Coisa julgada inconstitucional

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária!

Resumo: O presente artigo pretende analisar a chamada coisa julgada inconstitucional bem como suas implicações no sistema jurídico, à luz dos princípios da segurança jurídica e da justiça da decisão.  A inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado pode decorrer de declaração posterior pelo Supremo Tribunal Federal de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de norma em que se baseou a demanda. Outrossim, existe na doutrina posições divergentes acerca da possibilidade ou não da flexibilização da coisa julgada material em alguns casos particulares. O conflito que se vislumbra entre a necessidade de manutenção e preservação da segurança jurídica versus a busca pela justiça da decisão será utilizado como base das argumentações, assim como o exame de posicionamentos doutrinários divergentes. Por fim, serão apresentados alguns julgamentos dos Tribunais Superiores acerca do tema.

Palavras-chave: Coisa Julgada. Relativização. Segurança Jurídica. Justiça da Decisão. Ação Rescisória.

Abstract: This article aims to analyze the thing called deemed unconstitutional and its implications in the legal system, in the light of the principles of legal certainty and justice of the decision. The unconstitutionality of the final judgment may result from subsequent declaration by the Supreme Court of the constitutionality or unconstitutionality of a rule that was based demand. Furthermore, there is the doctrine divergent positions concerning whether or not the relaxation of res judicata stuff in some particular cases. The conflict in sight between the need to maintain and preserve legal certainty versus the search for justice of the decision will be used as the basis of the arguments, as well as examination of divergent doctrinal positions. Finally, some judgments of the Superior Courts will be presented on the topic.

Keywords: Res Judicata. Relatizitation. Legal Certainty. Justice of decision. Rescissory Action.

Sumário: Introdução. 1. Coisa Julgada. 1.1 Conceito e Natureza Jurídica. 1.2. Relativização da Coisa Julgada. 2. Coisa Julgada Inconstitucional. Conclusão.

Introdução

A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 5º, XXXVI, garante que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Vê-se, dessa forma, que o constituinte originário nacional estabeleceu limites à retroatividade da lei, com o intuito de conferir estabilidade às relações jurídicas.

O dispositivo constitucional supracitado está intimamente ligado à ideia de segurança jurídica. Esta significa o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, bem como quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes. 

É nesse contexto que se insere a garantia constitucional da coisa julgada, que, além de pressuposto lógico da segurança jurídica, é instrumento hábil a salvaguardar os direitos reconhecidos nas relações jurídicas travadas em juízo e a defender a manutenção do resultado da prestação jurisdicional.

E quando a decisão transitada em julgado ofende a Constituição Federal? Poderá ela permanecer produzindo efeitos no mundo jurídico? Tais questionamentos são objetos do presente trabalho, que abordará o tema da coisa julgada inconstitucional à luz dos princípios da segurança jurídica e da justiça da decisão.

1.  Coisa Julgada

1.1 Conceito e Natureza Jurídica

O Código de Processo Civil define coisa julgada material em seu artigo 467, in verbis: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.

Segundo Elpídio Donizetti, o conceito trazido pelo código é falho,

“porquanto, ao conceituar a coisa julgada material, o legislador leva em conta o aspecto da imutabilidade e indiscutibilidade da sentença, e não das relações jurídicas, cunho processual ou material. Adota uma visão clássica tradicional, do fenômeno, segundo  a qual o que caracteriza a coisa julgada é a imutabilidade  e a indiscutibilidade dos efeitos da sentença. Todavia, não são esses efeitos que se tornam imutáveis, mas o conteúdo da decisão proferida, ou seja a norma individual criada para aquele caso concreto.” (DONIZETTI, 2009, p. 398)

Para os romanos o instituto da res iudicata (coisa julgada) tinha um conteúdo prático de utilidade social haja vista que para eles a vida social se desenvolveria de modo mais seguro e pacífico a partir de quando se garantisse a segurança quanto ao resultado do processo.

Coisa julgada traduz-se no “bem da vida que o autor deduziu em juízo (res in iudicium deducta) com a afirmação de que uma vontade concreta de lei o garante ao seu favor ou nega ao réu depois que o juiz o reconheceu ou desconheceu com a sentença de recebimento ou de rejeição da demanda” (CHIOVENDA; 2002, p. 446).

Para Hugo Nigro Mazzili (1998, p.165) coisa julgada é a imutabilidade dos efeitos da sentença, obtida através do trânsito em julgado. Diz este mesmo autor que

“Toda sentença, independentemente de ter transitado em julgado, é apta a produzir efeitos jurídicos; coisa julgada é apenas a imutabilidade desses efeitos, ou seja, uma qualidade que esses efeitos adquirem com o trânsito em julgado da sentença, por meio da qual se impede que as partes discutam a mesma causa novamente” (1998, p. 165).

A doutrina é unânime em associar a coisa julgada material à inalterabilidade da decisão judicial de mérito que não pode ser mais modificada por recursos ou pelo reexame necessário, na específica hipótese do art. 475 do CPC. Contudo, existe divergência entre os processualistas a respeito do que precisamente se torna imutável em razão da coisa julgada material, podendo ser elencadas três correntes doutrinárias.

A primeira delas afirma que a coisa julgada é uma qualidade da sentença, que torna seus efeitos imutáveis e indiscutíveis. Registre-se que a maior parte da doutrina processual pátria[1] corrobora a ideia de que a coisa julgada é uma qualidade dos efeitos da decisão judicial, posto que, a autoridade da coisa julgada não deveria ser entendida como um efeito declaratório da sentença eis que a imutabilidade da sentença é que daria a qualidade a esse efeito declaratório do julgado. Ainda, segundo Liebman, “Identificar a declaração produzida pela sentença com a coisa julgada significa, portanto, confundir o efeito com um elemento novo que o qualifica[2]. Assim, os efeitos práticos emanados dessa decisão não poderão ser mais aventados em outro processo.

A crítica que se faz a essa primeira corrente é no sentido de que os efeitos da sentença de mérito transitada em julgado não se tornam imutáveis, bastando para chegar a tal conclusão a verificação empírica de que tais efeitos poderão ser transmudados por ato ou fato superveniente.

A segunda corrente, capitaneada por Barbosa Moreira (2001, p. 107), entende que é o conteúdo da decisão, contida em sua parte dispositiva, que se torna imutável e indiscutível em razão da coisa julgada material. Dessa forma, a coisa julgada não seria uma qualidade da sentença que opera sobre seus efeitos, mas uma situação jurídica, que torna uma sentença imutável e indiscutível. Consistiria, em síntese, na imutabilidade do conteúdo da decisão, do seu comando (dispositivo), que é composto pela norma jurídica concreta. Não haveria que se falar em imutabilidade dos seus efeitos, uma vez que estes podem ser disponíveis e, pois, alteráveis.

Outrossim, sustenta Didier Jr. que,

“A coisa julgada é um efeito jurídico (uma situação jurídica, portanto), que nasce a partir do advento de um fato jurídico composto consistente na prolação de uma decisão jurisdicional sobre o mérito (objeto litigioso), fundada em cognição exauriente, que se tornou inimpugnável no processo em que foi proferida. E este efeito jurídico (coisa julgada) é, exatamente, a imutabilidade do conteúdo do dispositivo da decisão, da norma jurídica individualizada ali contida”. (DIDIER JR, 2007. p.486)

Por fim, existe uma terceira corrente, cujos maiores expoentes são Marinoni e Arenhart (2008, p.628-633) que afirma que toda sentença tem um elemento declaratório, consubstanciado na aplicação da norma abstrata da lei ao caso concreto. Esse elemento declaratório tem como efeito a certeza jurídica de que, diante dos fatos alegados e considerados pelo juiz, o direito material conforme declarado pela sentença existe. Nesse sentido, reconhecendo que outros efeitos da sentença poderão ser modificados por ato e fato supervenientes, mormente pela vontade das partes (NEVES, 2010, p. 494), essa linha de pensamento limita os efeitos da declaração da norma abstrata ao caso concreto a imutabilidade própria da coisa julgada.

Daniel Amorim Assumpção Neves constata a existência de pontos de convergência entre as três visões doutrinárias citadas, apontando que

“todos reconhecem que toda sentença tem um elemento declaratório, consubstanciado na subsunção da norma abstrata ao caso concreto, e considerado pelo aspecto de elemento que compõe o conteúdo da decisão ou que gera efeitos práticos para fora do processo, torna-se imutável e indiscutível. Parecem também concordar que eventos futuros, refrentes à vontade das partes modificar outros efeitos gerados pela sentença, como ocorre no efeito condenatório no caso do pagamento da dívida ou do novo casamento no caso do divórcio” (NEVES, 2010, p. 494-495).

É sabido que toda decisão produz uma norma jurídica individualizada, cria a norma que vai regular uma situação concreta. Essa norma, quando se torna irrefutável, adquire a força de coisa julgada. Assim, podemos concluir que a coisa julgada é a indiscutibilidade da norma individualizada contida numa decisão judicial.

Além disso, a coisa julgada pode se manifestar formalmente ou materialmente.

Quando a indiscutibilidade da decisão limita-se ao processo onde foi proferida, verifica-se a coisa julgada formal. A coisa julgada formal é a imutabilidade da decisão judicial dentro do processo em que foi proferida, porquanto não possa mais ser impugnada por recurso – seja pelo esgotamento das vias recursais, seja pelo decurso do prazo do recurso cabível. Trata-se de fenômeno endoprocessual, decorrente da irrecorribilidade da decisão judicial. Revela-se, em verdade, como uma espécie de preclusão. Conforme acentua Didier (2007, p. 479) seria a preclusão máxima dentro de um processo jurisdicional.

