à jurisprudência do Excelso Pretório, cristalizada na Súmula n. 515 que prevê: “A competência para a ação rescisória não é do Supremo Tribunal Federal, quando a questão federal, apreciada no recurso extraordinário ou no agravo de instrumento, seja diversa da que foi suscitada no pedido rescisório”. Agravo regimental improvido.
(AgRg na AR 3.162/SC, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/11/2004, DJ 04/04/2005, p. 158) Vide excerto do voto condutor na mencionada AR 3.162/SC: “ A propósito, essa Corte Superior de Justiça nem sequer se poderia pronunciar sobre a matéria agitada pelos autores na presente rescisória, pois, em verdade, somente a CEF apresentou recurso especial”.
“AÇÃO RESCISÓRIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. VALOR INDENIZATÓRIO. DESCONSTITUIÇÃO DE ACÓRDÃO. DECISÃO DIVERSA DA SUSCITADA NO PEDIDO RESCISÓRIO. APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 515/STF. 1. Ação Rescisória de julgado proferido em ação desapropriatória indireta. 2. O Superior Tribunal de Justiça apreciou o mérito da demanda (embora o fazendo apenas em relação aos juros compensatórios, que integram a indenização), ao passo que o tema do quantum indenizatório (principal), embora não tenha sido objeto de conhecimento nesta Corte, ventilou a questão federal.
3. Nos termos da Súmula nº 515/STF, não pode este Tribunal Superior, em sede de ação rescisória, desconstituir acórdão no qual proferiu decisão diversa daquela que foi suscitada no pedido rescisório. 4. Incompetência do Superior Tribunal de Justiça para apreciar e julgar a ação, com a remessa dos autos ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o competente.” (AR 910/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/08/2000, DJ 05/03/2001, p. 119)
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO RESCISÓRIA. ACÓRDÃO RESCINDENDO. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª REGIÃO. (…) 4. É da competência deste Superior Tribunal de Justiça processar e julgar ações rescisórias que veiculem ao menos um dos aspectos do litígio que foram efetivamente enfrentados no âmbito do recurso especial. Contudo, caso a decisão prolatada no recurso especial, ainda que meritória, somente diga respeito a um ou mais aspectos da lide diversos daquele articulado na ação rescisória – como na espécie -, a competência pertence ao Tribunal a quo. Inteligência da Súmula 515/STF. (…) 9. Recurso especial provido.” (REsp 905.738/SE, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/06/2009, DJe 17/06/2009)
À luz desses precisos julgados, já se pode concluir que, se a coisa julgada impugnada contiver apenas vícios que não foram expressamente tratados pelo STJ (em Recurso Especial) ou pelo STF (em Recurso Extraordinário), a competência para apreciação do pleito rescisório será do Tribunal Regional Federal ou Tribunal de Justiça, ainda que o Tribunal superior tenha adentrado o mérito da causa no julgamento do RE ou REsp, examinando discussão jurídica distinta da levantada pela rescisória.
Na mesma linha, se a coisa julgada contiver apenas o vício relativo a uma discussão que foi examinada pelo STF ou STJ, não há dúvidas: o competente para o julgamento do pleito rescisório com base nesta causa de pedir é o Tribunal superior.
A notável perplexidade quanto à competência está nas hipóteses em que a coisa julgada apresenta tanto vícios rescisórios atinentes a questões jurídicas examinadas pela Corte superior (em RE ou REsp), como também outros vícios rescisórios atinentes a questões outras, não examinadas pelo Tribunal de superposição no julgamento do Recurso Especial ou Extraordinário interposto no processo de conhecimento originário.
