Resumo: O presente estudo analisa o dever de fundamentar as decisões judiciais, inicialmente norma infraconstitucional elevada ao nível constitucional, como um dos componentes do processo justo, bem como visa confrontá-lo com o intuito para o qual foi criado, qual seja controlar as arbitrariedades ocorridas no processo, e sua aplicação prática contemporânea.*
Palavras-Chave: Fundamentação. Decisão. Processo. Justo.
Sumário: 1. Introdução. 2. O dever de fundamentar as decisões e sua evolução. 3. O processo justo e fundamentação das decisões judiciais. 3.1- O processo justo e sua relação com a fundamentação das decisões judiciais – um instrumento a viabilizar o contraditório participativo. 3.2- A fundamentação das decisões, a exigência de publicidade e a fiscalização do processo justo. 4. A fundamentação das decisões judiciais na sociedade contemporânea e a tendência de padronização decisória. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O estudo da evolução do Estado e seus reflexos no Direito é incrível. A intimidade existente entre cultura e processo aguça a curiosidade, conduzindo ao descobrimento das várias facetas que um mesmo instituto pode receber de acordo com o contexto social no qual está inserido e de acordo com a sociedade sobre a qual incide.
O cerne do presente estudo está na análise do dever de fundamentar as decisões judiciais, inicialmente norma infraconstitucional e atualmente elevada ao nível constitucional, como um dos componentes do processo justo e confrontá-lo com o intuito para o qual foi criado, qual seja controlar as arbitrariedades ocorridas no processo, em sua aplicação prática.
O Estado Democrático Constitucional exige que a atuação do aplicador do Direito esteja interligada às normas constitucionais. Por este motivo, a servidão do juiz à lei, quer dizer, a limitação do poder de interpretação judiciária que visava tão somente assegurar seu império[1], deve ser substituída por uma conduta que exalte o contraditório, que também atinge o magistrado, e que demonstre que as alegações das partes e suas provas efetivamente interferiram, influenciaram no livre convencimento judicial[2].
Apenas pode-se obter certeza a respeito da observância do contraditório participativo e das demais garantias que formam o processo justo por meio da fundamentação das decisões judiciais, forte instrumento de segurança contra a arbitrariedade e o abuso no exercício do poder pelo juiz. Exige-se que as decisões sejam fundamentadas com base nas normas e valores constitucionais e não somente na intuição e opinião individual e sigilosa do magistrado.
Somente através do cumprimento do dever de fundamentação das decisões judiciais, seus destinatários poderão avaliar o grau de imparcialidade do magistrado, o respeito à igualdade de tratamento e principalmente se o contraditório participativo foi observado, dentre as demais garantias esparsas ao longo da Constituição, cuja observância fica evidente ao longo de uma fundamentação atenciosa.
Entretanto, esta ilustre garantia processual, na atual sociedade complexa de massas[3], recebe a imposição de inúmeros óbices ao seu pleno desenvolvimento e observância. Fator que é intensificado pelo acolhimento no ordenamento brasileiro da perspectiva quantitativa de eficiência processual, o que remete o sistema à contração do acesso a justiça, deixando órfãos cidadãos que apenas dispõem do Poder Judiciário para socorrer-se na lesão, ou ameaça de lesão, ao seu direito fundamental.
Por fim, objetiva-se chamar a atenção para a grandiosidade desta garantia, que serve de instrumento para a aferição da observância das demais e que está ameaçada de perder-se diante da pressa constante em que vive a sociedade, focada em números e não na qualidade e peculiaridades da justiça a ser realizada no caso concreto.
2. O DEVER DE FUNDAMENTAR AS DECISÕES JUDICIAIS E SUA EVOLUÇÃO
Não é necessário fazer uma digressão histórica sobre o dever de fundamentar as decisões judiciais, tampouco discutir os reflexos de sua ausência ou insuficiência. Analisar-se-á apenas, a evolução da motivação das decisões judiciais até o nível constitucional, simultaneamente à evolução do Estado.
A evolução do Direito é pautada e inspirada pela evolução da sociedade. Existe uma relação íntima e circular entre a sociedade e o Direito, ambos influenciando-se respectivamente. Consequentemente, o Direito reflete as ideologias, anseios, e preocupações desta sociedade[4], sempre e independentemente do período histórico analisado.
O dever de fundamentar as decisões judiciais não é recente, nem tem origem na Constituição Federal de 1988, ao contrário, existia antes mesmo de o Brasil configurar-se como Estado soberano, pois enquanto colônia regulava-se conforme as leis portuguesas da época[5], o Código Filipino, que já previa tal dever, regulado por normas infraconstitucionais.
Apesar da emancipação política do Brasil, as normas processuais relativas a fundamentação das decisões judiciais não se afastaram das de Portugal[6], que aqui produziam efeitos e mantinham sua a natureza infraconstitucional, por meio de uma portaria de 31 de março de 1824. Assim, desde que não contrariassem a independência e soberania brasileiras, as normas portuguesas continuariam a ser aplicadas[7].
O Regulamento 737 de 1850 pôs termo a dependência legislativa do Brasil em relação a Portugal, pois foi a primeira norma, genuinamente nacional, a determinar a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais, prevendo no artigo 232 que “a sentença deve ser clara, sumariando o juiz o pedido e a contestação com os fundamentos respectivos, motivando com precisão o seu julgado, e declarando sob sua responsabilidade a lei”[8].
De 1850 até 1939, os códigos de processo civil eram elaborados por cada estado-membro, nos limites da competência legislativa, e em todos o dever de fundamentação das decisões judiciais foi previsto. Com a elaboração de um Código de Processo Nacional em 1939, tal dever não foi abandonado, mas ainda era uma norma infraconstitucional.
O atual CPC de 1973, no artigo 131, dispõe que “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”.
Em ambos, CPC de 1939 e de 1973, o dever de fundamentação das decisões judiciais não se vinculavam ou submetiam as normas Constitucionais em sua aplicação, devido ao apego ao legalismo resultante do princípio da legalidade, soberano em tal período. Barbosa Moreira ensinou, com maestria, o âmago do dever de fundamentar as decisões ao dizer que “é preciso que o pronunciamento da justiça, destinado a assegurar a inteireza da ordem jurídica, realmente se funde na lei; é preciso que esse fundamento se manifeste, para que se possa saber se o império da lei foi na verdade assegurado”.[9]
Neste sentido, Rui Portanova destacou que a vinculação do juiz e da sentença à lei são o objetivo final do processo, concretizando a atuação da vontade da lei, a segurança jurídica e a manutenção da ordem pública quando ofendidas pelo conflito. O fim da sentença e sua fundamentação é ‘restaurar o império da lei e do Direito objetivo’[10].