Todavia, quando a indiscutibilidade da decisão opera-se no processo em que ela foi proferida e em qualquer outro, está-se diante da chamada coisa julgada material. É sobretudo essa manifestação da coisa julgada que se presta a trazer segurança jurídica aos litigantes, aos quais não basta apenas que o processo se encerre, mas que a questão litigiosa  se já definitivamente dirimida, não podendo ser discutida em nenhum outro processo.

Ressalte-se que a coisa julgada material pressupõe que tenha havido sentença de mérito, que o juiz tenha decidido a pretensão posta em juízo, favorável ou desfavoravelmente ao autor.

1.2 Relativização da Coisa Julgada

A coisa julgada integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, assegurado em todo Estado Democrático de Direito, encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no art. 5º, XXXVI, CF. Conforme pontuou Fredie Didier Jr. (2007), ela “garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário”. Desse modo, percebe-se que a coisa julgada não é instrumento de retidão, não assegura a justiça das decisões, estando intimamente ligada à garantia da segurança jurídica na estabilização das relações jurídicas.

Não obstante a constatação acima realizada, existem na doutrina pátria posições que defendem a relativização da coisa julgada, e, por consequência, a flexibilização da segurança jurídica, devendo a res judicata ser contrastada com os princípios jurídicos. Nesse sentido, preleciona Dinamarco (apud MONTENEGRO FILHO, 2006, p. 565) que “os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual”.

O argumento preponderante dos que defendem a relativização da coisa julgada é o nobre princípio da justiça da decisão. Para essa corrente, o valor da segurança jurídica não teria caráter absoluto no ordenamento jurídico, sujeitando-se ao princípio supracitado. A legitimidade do sistema jurisdicional residiria na correção de suas deliberações.

Cândido Rangel Dinamarco (2001) ressalta que não está “a postular a sistemática desvalorização da auctoritas rei judicate mas apenas o cuidado para situações extraordinárias e raras, a serem tratadas mediante critérios extraordinários”.  Além disso, caberia aos juízes de todos os graus jurisdicionais a tarefa de descoberta das extraordinariedades que devem conduzir a flexibilização da garantia da coisa julgada, recusando-se a suavizá-la sempre que o caso não seja portador de absurdos, injustiças graves ou de infrações constitucionais. Desse modo, não haveria uma garantia sequer, nem mesmo à coisa julgada, que conduza invariavelmente e de modo absoluto à renegação dos valores que elas representam, devendo ser afastada a imutabilidade da coisa julgada, ainda que ultrapassada o prazo da ação rescisória.

De outro lado, parcela da doutrina defende a impossibilidade da relativização da coisa julgada.

Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery possuem entendimento em sentido contrário ao defendido por Dinamarco, uma vez que consideram a garantia da coisa julgada elemento formador do Estado Democrático de Direito, in litteris:

“28. Coisa julgada material e Estado Democrático de Direito. A doutrina mundial reconhece o instituto da coisa julgada material como ‘elemento de existência’ do Estado Democrático de Direito (…). A ‘supremacia da Constituição’ está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1.º ‘caput’), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas da doutrina e jurisprudência, como é o caso da sentença injusta, repelida como irrelevante (…) ou da sentença proferida contra a Constituição ou a lei, igualmente considerada pela doutrina (…), sendo que, nesta última hipótese, pode ser desconstituída pela ação rescisória (CPC 485 V). (…) O risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização (‘rectius’: desconsideração) da coisa julgada”. (grifo nosso) (NERY JR e NERY, 2010, p.715-716)

Vale a pena registrar o entendimento do Professor Leonardo Greco que, fazendo citação à jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, que reconheceu a coisa julgada como necessária à tutela jurisdicional efetiva, assim se manifestou:

“Àquele a quem a Justiça reconheceu a existência de um direito, por decisão não mais sujeita a qualquer recurso no processo em que foi proferida, o Estado deve assegurar a sua plena e definitiva fruição, sem mais poder ser molestado pelo adversário. Se o Estado não oferecer essa garantia, a jurisdição nunca assegurará em definitivo a eficácia concreta dos direitos dos cidadãos”. (GRECO, 2004, p. 05)

Todavia, o Supremo Tribunal Federal em alguns casos vem relativizando a coisa julgada, especialmente nas ações de investigação de paternidade onde não foi possível a realização de exame de DNA, in verbis:

“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO PROVIDENCIADO A SUA REALIZAÇÃO. REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE. 1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova. 2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável. 4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação à pessoa identificada. 5. Recursos extraordinários conhecidos e providos.[3]

O Egrégio Supremo Tribunal Federal, em juízo de ponderação de princípios, entendeu que a dignidade da pessoa humana, em seu aspecto relacionado à busca da identidade genética, deveria prevalecer em relação à segurança jurídica. Percebe-se, desse modo, que a mitigação da força da res judicata poderá ocorrer em casos específicos.

Ainda, deve-se registrar que o Estado Democrático de Direito tem como um dos seus pilares máximos a ideia de segurança e garantia aos cidadãos. A coisa julgada, assim, revelar-se-ia verdadeira garantia constitucional, e como tal um direito fundamental, como instrumento necessário à eficácia concreta do direito à segurança, insculpido no artigo 5º da Carta da República de 1988.

Ademais, consoante assevera Misabel de Abreu Machado Derzi, “[…] as modificações da jurisprudência não podem configurar surpreendentes ‘reviravoltas’ judiciais, sem que o juiz atenue os efeitos da mudança, protegendo a confiança e a boa-fé daqueles que tinham pautado seu comportamento de acordo com os comandos judiciais (jurisprudência) superados”[4].

Vê-se, dessa forma, que a proteção à confiança leva em conta a boa-fé do cidadão, que acredita e espera que os atos praticados pelo Poder Público sejam lícitos e, nessa qualidade, serão mantidos e respeitados pela própria Administração e por terceiros.  Na prática, esse princípio assegura às pessoas o direito de usufruir benefícios patrimoniais, mesmo quando derivado de atos ilegais ou leis inconstitucionais, exatamente em virtude da consolidação de expectativas derivadas do decurso do tempo.

Consoante sustenta Valter Shuenqueiner de Araújo, em sua obra sobre o Princípio da Proteção da Confiança:

“devemos ser os principais responsáveis pelas vantagens e desvantagens que surgirem como conseqüências de nossas opções, o que obriga o Estado a respeitar nossas preferências, mormente se elas estiverem dentro de uma moldura normativa autorizada pela ordem jurídica. O princípio da proteção da confiança deve, por exemplo, impedir intervenções estatais que façam desabar projetos de vida já iniciados. (…) A sociedade não pode apenas olhar para o presente e criar, através do Estado, normas que esvaziem por completo os planos individuais planejados no passado. As aspirações de mudança surgidas no seio popular e materializadas por atos estatais também merecem ser contidas na exata extensão em que vierem a ofender expectativas legítimas de particulares. (…) O princípio da proteção da confiança precisa consagrar a possibilidade de defesa de determinadas posições jurídicas do cidadão diante de mudanças de curso inesperadas promovidas pelo Legislativo, Judiciário e pelo Executivo. Ele tem como propósitos específicos preservar a posição jurídica alcançada pelo particular e, ainda, assegurar uma continuidade das normas do ordenamento. Trata-se de um instituto que impõe freios contra um excessivo dinamismo do Estado que seja capaz de descortejar a confiança dos administrados. Serve como uma justa medida para confinar o poder das autoridades estatais e prevenir violações dos interesses de particulares que atuaram com esteio na confiança.” (ARAUJO, 2009) grifei

Logo, pode-se concluir que os postulados da segurança jurídica e da proteção à confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, inclusive as de direito público, sempre que se registre alteração substancial de diretrizes hermenêuticas, impondo-se à observância de qualquer dos Poderes do Estado e, desse modo, permitindo preservar situações já consolidadas no passado e anteriores aos marcos temporais definidos pelo próprio tribunal.

Assim, a suavização da coisa julgada deve ser aceita apenas em casos excepcionais, onde outros princípios constitucionais sejam gravemente ofendidos. É sabido que a indiscutibilidade da res judicata pode tornar permanente, em alguns casos, situações indesejadas, como por exemplo: decisões injustas, ilegais, ou destoantes com a realidade fática. Busca-se, desse modo, harmonizar a garantia da segurança jurídica e estabilidade das situações jurídicas com a legalidade, justiça e coerência das decisões, nesse sentido entende Fredie Didier Jr. (2007, 506).

2. Coisa Julgada Inconstitucional

Há coisa julgada inconstitucional quando uma decisão judicial transitada em julgado se mostrar contrária a princípio ou norma constitucional. A inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado pode decorrer de declaração posterior pelo Supremo Tribunal Federal, de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de norma em que se baseou a demanda ou, até mesmo, da violação de princípio ou norma constitucional pelo magistrado ao prolatar o julgado.

Teoricamente, a coisa julgada inconstitucional somente poderia ocorrer quando a declaração do STF acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma se desse após seu trânsito em julgado. Isso porque, caso a declaração já fosse conhecida com o processo em trâmite, as partes ainda teriam a oportunidade de argüi-la, e o magistrado teria a obrigação de fazê-lo ex officio. Tal fato se deve tendo em vista que as decisões do Supremo (seja em controle abstrato, seja através de controle incidental) possuem efeito vinculante.

Nessas hipóteses, parece razoável que se aceite o ajuizamento de ação rescisória, nos termos do art. 485, V, do CPC[5].