Nas raras oportunidades em que a Jurisprudência se deparou com situação como esta, levantaram-se duas possibilidades distintas:
a) De um lado, cogitou-se que a competência do STF ou do STJ para apreciar o pleito rescisório de sua competência (ou seja, o que se refere a discussões travadas no RE ou REsp) se prorrogaria para apreciar também os pleitos rescisórios que, originalmente, seriam da competência do TRF ou TJ (por não se referirem a discussões empreendidas no RE ou REsp). A vantagem dessa solução está na maior celeridade e na maior praticidade. O Tribunal superior abordaria, de logo, todos os vícios atinentes à causa, evitando que dois Juízos se debrucem sobre a mesma coisa julgada. A dificuldade técnica, entretanto, está no fato de que a competência para julgamento de rescisória é absoluta (competência em razão da matéria, para alguns, ou competência funcional vertical, para outros), e competência absoluta não se prorroga;
b) De outro lado, cogitou-se que, como a competência absoluta não se prorroga, o STJ ou STF somente poderia conhecer da rescisória no que tange aos pleitos rescisórios de sua competência (ou seja, no que tange às questões jurídicas expressamente examinadas no julgamento do REsp ou do RE no processo originário); e os demais pleitos seriam desconsiderados, cabendo ao Autor da Rescisória ajuizar outra ação perante o TRF ou TJ, caso ainda houvesse prazo bienal para tanto. Note-se que, em prevalecendo esse entendimento, e tendo sido todos os pleitos rescisórios cumulados em uma única ação, não se pode remeter ao Juízo competente apenas parte de uma ação: resta apenas apreciar o pedido para o qual o Tribunal tem competência e não conhecer dos outros, para que o Autor proponha nova ação no Juízo próprio. Aplicar-se-ia, por analogia, a Súmula 170 do STJ: “Compete ao juízo onde for intentada a ação de acumulação de pedidos, trabalhistas e estatutário, decidi-la nos limites da sua jurisdição, sem prejuízo do ajuizamento de nova causa, com pedido remanescente, no juízo próprio”.
2. Dos precedentes dos Tribunais Superiores e do risco da incompetência: exaurimento do prazo decadencial em relação aos pedidos não apreciados.
Na última oportunidade em que se verificou essa discussão no STJ, em um julgamento definitivo, predominou o entendimento da prorrogação de competência da Corte superior para apreciação de todos os pleitos rescisórios, apesar do óbice técnico de que competência absoluta, pela Teoria Geral do Processo, não se prorroga (cuida-se da primeira posição exposta no capítulo anterior). Entretanto, o julgado é bastante antigo (data de 2003) e, sobretudo, foi decidido por voto-desempate, tamanha a controvérsia processual instalada entre os próprios Ministros.
Trata-se da AR 1.115/SP[1], cujo voto condutor expôs, com proficiência, a grande dificuldade da questão e a alternância da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca do tema. Narrou o voto-condutor do acórdão:
“Duas posições se manifestaram, a respeito, no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Na Ação Rescisória nº 1.006, MG, Relator o Ministro Moreira Alves, o Tribunal Pleno decidiu que ‘Sendo o STF competente para julgar um dos aspectos da rescisória, sua competência se prorroga àqueles que por ele não foram examinados anteriormente’ (RTJ nº 86, p. 67).(…)
No julgamento, posterior, da Ação Rescisória nº 932, RJ, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, de que não participou o Ministro Moreira Alves, impedido, o Tribunal Pleno decidiu não conhecer da ação, ‘na parte referente ao tema que não foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal’ (RTJ nº 93, p. 487).
Atualmente, pelo que se depreende do julgamento da Ação Rescisória nº 1.274-7, Rio de Janeiro, Relator o Ministro Sydney Sanches, o Supremo Tribunal Federal voltou à sua antiga orientação (DJU, 20.06.97).”
Esse posicionamento – no sentido de que todos os pedidos da rescisória passariam a ser da competência do STJ – terminou por prevalecer, mas apenas por voto-desempate. A verdade é que, por muito pouco, o Autor daquela AR 1.115/SP (julgada pelo STJ) não viu alguns de seus pedidos desconsiderados em razão da incompetência absoluta, hipótese em que seria impossível ajuizar nova ação rescisória no juízo competente, em razão do decurso do biênio decadencial.
Aliás, foi exatamente o que ocorreu com o Autor da AR 932/RJ (julgada pelo STF e lembrada no voto acima transcrito), em que o STF não conheceu dos pedidos referentes a questões não apreciadas pelo STF no julgamento do RE no processo de conhecimento. Perdeu-se o prazo bienal, e a parte terminou por não conseguir levar ao exame do Poder Judiciário todas as suas pretensões de direito material.