A fundamentação das decisões judiciais visava, àquele tempo, garantir que a lei seria cumprida e o arbítrio do magistrado afastado, sua função era meramente técnica e sua razão ideológica.
A razão ideológica tem raízes profundas na necessidade de superar o ancien regime, para afastar o abuso do subjetivismo e arbítrio judicial que prevaleceram durante o absolutismo[11].
A função técnica proporcionava à fundamentação das decisões o aspecto de um mecanismo instrumental de fiscalização e de limitação dos juízes no exercício de sua função, ao conteúdo das leis afastando-os da subjetividade ou arbitrariedade, haja vista que a legalidade instruía as condutas do Estado de Direito[12].
A universalização do dever de fundamentar as decisões foi uma conveniência processual que visava simplificar a administração da justiça, a criação de precedentes judiciais e o controle das instâncias inferiores pelas superiores, analisada sob o enfoque endoprocessual[13]
Neste período de preponderância do positivismo jurídico o juiz era privado da atividade interpretativa, seu papel era apenas revelar a lei por meio de uma aplicação mecanicista. O positivismo jurídico caracterizava-se por uma premissa principal, qual seja a da plenitude do direito posto. Desta maneira, o juiz por subsunção, simples aplicação de um silogismo, seria capaz de solucionar quaisquer questões postas sob sua análise. Vista assim, a sentença era verdadeira equação matemática, consubstanciada num silogismo que se tornou insuficiente diante da realidade social e sua complexidade.
Tornou-se impossível ignorar o aspecto axiológico do Direito, principalmente, no momento das tomadas de decisão, bem como a complexidade das relações sociais e as implicações relativas ao Direito se comparado à democracia participativa e aos hard cases, para os quais direito posto não é pleno suficientemente para solucionar o conflito. O positivismo jurídico viveu sua crise e com ela a reformulação da forma de analisar e entender o dever de fundamentar as decisões judiciais.
Em meados do século passado, no conhecido período do pós-guerra, uma verdadeira revolução intelectual reformulou a visão e a concepção sobre o direito na maioria dos países. Tal revolução iniciada na Itália e na Alemanha deu origem a um novo período, genericamente chamado de pós-positivismo por superar o positivismo jurídico e o apego desenfreado às leis, gerando conseqüências até então inimagináveis para os cidadãos.
O pós-guerra é o marco histórico do desenvolvimento de uma teoria revolucionária. Surgiram as premissas do Estado Democrático de Direito, conceito mais abrangente, não mais sujeito à obediência cega da lei, mas obrigado à observância de outros critérios e à realização de valores, dentre eles o da soberania popular.
Inicia, como que em pequenas partículas, o Estado Democrático, que corajosamente busca a realização da justiça e não somente a vontade da lei, bem como dos valores de sua Constituição, novo núcleo do ordenamento jurídico,[14] daí decorrendo sua nomenclatura de Estado Democrático Constitucional.
A superação do positivismo conduziu ao abandono da preocupação com a correção formal da lei, ideal do positivismo jurídico e as atenções voltaram-se para o conteúdo da norma. Abriu-se espaço para uma nova forma de ver o Estado e a própria Constituição.
Para dar um passo mais adiante e entender como uma simples obrigação infraconstitucional transformou-se em uma garantia processual prevista na Constituição, é preciso rever rapidamente os principais inovações, fundamentos e escopos do Estado Democrático de Direito.
O Estado Democrático de Direito, também conhecido como Estado Constitucional de Direito, devido a algumas peculiaridades, desenvolveu-se sobre três pilares essenciais, quais sejam: i) o reconhecimento da força normativa da constituição; ii) a expansão da jurisdição constitucional; iii) desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional[15]. Para Barroso as mudanças enumeradas acima caracterizam apenas o marco teórico, que somados ao marco histórico e ao marco filosófico[16], formam a base do neoconstitucionalismo.
A Constituição, conduzida ao centro do ordenamento jurídico, deixou de ser mera carta de recomendações para ocupar o mais alto posto de um ordenamento jurídico, às suas normas foi atribuído efeito irradiante, o que induziu à constitucionalização de todos os ramos do direito.
A importância atribuída ao conteúdo da lei e a aproximação entre Direito e ética materializaram-se em princípios, que abrigados na Constituição, sustentam sua força normativa, logo a teoria dos princípios rompeu com a análise da legitimidade do Direito simplesmente pela observância de suas formas e da autoridade da qual emanou[17].
Os princípios ultrapassaram a clássica característica de técnica de integração do direito, nas hipóteses de lacuna legal, para regular situações jurídicas. No neoconstitucionalismo, os princípios fazem circular valores éticos no ordenamento jurídico.[18] Os direitos fundamentais, sob o manto da denominação de princípios, correspondem às exigências morais contidas em seus núcleos[19].
O Judiciário recebeu a máxima função de assegurar os direitos fundamentais previstos na Constituição, cujos efeitos são imediatos. Logo, o Estado Democrático apóia-se na certeza de que qualquer lesão ou ameaça de lesão a um direito fundamental, encontrará no Judiciário a tutela jurisdicional capaz de lhe dar efetividade.
A técnica da ponderação sobrepôs-se como método de aplicação do direito, abandonado o silogismo matemático até então predominante. Ou seja, intérprete deve sustentar sua interpretação nos fundamentos constitucionais, bem como deverá utilizar fundamentos que não sejam casuísticos, com pretensão de universalidade, e considerar as conseqüências práticas de sua decisão[20].
Neste ponto há a convergência entre a postura constitucional do Direito Processual e a importância do dever de fundamentação, que neste contexto é elevado a categoria de princípio constitucional.
A força irradiante da Constituição conjuga duas idéias importantes: consagra direitos fundamentais e providencia garantias para que estes sejam assegurados e efetivados “rumo àquilo que se pode chamar de constitucionalismo universal” para abranger o maior número de direitos possíveis[21].
A constitucionalização do ordenamento infraconstitucional alcança uma amplitude imensurável e abrangente. A fundamentação das decisões judiciais foi realocada para o texto Constitucional. Mas isto não significa uma simples promoção de norma do ordenamento infraconstitucional para norma constitucional. Não se está a falar de hierarquia, mas de uma mudança na natureza do dever de motivação.
O artigo 93, IX da Carta Magna prevê a garantia constitucional obter do Estado as decisões judiciais e administrativas jundamentadas. E ainda que não estivesse prevista explicitamente, ninguém arriscaria negar que tal dever decorre logicamente do processo justo, ao assegurar as garantias fundamentais.