Outrossim, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento de longa data no sentido de que sentenças transitadas em julgado, ainda que inconstitucionais, somente poderão ser invalidadas mediante utilização de meio instrumental adequado, como sucede com a ação rescisória no domínio processual civil, conforme apontou o Ministro Celso de Melo em seu voto no Recurso Extraordinário RE 649154/MG[6], vejamos:

Com efeito, esta Suprema Corte, em 1968, quando do julgamento do RMS 17.976/SP, Rel. Min. AMARAL SANTOS (RTJ 55/744), proferiu decisão na qual reconheceu a impossibilidade jurídico-processual de válida desconstituição da autoridade da coisa julgada, mesmo na hipótese de a sentença transitada em julgado haver resolvido o litígio com fundamento em lei declarada inconstitucional:

“A suspensão da vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional.

Contudo, a nulidade da decisão judicial transitada em julgado pode ser declarada por via de ação rescisória, sendo impróprio o mandado de segurança (…).” (grifei)

Posteriormente, em 1977, o Supremo Tribunal Federal, reafirmando essa corretíssima orientação jurisprudencial, fez consignar a inadmissibilidade de embargos à execução naqueles casos em que a sentença passada em julgado apoiou-se, para compor a lide, em lei declarada inconstitucional por esta Corte Suprema:

“Recurso Extraordinário. Embargos à execução de sentença porque baseada, a decisão trânsita em julgado, em lei posteriormente declarada inconstitucional. A declaração da nulidade da sentença somente é possível via da ação rescisória. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. (…).” (RE 86.056/SP, Rel. Min. RODRIGUES ALCKMIN – grifei)

Ademais, vale registrar posição do Ilustre doutrinador Gilmar Ferreira Mendes (2005, p.405-406) no sentido de que coisa julgada inconstitucional encontraria guarida no princípio da segurança jurídica, por tratar-se de proteção a ato singular, “em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato singular (Einzelaktebene) mediante a utilização das fórmulas de preclusão”. Além disso, conclui o ilustre doutrinador (2005, p. 526) que “somente serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade com eficiência geral os ainda suscetíveis de revisão ou impugnação.”.

Dessa forma, é plenamente cabível o uso da ação rescisória para a desconstituição da sentença inconstitucional transitada em julgado[7]. Apesar do Supremo Tribunal Federal não ter se pronunciado acerca do termo inicial do prazo decadencial para o ajuizamento da ação rescisória, o Professor Pedro Lenza (2010, p. 291) entende que o prazo decadencial de 02 anos “deverá ser contado do trânsito em julgado da sentença individual, e não a partir da nova posição do STF”. Caso contrário, estar-se-ia caracterizada a violação aos princípios constitucionais da segurança jurídica e autoridade das decisões do Poder Judiciário.

Igualmente, havendo ato singular individual anterior, além do prazo decadencial de 2 anos, com a ressalva da matéria penal (revisão criminal), a coisa julgada individual deverá ser respeitada e o sistema terá de conviver com as sentenças contraditórias.

Além da hipótese acima descrita, a desconstituição da coisa julgada só encontraria respaldo caso houvesse uma colisão com outros valores constitucionais, situação essa verificada em razão do princípio da razoabilidade e proporcionalidade, e tendo o magistrado considerado que o princípio da segurança jurídica deva ser afastado. Ademais, esta possibilidade de flexibilização da coisa julgada deve ocorrer em situações excepcionalíssimas, uma vez que o Estado de Direito pressupõe o respeito à autoridade da res judicata.

Desse modo, pode-se concluir que o sistema processual terá que conviver com sentenças inconstitucionais, ante a necessidade de preservação da estabilidade das relações jurídicas.

Conclusão

Percebe-se que a Constituição da República observando o princípio da segurança jurídica respeita a coisa julgada desde que essa própria coisa julgada também esteja de acordo com os preceitos contidos na Constituição. Assim, pode-se concluir que a desconstituição da coisa julgada inconstitucional, em tese, não revelaria ofensa ao princípio da segurança jurídica, posto que existem outros princípios no ordenamento jurídico brasileiro, tais como o princípio da constitucionalidade, o qual estabelece que todos os atos proferidos por todos os entes federativos devem observar aos preceitos dispostos na Lei Maior. Todavia, a desconsideração da res judicata deverá ser feita através de ação rescisória (art. 485, V do CPC), observando o prazo decadencial de 02 anos, que deve ter seu termo inicial a partir da decisão judicial inconstitucional transitada em julgado.

Em se tratando de hipótese de inconstitucionalidade que, além de não trazer em seu bojo transgressão a relevante direito fundamental, não mais seja passível de desconstituição através de ação rescisória, estar-se-á diante da situação em que se mostra muito mais razoável a preservação da segurança jurídica como forma de garantia da tutela jurisdicional efetiva, a qual é dever de qualquer Estado que se diga Democrático de Direito.

Desse modo, ante a ultrapassagem do prazo de 02 anos, o sistema jurídico deverá conviver com sentenças inconstitucionais, tendo em vista à garantia da segurança jurídica e à proteção à confiança.

 

Referências
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSO CIVIL. RE 363889/DF; Relator (a):  Min. DIAS TOFFOLI; Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Data do Julgamento:  02/06/2011; Publicação: DJe-238; public. 16-12-201. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE+363889%29&base=baseAcordaos>. Acesso em 01 ago. 2012.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSO CIVIL. RE 649154/MG; Relator (a):  Min. CELSO DE MELO; Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Data do Julgamento:  23/11/2011; Publicação: DJe de 29.11.2011. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE+649154%2FMG%29&base=baseInformativo >. Acesso em 01 ago. 2012.
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSO CIVIL. RE 328.812-AgR; Relator (a):  Min. GILMAR MENDES; Órgão Julgador: Segunda  Turma; Data do Julgamento: 10/12/2002, Data da Publicação:  DJ de 11.04.2003. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE+328%2E812-AgR%29&base=baseInformativo >. Acesso em 01 ago. 2012.
ARAUJO, Valter Shuenquener de. O Princípio da Proteção da Confiança. Uma Nova Forma de Tutela do Cidadão Diante do Estado. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos, A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro. Temas de direito processual ( primeira série). São Paulo: Saraiva, 2001.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Vol. 01, 3 ed. – São Paulo: Editora Bookseller, 2002.
DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2009.
DIDIER JR., Freddie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, volume II, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.
DINAMARCO, Cândido Rangel. “Relativizar a coisa julgada material”. In: Revista da Escola Paulista da Magistratura, vol. 2, n. 2, jul.-dez./2001, São Paulo: Imprensa Oficial
DONIZETTI, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil, 12ª edição. Rio de Janeiro: Editora Lumem Juris, 2009.
GRECO, Leonardo. “Apresentação”. In: GONÇALVES, Willian Couto. Garantismo, Finalismo e Segurança Jurídica no Processo Judicial de Solução de Conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 14ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2010.
MARINONI, Luis Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil. Vol. 2, 7ª ed., São Paulo: RT, 2008.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucionalidade: comentários à lei n. 9868, de 10.11.99, 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
MAZZILI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de direito processual civil: teoria geral dos recursos, recursos em espécie e processo de execução. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2006.
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 11ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Manual de Direito Processual Civil, 2ª edição, São Paulo: Editora Método, 2010.
THEODORO JR. Humberto, Curso de Direito Processual Civil, vol I,  47ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
 
Notas:
[1] Ada Pellegrini Grinover, Candido Rangel Dinamarco, Tereza Arruda Alvim Wambier, Garcia Medina, dente outros, seguem o entendimento de Enrico Tulio Liebman.

[2] LIEBMAN, Enrico Túlio apud DIDER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil, volume II, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.

[3] RE 363889 / DF – DISTRITO FEDERAL; Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI; Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Julgamento:  02/06/2011; Publicação: DJe-238 – DIVULG 15-12-2011 – PUBLIC 16-12-2011.

[4] Modificação da jurisprudência no direito tributário, p. XXVI.

[5]Art. 485 – A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: V – violar literal disposição de lei”. Barbosa Moreira defende que “lei” deve ser interpretada em sentido amplo, compreendendo, portanto, além das espécies normativas do art. 59 da CF, a própria Constituição (c.f. J.C. Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil: Lei n. 5860, de 11 de janeiro de 1973, 12. Ed.,p. 130-131).

[7] Recurso Extraordinário. Agravo Regimental. 2. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343. 3. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação constitucional revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 4. Ação Rescisória fundamentada no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. A indicação expressa do dispositivo constitucional é de todo dispensável, diante da clara invocação do princípio constitucional do direito adquirido. 5. Agravo regimental provido. Recurso extraordinário conhecido e provido para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória. (RE 328.812-AgR, rel. Min. Gilmar Mendes, unânime, 2ª Turma, DJ de 11.04.2003)


Informações Sobre o Autor

Breno Felipe Rocha Freire

Assistente Jurídico do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba lotado no Gabinete do Procurador de Contas Marcilio Toscano da Franca Filho Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cidade de São Paulo


Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária!

Coisa julgada inconstitucional

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária!

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo expor as bases para se admitir a rescisão de julgados inconstitucionais, afastando as restrições impostas pela jurisprudência, em especial pela súmula do STF de nº 343, com vistas a reforçar a força normativa da Constituição Federal e o papel do Supremo Tribunal Federal neste contexto. A linha de idéias propostas no pretende ensaio não tem a pretensão de minar irresponsavelmente a auctoritas rei judicatae. Propõe-se apenas um tratamento extraordinário para situações igualmente extraordinárias, com o escopo de afastar absurdos, injustiças flagrantes e infrações à Constituição. Busca-se ressaltar que nenhum princípio tem que ser sempre aplicado de forma absoluta, sendo certo que deve ceder espaço em determinadas situações concretas a outros de igual hierarquia.