Não havia, sequer, a possibilidade de remeter a ação ao juízo competente (resguardando o mencionado prazo bienal), pois é impossível remeter a outro Juízo, para julgamento, apenas parte ou cópia de uma petição inicial e de um processo. Se a parte cumular na mesma ação causas de pedir e pedidos atinentes a diferentes competências absolutas, julgam-se apenas os pedidos e as causas de pedir para os quais se tem competência, deixando que o autor proponha nova ação no juízo competente (Súmula 170 do STJ). Preceitua o verbete:
“Compete ao juízo onde for intentada a ação de acumulação de pedidos, trabalhistas e estatutário, decidi-la nos limites da sua jurisdição, sem prejuízo do ajuizamento de nova causa, com pedido remanescente, no juízo próprio”
Embora o enunciado se refira à cumulação de um pedido que competiria à Justiça Comum com outro que competiria à Justiça do Trabalho, o mesmo raciocínio pode ser igualmente aplicável a qualquer reunião de pedidos concernentes a competências absolutas distintas (no caso, um referente a demanda originária de um TRF ou TJ e outro atinente à competência originária do STF ou STJ). Da mesma forma como não se admite, na Súmula 170 do STJ, a remessa de cópia da petição inicial ao Juízo Trabalhista, para que ele aprecie a parte da causa que lhe caberia, também não se permite a remessa de cópia da rescisória ao TRF ou TJ, para que ele examine os fundamentos de sua competência.
Em suma: ou se encaminha a outro Juízo toda uma petição inicial, com todas as questões ali tratadas (se todas elas forem da competência do referido Juízo), ou então não se encaminha nada, deixando que o próprio Autor proponha nova ação perante outro órgão jurisdicional, para apreciação dos temas de sua atribuição.
Daí advém o maior risco de o Autor adotar o entendimento da prorrogação de competência da Corte superior para julgar todos os pleitos e fundamentos rescisórios e propor uma única ação perante a Corte superior. É que essa posição, embora tenha precedentes, não está consolidada, e, caso haja alteração do entendimento jurisprudencial (o que sempre é uma possibilidade, tendo em vista que, de fato, competência absoluta não se prorroga, bem como que já houve julgamentos em ambos os sentidos), a Corte superior simplesmente desconsiderará todos os fundamentos rescisórios atinentes a questões não tratadas originalmente no RE ou REsp, conhecendo apenas da matéria de sua competência absoluta.
E o principal: devido à duração natural do processo, é bastante provável que o Tribunal somente chegue a essa conclusão após o término do biênio decadencial, o que termina por violar, de maneira irreversível, o direito material da parte, inviabilizando por completo o exame desse fundamento pelo Judiciário.
3. Da solução processual mais eficaz para garantia do acesso à Justiça: ajuizamento de duas rescisórias distintas.
Em toda essa complexa controvérsia jurisprudencial, o mais importante para a parte que pretende o acesso à Justiça – leia-se, o papel do Advogado na leal representação dos interesses de seu constituinte – não é se perder em discussões doutrinárias sobre qual seria, efetivamente, a solução mais correta quanto à competência (se a Corte superior teria competência para apreciar todos os pedidos e causas de pedir; ou se esse Tribunal examinaria algumas das causas de pedir, e o TRF ou TJ, as demais).
Quanto a isso, deve-se seguir o último entendimento jurisprudencial conhecido (ainda que tenha se formado em 2003, apenas por voto-desempate, e ainda que o próprio STF já tenha decidido em ambos os sentidos) e apresentar todas as causas de pedir e os pedidos rescisórios perante a Corte superior, adotando o entendimento de que a sua competência para apreciar uma das questões veiculadas na rescisória se prorroga também apreciar as demais.
Entretanto, o que realmente é importante para assegurar o princípio constitucional do processo como instrumento de Acesso à Justiça é garantir que, caso esse complexo e instável cenário jurisprudencial se altere – e o STJ ou o STF passem a entender que só têm competência para apreciar as questões jurídicas efetivamente examinadas no REsp ou RE, competindo ao TRF ou TJ as demais questões –, seja possível processualmente remeter a análise dessas outras matérias ao Tribunal inferior, de modo a preservar o prazo decadencial e evitar que, paradoxalmente, o Direito Processual impeça o acesso à Justiça.
Nessa linha, a solução processual mais eficaz para tutelar o direito material da Parte em face de eventual mudança jurisprudencial em matéria tão tormentosa é manejar duas ações rescisórias distintas, cada uma agrupando diferentes causas de pedir (diferentes vícios rescisórios) em relação ao mesmo processo originário.
Primeiro, ajuíza-se uma ação rescisória com todos os vícios rescisórios (ou seja, todas as causas de pedir) cujas questões jurídicas foram examinadas pelo STJ ou STF no REsp ou RE do processo de conhecimento originário. Quanto a estas causas de pedir, a competência incontroversamente será do STJ ou STF, nos termos da Súmula 249 do Pretório Excelso.
Depois, ajuíza-se uma segunda ação rescisória – também perante o STJ ou STF – com todos os vícios rescisórios (ou seja, todas as causas de pedir) cujas questões federais não foram examinadas pela Corte superior no REsp ou RE daquele processo.