3. O PROCESSO JUSTO E A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS
3.1 O processo Justo e sua relação com a fundamentação das decisões judiciais – um instrumento a viabilizar o contraditório participativo
A íntima relação entre processo e cultura[22]–[23], termo de difícil definição, não pode ser desprezada, uma vez que os objetivos do processo são determinados de acordo com a cultura social predominante em dado momento e local. A escolha dos objetivos do processo serão eleitos e determinados considerando, essencialmente, a matriz ideológica que sobressai sobre a jurídica[24].
O aspecto cultural de determinado povo apresenta-se nos valores que o ser humano agrega em seu subjetivo, mas também naquilo que a historicidade acumulada da sociedade lhe transmite, sendo afetado pela passagem do tempo e pela alteração dos costumes adotados em certa sociedade[25]. Inevitavelmente, aqueles que recebem a incumbência de elaborar as leis deixam transparecer em seu conteúdo, a cultura da sociedade que representa.
Na cultura neoconstitucionalista o sentimento constitucional ganhou amplitude. Sob os efeitos desta revolução intelectual, o conteúdo das normas passa a ser influenciado pelas aspirações constitucionalistas.
Os valores e as ideologias da pós-modernidade exercem um poder de manipulação sobre o Processo Civil, que é transpassado pelas normas contidas em tratados internacionais, em Constituições e ordenamentos estrangeiros, e principalmente pela Constituição nacional. O processo brasileiro recebeu um novo contorno a partir do artigo 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos[26], das Emendas 5ª e 14ª da Constituição Americana e no artigo 111 da Constituição Italiana.
O Processo Civil abandonou sua postura de simples ferramenta, mera técnica vazia de significado, para incluir, assegurar e observar garantias fundamentais, o que significa ir muito além de apenas conformar-se às normas constitucionais para empregá-las no exercício da jurisdição, devendo ser visto como o direito constitucional aplicado[27].
A conexão entre a Constituição e o Processo amplia-se no tempo e no espaço, recebendo grande importância em todos os setores do ordenamento jurídico. Exige-se, segundo Mitidiero, uma “postura constitucional de processo” na qual o devido processo legal, é o modelo mínimo de processo équo, de cuja fiel consecução depende a própria obtenção da justiça através do processo, pois somente um processo justo pode produzir decisões justas[28].
O sistema processual é tutelado por uma série de princípios e garantias constitucionais tidos como padrões a serem atendidos pelo legislador, ao estabelecer normas processuais e pelo intérprete (notadamente o juiz) encarregado de captar o significado de tais normas, conforme Dinamarco[29].
Existe uma eficácia processual nos direitos fundamentais, por meio do qual o princípio constitucional fundamental do processo civil, base comum de todos os princípios e regras que dele derivam-se, é o devido processo legal, importado da expressão inglesa due processo of Law, expressamente previsto na Constituição Federal, no artigo 5º, LIV. Nery ensina que, a doutrina brasileira tem interpretado e empregado o devido processo legal sob seu viés processual, procedural due process, o que trouxe maiores repercussões para o devido processo legal sobre o direito processual[30].
Em referência mais adequada ao contexto jurídico atual, Leonardo Greco, afirma:
“Na Constituição brasileira, esse processo humanizado e garantístico encontra suporte principalmente nos incisos XXXV, LIV e LV do artigo 5º, que consagram as garantias da inafastabilidade da tutela jurisdicional, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, sem falar nos já citados princípios genéricos da administração pública de quaisquer dos Poderes, e ainda nos da isonomia, da fundamentação das decisões e outros hoje expressamente reconhecidos em nossa Carta Magna”.[31]
Há uma certeza: o dever de fundamentar as decisões judiciais é uma das garantias fundamentais que integra o conteúdo mínimo para que se efetive um processo justo.
Reflexamente, há a necessidade de uma tutela jurisdicional efetiva, que assegure os direitos fundamentais aplicáveis ao processo. A tutela jurisdicional efetiva é muito mais que uma simples garantia, é um verdadeiro direito fundamental que deve ser irrestritamente assegurado, tendo em vista a dignidade da pessoa humana, a este respeito, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias ensina:
“Em razão disso, essa manifestação do poder do Estado, exercido em nome do povo, que se projeta no pronunciamento jurisdicional, é realizado sob rigorosa disciplina constitucional principiológica (devido processo constitucional), só podendo agir o Estado, se e quando chamado a fazê-lo, dentro de uma estrutura metodológica construída normativamente (devido processo legal).”[32]
A efetividade da tutela jurisdicional está estritamente ligada à observância do processo justo seus desdobramentos, dentre eles o dever de fundamentar as decisões judiciais. Quanto ao tratamento processual das garantias constitucionais, o Direito Processual deve disciplinar o exercício da jurisdição por meios que garantam a mais ampla efetividade do processo, maior alcance prático e o menor custo possível, de modo proteger de forma concreta os direitos dos cidadãos[33].
A sistemática adotada por meio dos incisos XXXV, LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal, por si só, tornaria dispensável a previsão do artigo 93, IX da Constituição, que explicitamente prevê o dever de fundamentar as decisões judiciais, podendo ser detectada dentre o conjunto de garantias que formam o processo justo.
O constituinte originário ao realocar tal garantia fundamental para espaço em que trata das decisões, judiciais ou administrativas, visa enfatizar sua preocupação com esta garantia fundamental, merecedora de maior destaque.
O processo justo é um conceito em construção, não existe abstratamente, dependendo de cada circunstância do caso concreto para ajustar-se às garantias processuais necessárias. Doutrinariamente, não há consenso em relação a quais garantias estariam inseridas no conceito de processo justo, mas é certo que existe um conteúdo mínimo sem o qual a norma constitucional estaria inviabilizada[34].
A doutrina clássica brasileira, representada na obra de Nelson Nery e Leonardo Greco, oferece um panorama dos elementos mínimos do processo justo em nosso país. Nery demonstra quais, em sua concepção, são os elementos que compõem o devido processo, incluindo entre eles a motivação das decisões judiciais e administrativas[35]. Greco, apresenta os elementos integrantes do processo justo que são capazes de conduzir a um processo que absorva e reflita as garantias fundamentais e as divide entre garantias individuais e garantias estruturais, estando neste grupo a garantia da motivação das decisões[36].
A fundamentação das decisões judiciais é uma garantia inconteste do processo justo, que contemporaneamente se busca, passando-se a examinar processual e individualmente a fundamentação das decisões, como importante elemento do processo justo.
De acordo com Didier, que prefere considerar abstratamente o termo “decisão judicial”, dada a indefinição terminológica do ordenamento, seja no CPC, seja na CF, que ora utiliza sentença com espécie, ora como gênero, analisar-se-á neste ponto – sem entrar em discussões sobre a teoria dualista ou unitária, por não interessar discutir se ao juiz é permitido criar a norma ou não – os elementos da decisão judicial[37].