Palavras-chave: Sentença; inconstitucional; coisa julgada; relativização.


Sumário: Introdução: Cabimento de ação resisória para atacar decisão que viola norma constitucional. 1. Rescindibilidade de julgados por violação à literal dispositivo de lei. 1.1. A ação rescisória com fundamento no artigo 485, inciso V, do CPC. 1.2. Necessidade de haver uma única interpretação possível: restrição plasmada no enunciado 343, da súmula do STF. 2. O princípio da segurança jurídica indevidamente invocado para obstar a rescisão de decisões violadoras da Constituição. 2.1. Conciliação entre os princípios da segurança jurídica e da força normativa da constituição. 2.2. A efetividade das normas constitucionais como condição para se atingir a segurança jurídica. 3. Rescindibilidade das sentenças inconstitucionais. 3.1. Cabimento de ação rescisória com fundamento no inciso V para fazer prevalecer interpretação da Suprema Corte a respeito de normas constitucionais. 3.2. Na ausência de precedente do Supremo Tribunal Federal, o acórdão que julgar a ação rescisória é passível de Recurso Extraordinário. 4. Impossibilidade de rescindir sentença fundada em lei declarada inconstitucional pelo Supremo. 5. Conclusão: Mitigação da Súmula 343 do Supremo Tribunal Federal e cabimento de ação rescisória em matéria constitucional controvertida. Referências.


INTRODUÇÃO:


Tema de relevância acentuada na atualidade, tendo em vista as constantes alterações legislativas e de interpretação das normas constitucionais, o Princípio da Segurança Jurídica vem sendo utilizado como empecilho ao tratamento isonômico dos jurisdicionados.


No que tange especificamente à rescisão de julgados que afrontam a interpretação do STF quanto a dispositivo constitucional, doutrinadores de renome divergem quanto à correta aplicação do art. 485, inciso V, do Código de Processo Civil. Ainda que exista controvérsia acerca da interpretação da norma constitucional que se entende violada, defendemos que, em defesa da igualdade entre os jurisdicionados, é cabível a ação rescisória.


Cumpre ao Supremo Tribunal Federal conferir a correta interpretação das normas constitucionais, de modo que, existindo precedente dessa Corte sobre a matéria, ainda que posterior ao trânsito em julgado da sentença rescindenda, seja tal orientação emanada do controle concentrado ou difuso de constitucionalidade, a ação rescisória pode ser manejada com o intuito de preservar o Princípio da isonomia e da máxima efetividade das normas constitucionais.


A Corte Constitucional veio em amparo dessa tese. Em recentes decisões, procurou mitigar o alcance da Súmula 343 de sua jurisprudência, para autorizar a rescisão de julgados que contrariem as suas decisões, mesmo que estas sejam supervenientes àqueles.


Nesse contexto, surge a necessidade de verificação dos efeitos das decisões proferidas pelo Supremo, com a finalidade de concluirmos acerca da possibilidade de rescisão ainda que com fulcro em acórdão proferido no controle difuso de constitucionalidade.


Alertamos ainda que por vezes há divergência quanto à correta interpretação de determinada norma constitucional sem que exista precedente do STF. Nessas hipóteses, a ação rescisória possui papel extremamente relevante, pois funciona como mecanismo de uniformização da jurisprudência, já que o acórdão que julgar o mérito, afirmando a existência ou não de violação à Constituição, estará sujeito a controle pela Suprema Corte, mediante recurso extraordinário.


Enfim, a despeito dos inegáveis reflexos práticos decorrentes do ato de rescisão, traduzidos na temerosa instabilidade das relações jurídicas, verificamos a necessidade de uma análise teórica do tema, a título propedêutico, a fim de possibilitar o conhecimento substancial da matéria, sem o qual a posterior exposição prática revelar-se-ia sobremaneira superficial e comum. Foi com essa idéia que iniciamos o nosso trabalho, expondo o problema das disparidades das decisões sobre normas constitucionais, em defesa da recepção de mecanismos de uniformização, com o que esperamos ter contribuído para elucidar o tema.


1. RESCINDIBILIDADE DE JULGADOS POR VIOLAÇÃO À LITERAL DISPOSITIVO DE LEI


1.1. A ação rescisória com fundamento no artigo 485, inciso V, do CPC


A coisa julgada é instituto surgido com o objetivo de conferir maior segurança às relações jurídicas, pois tem o condão de sanar todas as invalidades intrínsecas do processo (nulidades absolutas e relativas e anulabilidades). Existem vícios, porém, que são passíveis de ataque mesmo após o trânsito em julgado da sentença, através de um remédio específico denominado “ação rescisória”.


A ação rescisória só é cabível, no sistema processual brasileiro, para atacar sentenças de mérito cobertas pela autoridade da coisa julgada. Entre as hipóteses de cabimento da ação rescisória insere-se o inciso V, do art. 485, do Código de Processo Civil, segundo o qual rescindível é a sentença que ‘violar literal disposição de lei’.


A redação deste dispositivo já foi alvo de críticas, sob o argumento de que o direito não se exaure no texto frio da lei, sendo certo que a interpretação literal da norma jurídica raramente é capaz de permitir resultados satisfatórios na atividade hermenêutica. (CÂMARA, 2006).


Ocorre violação de lei em tese quando o órgão prolator da sentença rescindenda afronta direito positivo, entendendo-se a palavra ‘lei’ em sentido amplo. A expressão está, aí, abrangendo a lei complementar, a ordinária, a delegada, a medida provisória, o decreto e qualquer outro ato de conteúdo normativo. Não abrange, porém, violação de súmula, mesmo que se trate de súmula vinculante.


Existe posição no sentido de que o termo literal tem sentido de ‘expresso’, ‘revelado’. ‘Se o juiz violar um costume, um princípio geral de direito, uma lei expressa, normas interpretativas, caberia rescisória. Quando se alude a “violação a literal disposição de lei” está-se a referir a ‘violação a literal fonte de direito’. (Miranda, apud Didier e Cunha, 2006, p. 275).


De outro lado, há quem defenda que a expressão supra equivale a direito escrito, devendo a violação atingir a lei ou tese nela contida expressamente.


Uma unanimidade de entendimento é no sentido de que para a admissibilidade da rescisória não seria necessária a violação à literalidade da norma. A norma poderia ser violada por não ter o juízo se valido de um método interpretativo mais adequado para o caso concreto, atentando contra o espírito da norma.


Nesta esteira de raciocínio conclui-se:


“Enfim, há violação à lei, para efeito de cabimento da ação rescisória, não apenas quando se contraria expressamente o dispositivo normativo, aplicando-o onde não cabe, mas também quando se lhe nega vigência ou, ainda, quando evidente erro na qualificação jurídica dos fatos”. (Cunha e Didier, 2006, p. 275-276).


Por fim, necessário deixar claro que tanto as normas jurídicas materiais quanto as processuais, uma vez violadas, autorizam a rescisão da sentença. Os princípios devem conviver em harmonia na ordem material e processual, visando obter decisões imaculadas e coerentes do ponto de vista intrínseco e extrínseco.


Se numa decisão o juízo desrespeita ou não observa regra expressa de direito, seu pronunciamento não representa a vontade do Estado sobre o caso julgado, não podendo prevalecer.


Sentença contra literal disposição de lei é aquela que ofende flagrantemente a lei, tanto quando a decisão é repulsiva à lei (error in judicando), como quando a decisão é proferida com desprezo ao modo e forma estabelecidos em lei (error in procedendo).


1.2. Necessidade de haver uma única interpretação possível: restrição plasmada no enunciado 343, da súmula do STF


A ação rescisória, ao menos quando fundada no inciso V, art. 485, do CPC, constitui mecanismo de estrito direito. Logo, não se permite o reexame de fatos ou de provas, é dizer, não se permite a ação rescisória para tratar sobre questão de fato.


Também não se pode considerar violadora do Direito uma decisão contrária à jurisprudência dominante, ainda que esta se encontre fixada em súmula, devendo ser admitida hipótese de que a própria súmula viole o direito em tese.


Tem prevalecido entendimento segundo o qual somente haverá “violação a literal disposição de lei” se houver uma única interpretação predominante aceita. Incabível, portanto, a ação rescisória com base no dispositivo ora em comento quando houver interpretação controvertida. Para tanto, alega-se que,


“[…] ao qualificar a violação com adjetivo ‘literal’, o legislador certamente quis, de algum modo, especificar o conceito, limitar sua abrangência. Não é toda e qualquer violação à lei que pode comprometer a coisa julgada, dando ensejo à ação rescisória” (ZAVASCKI, 2003, p. 153-174).


Como se vê, a ação rescisória fundada no inciso V sofre restrições.


“Ao qualificar a violação com o adjetivo “literal”, o legislador certamente quis, de algum modo, especificar o conceito, limitar sua abrangência. Não é toda e qualquer violação à lei que pode comprometer a coisa julgada, dando ensejo à ação rescisória. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consagrou entendimento segundo o qual não constitui violação literal da lei, para esse efeito, a que decorre de sua interpretação razoável, de um de seus sentidos possíveis, se mais de um for admitido” (ZAVASCKI, 2003, p. 153-174).


É incabível a ação rescisória com base no inciso V quando a interpretação da lei for controvertida nos tribunais, existindo mais de uma interpretação aceitável. Tanto é assim que o STF editou a Súmula 343, que dispõe não ser possível a propositura de ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.


Ou seja, a sentença que dá a certo dispositivo de lei interpretação diversa daquela estabelecida por parcela da doutrina e dos tribunais, exatamente pelo fato de que interpretações divergentes são plenamente viáveis e lícitas, não abre espaço para a ação rescisória.