Assim, caso a jurisprudência permaneça entendendo que a competência da Corte superior se prorroga, todos os vícios rescisórios serão analisados pelo STJ ou STF. Porém – e esta é a grande importância de agrupar as causas de pedir em duas ações rescisórias distintas, não em uma só –, caso a Jurisprudência se altere, e se passe a entender (como já fez o STF em tempos pretéritos) que o Tribunal superior somente é competente para apreciar as questões examinadas no REsp ou RE do processo de conhecimento, não será necessário ajuizar outra ação perante o TRF ou TJ após todo esse tempo, e não haverá risco de perda do prazo decadencial.
Afinal, será sempre possível encaminhar a segunda ação rescisória ajuizada perante o Tribunal superior (a que se refere às demais questões não examinadas no REsp ou RE do processo de conhecimento), à Corte Regional, com base no art. 113, §2º, do CPC, que preceitua: “Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente”.
É oportuno recordar, quanto ao tema, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo a possibilidade de enviar os autos da rescisória ao Juízo competente para julgamento, desde que todos os pedidos formulados naquela petição inicial se refiram à competência de outro Tribunal (pois, como visto, se algum pedido da petição inicial se referir à competência da própria Corte superior, ela terá de apreciar o mencionado pedido, o que inviabiliza a remessa dos autos ou de cópia a outro colegiado, nos termos da Súmula 170/STJ):
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. REQUERIMENTO DE APRECIAÇÃO DE QUESTÃO PROCESSUAL INCIDENTAL, PREJUDICIAL AO EXAME DE MÉRITO. CABIMENTO. AÇÃO RESCISÓRIA. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO DA SÚMULA 515/STF. DECLINAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA O TRIBUNAL DE ORIGEM DIANTE DE PEDIDO EXPRESSO NA INICIAL NESSE SENTIDO. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. (…) 8. Impõe-e a remessa dos autos ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para apreciação do pedido contra o julgamento por ele lançado, diante da solicitação expressa na petição inicial de declinação da competência àquela Corte Estadual na hipótese de incompetência deste Tribunal. (…) 10. Agravo regimental provido, para reconhecer a incompetência absoluta do Superior Tribunal de Justiça, e declinar da competência para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.” (AgRg nos EDcl no AgRg na AR 2.711/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/08/2010, DJe 19/08/2010)
Para salvaguardar a possibilidade de remessa da segunda rescisória (atinente aos vícios não tratados pela Corte superior no processo de conhecimento) ao TRF ou TJ, em caso de alteração do entendimento jurisprudencial quanto à competência, é necessário, ainda, que a parte adote uma cautela especial. É mister que o Autor impugne, na causa de pedir, também o acórdão do Tribunal inferior (julgamento da apelação), e não apenas o acórdão da Corte superior que decidiu o RE ou REsp.
Isso porque a impugnação da decisão da fase de conhecimento é a própria causa de pedir da rescisória, e se o Autor, ao ajuizar a ação no STF ou STJ, arrostar apenas o acórdão dessa Corte (esquecendo-se de atacar também o aresto do TRF ou TJ), será impossível encaminhar o feito, em caso de incompetência absoluta, à Corte regional ou estadual, uma vez que, nessa hipótese, o Tribunal inferior não terá causa de pedir para apreciar, pois não há acórdão seu impugnado formalmente na petição inicial.
É preciso, portanto, que o Autor deixe ambos os acórdãos formalmente impugnados; mostre os vícios de cada um; explique que somente está ajuizando ambas as rescisórias na Corte superior em razão de toda a divergência jurisprudencial que ora se expõe e dos precedentes aplicáveis; e requeira que, na eventualidade de se entender pela incompetência do STF ou STJ para apreciar a outra rescisória, seja ela remetida ao TRF ou TJ, para julgamento, nos termos do art. 113, §2º, do CPC.
Por fim, cumpre tecer uma consideração de ordem prática sobre a conveniência de se ajuizarem ambas as ações perante a Corte superior, em vez de (como talvez fosse mais natural) propor cada demanda no Tribunal correspondente aos vícios nela tratados.
Há dois motivos essenciais. O primeiro é que, consoante exposto, o último julgamento definitivo das Cortes superiores sobre o tema terminou por adotar o entendimento de que, em processos nos quais há vícios examinados pelo STF ou STJ e também vícios não examinados por esses Tribunais, a sua competência se prorrogaria para apreciar todas as matérias tratadas na rescisória.