Sendo certo que este estudo não é o local adequado para tratar da teoria da decisão judicial, tendo em vista as peculiaridades e as discussões totalmente distintas de seu objetivo, considerar-se-á os elementos da decisão judicial, previstos no artigo 458 do CPC e não as demais matérias que decorrem do estudo desta teoria. Este artigo apresenta os elementos da decisão judicial, quais sejam relatório, fundamentação e dispositivo.
Primeiro é preciso conceituar o que se entende por fundamentação, deixando-se de lado os demais elementos. A atenção estará depositada sobre a mens legis constitucional que interage com a infraconstitucional, de modo que a fundamentação das decisões esteja alocada dentre as garantias do devido processo legal[38].
Didier e Barbosa Moreira concordam que o juiz na fundamentação, mais do que analisar, deve resolver, questões de fato e de direito. Portanto, fundamentar significa dar as razões, de fato e de direito, que conduziram o magistrado até aquela decisão, devendo existir uma exteriorização da base fundamental da decisão do juiz, como meio de comprovar o distanciamento judicial de arbitrariedades e subjetivismos[39].
Pode significar também, conforme Dinamarco, o enunciado das razões em que se apoiará a decisão da causa, “o eixo imaginário” que vai da causa petendi à motivação da sentença, passando pelos fundamentos da defesa. A motivação está para a sentença assim como a causa de pedir está para a demanda inicial e as razões de defesa para a contestação. As razões de decidir constituem acolhimento das razões de uma das partes e da rejeição de outras, segundo o entendimento do juiz determinando a decisão[40].
Esta garantia tem duas exigências a atender, uma relativa às partes e ao público e outra relativa ao juiz. Respectivamente, aquelas têm o direito de conhecer as razões que motivaram a decisão e de verificar a consistência dessa fundamentação, viabilizando se o juiz empenhou-se para que a decisão fosse a mais acertada, a mais justa e imparcial possível, já o juiz tem o dever de examinar todos os argumentos de fato e de direito apresentados pelas partes[41].
A função do dever de fundamentar varia quando considerada relativamente às partes ou ao juiz e o Judiciário. Quanto às partes o dever de fundamentar as decisões judiciais terá a função de persuasão, ou seja, deverá convencê-las a respeito da justiça da decisão; deverá ser clara o suficiente para, de modo que seus defeitos possam ser facilmente observados e impugnados; e individualizar o conteúdo e o alcance das decisões. Em relação ao juiz, a função, é proporcionar ao tribunal, em uma situação de recurso, a possibilidade de bem avaliar o conteúdo da fundamentação e decidir se vai ou não reformá-la. Do mesmo modo, a fundamentação exerce uma função muito importante com relação a formação e uniformização da jurisprudência[42].
Toda manifestação jurisdicional deve ser motivada, apresentar justificação suficiente do seu conteúdo e evidenciar o respeito ao contraditório participativo, o que se dá através do exame e consideração de todas as alegações e provas produzidas pelas partes.
Exemplo clássico das conseqüências nefastas do desprezo do dever de fundamentar para um processo justo, é o julgamento dos Embargos de Divergência em REsp nº 319997-SC, 2001/0154045-5, Min. Relator: Francisco Peçanha Martins – Primeira Seção, publicado em 02/02/2004, no qual o ministro Humberto Gomes de Barros manifestou-se de forma contundente e contrária a todas as justificativas da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais[43].
Embora possa-se pensar que este foi um posicionamento isolado e ultrapassado, recentemete, no julgamento da Reclamação 10.793/SP, a Ministra Ellen Gracie afirmou que “A partir da Emenda Constituicional nº 45, é o Supremo Tribunal Federal quem diz o que é Direito no País”[44]. É exatamente este tipo de comportamento arbitrário que o Direito, na realidade do contraditório participativo busca afastar. É preciso manifestar o repúdio que decisões sem fundamentação, incluam-se as com fundamentação insuficiente, devido à evolução histórica e origem desta garantia[45].
Superada a análise a respeito dos deveres e funções da fundamentação das decisões e sua contribuição para a constituição de um processo justo Leonardo Greco ensina:
“A fundamentação não deve ser observada apenas para justificar racionalmente a decisão do juiz, mas também para demonstrar, não apenas que ele tomou ciência de todo o conteúdo do processo e de todas as questões nele suscitadas, mas também que todas elas foram devidamente apreciadas.”[46]
Assim destacou a relação entre contraditório e fundamentação da sentença. No passado, o contraditório era apenas um princípio a reger a relação processual, a exigir a observância da bilateralidade da audiência, da oitiva das partes e principalmente, era o direito de informar-se a respeito da alegação da outra parte e contradizê-la, somente.
O contraditório tornou-se uma garantia sem a qual ninguém pode ser atingido por uma decisão judicial, ou seja, em sua esfera de interesses, se impedido de influir eficazmente na formação de tal decisão, em igualdade de condições com a parte contrária.
Este é hoje o princípio mais importante do processo, devido a sua dimensão humanitária, capaz de abranger outros, tais como comunicação entre as partes e participação democrática no processo.[47] Atualmente é inconcebível entender o contraditório como a possibilidade de dizer e contradizer, sem que as alegações sejam efetivamente consideradas pelo magistrado na tomada de decisão.
É certo que pelo contraditório materializa-se o direito de as partes serem adequada e tempestivamente informadas, de modo a posicionar-se sobre cada questão de fato ou de direito relevante para a solução da controvérsia, e principalmente, o direito de pretender que o juiz considere, conheça de suas alegações, defesas e provas quando for prolatar a sentença, melhorando a relação entre as partes processuais, de modo a assegurar e desenvolver o diálogo.[48]–[49]
Leonardo Greco faz claro e preciso retrato da evolução do contraditório no último século, no qual o juiz e as partes são levados a construir conjuntamente a solução da causa, o que recebe a denominação de contraditório participativo. Esta nova visão do contraditório permite às partes a atuação a favor de seus interesses, impondo simultaneamente ao juiz uma postura receptícia. Consequentemente, as partes fazem suas alegações na certeza de que serão ouvidas e é por meio deste diálogo que a solução da causada será obtida. Assim, afirma o ilustre mestre:
“Como diz Picardi, o contraditório deixou de ser um simples instrumento de luta entre as partes para transformar-se num instrumento operacional do juiz, ou melhor, um pressuposto fundamental do próprio julgamento. (…) Para isso, o contraditório não pode mais apenas reger as relações entre as partes e o equilíbrio que a elas deve ser assegurado no processo, mas se transforma numa ponte de comunicação de dupla via entre as partes e o juiz. Isto é, o juiz passa a integrar o contraditório, porque, como meio assecuratório do princípio político da participação democrática, o contraditório deve assegurar às partes todas as possibilidades de influenciar eficazmente as decisões judiciais”[50].