O verbete sumular 343, do STF, trata de proposta de critério objetivo para aclarar quando não há violação literal à lei. Se o mesmo dispositivo legal comporta mais de uma interpretação, o resultado é a impossibilidade de se qualificar uma delas como violadora da lei. Neste sentido:


“EMENTA: CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA INDIRETA À CONSTITUIÇÃO. AÇÃO RESCISÓRIA. TEXTO LEGAL DE INTERPRETAÇÃO CONTROVERTIDA. NÃO CABIMENTO. SÚMULA 343. AGRAVO IMPROVIDO. I – O acórdão recorrido dirimiu a questão dos autos com base na legislação infraconstitucional aplicável à espécie. Inadmissibilidade do RE, porquanto a ofensa à Constituição, se ocorrente, seria indireta. II – Não cabe ação rescisória, por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida (Súmula 343 do STF). III – Agravo regimental improvido”. (STF, 2007, p. 46).


Também o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo desse modo.


“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO RESCISÓRIA. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS. CONSTITUCIONALIDADE DA MP 560/94 DECLARADA PELO STF. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 343/STF. 1. Embora não seja cabível, nos termos do que dispõe a Súmula 343/STF, a ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei quando a decisão rescindenda tiver se fundado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais, há que se excepcionar os casos em que a discussão versar sobre matéria de índole constitucional. 2. Vem prevalecendo na Primeira Seção desta Corte o entendimento de que, em se tratando de matéria constitucional, não há que se cogitar de interpretação apenas razoável acerca da lei, mas sim de interpretação juridicamente correta. 3. Como o STF reconheceu a constitucionalidade da aplicação da Medida Provisória nº 560/94 aos servidores públicos do Distrito Federal, mostra-se cabível a ação rescisória. 4. Recurso especial provido.” (STJ, 2008a, p. 1) (STJ, 2008b, p.1).


Esta lógica afina-se, inclusive, com o verbete sumular n.400, posteriormente editado pelo STF, segundo o qual “decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra “a”, do art. 101, III, da Constituição Federal”.


Atualmente existe um clima de insegurança relacionado com os atos do Poder Público, muitas medidas políticas e jurídicas vêm sendo tomadas para garantir um mínimo de segurança aos cidadãos. A súmula 343 é um exemplo dessas medidas, pois teve sua motivação fundada na “tranqüilidade pública”, na “tranqüilidade jurídica”, na “eficácia da coisa julgada” (STF, EAR 602).


Não obstante isso, o princípio da segurança jurídica não deve ser utilizado como óbice ao tratamento isonômico dos jurisdicionados, ou seja, não pode fazer perpetuar decisões incompatíveis com a orientação do STF a pretexto de que a relativização traz instabilidade para as relações jurídicas. Como se verá mais a frente, a estabilidade surge exatamente com a interpretação pelo Supremo das normas constitucionais e, de conseguinte, pela aplicação dessa orientação às lides julgadas pelos tribunais ordinários.


2. O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA INDEVIDAMENTE INVOCADO PARA OBSTAR A RESCISÃO DE DECISÕES VIOLADORAS DA CONSTITUIÇÃO


2.1. Conciliação entre os princípios da segurança jurídica e da força normativa da constituição


O homem é um ser que precisa de segurança jurídica para que possa desenvolver-se nos múltiplos aspectos de sua vida. Segundo Canotilho, o princípio da segurança jurídica conduz a dois princípios que o concretizam, determinabilidade das leis e confiança. (CANOTILHO, 1991, p. 375-376)


O primeiro pilar, determinabilidade das leis, ancora-se na exigência de clareza das normas e densidade de sua regulamentação. A norma deve conter uma disciplina correta para amparar as posições jurídicas dos cidadãos, constituir regra de atuação para a administração e possibilitar, como veículo de controle, a fiscalização da legalidade e defesa dos direitos dos cidadãos.


Quanto ao princípio da confiança, o cidadão deve poder confiar que seus atos, as decisões políticas ou jurídicas incidentes sobre seus direitos, praticados de acordo com as normas vigentes, tenham efeitos duradouros advindos daquelas normas, e que tais efeitos possam ser previstos e programados.


Esses dois princípios apontam para regras aparentemente opostas, de uniformização na aplicação das normas e de proteção da coisa julgada.


Segundo o mestre do largo São Francisco, Paulo de Barros Carvalho,


“A segurança jurídica é, por excelência, um sobreprincípio. Não temos notícia de que algum ordenamento a contenha como regra explícita. Efetiva-se pela atuação de princípios, tais como o da legalidade, da anterioridade, da igualdade, da irretroatividade, da universalidade da jurisdição e outros mais”. (CARVALHO, 2003, P.260).


O sempre claro Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, ressalta que


“A primeira concentração de nossos estudos leva a se entender que a segurança jurídica, em um conceito genérico, é a garantia assegurada pela Constituição Federal ao jurisdicionado para que uma determinada situação concreta de direito não seja alterada, especialmente quando sobre ela exista pronunciamento judicial”. (DELGADO, 2005, p 5).


Nas palavras de Pedro J. Frias, membro da associação Argentina de Direito Constitucional,


“Saenger Gianonni, desde chile, nos recuerda que la seguridad jurídica exige el reconocimiento de la persona y de la soberania del pueblo, pero también de la supremacía constitucional, de la división entre los poderes constituidos, del poder judicial independiente y de la administración sometida a la ley, de la representatión política y la oposición y del control del poder”. (FRIAS, 2003, p. 246).


Ocorre que uma decisão judicial, para se perpetuar, deve ser fruto de um processo justo, concebida por um juízo independente e imparcial, que assegure a participação dos envolvidos no processo de decisão, e que confira a seus efeitos durabilidade. A justiça da decisão passa pelo fato de ser ela compatível com a ordem constitucional vigente, sob pena de quebra da ordem interna.


Em extraordinário trabalho sobre a força normativa da Constituição, Konrad Hesse ensina que a Constituição transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se estiver presente, na consciência geral (especialmente na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional), não só a vontade de poder, mas a vontade da Constituição. (HESSE, 1991, p. 5)


Como se vê, o princípio da segurança jurídica não deve ser tratado como absoluto, pois existem outros princípios, como justiça e isonomia, que devem ser aplicados para se alcançar a decisão mais correta e harmônica. Igualmente não se permite o engessamento do Poder Judiciário a pretexto de manter uma falsa ordem.


Se fosse permitido que uma decisão manifestamente inconstitucional se firmasse no mundo jurídico, isso equivaleria à idéia de Lassale de que a Constituição é apenas uma folha de papel necessária a justificar as relações de poder.


Fernand Lassale define Constituição sob uma perspectiva sociológica, uma Constituição só seria legítima se representasse o efetivo poder social, refletindo as forças sociais que constituem o poder.


Como muito bem coloca o problema, Hesse indaga se ao lado da força normativa das relações sociais há uma força normativa da Constituição. O mesmo autor esclarece que a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside em sua vigência, onde a pretensão de eficácia não pode ser separada das condições históricas de sua realização. Apesar disto, constitui um elemento autônomo em relação a estas condições. A Constituição não é apenas determinada pela realidade social, mas também determinante (HESSE, 1991, p. 3).


O fortalecimento da democracia, das instituições do país, depende da conformidade de todos os atos com a Constituição Federal. Inaceitável atualmente o pensamento de que a coisa julgada é inatingível, mesmo quando proferida em confronto com postulados, normas e princípios da Constituição Federal.


Os cidadãos e a democracia exigem do Poder Judiciário tratamento isonômico lastreado nas normas constitucionais, estas concebidas pela vontade do povo, que é razão de todo o poder.


O Professor Celso Antônio Bandeira de Mello enuncia interessantes considerações, que pela importância para a reflexão, passa-se a transcrever:


Há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando:


I – A norma singulariza atual e defenitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada.


II – A norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo desequiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator “tempo” – que não descansa o objeto – como critério diferencial.


III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrímen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados.


IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente.


V – A intepertretação da norma extrai dela distitinções, discrimines, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita.” (BANDEIRA DE MELLO, 2006, p. 47-48).


Conforme bem explicitado pela citação acima, há inúmeras possibilidades de uma norma conferir tratamento diferenciado a determinados sujeitos, e este tratamento releva-se inconstitucional por ferir o princípio da isonomia.


Por outro lado, a coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário. De muito pouco, ou quase nada, adiantaria falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver o seu conflito solucionado definitivamente.


A definitividade inerente à coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejáveis ao próprio sistema, não sendo correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada.


Essa aparente contradição entre princípios constitucionais, de um lado segurança jurídica e de outro isonomia, não é óbice a que a força normativa da Constituição venha prevalecer.


Segundo Alexy a distinção entre princípios e regras deve resumir-se a dois fatores: diferença quanto à colisão, na medida em que os princípios colidentes apenas têm sua realização normativa limitada reciprocamente, ao contrário das regras, cuja colisão é solucionada com a declaração de invalidade de uma delas ou com a abertura de uma exceção que exclua a antinomia; diferença quanto à obrigação que instituem, já que as regras criam obrigações absolutas, não superadas por normas contrapostas, enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, na medida em que podem ser superados ou derrogados em função de outros princípios colidentes. (1997, p. 86).


O jurista Humberto Ávila, em brilhante e rico trabalho intitulado ‘Teoria dos Princípios’, propõe conceitos acerca de regra e princípio que servem perfeitamente à compreensão do tema ora tratado, conflito entre o princípio constitucional da segurança jurídica e o da isonomia:


As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.


Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”. (ÁVILA, 2006, p. 78).


Desta forma, ante o confronto entre princípios constitucionais, deve haver no caso concreto uma sobrepujação de um sobre o outro, sem que isto implique no aniquilamento daquele que cedeu espaço. Os princípios são normas que convivem em abstrato no ordenamento jurídico, quando de sua aplicação no caso sub judice devem ser sopesados para que a melhor solução possível seja conferida pelo juízo.


A violação de normas constitucionais é por si só fator de extrema insegurança jurídica, priva os jurisdicionados de decisão válida à luz do ordenamento jurídico por eles mesmos sancionado, desprestigia o Poder Judiciário e mitiga sua autoridade enquanto ‘Poder’ da República. Desse modo, ainda que “protegida” pela garantia da coisa julgada, uma sentença que viola normas constitucionais jamais pode ser tida por imutável.


3. RESCINDIBILIDADE DE SENTENÇAS INCONSTITUCIONAIS


3.1. Cabimento de ação rescisória com fundamento no inciso V para fazer prevalecer interprepação da Suprema Corte a respeito de normas constitucionais  


O enunciado 343 da súmula do STF não deve ser aplicado quando a norma violada tiver caráter constitucional, mas apenas quando a violação for à lei infraconstitucional. A ofensa a um dispositivo constitucional, base do sistema normativo, é extremamente mais grave do que a violação de norma infraconstitucional.


Demais disso, uma vez que cumpre ao STF preservar a força normativa da Constituição, sua interpretação deve ser obrigatoriamente acompanhada pelos demais tribunais. Assim, existindo precedente dessa Corte sobre determinada matéria, ainda que posterior ao trânsito em julgado da sentença, tenha ele origem em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade, a ação rescisória pode ser manejada com o intuito de preservar o Princípio da isonomia e da máxima efetividade das normas constitucionais.


O Superior Tribunal de Justiça alterou seu posicionamento quanto à aplicação da súmula 343 do STF em matéria constitucional. Inicialmente, a citada corte foi pela aplicação do verbete sumular. Posteriormente a jurisprudência do STJ passou a negar aplicação da súmula 343 em matéria constitucional:


“1. O prevalecimento de obrigação tributária cuja fonte legal foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal constitui injúria à lógica jurídica, ofendendo os princípios da legalidade e igualdade tributárias. 2. A Súmula n” 343/STF ‘nada mais é do que a repercussão, na esfera da ação rescisória, da Súmula n” 400 – que não se aplica a texto constitucional no âmbito do recurso extraordinário’ (RTJ 101/214). ‘Se a lei é conforme a Constituição e o acórdão deixa de aplicá-la à guisa de inconstitucionalidade, o julgado se sujeita à ação rescisória, ainda que na época os tribunais divergissem a respeito. Do mesmo modo, se o acórdão aplica a lei que o Supremo Tribunal Federal, mais tarde, declare inconstitucional‘ (REsp 128.239/RJ – Rel. Min. Ari Pargendler). 3. Multiplicidade de precedentes. 4. Recurso não provido” (STJ, 1999, REsp 155.751) (grifo nosso).


A não aplicação da súmula 343 destaca-se por duas razões. Uma, a preservação da Constituição, lei fundamental de todo o sistema normativo jurídico, e, duas, a posição do STF como o órgão a quem foi outorgada a função precípua de velar pela máxima efetividade das normas constitucionais e enunciá-las em última instância.


Não se pode negar o cabimento da ação rescisória para o fim de rescindir coisa julgada incompatível com decisão da Corte Suprema. Quando o STF fixa uma interpretação constitucional, está o Judiciário explicitando os conteúdos possíveis da ordem normativa infraconstitucional em face daquele parâmetro maior, que é a Constituição.


A ação rescisória é, sem dúvida, instrumento de realização do Princípio da Isonomia.  A Constituição Federal não pode atingir a vida dos jurisdicionados de maneira desigual. Se existe um único tribunal competente para dizer, em definitivo, a interpretação de uma norma constitucional, não é razoável que os tribunais inferiores apliquem diferentemente do Supremo Tribunal Federal determinado dispositivo da Constituição.


O Ministro Gilmar Mendes assinalou em brilhante voto que,


“Se por um lado a rescisão de uma sentença representa certo fator de instabilidade, por outro não se pode negar que uma aplicação assimétrica de uma decisão desta Corte em matéria constitucional oferece instabilidade maior, pois representa uma violação a um referencial normativo que dá sustentação a todo o sistema. Isso não é, certamente, algo equiparável a uma aplicação divergente da legislação infraconstitucional. Certamente já não é fácil explicar a um cidadão porque ele teve um tratamento judicial desfavorável enquanto seu colega de trabalho alcançou uma decisão favorável, considerado o mesmo quadro normativo infraconstitucional.” (STF, 2002, p.42)


Em síntese, a pretexto de garantir a segurança das relações jurídicas admitiram-se restrições à rescisória plasmadas na Súmula 343 do STF. Em amparo à força normativa da constituição, todavia, essa perspectiva não é mais admissível quando se trata de controvérsia constitucional, estando fora de dúvida o cabimento de ação rescisória em tais casos. O referencial normativo neste caso é a Lei Maior do país, é a Constituição, o pressuposto que dá sustentação a qualquer ato legislativo, administrativo ou judicial, não se tolerando restrições a essa autoridade.


Nesse sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal decidiu que a Súmula 343 somente se aplica à interpretação controvertida da lei infraconstitucional. A interpretação constitucional, pela sua supremacia jurídica, não pode se sujeitar a mitigações indevidas.


Ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei, a eficácia da decisão do STF volta-se ao passado para fazer prevalecer seu entendimento em relação aos litígios solucionados pelos demais órgãos do Poder Judiciário.


Em regra, anos após as questões terem sido decididas pelos tribunais ordinários é que o Supremo Tribunal Federal vem a apreciá-las, fato que não pode prejudicar o jurisdicionado. Não há uma imediata nulidade das sentenças inconstitucionais, mas está a parte prejudicada autorizada a ajuizar uma ação rescisória, desde que ainda exista prazo para tanto, visando rescindir o julgado que afronta a CRFB.


Negar essa possibilidade, prestigiando soluções contraditórias sobre o mesmo tema, implica em desconsiderar o próprio conteúdo da decisão do STF, último intérprete do texto constitucional, fragilizando a força normativa da Constituição. Decisão paradigmática proferida pelo Supremo dá sustentação à tese ora defendida:


“EMENTA: Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário. 2. Julgamento remetido ao Plenário pela Segunda Turma. Conhecimento. 3. É possível ao Plenário apreciar embargos de declaração opostos contra acórdão prolatado por órgão fracionário, quando o processo foi remetido pela Turma originalmente competente. Maioria. 4. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343/STF. 5. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação adotada pelo STF revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 6. Cabe ação rescisória por ofensa à literal disposição constitucional, ainda que a decisão rescindenda tenha se baseado em interpretação controvertida ou seja anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 7. Embargos de Declaração rejeitados, mantida a conclusão da Segunda Turma para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória”. (STF, 2008, p. 748)


Em julgamento de Embargos Declaratórios no Recurso Extraordinário nº 328812 (ementa transcrita acima), o Ministro Gilmar Mendes defendeu que


“A interpretação restritiva, considerado esse modelo em que as questões constitucionais chegam ao Supremo tardiamente, cria uma inversão no exercício da interpretação constitucional. A interpretação dos demais tribunais e dos juízes de primeira instância acaba por assumir um significado muito mais relevante que o pronunciamento desta Corte. Não posso aceitar isso. Isto não é, por evidente, uma rejeição ao modelo difuso. O que quero enfatizar é que estamos aqui diante de uma distorção do modelo que merece ser corrigida. A rescisória, tal como se coloca no presente caso, serve justamente para permitir essa correção. A exegese restritiva, que na verdade assume um caráter excessivamente defensivo, acaba por privilegiar a interpretação controvertida, para a mantença de julgado desenvolvido contra a orientação desta Corte, significa afrontar a efetividade da Constituição. Isso não me parece aceitável, com a devida vênia.”


Defende-se que a única orientação compatível com o postulado da força normativa concretizadora da Constituição e com o Princípio da Isonomia é a que admite a ação rescisória, independentemente da existência de controvérsia sobre a matéria nos tribunais, para rescindir sentenças contrárias a precedentes do STF, sejam eles anteriores ou posteriores ao julgado rescindendo, tenham origem em controle concentrado de constitucionalidade ou difuso.


A coisa julgada não é um valor absoluto. Trata-se, na verdade, de um princípio, e como tal sujeito à relativização, de modo a possibilitar sua convivência harmônica com os demais princípios de igual hierarquia existentes no sistema.


Aplicando-se a regra da ponderação de interesses, o Princípio da Isonomia, in casu, não pode sucumbir em preservação da coisa julgada. Esta, quando em conflito com jurisprudência do STF, apresenta-se frágil, sem fundamento jurídico capaz de mantê-la imutável e indiscutível.


Então, se já existe decisão da Corte Suprema, a eventual dissidência dos tribunais ordinários se mostra irrelevante, pois que cabe ao STF zelar pela uniformidade na interpretação da Constituição, devendo seu posicionamento prevalecer.


O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Albino Zavascki, com a clareza que lhe é peculiar ensina:


“O que se que afirma, por isso mesmo, é que, em se tratando de ação rescisória em matéria constitucional, concorre decisivamente, para um tratamento diferenciado do que seja “violação literal” a existência de precedente do STF, guardião da Constituição. Ele, associado ao princípio da supremacia, que é justificativa, nas ações rescisórias, a substituição do parâmetro negativo da Súmula 343 (negativo porque indica que, sendo controvertida a matéria nos tribunais, não há violação literal a preceito normativo a ensejar rescisão), por um parâmetro positivo, segundo o qual há violação à Constituição na sentença que, em matéria constitucional, é contrária a pronunciamento do Supremo”. (ZAVASCKI, 2003, p. 153-174). (g.n.).