O segundo motivo – este, sim, de ordem eminentemente prática e estratégica – é que assim se tutela melhor a celeridade do processo. Se a rescisória for proposta no TRF ou TJ, e este se der por incompetente, sempre haverá o risco posterior de, a qualquer tempo, a Corte superior restituir os autos, entendendo que competente era mesmo o Tribunal inferior e anulando todos os atos decisórios praticados durante o interregno em que o feito tramitou no STF ou STJ. Não se perde o prazo decadencial (pois o processo não é extinto, apenas remetido de volta ao outro Tribunal), mas se perde tempo na solução da lide. Se, por outro lado, a ação for ajuizada de logo na Corte superior, e esta se der por incompetente, não há perigo de devolução posterior, pois a sua decisão vinculará o órgão jurisdicional de segundo grau. Aliás, é justamente por isso que não existe conflito de competência entre Tribunal superior e Tribunal inferior a ele vinculado.
Em outras palavras: propondo a ação no TRF ou TJ, há risco de duplo declínio de competência (do Tribunal inferior para o superior e depois do superior de volta para o inferior); já ajuizando a demanda perante o STJ ou STF, há, no máximo, o risco de um único declínio de competência (do Tribunal superior para o inferior).
De todo modo, à parte dessas considerações, o mais importante é mesmo notar-se que, com o procedimento de dividir as causas de pedir rescisórias em duas petições iniciais distintas (uma abrangendo as questões que foram tratadas pela Corte superior no RE ou REsp do processo de conhecimento e outra abordando as que não foram), preserva-se o prazo bienal, elimina-se o risco da decadência e se garante o acesso à Justiça, manejando o Processo como instrumento a serviço do Direito Material, e não como óbice intransponível ao exame do mérito.
4. Do ajuizamento de duas ações desconstitutivas em face da mesma coisa julgada, por vícios distintos: ausência de litispendência e de preclusão consumativa. Considerações sobre a causa de pedir na ação rescisória.
No ordenamento brasileiro, o remédio processual para a rescisão de sentenças tem a natureza de ação (mais precisamente, ação desconstitutiva), e não de recurso. Com efeito, como esclarecem Pontes de Miranda[2] e Flávio Yarshell[3], trata-se da solução que, no direito comparado, mostra-se mais comum e mais tecnicamente correta, restando atualmente poucos países nos quais esse remédio processual tem o feitio de recurso (o exemplo mais conhecido é a França, onde, em vez da ação rescisória, existe o chamado “récours en revision” – “recurso de revisão”, sem nova citação, sem todos os pressupostos processuais de uma ação, dentre outras características).
Se, no Brasil, trata-se de ação desconstitutiva – e não de recurso –, então é perfeitamente possível ajuizar – quer ao mesmo tempo, quer sucessivamente – mais de uma ação rescisória para desconstituir o mesmo ato jurídico (o mesmo ato jurisdicional transitado em julgado), desde que por diferentes motivos, por diferentes causas de pedir (ou seja: por diferentes vícios rescisórios), e, principalmente, desde que cada uma das diferentes ações rescisórias tenha sido ajuizada dentro do prazo decadencial de dois anos.
É o que leciona Pontes de Miranda[4], na mais tradicional obra sobre o tema no cenário jurídico pátrio, Tratado da Ação Rescisória:
“A mesma sentença pode dar ensejo a pluralidade de ações rescisórias, cujos pedidos podem ser cumulados, ou feitos separadamente. Nada obsta a que se proponham duas ou mais ações rescisórias, cumuladas ou não, simultânea ou sucessivamente, contra a mesma decisão. Por exemplo, uma, por prevaricação, ou concussão, ou corrupção do juiz; outra, por impedimento do juiz; outra, por incompetência ratione materiae, ou pela hierarquia; outra, por ofensa à coisa julgada; outra ou outras, por violação de direto em tese; outra, por falsidade de prova” (grifou-se).
Nesse caso, não há falar em litispendência entre as distintas ações rescisórias, pois, embora sejam ações com as mesmas partes e tenham semelhanças em relação ao pedido (todas pleiteiam o judicium rescindens em relação ao mesmo processo originário), as causas de pedir são diferentes, pois se invocam diferentes violações a dispositivos de lei.