“O princípio do contraditório pode ser decomposto em duas garantias: participação (audiência; comunicação; ciência) e possibilidade de influência na decisão”[51]. Aquela é a dimensão formal[52] e esta a dimensão substancial.
A inovação está na dimensão substancial, as partes possuem o poder de influenciar a decisão do juiz, sendo esta a possibilidade de interferir com argumentos, ideias e fatos no desfecho que o processo terá. Este é o ensinamento de Humberto Theodoro e Dierle José Coelho Nunes afirmam:
“Assim, a garantia opera não somente no confronto entre as partes, transformando-se também num dever-ônus para o juiz que passa a ter que provocar de ofício o prévio debate das partes sobre quaisquer questões de fato ou de direito determinantes para a resolução da demanda (…) Impõe-se assim, a leitura do contraditório como garantia de influência no desenvolvimento e no resultado do processo. (…) Permite-se, assim, a todos os sujeitos potencialmente atingidos pela incidência do julgado (potencialidade ofensiva) a garantia de contribuir de forma crítica e construtiva para sua formação”[53].
Ao juiz é imposta uma limitação: a de somente estar autorizado a decidir sobre questão de fato e de direito sobre as quais tenham as partes sido invocadas a manifestarem-se. Daí dizer-se que o contraditório gera a garantia de não surpresa. Desta maneira, a parte não será surpreendida por uma decisão judicial que inova quanto as questões de fato e de direito, sem que tenham sido convocadas a manifestarem-se anteriormente.
“Tudo o que o juiz decidir fora do debate já ensejado às partes corresponde a surpreendê-las, a desconsiderar o caráter dialético do processo, mesmo que o objeto do decisório corresponda a matéria apreciável de ofício”.[54]
Sem adentrar na crise de representatividade atualmente vivida pela sociedade contemporânea, bastam algumas considerações. Calmon de Passos ensina que após a democratização do Estado, faz-se necessário democratizar a sociedade, e para isto apresenta como solução a democracia participativa, que busca restituir à sociedade o poder de controle.
É certo que o poder entregue a si mesmo, livre de controle ou estando este enfraquecido, como na democracia liberal, é passível de degenerar-se, oprimir, alienar-se. Desta maneira, a Democracia Participativa vem a ser a solução para controlar o poder que em nome do povo é exercido e, portanto por este deve ser controlado. Os mecanismos de controle exercidos pela sociedade civil não tem a pretensão de paralisar ou tornar inoperantes os poderes político e econômico, mas apenas almeja detê-los, quando estes forem exercidos de maneira ameaçadora, e assim conclui o autor:
“a democracia participativa reclama: participação nas decisões, sempre que possível; controle da execução, em todas as circunstancias; acesso as informações, assegurado, no mínimo, a respeito de assuntos mais graves, a setores representativos da sociedade civil. (…) Acredito que estejamos caminhando para o processo como instrumento político de participação. A democratização do Estado alçou o processo à condição de garantia constitucional; a democratização da sociedade fá-lo-á instrumento de atuação política”.[55]
Importante demonstrar que o processo tornou-se o palco onde a democracia participativa terá mais condições de se desenvolver, pois a aproximação da matriz teórica ao direito processual permite uma valorização do contraditório, refletida no reforço da democracia participava e consequentemente do processo justo. Tendo em vista a ampliação da cidadania processual[56].
A democracia participativa é o cenário ideal para o desenvolvimento da dimensão extraprocessual[57] da fundamentação das decisões, neste caso, judiciais. Isto porque os destinatários da sentença são os advogados, as partes, os tribunais superiores a opinião pública, quer dizer, o povo. Se o poder é exercido em nome do povo, este tem o direito de conhecer e controlar as decisões proferidas em seu nome, neste ponto é efetivada “a garantia da controlabilidade democrática sobre a administração da justiça”[58].
O contraditório é o “reflexo do princípio democrático na estruturação do processo. Democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório”.[59] O exercício democrático de um poder, exige a observância do contraditório, atualmente, com o sobrenome “participativo”.
Consequentemente, o dever de fundamentar as decisões, cuja observância é necessária para a efetividade de outras garantias fundamentais, tais como a análise e constatação da imparcialidade judicial, a contenção do arbítrio, o contraditório participativo, dentre outras, tem caráter instrumental, fiscalizador, do dever de fundamentar as decisões judiciais para expurgar injustiças cometidas sob o manto do subjetivismo judicial. Os artigos 93, IX da Constituição Federal e 458 do Código de Processo Civil, deixam claro que o formalismo processual visto sob a égide do devido processo legal é “a domesticação do arbítrio estatal dentro do processo”.[60]
A exigência de que a decisão respeite o contraditório e a fundamentação, faz com que a decisão deixe de ser um ato isolado de inteligência do terceiro imparcial, o juiz. A relação entre estes princípios deve assegurar que a aplicação das normas jurídicas seja produto de um esforço reconstrutivo do caso concreto pelas partes afetadas, para que juntos construam a sentença e sejam capazes de alcançar a pacificação de seus conflitos[61].
3.2 – A fundamentação das decisões, a exigência de publicidade e a fiscalização do processo justo
A conjugação do dever de fundamentar as decisões com a possibilidade de a parte influenciar nesta decisão será aferida por meio da publicidade, que somente será implementada mediante a fundamentação. Ao impor transparência e permitir um maior controle sobre Judiciário, evitando decisões arbitrárias e que considerem as partes como meros atores, sem o direito de influência.
A fundamentação amparada pela garantia da publicidade mostra-se como instrumento de aferição da imparcialidade e independência judicial, bem como da certeza de que o diálogo será assegurado durante o processo, de forma a evitar surpresa, quer dizer decisões totalmente inesperadas pelas partes, caso suas alegações não sejam consideradas, ou decisões sejam tomadas sem seu conhecimento.[62]
Considerando que a fundamentação de uma decisão pode ter um aspecto revelador sobre a atuação das partes durante o processo, sua publicidade se apresenta como um mecanismo de verificação, de controle da aplicação e efetividade das demais garantias processuais, como a imparcialidade do juiz, o oferecimento de oportunidade ao autor e ao réu de manifestarem-se para demonstrar e comprovar suas alegações, a isonomia, a ampla defesa, dentre outras garantias do processo justo.