Mister ressaltar que o prazo para o ajuizamento da ação rescisória permanece sendo de 02 (dois) anos, a contar do transito em julgado da demanda. A interpretação contrária proferida pelo Supremo não faz renascer o prazo, que é decadencial.


Também se faz oportuno esclarecer que a decisão do STF não precisa ser proferida no controle concentrado de constitucionalidade, mormente em tempos de abstrativização do controle concreto de constitucionalidade.


Conclui-se, portanto, que, quando há decisão do STF definindo o alcance do dispositivo constitucional, inexiste interpretação divergente, ainda que a decisão seja proferida no controle casuístico ou que seja posterior ao trânsito em julgado da lide.


3.2. Na ausência de precedente do Supremo Tribunal Federal, o acórdão que julgar a ação rescisória é passível de Recurso Extraordinário


A problemática real surge quando não existe manifestação do Supremo sobre a questão.


Se for proposta ação rescisória em matéria constitucional controvertida sem que o STF tenha se posicionado, pode-se levar a uma esquizofrenia do sistema. Isto porque, qualquer juízo poderia dizer sobre a interpretação da norma constitucional, e, ante a falta de precedente da Corte Suprema, a matéria seria considerada controvertida. Numa análise assistemática, poderia se aplicar a súmula 343, e o resultado seria uma usurpação pelos demais órgãos do Judiciário do papel do Supremo Tribunal Federal de guardião da Constituição.


Um outro raciocínio seria o de que, proposta rescisória em matéria constitucional na qual o STF não tenha se manifestado, pelo só fato de ser discutida matéria constitucional a súmula 343 seria mitigada e se permitiria a ação rescisória. Todavia, proposta a ação nessas circunstâncias, a decisão final do tribunal só poderia ser questionada via recurso especial, para o STJ, a fim de se questionar matéria infraconstitucional, qual seja, os pressupostos da rescisória.


O raciocínio levado a efeito acima tem como base a jurisprudência assente no Pretório Excelso de que o recurso extraordinário, interposto em ação rescisória, deve dirigir-se aos pressupostos desta e não aos fundamentos da sentença rescindenda.


No sentido da orientação acima citada, o ilustre professor José Carlos Barbosa Moreira:


“Se a norma constitucional foi ou não violada, decide-o soberanamente o órgão julgador da rescisória, em apreciação insuscetível de controle pelo Supremo Tribunal Federal. Os pressupostos do recurso especial e os do extraordinário, como os dos embargos infringentes, devem compor-se em relação ao acórdão proferido na rescisória, não em relação à sentença rescindenda, pois é aquele, e não esta, que se estará impugnando. Suponhamos, v.g., que o pedido de rescisão se haja fundado na suposta violação de certa norma constitucional (art. 485, n° V), mas que o tribunal, no iudicium rescindem, não reconhecendo na decisão rescindenda o vício alegado, julgue improcedente o pedido. Ainda que lá, na verdade, houvesse ocorrido a ofensa à Constituição, o Autor da rescisória em vão recorrerá extraordinariamente com base no art. 102, n° III, letra a, da Carta da República: o erro do Tribunal na solução da questão não torna o seu acórdão ofensivo à norma constitucional. Haveria violação não do texto da Lei Maior, mas do próprio art. 485, n° V, se o tribunal, reconhecendo embora o vício de sentença anterior, contudo rejeitasse o pedido de rescisão: aí, satisfeitos os demais pressupostos, o acórdão seria impugnável por meio de recurso especial, com fundamento no art. 105, n° m, letra a.” (MOREIRA, 1998, p. 213-214).


A persistir tal linha de idéias, o STJ, a pretexto de identificar os pressupostos para a ação rescisória do art. 485, inciso V, CPC, decidiria se houve ou não a violação a literal disposição constitucional.


“Em suma, afirmada a tese de que o recurso deve dirigir seu foco aos pressupostos da ação e jamais aos fundamentos adotados no julgado rescindendo, a conseqüência necessária é a de que, havendo ação rescisória, será do Superior Tribunal de Justiça, e não do Supremo Tribunal Federal, a palavra definitiva sobre a existência ou não de violação da Constituição” (ZAVASCKI, 2003, p. 153-174).


A conclusão a que se chega acima é hoje inadmissível, seja porque a Constituição Federal atribuiu ao Supremo Tribunal Federal o papel de guardião da Carta, seja porque o sistema normativo não comporta tais situações irrazoáveis, sob pena de quebra da ordem interna e fragilização de suas bases.


Neste ponto, concorda-se mais uma vez com o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Albino Zavascki, quando este afirma que deve se admitir recurso extraordinário sobre a matéria constitucional tratada no julgado rescindendo.


Sob essa perspectiva, é possível afirmar que, ainda que o STF não tenha se manifestado sobre determinada matéria constitucional, seria possível ação rescisória, com mitigação da súmula 343, STF. No entanto, o acórdão que lhe julgar o mérito, afirmando a existência ou não de violação à Constituição, estará sujeito a controle pela Suprema Corte, mediante recurso extraordinário.


4. DA IMPOSSIBILIDADE DE SE RESCINDIR SENTENÇA FUNDADA EM LEI DECLARADA INCONSTITUCIONAL PELO STF


Duas correntes se formaram a respeito da aplicabilidade da Súmula 343 do STF. Malgrado a questão estar pacificada no Supremo Tribunal Federal, perante a doutrina brasileira há muita resistência.


A corrente que não aceita a mitigação da referida Súmula procura lembrar que a ação rescisória é meio excepcional, porque se volta contra um instituto jurídico processual – a coisa julgada – que goza de explícita e enérgica tutela da própria constituição, no âmbito dos direitos fundamentais. Entre preservar a segurança das relações jurídicas e a estabilidade das decisões judiciais, de um lado, e salvaguardar a exegese do texto legal, de outro, opta-se pela primeira atitude, por corresponder a um princípio de maior significação e maior relevância para as metas práticas do ordenamento jurídico (THEODORO, 1995, p. 158-171).


Marinoni também rechaça a possibilidade de mitigação da Súmula 343, ao defender que


“Imaginar que a ação rescisória pode servir para unificar o entendimento sobre a Constituição é desconsiderar a coisa julgada. Se é certo que o Supremo Tribunal Federal deve zelar pela uniformidade na interpretação da Constituição, isso obviamente não quer dizer que ele possa impor a desconsideração dos julgados que já produziram coisa julgada material. Aliás, se a interpretação do Supremo Tribunal Federal pudesse implicar na desconsideração da coisa julgada – como pensam aqueles que não admitem a aplicação da Súmula 343 nesse caso -, o mesmo deveria acontecer quando a interpretação da lei federal se consolidasse no Superior Tribunal de Justiça” (2007, p. 675).


Nessa mesma linha, Leonardo Greco afirma


“[…] rescisória que ressuscite questão de direito ampla e definitivamente resolvida no juízo rescindendo, com fundamento no art. 485, V, do CPC, viola claramente a garantia da coisa julgada” (GRECO, 2003, p. 206).


Os citados doutrinadores dizem não ser possível aceitar como racional a tese de que a ação rescisória pode ser utilizada como um mecanismo de uniformização da interpretação da Constituição voltado para o passado, pois isso seria o mesmo que eliminar a garantia constitucional da coisa julgada material.


O fato de ter o Supremo Tribunal Federal a função de interpretar a Constituição não pode conduzir a extrema conclusão de que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei, o seu entendimento possa prevalecer em relação àqueles que já tiveram seus litígios solucionados pelo Poder Judiciário.


Argumenta-se que, a prevalecer tal raciocínio, estar-se-ia instituindo um controle de constitucionalidade da decisão transitada em julgado ou se aceitando que o controle de constitucionalidade da lei pode levar ao uso da ação rescisória como mecanismo para uniformizar a interpretação da Constituição.


“[…] Se é certo que o Supremo Tribunal Federal deve zelar pela uniformidade na interpretação da Constituição, isso obviamente não quer dizer que ele possa impor a desconsideração dos julgados que já produziram coisa julgada material. Aliás, se a interpretação do Supremo Tribunal Federal pudesse implicar na desconsideração da coisa julgada – como pensam aqueles que não admitem a aplicação da Súmula 343 nesse caso – , o mesmo deveria acontecer quando a interpretação da lei federal se consolidasse no Superior Tribunal de Justiça, Não se diga, como já fez o Superior Tribunal de Justiça, que a diferença entre as duas situações está em que, no caso da declaração de inconstitucionalidade, a coisa julgada se funda em lei inválida, enquanto que uma decisão contra a lei ou que se lhe negue vigência supõe lei valida”.(SUQUEIRA, 2006, p. 686).


Não se está infirmando a possibilidade de o Supremo restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou estipular que tais efeitos sejam produzidos apenas pro futuro, uma vez que existe previsão legal para tanto (art. 27, da Lei 9.868/99). Ocorre que, ao menos em face da coisa julgada material, qualquer ressalva deve ser tida por não escrita, vez que é imune aos efeitos ex tunc da declaração de inconstitucionalidade.