E, consoante dispõe o art. 301, §1º, do CPC, “uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido”. Por conseguinte, se as causas de pedir são distintas – se os defeitos apontados na sentença para motivar a rescisão são distintos – não há litispendência entre as ações rescisórias, mas apenas conexão, que há de ser levada em conta para fins de julgamento simultâneo. É o que esclarece Pontes de Miranda[5]:
“A respeito de litispendência, como de coisa julgada, é preciso atender-se a que: (…)
f) a citação, na ação rescisória por violação do direito em tese, somente gera exceção de litispendência se o ponto de direito que se aponta é o mesmo [ou seja, se se aponta como vício rescisório a mesma violação a dispositivo legal];(…)
l) a citação, em ação rescisória fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa, não produz exceção de litispendência para a ação rescisória que se funde noutro erro de fato, ou de outro documento da causa” (grifou-se e inseriu-se nota entre colchetes).
Ainda sobre a possibilidade de ajuizamento de mais de uma rescisória contra a coisa julgada formada no mesmo processo (desde que todas dentro do prazo decadencial de dois anos e motivadas por violações literais a diferentes normas legais), aduz José Carlos Barbosa Moreira[6]:
“A existência de ação rescisória em curso, com fundamento na violação da norma N, não cria empecilho a que se proponha outra rescisória, entre as mesmas partes, fundada na violação da norma N’ [N-linha, outra norma diferente]. Não procederia a objeção de litispendência, porque diferentes as causas de pedir (cf. art. 301, §§1º e 3º). As duas ações são, à evidência, conexas (art. 103), e em princípio devem reunir-se para julgamento simultâneo (art. 105). À semelhança do que sucederia se alegadas em conjunto, desde o início, duas violações – isto é, na hipótese de cumulação originária das rescisórias –, têm de computar-se separadamente, em relação a cada uma das violações alegadas, os votos dos membros do colégio julgador.
Procedente ou improcedente que seja o pedido de rescisão, formulado com apoio na violação da norma N, a coisa julgada que se forme só cobrirá essa causa de pedir. O autor permanecerá livre para pleitear de novo a rescisão da mesma sentença, alegando a violação da norma N’ [N-linha, outra norma], sem que se lhe possa opor eficazmente a objeção do art. 301, nº VI” (grifou-se e inseriu-se nota entre colchetes).
Também no mesmo sentido esclarece Flávio Luiz Yarshell[7]:
“Tratando-se de uma ação, e não de um recurso, não há para o interessado o ônus de concentrar na demanda todas as alegações que possam servir de fundamento à rescisória (embora seja de presumir que o faça). Dessa forma, havendo tempo hábil para tanto, nada impede que diferentes vícios de sentença sejam objeto de alegação em diferentes ações rescisórias”.
É preciso que um ponto fique bastante claro: o que não se pode fazer, naturalmente, é ajuizar uma outra ação rescisória, contra a mesma res judicata, alegando violação literal ao mesmo dispositivo legal, porque, nessa hipótese, serão duas ações rescisórias apontando a mesma causa de pedir, ou seja, o mesmo defeito na sentença ou acórdão. Por outro lado, se as diferentes ações rescisórias (ambas fundamentadas no art. 485, V, do CPC) aduzirem violações a diferentes dispositivos de lei (ou seja, a diferentes normas), então se estarão apontando diferentes defeitos na sentença rescindenda e, portanto, diferentes causas de pedir para desconstituir a coisa julgada.
Não por acaso, Pontes de Miranda[8] vaticina que “a citação, na ação rescisória por violação do direito em tese, somente gera exceção de litispendência se o ponto de direito que se aponta é o mesmo” (ou seja, se se aponta como vício rescisório a mesma violação a dispositivo legal). E Barbosa Moreira[9], na mesma linha, esclarece que “a existência de ação rescisória em curso, com fundamento na violação da norma N, não cria empecilho a que se proponha outra rescisória, entre as mesmas partes, fundada na violação da norma N’ [N-linha, outra norma diferente]”
Aliás, é por isso – porque cada afirmativa de violação a dispositivo de lei é uma causa de pedir distinta – que, ajuizada a ação rescisória, com base no art. 485, V, alegando-se violação a uma Lei “A”, não pode o Tribunal dar provimento à rescisória, pelo art. 485, V, em razão de entender haver violação à Lei “B”. É que “a violação à Lei A” e a “violação à Lei B” são causas de pedir distintas, e o Judiciário não pode dar provimento a uma ação por causa de pedir diferente da invocada na inicial.
Em outras palavras: a causa de pedir, na ação rescisória por violação literal a dispositivo de lei, não é o art. 485, V, do CPC (pois, se fosse, a mera invocação a esse dispositivo permitiria que o Judiciário entendesse existente qualquer violação a dispositivo de lei, o que evidentemente não é o caso). O art. 485, V, é apenas a autorização legal genérica e abstrata que indica quais causas de pedir podem ser veiculadas em uma rescisória. Causa de pedir é, sim, cada uma das violações a cada um dos dispositivos de lei apontados por infringidos, e é justamente por isso que, como dito, alegando-se violação à Lei A, o Tribunal não pode prover a rescisória por violação à Lei B. É necessário que a parte ajuíze uma nova ação rescisória com esta outra causa de pedir: a violação à Lei B.
Como bem define Barbosa Moreira[10], ao tratar das causas de pedir nas ações rescisórias do art. 485, V (literal violação a dispositivo de lei): “Cada suposta violação constitui uma causa petendi. (…) Pode o autor, naturalmente, alegar que a decisão rescindenda infringiu mais de uma norma: haverá duas ou mais causas de pedir”.
Tampouco é possível falar em preclusão consumativa, dado que a demanda constitutiva não é recurso, mas sim ação; e a parte sempre poderá ajuizar novas ações para pleitear o mesmo interesse, desde que tenha novos fundamentos – novas causas de pedir – para lastrear sua pretensão.
Embora sejam raras na Jurisprudência situações idênticas à ora examinada, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça, em casos análogos, assim tem se manifestado:
“AR – ADMINISTRATIVO – PROCESSUAL CIVIL – INADEQUAÇÃO DA AÇÃO RESCISÓRIA COMO FORMA DERRADEIRA DA VIA RECURSAL – LITISPENDÊNCIA AFASTADA – EX-DELEGADO DE POLÍCIA – REINTEGRAÇÃO PREJUDICADA – INDEPENDÊNCIA DOS PROCESSOS ADMINISTRATIVO E CRIMINAL – SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA INFERIOR A 4 (QUATRO) ANOS – IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO ART. 92, I, “B”, DO CP – PRECEDENTES. 1 – A ação rescisória não se confunde com recurso. Seus pressupostos estão insculpidos no art. 485 e incisos do Código de Processo Civil. Inadequada, pois a propositura de ação como forma derradeira da via recursal. 2 – Afasta-se a preliminar de litispendência quando a ação pretérita restar extinta (art. 267, I, CPC), pelo fato da exordial se encontrar desprovida de todos os documentos necessários para a compreensão da lide. Desta forma, opera-se a coisa julgada formal, podendo a parte interessada propor nova ação, desde que respeitado o biênio decadencial. (…)” (AR 565/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/05/2000, DJ 19/06/2000, p. 101)
Como visto, se houvesse uma espécie de preclusão consumativa com o ajuizamento de uma ação rescisória – à semelhança do que ocorre com os recursos –, jamais possível ajuizar outra demanda desconstitutiva, ainda que a primeira houvesse sido extinta por incompetência ou por qualquer defeito formal. Evidentemente, não é o que ocorre no ordenamento pátrio, consoante deixou claro o acórdão acima transcrito. Confira-se ainda:
“AÇÃO RESCISORIA – LIMITES SUBJETIVOS E OBJETIVOS DA COISA JULGADA. A CIRCUNSTANCIA DE O DENUNCIADO INTENTAR AÇÃO RESCISORIA, NÃO IMPEDE QUE OUTRA O SEJA PELO DENUNCIANTE, REU NA AÇÃO EM QUE PROFERIDA A SENTENÇA ATACADA – C.P.C. ART. 472. BASEANDO-SE A PRIMEIRA RESCISORIA APENAS EM QUE O JULGADO FUNDARA-SE EM FALSA PROVA, NÃO EXISTE OBICE AO PROSSEGUIMENTO DA SEGUNDA, EM QUE SE CUMULAM OUTRAS CAUSAS DE PEDIR. APENAS AQUELA MESMA CAUSA DE PEDIR NÃO PODERIA EM TESE SER REEXAMINADA.” (REsp 1.019/GO, Rel. Ministro EDUARDO RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/11/1989, DJ 11/12/1989, p. 18139)
Fica clara, desta maneira, a plena viabilidade processual do ajuizamento de mais de uma ação rescisória concernente à mesma coisa julgada, não se podendo falar, dada a natureza jurídica da demanda, em litispendência ou em preclusão consumativa.
Conclusão.
Na delicada matéria da competência para apreciação de ações rescisórias calcadas no art. 485, V, do Código de Processo Civil (violação a literal dispositivo de lei), terá atribuição para julgar a demanda desconstitutiva, em regra, o Tribunal que tiver, no processo de conhecimento, perpetrado a afronta legal argüida. Assim, se a violação foi empreendida por Juiz de Primeiro Grau ou pelo Tribunal inferior, a ele tocará a atribuição para apreciar a rescisória; se foi pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal, a eles competirá a realização do judicium rescindens.
Nada obstante, se uma mesma coisa julgada for inquinada por diversas afrontas legais no processo de conhecimento, sendo que algumas foram perpetradas pelo Tribunal de segundo grau (no julgamento da apelação), e outras foram empreendidas pela Corte superior (na apreciação de RE ou REsp), o quadro se apresenta bastante polêmico.
Em uma das raras oportunidades em que se deparou sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que a sua competência para apreciar os vícios por ele efetuados se prorrogaria para o exame dos demais vícios (os quais originalmente competiriam ao TRF ou TJ). Trata-se de posicionamento que preza pelo pragmatismo (pois evita a inconveniência de dois tribunais se debruçarem sobre a mesma coisa julgada), porém apresenta problemas de ordem técnico-processual, uma vez que a competência para julgamento de rescisórias é absoluta e, como sabido, competência absoluta não se prorroga.
Ademais, a posição não está consolidada, e o Supremo Tribunal Federal tanto possui julgados nesse sentido, como também em sentido contrário, entendendo que a Corte superior somente poderia examinar os pedidos atinentes a afrontas legais por ela perpetradas.
O maior risco de toda essa situação é que, se todos os vícios forem agrupados em uma só petição inicial perante a Corte superior (confiando-se no referido posicionamento do STJ), e, no momento do julgamento, houver nova alteração jurisprudencial (entendendo-se que a Corte superior somente poderá apreciar as afrontas legais por ela perpetradas, cumprindo ao Autor ajuizar nova demanda perante o TRF ou TJ), muito provavelmente já se terá esvaído o prazo decadencial bienal, lesando-se, de modo irreversível, o direito material da parte.
Recorde-se que, quando todos os vícios são reunidos em uma só petição inicial, é impossível remeter ao outro Juízo apenas parte dessa petição inicial ou parte dos motivos por ela invocados, em razão da aplicação analógica da Súmula 170 do STJ.
Nesse contexto, a maior preocupação ao se ajuizar a demanda não deve ser propriamente a discussão jurisprudencial e doutrinária sobre qual o órgão competente, mas sim a adoção de instrumentos processuais aptos a salvaguardar o lapso decadencial bienal, assegurando o acesso da parte à Justiça e a tutela do direito material.
Assim, a solução processual mais eficaz é o ajuizamento de duas ações rescisórias distintas, agrupando-se, na primeira, os vícios que foram tratados pelo Tribunal superior na fase de conhecimento; e, na segunda, os que não foram. A fim de seguir o último posicionamento das Cortes superiores, bem como de zelar pela celeridade processual, a providência mais conveniente é o ajuizamento de ambas as ações na Corte superior, requerendo-se julgamento simultâneo por conexão, porém efetuando-se pedido subsidiário de que, caso o colegiado entenda que somente tem competência para apreciar os vícios por ele próprio empreendidos, remeta a segunda rescisória ao TRF ou TJ para julgamento, por aplicação do art. 113, §2º, do CPC. Não mais existirá, nessa hipótese, o óbice da Súmula 170 do STJ, resguardando-se o prazo decadencial.
O ajuizamento de duas ações rescisórias para desconstituir a mesma coisa julgada, por seu turno, apresenta plena viabilidade processual, desde que as afrontas legais suscitadas em cada uma delas (ou seja, as causas de pedir) sejam distintas, e ambas tenham sido manejadas dentro do prazo bienal. Não há falar em litispendência, porque as causas de pedir são diversas; e tampouco em preclusão consumativa, pois não se trata de recurso, e sim de ação autônoma.
Trata-se, enfim, de mecanismo apto à concretização do direito fundamental de acesso à Justiça, aplicando-se o processo como verdadeiro instrumento de tutela ao direito material, e não obstáculo inarredável ao exame do mérito; como solução para as dificuldades inerentes ao litígio, e não problema adicional a obstaculizar o acesso equânime aos bens da vida.
Informações Sobre o Autor
Eduardo da Silva Villas-Bôas
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia e Advogado da União com atuação na Procuradoria-Geral da União, perante o Superior Tribunal de Justiça.