A fundamentação das decisões judiciais é um espelho a refletir tudo o que ocorreu no processo, viabilizando uma avaliação do que até ali se desenvolveu. Possibilita analisar se o processo foi justo ou não, se as garantias fundamentais foram ou não observadas, mas de nada adiantaria tal função fiscalizatória, sem o dever de publicidade cumulativamente previsto no artigo 93, IX da Constituição. São, pois, garantias complementares.
“Vê-se logo a importância e a justificativa de uma investigação, dada a alta relevância do papel que, reconhecidamente, a fundamentação das decisões judiciais desempenha no Estado Democrático de Direito.”[63]
O primeiro requisito a ser observado é a imparcialidade do juiz, o qual deve ser estranho à pretensão, ao litígio e aos litigantes, legitimando a imperatividade dos atos e decisões estatais no exercício da jurisdição.[64]–[65]
Antonio Carlos Marcato ressalta a importância da imparcialidade judicial para desenrolar de um processo justo:
“Realmente, se à parte é defeso valer-se de suas próprias forças para diretamente solucionar o conflito em que se vê envolvida, deve o Estado, detentor único do poder-dever de prestar a tutela necessária à resolução daquele, agir no processo, através de seus órgãos, com absoluta isenção de propósitos, assim retribuindo à confiança que lhe é depositada pelo destinatário final da atividade jurisdicional; e essa retribuição pressupõe necessariamente que o Estado exija, daqueles que exercem a jurisdição em seu nome, a condução imparcial do processo”[66].
O que se busca por meio da imparcialidade do órgão julgador é a confiança depositada na justiça, por aqueles que a ela submetem suas pretensões. Sem a imparcialidade do juiz, o processo pode transformar-se em mecanismo de produção de injustiças que, no mínimo violarão a isonomia entre as partes, de distribuição de favores aos amigos ou ditos poderosos e a imposição de danos e prejuízos aos inimigos ou desvalidos.
Este, sem dúvida não é o escopo do processo constitucional que visa um juiz alheio a qualquer influência e independente, que se abstenha de julgar quando existam determinadas circunstâncias, taxativamente previstas, sob pena de, não o fazendo, poder ser recusado por qualquer das partes. O Juiz deve ser como um terceiro desinteressado, que atua simplesmente na busca da pacificação social.
Assim, os elementos da sentença relatório, fundamentação e dispositivo, permitem que uma sentença caracterizada pela imparcialidade seja perfeitamente identificada ao longo de sua estrutura lógica. Isto porque adotará os argumentos de uma das partes, dispensando aos argumentos contrários qualquer relevância, desprezando-os.
Por meio da regra impositiva da publicidade das decisões judiciais, será possível constatar e controlar, seja inter partes, seja por toda a comunidade, a verdadeira posição do magistrado ao proferir sentença, se parcial ou não. Nos casos onde foremm violados o dever de fundamentação e/ou de publicidade, o próprio constituinte originário previu a sanção de nulidade para tais sentenças.
Teresa Wambier entende que qualquer mácula na atuação do magistrado que seja causa de impedimento à sua atuação, inclusive a prevaricação, a concussão e a corrupção do juiz, são situações capazes de gerar a rescindibilidade da sentença[67].
A publicidade é o canal, o caminho, pelo qual a garantia de imparcialidade do juiz será verificada, nos termos acima expostos. Na verdade, a publicidade mereceria um estudo à parte tamanha a sua importância na aferição das garantias processuais, uma vez que proporciona uma maior transparência no exercício da função pública. Como um freio à arbitrariedade judicial, que tanto se deseja afastar, publicidade proporciona aos cidadãos brasileiros a experiência de uma garantia muito mais ampla e efetiva que a concedida na Europa e nos Estados Unidos, em termos comparativos. A publicidade é, certamente uma garantia democrática que atua sobre o exercício das funções judiciais.[68]
É preciso destacar que poder-se-ia traçar a relação entre a fundamentação da sentença e a publicidade com qualquer garantia integrante do processo justo. No entanto, a análise da imparcialidade e do contraditório, por meio da publicidade, permitem que as demais garantias, como paridade de tratamento, respeito à ampla defesa, dentre outras, sejam fiscalizadas, tendo-se em vista a correlação existente entre todos os elementos componentes do processo justo.[69]-[70]
4. A FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E A TENDÊNCIA DE PADRONIZAÇÃO DECISÓRIA
Verificada a importância do dever de fundamentar as decisões judiciais, analisadas as repercussões e correlações entre as garantias para um processo justo, é preciso vislumbrar as dificuldades que esta garantia encontra na sociedade pós-moderna para manter-se íntegra e fiel a realização de um processo justo.
A sociedade vive em constantes transformações e com elas o Direito. O que se extrai deste cenário é a necessidade e, simultaneamente, a exigência de velocidade. Barroso, em inspirada abordagem sobre o assunto, observa que a vida acelerada dos dias atuais repercute imediatamente no Direito[71].
Neste contexto em que as pessoas não dispõem de tempo, tem pressa e desejam eliminar seus problemas o mais rápido possível, confrontam-se o valor real e o valor atual da efetividade processual, intensificado pelo mau gerenciamento da administração da justiça e a intensificação de litígios. Há que se destacar que o processo passou a ser visto como um mal, cuja eliminação deve acontecer o mais rápido possível.
Existem dois pólos, aparentemente, opostos: um, a necessidade de garantir o processo justo, o qual somente será alcançado por meio da efetividade das garantias fundamentais processuais; outro, a intensa e frutífera sistemática de acesso a justiça, fomentada pela inércia dos demais Poderes, a fim de assegurar direitos fundamentais, que embora o texto da Constituição lhes empreste eficácia imediata, são abandonados e ignorados pelos responsáveis por sua implementação, principalmente após a redemocratização do Estado Brasileiro.
É gerado um conflito entre a efetividade das garantias processuais e o grande volume de demandas a serem analisados e julgados. Quadro que pode ser agravado quando se adota o modelo de efetividade quantitativa.
Nesta sociedade marcada pelos prefixos pré e prós, aludindo aos novos tempos, a contemporaneidade, vários fatores interferem na prestação jurisdicional, que também passa a refletir esta necessidade de velocidade. Ao mesmo tempo e em contrapasso, encontra-se o amplo e irrestrito acesso ao Judiciário, que consequentemente, o sobrecarrega e imobiliza[72]. A eficiência do sistema processual não pode sobrepor-se a sua legitimidade, deve-se afastar a visão meramente utilitarista e de eficiência do sistema como fim a ser alcançado[73].
Os tribunais nas sociedades contemporâneas mereceram destaque em estudo realizado por Boaventura de Souza Santos que constatou o que já se vem sendo afirmado ao longo deste trabalho: há, na realidade, uma seletividade no que diz respeito à eficiência, que beira a descaracterização conceitual e substancial de sua finalidade.
A falência do Estado Providência ocasionou severas consequências, inclusive, em seu desempenho, viabilizando altos níveis de desperdício e ineficiência:
“Por um lado, as medidas mais inovadoras para incrementar o acesso das classes mais baixas em breve foram eliminadas, quer por razões políticas, quer por razões orçamentais. Por outro lado, questionou-se o âmbito da tutela judicial, pois muitas vezes, apesar do seu alargamento, os tribunais continuaram a ser seletivos na eficiência com que responderam à procura da tutela judicial. Nuns países mais do que noutros, o desempenho judicial continuou a concentrar-se nas mesmas áreas de sempre. Além disso, o aumento da litigação agravou a tendência para avaliação do desempenho dos tribunais em termos de produtividade quantitativa. Essa tendência fez com que a massificação da litigação desse origem a uma judicialização rotinizada, com os juízes a evitar sistematicamente os processos e os domínios jurídicos que obrigassem a estudo ou a decisões mais complexas, inovadoras ou controversas.”[74] (grifos nossos)
Vive-se um movimento de retrocesso, onde é inegável que a consequência dos esforços para assegurar o acesso ao Judiciário nos últimos tempos é o demandismo, que para ser superado conduz a criação de mecanismos que desacelerem o acesso a justiça, conhecidos como súmulas vinculantes, uniformização de jurisprudência, adoção pelos tribunais de jurisprudência defensiva, sentenças-padrão, julgamentos por amostragem, entre outros. Isto porque a efetividade deixa de ser um meio e passa a ser o fim, completamente descaracterizada.
O processo, então, é avaliado por seu desempenho. A ética tem seu lugar usurpado pelas relações entre os elementos do sistema e a técnica deturpada de sua manipulação eficiente[75]. O efeito direto disto é a implantação no inconsciente coletivo de que “uma coisa é boa se ela se mostra adequada ao fim perseguido e este fim é ele próprio desejável por produzir resultados que satisfaçam a uma finalidade mais geral”[76], neste caso a celeridade.
A restrição do acesso a justiça somente será válido se desenvolver-se conforme as garantias fundamentais, respeitando-as[77]. É certo que o trâmite processual sofre defasagens e uma delas é o desprezo dispensado à fundamentação das sentenças, garantia processual espancada na prática, ou seja, longe do ambiente teórico.
O discurso de socialização processual está pautado numa preocupação do acesso quantitativo a justiça, ou seja, com a produção de uma justiça de alta produtividade, a níveis industriais, que longe da preocupação com o impacto decisório, busca desenfreadamente a rapidez processual, conduzindo a decisões judiciais distantes da realidade constitucional[78]. Assim explica Alvaro de Oliveira:
“Nesse contexto, apesar de se afirmar que as reformas são realizadas de acordo com os princípios processuais constitucionais e com a perspectiva constitucional democrática e/ou socializadora, verifica-se que o discurso de boa parcela da doutrina processual brasileira se deixou contaminar por concepções funcionais e de eficácia que não se preocupam com o viés público e garantista do sistema processual constitucional.”[79]
Não há dúvida: o conceito de efetividade foi distorcido em sua aplicação para satisfazer a necessidade de decisões judiciais rápidas, inconseqüentes e arbitrárias. A única preocupação reinante no inconsciente coletivo é com o tempo do processo e não com seu conteúdo justo e participativo ou não.
A eficiência do sistema processual pode ser aferida sob duas perspectivas, a quantitativa e a qualitativa[80]. A perspectiva mais adequada ao Estado Democrático é a qualitativa que busca implementar a qualidade das decisões e sua fundamentação, logo seriam utilizadas técnicas que prestigiam o processo justo e a participação democrática das partes. Porém, esta não é a visão de eficiência processual adotada no sistema processual brasileiro, devido aos vários motivos já elencados.
Sob a perspectiva quantitativa, preponderante no sistema processual brasileiro a eficiência se definiria em termos de velocidade dos procedimentos, baixos custos, deixando de lado a qualidade do sistema processual e a qualidade de suas decisões.[81]
O professor Paulo Cezar, afirmou com a plenitude e certeza que lhe é peculiar, que “O importante não é utilizar a técnica processual simplesmente para a produção de uma grande quantidade de sentenças, mas sim visar a qualidade delas, ou seja: produzir sentenças justas”[82].
Desta maneira a eficiência e celeridade tornam-se fins a serem alcançados pelo magistrado, cuja produtividade passa a ser cobrada, seja pelo conselho Nacional de Justiça, seja para fins de promoção na carreira, conforme artigo 93, II, ‘c’ da Constituição Federal. O magistrado, vendo-se, “soterrado”, “imobilizado”, cria mecanismos que facilitem sua empreitada.
Então surge uma das grandes violações à garantia de fundamentação das decisões judiciais, que sistemicamente afeta as demais garantias a ela correlacionadas. Trata-se da tendência a padronização de decisões, conforme afirma o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC 87.574/SP:
“A igualdade jurídica perante a lei não significa tratar todos da mesma forma, em todas as situações,desprezando as particularidades e especificidades das pessoas ou dos fatos; ao contrário, a padronização e a automatização das decisões,sem a devida individualização (da pessoa, da conduta e dos fatos que as cercam) é que macula o festejado princípio.”[83]
Na realidade, há o julgamento de teses e não da causa.
Uma verdadeira contradição a todo o processo evolutivo que conduziu à formulação de processo justo. Vive-se o processo justo na teoria, no mundo do dever ser, mas no mundo real vive-se uma afronta diária às garantias processuais, em nome de uma eficácia numérica, quantitativa, a seguir Carlos A. A. de Oliveira:
“A nosso entender a efetividade só se revela virtuosa se não colocar no limbo outros valores importantes do processo, a começar pelo da justiça, mas não só por este. Justiça no processo significa exercício da função jurisdicional de conformidade com os valores e princípios normativos conformadores do processo justo em determinada sociedade (imparcialidade e independência do órgão judicial, contraditório, ampla defesa, igualdade formal e material das partes, juiz natural, motivação, publicidade das audiências, término do processo em prazo razoável, direito à prova […] O que ponho em questão é a eficiência como fim, sem temperamentos, como meta absoluta, desatenta a outros valores e princípios normativos. O ponto é importante porque esses ditames axiológicos, além de se afinarem mais com a visão de um Estado democrático e participativo, poderão não só contribuir para a justiça da decisão como até para a própria efetividade”[84]. (grifos nossos)
Desconsidera-se a especificidade de cada caso. Especialmente, quando os tribunais, com vistas a uniformização da jurisprudência, criam teses que serão aplicadas indiscriminadamente a casos semelhantes, parecidos, mas não iguais[85]. Fere-se, frontalmente, a igualdade ao aplicar sentenças padronizadas ou “modelos” (facilmente perceptíveis na prática) a casos distintos.
A garantia processual de fundamentação das decisões judiciais é individual. Assim, distanciando das discussões sobre a inexistência e insuficiência da fundamentação, o certo é que cada caso individualizado merece uma análise individualizada.
No ordenamento jurídico brasileiro atual, sob a influência dos valores constitucionais, não se admite qualquer situação na qual sejam proferidas sentenças padronizadas, sem a necessária vinculação e relação entre a sentença proferida e a análise das questões de fato e de direito na causa discutida. A apelação abaixo transcrita vem reforçar o que até aqui se discute:
“1.A Meta 2, estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça, não constitui imposição ao magistrado de prolação de sentença, mas mera recomendação, sob pena de incorrer em inúmeras inconstitucionalidades formais e materiais.2. Decerto, a denominada Meta 2 do CNJ, à luz da garantia de duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, CRFB), preza a celeridade na tramitação dos feitos judiciais, não a extinção dos processos a qualquer custo.3. É inaceitável que tal ato sirva como subterfúgio para a prolação de sentenças padronizadas, destinadas apenas a diminuir o acervo do Judiciário, melhorando suas estatísticas, sem que se tenha verdadeira, adequada e eficiente prestação jurisdicional. 4. Inobservância da norma do §1º. do art. 267 do CPC. […] Nesse passo, não resta alternativa senão anular a sentença para determinar o prosseguimento do feito. Dou provimento ao recurso, na forma do art. 557, § 1º-A do CPC.”[86] (grifos nossos)
Ainda que as causas submetidas ao Judiciário fossem iguais, cada uma merece uma fundamentação que respeite as regras da Constituição e Código de Processo Civil, sob pena de grave violação à Constituição e suas normas.
Há uma verdadeira utilização mecânica de teses para bloquear o acesso à justiça, a exemplo dos artigos 285-A, 518, §1º do CPC. Na aplicação da tese não se busca a aproximação e comparação com o caso que a gerou, o chamado de paradigma,[87] assunto para outro estudo.
Entretanto, Barbosa Moreira atenta para um fato importante. A responsabilidade desta conversão negativa na aplicação do princípio da eficiência, atualmente aplicada sob o enfoque quantitativo e que aparenta simplesmente servir para aumentar a funcionalidade das Cortes, não é de responsabilidade privativa dos magistrados, que ferem princípios para simplesmente julgar, “exterminar”, processos com indiferença e objetivando apenas melhorar as estatísticas da Corte.
Em contraponto apresenta, o autor, as conseqüência do princípio do contraditório participativo para as partes e seus advogados, afirmando “À sociedade assiste o direito de cobrar do juiz uma participação mais efetiva no processo; corre-lhe, em contrapartida, o dever de colaborar, pelas vias ao seu alcance, para facilitá-la e estimulá-la.”
É certo que os advogados são de extrema importância para o desenrolar do processo, pois eles oferecem ao juízo a maior parte dos elementos que contribuirão para a formação de sua convicção e vários outros importantes para a construção da decisão. O advogado deve informar o juízo, evitar mecanismos protelatórios, proceder com ética e lealdade, conforme seu estatuto. O que o Barbosa Moreira pretende demonstrar é que a atuação do advogado pode interferir diretamente na ação do magistrado[88].
Há, inclusive, a possibilidade de se afirmar que o demandismo é fomentado por advogados que ignoram o dever de colaboração[89] e o fato de que todos os protagonistas devem atuar em franca colaboração, participando da “construção” da decisão que lhes atingirá, assim como do processo a ser desenvolvido[90].
Evitando entrar na seara de quem é o causador deste tormentoso dilema das decisões padronizadas – que em alguns casos não guardam qualquer pertinência com a causa ou que sequer apresenta fundamentos – é imprescindível buscar soluções que as combatam e lhes dispa do manto da arbitrariedade.
Fica uma última questão: haveria relação entre a violação do dever de colaboração pelas partes que, comumente, apresentam petições cujos arrazoados se alongam desnecessariamente, que misturam argumentos pertinentes e impertinentes, que invocam disposições legais e colacionam julgados sem importância para o caso, e a violação à garantia fundamental do dever de fundamentar as decisões judiciais nos termos acima expostos?
5. CONCLUSÃO
O desprezo à fundamentação das decisões judiciais e a inobservância do contraditório participativo, aumentam sensivelmente o número de casos resolvidos e processos julgados. Porém, pacificação social fica apenas no plano teórico.
A utilização mecânica e genérica de teses para casos simplesmente parecidos, apresenta-se como elemento de bloqueio ao acesso à justiça, violando flagrantemente a Constituição Federal e pondo em risco a garantia processual fiscalizatória da ocorrência de um processo justo, a garantia da fundamentação das decisões judiciais.
É inegável que nos dias atuais ignora-se tal garantia para exterminar rapidamente o acervo de processos e assim oferecer à justiça brasileira o título de justiça célere. O problema é que não há qualquer preocupação com a justiça realizada no caso concreto. Busca-se a celeridade e eficiência a qualquer custo, mesmo que isto signifique renegar garantias constitucionais.
São prejudicadas todas as demais garantias e inclusive a implementação, no Brasil, de uma Democracia Participativa efetiva e real, pois se os tribunais continuarem a julgar teses, nenhum poder de influência terá o indivíduo na decisão a proferida visto que esta partiu de uma hierarquização que imobiliza, em vários aspectos, o processo justo.
Talvez tudo isto seja o reflexo da ausência de uma teoria de precedente voltada para as peculiaridades da cultura brasileira. Os mecanismos oferecidos pelo sistema do Commom Law são imprescindíveis diante da sociedade massificada atual, entretanto, não se pode acatar, passivamente, a prática rotineira dos magistrados de padronizar decisões judiciais, sem considerar a ratio decidendi.
O processo justo somente será atendido quando as decisões judiciais considerarem todas as particularidades da causa, refletindo em sua fundamentação a observância de todas as garantias mínimas que o compõem.
Quanto a relação entre violação do dever de colaboração e a violação ao dever de fundamentar as decisões judiciais, há realmente uma relação. Pois a atuação advocatícia comumente conhecida como “método do conta-gotas” contribui em muito para a principal causa de violação ao dever fundamentar as decisões judiciais. Quanto maior o número de ações judiciais que subsistam alheias a todas as transformações analisadas neste trabalho, maior a mecanização e industrialização do Poder Judiciário.
Informações Sobre o Autor
Carla da Silva Mariquito
Mestranda em Direito Processual na UERJ, Advogada