Cumpre relembrar que o respeito à coisa julgada, a exemplo do que ocorre na Europa, foi uma opção do legislador constituinte originário, de modo que cabe ao STF preservar a força dessa norma (5º, XXXVI). A Corte Européia de Direitos Humanos igualmente ressalva a importância do respeito à coisa julgada num Estado Democrático de Direito (CHIAVARIO, 2001, p. 170). Ao atuar em sentido contrário, o Supremo vai de encontro com o próprio poder que o instituiu, fazendo surgir grave clima de insegurança.


Entre os que aceitam a não incidência da Súmula 343, existe ainda posicionamento no sentido de que a mitigação se dá unicamente nos casos onde a lei em que se baseou a decisão rescindenda é declarada inconstitucional pelo Supremo com efeitos ex tunc. (GRIVONER, 1997, p. 37-47)


Sob essa ótica, o enunciado 343 da súmula do STF deve ser aplicado tanto para as questões constitucionais quanto para as infraconstitucionais, pois eliminar a coisa julgada em função de uma simples interpretação faz aumentar a descrença aos cidadãos em relação ao Poder Judiciário, além de conferir ao Supremo um extremo e indesejável controle sobre as situações jurídicas pretéritas.


5. CONCLUSÃO


O presente trabalho foi iniciado com a função de demonstrar, num primeiro momento, que a súmula 343, do Supremo Tribunal Federal, merece ser mitigada quando estiver em discussão matéria constitucional.


No atual estágio de desenvolvimento jurídico, a Constituição de um país é consagrada como a norma fundamental que alicerça todas as demais regras jurídicas. É certo que a Constituição deve ter como parâmetro as relações fáticas, para que não se torne simples folha de papel, todavia, ela tem que conter normas obrigatórias estruturantes do Estado, que imponham de per si suas forças.


A legitimidade de todo e qualquer ato do Poder Público está estritamente vinculada às normas jurídicas e, sobretudo, à Constituição. Em um país democrático, como o Brasil, a Carta Magna significa a vontade do povo.


Nessa linha, ao Supremo Tribunal Federal foi consagrada a função de zelar pela Constituição. Essa Corte Máxima é que dirá definitivamente sobre a constitucionalidade de uma norma. Não se pode permitir que uma determinada decisão embasada em lei inconstitucional, assim declarada pelo STF, perpetue-se no tempo e não possa ser revista, pois tal situação causaria espanto e revolta aos jurisdicionados.


Por outro lado, a segurança jurídica também é princípio constitucional e serve aos anseios do homem de pacificação social. Não se pode olvidar que há de existir um prazo limite para questionar decisões transitadas em julgado, que se reputem inconstitucionais.


Desta forma, a Constituição tem força normativa e deve ser dada a máxima efetividade às suas normas, cabendo ao Supremo Tribunal Federal enunciar definitivamente sobre a constitucionalidade delas, permitindo-se inclusive ação rescisória se a sentença resultar em coisa julgada incompatível com a interpretação dada pela Corte à questão. Entretanto, a rescisória deverá ser proposta em até dois anos após o trânsito em julgado, para que se cumpra também o princípio da segurança jurídica.


No que toca à aplicação do art. 485, inciso V, do CPC, concluímos que havendo divergentes interpretações acerca de um dispositivo legal, ainda que aquela decisão proferida no caso concreto não adote a melhor interpretação, não será permitida a via excepcional da rescisória, pois que violação a literal disposição de lei não há, já que não se pode afirmar que qualquer das diversas interpretações deve prevalecer sobre a outra, conforme dispõe a súmula 343, do Supremo Tribunal Federal.


Situação bem diferente ocorre no trato das sentenças que se baseiam em dispositivo constitucional de interpretação controvertida. Tratando-se de matéria constitucional na qual o STF, guardião da Constituição, já tenha se pronunciado, em qualquer das várias formas que lhe são permitidas, já há entendimento de qual seja a melhor interpretação constitucional, e, portanto, qualquer decisão em sentido contrário contém vício rescisório a ensejar a ação rescisória.


De outro lado, acaso inexista pronunciamento do Supremo acerca do dispositivo que se alega violado, faz-se importante que a decisão última também seja prolatada pela Corte, pena de se estar usurpando sua competência. É assim que se defende ser cabível a ação rescisória, para que seja sanada a instabilidade e se traga a confiança e a igualdade para os cidadãos. A súmula 343 deve ser afastada e da decisão proferida no bojo da rescisória está sujeita a  recurso extraordinário.


Na esteira do que foi exposto, é de se admitir a ação rescisória quando se trate de coisa julgada inconstitucional, tenha ou não o STF se pronunciado sobre a matéria, seja o seu pronunciamento antes ou depois do trânsito em julgado da decisão que se alega haver violado a Constituição.


Enfim, a Constituição é a norma fundamental de todo o ordenamento jurídico e deve se sobrepor a todas as outras normas. Ao Supremo Tribunal Federal cabe a última palavra em interpretação constitucional, além do dever de zelar pela supremacia da Carta e da máxima efetividade de suas normas.


 


Referências

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Príncipios. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil I. 14. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil II. 12. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

CANOTILHO, JOSÉ JOAQUIM GOMES. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.

CARVALHO, Paulo de Barros. O Princípio da segurança jurídica em matéria tributária. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br/pdf/princ_seguran%C3%A7a_jur%C3%ADdica_pbc.pdf>. Acesso em: 19 out. 2008.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Teoria geral do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 1993.[*2] 

CHIAVARIO, Mario. Commentario alla Convenzione Europea per la tutela dei diritti delluomo e delle libertà fondamentali. 2. ed. Padova: Cedam, 2001.

CLÈVE, CLÈMERSON MERLIN. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.

DELGADO, José Augusto. Pontos polêmicos das ações de indenização de áreas naturais protegidas: efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Revista de Processo, São Paulo, n. 103, p. 9-36, jul./set. 2001.

DELGADO, José Augusto. O Princípio da Segurança Jurídica: supremacia constitucional. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/448>. Acesso em: 15 set. 2008.

DELGADO, José Augusto. Reflexões contemporâneas sobre a flexibilização, revisão e relativização da coisa julgada quando a sentença fere postulados e princípios da CF.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10349>. Acesso em: 19 out. 2008.

DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Direito probatório, decisão judicial, cumprimento e liquidação da sentença e coisa julgada. 1. ed. Salvador: JusPODIVM, 2007.

DIDIER Jr., Fredie; CUNHA; Leonardo José Carneiro da. Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 2. ed. Salvador: JusPODIVM, 2006.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002

DINAMARCO, Márcia Conceição Alves. Ação Rescisória. 1. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

FRIAS, Pedro J. Estado de Derecho y Seguridad Jurídica. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Del Rey, n. 1, p. 246, jan./jun.2003.

GRECO, Leonardo. Eficácia da declaração erga omnes de constitucionalidade ou inconstitucionalidade em relação à coisa julgada anterior. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto167.rtf >. Acesso em: 19 out. 2008.

GRINOVER, Ada Pellegrini. Ação rescisória e divergência de interpretação em matéria constitucional. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 87, p. 37-47, jul./set. 1997.

HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991.

MARINONI, Luiz Guilherme. Processo de Conhecimento. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007a.

_______. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 2007b.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado da ação rescisória. 1. ed. Campinas: Bookseller, 1998.

MOREIRA, José Carlos. Comentários ao código de processo civil. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

SIQUEIRA, Pedro Eduardo Pinheiro Antunes de. A coisa julgada inconstitucional. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

THEODORO, Humberto Jr. A ação rescisória e o problema da superveniência do julgamento da questão constitucional. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 79, p. 158-171, jul./set. 1995.

ZAVASCKI, Teori Albino. Ação Rescisória em Matéria Constitucional. Revista de Direito Renovar, Rio de Janeiro, n. 27, p. 153-174, set./dez. 2003.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. Súmula 343 de Jurisprudência Predominante. Brasília, 13.12.1963. DJ de 1964, p. 150. Disponível a partir de: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_301_400>. Acesso em: 19 out. 2008.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1ª Turma. Agravo Regimental nº 625053-SP. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Decisão unânime. Brasília, 23.10.2007. DJ de 14.11.2007, p. 46. Disponível a partir de: < http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 19 out. 2008

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2ª Turma. Recurso Especial nº 982673-DF. Relator: Ministro Castro Meira. Decisão unânime. Brasília, 18.12.2007. DJ de 11.02.2008, p. 1. Disponível a partir de: <http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp>. Acesso em: 19 out. 2008

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2ª Turma. Recurso Especial nº 128239-RS. Relator: Ministro Ari Pargendler. Decisão unânime. Brasília, 06.11.1997. DJ de 01.12.1997, p. 8. Disponível a partir de: <http://www.stj.gov.br/webstj/processo/Justica/detalhe.asp?numreg=199700267415&pv=010000000000&tp=51 >. Acesso em: 19 out. 2008

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno. Embargos de Declaração em Recurso Extraordinário nº 328812-AM. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Decisão unânime. Brasília, 06.03.2008. DJ de 02.05.2008, p. 748. Disponível a partir de: http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=RE&numero=328812&origem=AP

 


Informações Sobre o Autor

Mariana Wolfenson Coutinho Brandão

Procuradora Federal em exercício no IBAMA-Sede. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Escola de Magistratura de Pernambuco – ESMAPE


Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária!

A legalidade dos atos praticado pelo MST

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária! Ricardo Russell...
Equipe Âmbito
18 min read

A regulamentação do direito à privacidade na era da…

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária! Autora: Dardivânia...
Equipe Âmbito
27 min read

Grandes Demais Para Falir: Concentração Bancária e Violação ao…

Quer participar de um evento 100% gratuito para escritórios de advocacia no digital? Clique aqui e inscreva-se grátis no evento Advocacia Milionária! Roberta Webber...
Equipe Âmbito
35 min read

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *