O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e a atuação dos sujeitos processuais no contexto das demandas de massa

Resumo: O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas é um recente instrumento, trazido pelo Novo Código de Processo Civil, que objetiva solucionar os conflitos nascidos na sociedade moderna, em que as relações jurídicas sofrem processo de massificação. Embora o escopo do instituto seja resguardar a Isonomia através da aplicação de idêntica solução aos casos de mesma natureza, é certo que o magistrado deve individualizar as necessidades do caso concreto.

Palavras-chave: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Demandas de Massa. Caso concreto.

Sumário: 1. Introdução; 2. A tramitação do projeto do novo Código de Processo Civil; 3. Notas sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas; 4. Conclusão; 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tratará do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – que será denominado IRDR – como forma de reprimir a litigiosidade de massa – o que é uma tendência mundial na solução dos conflitos. Os meios processuais dedicados à solução dos casos repetitivos deixam clara a preocupação com a massificação contemporânea das relações jurídicas. O processo civil, em sua perspectiva tradicional, não se mostrava tão eficaz à luz da crescente complexidade da sociedade.

O processo civil brasileiro foi criado para tutelar os conflitos de natureza individual, evidenciando uma insuficiência nas questões coletivas atuais. Isso se dá pelo fato do processo e seu procedimento terem nascido visando uma ampla e completa cognição acerca das questões particulares, visando resolver cada caso concreto. Tornou-se necessária a adequação e a reinvenção do processo. Foi essencial, então, a criação de novos institutos e a adaptação dos já existentes, de modo a convergirem para o ideal de readaptação. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR foi um desses mecanismos, tendo sido criado para conter essas demandas marcadas pela repetitividade, e ganhando espaço no novo Código de Processo Civil de 2015, a partir do artigo 976.

Vejamos as lições de Antônio do Passo Cabral.

“A sociedade contemporânea trouxe a reboque a massificação dos conflitos de interesses e gerou, historicamente, uma preocupação do direito e do processo com a adaptação da técnica processual. Nesse diapasão, nas últimas três ou quatro décadas, proliferaram-se estudos sobre a tutela coletiva e os instrumentos processuais de proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Mais recentemente, até porque os mecanismos de tutela coletiva não foram eficazes em resolver o problema da quantidade de processos praticamente idênticos, muitos ordenamentos processuais, em vez de desenharem “procedimentos representativos”, com ficções legais no campo da legitimidade extraordinária e da coisa julgada, procuraram tratar o problema da litigância de massa por meio das “ações de grupo”, procedimentos de resolução coletiva ou agregada de processos sem as técnicas das ações coletivas.”[1]

Não há dúvida que as técnicas processuais diferenciadas devem conviver com as ações coletivas, que possuem fundamental papel para o ordenamento jurídico nacional. O Novo Código de Processo Civil repensou a estruturação dos mecanismos até então existentes para a solução das litigiosidades de massa que tratem das mesmas questões de direito.

A previsão legal de soluções para os processos coletivos, além de já ser realidade positivada no Código de Processo Civil de 2015, parece também refletir uma tendência inevitável na legislação futura.

Por consequência, torna-se fundamental a sua reflexão sobre a estrutura desses procedimentos e sobre sua aplicação na formação da jurisprudência.

2. A TRAMITAÇÃO DO PROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

O Novo CPC nasceu dos Atos n. 379 e 411, do Presidente do Senado Federal, que instituíram uma Comissão de Juristas, composta por 12 estudiosos, sendo presidente o Ministro Luiz Fux; e relatora a Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. Depois de amplo debate popular por intermédio de audiências públicas em todo o território nacional, o trabalho final da Comissão de Juristas foi transformado no PLS 166/2010, o qual obteve aprovação em 15/12/2010. Observando o rito legislativo, o texto aprovado seguiu à Câmara dos Deputados para tramitar sob a forma de PL 8.046/2010, o qual, por sua vez, foi aprovado, com alterações no texto original, em 26.03.2014. Retornou ao Senado Federal, como Substitutivo da Câmara dos Deputados ao PLS 166/2010, até ser aprovado em 17.12.2014. O novo Código de Processo Civil foi objeto de sanção presidencial em 16.02.2015, tornando-se a Lei 13.015/2015, publicada em 17.03.2015.

3. NOTAS SOBRE O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas busca garantir aos jurisdicionados a uniformização das decisões, fortalecendo a confiança no Poder Judiciário em razão da previsibilidade, de modo que o cidadão poderá pautar seu comportamento na solução dada a casos semelhantes.

Desse modo, o IRDR visa a resolução de questões de direito comuns a diversos processos, com o objetivo de, a partir de um qualificado debate, fixar uma tese jurídica que uniformizará o entendimento, e que será obrigatoriamente aplicada pelo tribunal que a fixou, e pelos Magistrados a ele vinculados.

Sobre o instituto, vejamos as lições do Ministro Luiz Fux.

“A sociedade contemporânea, com suas relações massificadas, acaba por produzir litígios de massa, os quais, não raras vezes, dão ensejo a uma multiplicidade de ações que têm por objeto circunstâncias fáticas ou fundamentos jurídicos idênticos, e que, por tais razões, podem ser consideradas como ações individuais homogêneas quanto à causa de pedir e o pedido”[2].

Em descompasso com os clamores sociais, passou-se a constatar cada vez mais a prolação de decisões judiciais discrepantes sobre idênticas situações, de modo a afrontar os Princípios da Isonomia e da Segurança Jurídica.

Ganha relevância, então, a figura do IRDR, que será instaurado a partir de uma ação individual que tenha por objeto uma questão jurídica repetitiva, ultrapassando os limites dos direitos subjetivos discutidos pelas partes no processo escolhido como paradigma.

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas poderá ser instaurado por petição feita pelas partes, pelo Ministério Público, Defensoria Pública, ou até mesmo pelo juiz ou relator. Em qualquer dos casos, deverá ser instruído com os documentos necessários à demonstração do preenchimento dos pressupostos para a instauração do incidente, tal qual reza o artigo 977, parágrafo único do Código de Processo Civil de 2015.

Nessa seara, cumpre dar destaque à atuação da Defensoria para manejar o IRDR. Isso ocorre em razão da ampla legitimidade coletiva reconhecida na ADI 3943, em que o STF decidiu que a legitimidade da Defensoria Pública para a atuação nas ações de tutela coletiva não deve ser restrita aos interesses dos necessitados sob o ponto de vista econômico. Com isso, o STF afastou a tese subsidiária do autor da ADI (CONAMP) no sentido de que deveria haver legitimidade na tutela coletiva restrita apenas à defesa dos direitos individuais homogêneos dos economicamente necessitados. Nessa oportunidade, a Ministra Relatora, Cármen Lúcia, ressaltou que a dificuldade de acesso à Justiça pelos grupos vulneráveis é uma das barreiras de implementação e efetivação da democracia. Afirmou, ainda, que o dever estatal de promover políticas públicas tendentes a reduzir ou suprimir essas enormes diferenças passa pela operacionalização dos instrumentos que atendam com eficiência a necessidade de seus cidadãos.[3]

No mais, é certo que o art. 134 da CR/88, ganhou nova redação com a Emenda Constitucional 80, de 2014. O dispositivo passou a prever:

“Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5o desta Constituição Federal”.

No que tange à legitimidade do Ministério Público, esta também advém de suas atribuições constitucionais, consoante art. 127 da Carta Magna.

“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”

A atuação dos magistrados na instauração do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas também é de especial relevância. Isso porque o julgador deve pautar sua atuação na necessidade de respeito aos direitos e garantias não apenas das partes, mas, também, da sociedade como um todo. Desse modo, caso haja risco à isonomia e à segurança jurídica, é possível que o magistrado dê início ao IRDR. A jurisdição não mais se coaduna com ideais simplesmente individualistas. Esta afirmação é depreendida do art. 139, X, do CPC, que elenca como atribuição do magistrado o dever de oficiar o Ministério Público e a Defensoria Pública quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas.

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas visa garantir aos litigantes maior celeridade no julgamento de seus casos, bem como segurança jurídica, uma vez que a decisão do IRDR deve ser replicada aos demais processos, reduzindo, dessa forma, decisões contraditórias em questões semelhantes. Para garantir o conhecimento da decisão por todos os interessados, o Código estipula a sua divulgação, a partir do artigo 979:

“Art. 979. A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça.

§ 1o Os tribunais manterão banco eletrônico de dados atualizados com informações específicas sobre questões de direito submetidas ao incidente, comunicando-o imediatamente ao Conselho Nacional de Justiça para inclusão no cadastro.

§ 2o Para possibilitar a identificação dos processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro eletrônico das teses jurídicas constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os dispositivos normativos a ela relacionados.

§ 3o Aplica-se o disposto neste artigo ao julgamento de recursos repetitivos e da repercussão geral em recurso extraordinário.”

Outra vertente relevante – mas pouco explorada pelo CPC – diz respeito à escolha da causa que servirá de paradigma para a solução as mencionadas “idênticas questões de direito”, tendo sua solução reproduzida nos demais processos. Foi preciso, portanto, o estabelecimento de determinados critérios aptos a direcionar a escolha da causa que melhor represente aquelas que aguardam julgamento. Inicialmente, é necessário que a causa objeto de julgamento seja apta a esgotar o debate (ainda que em tese), apresentando todos os pontos de vista potencialmente discutíveis nos processos repetitivos. A clareza da exposição dos argumentos também deve ser levada em conta, pois possibilita que a cognição pelo julgador se dê por meio de análise qualitativa das razões trazidas pelas partes.

A fim de ampliar a visão dos julgador e pluralizar o debate, o Novo Código de Processo Civil previu uma série de instrumentos, que, por sua natureza, tornam a decisão mais sensível às necessidades sociais.

Primeiramente, ressalte-se a atuação do “Amicus Curiae” – havendo, inclusive, possibilidade de manejo de recurso por este ente. Percebe-se que a legitimidade recursal do “Amicus Curiae” é excepcional e apenas existente na hipótese ora tratada – o que denota a relevância do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas como mecanismo de garantia de segurança jurídica e de coesão das expectativas coletivas.

“Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.

§ 3o O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.”

O capítulo VIII do Novo Código de Processo Civil regulamenta o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, e reitera, no artigo 983, a atuação dos diversos agentes auxiliares da discussão no feito em pauta.

“Art. 983. O relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida, e, em seguida, manifestar-se-á o Ministério Público, no mesmo prazo”.

Houve, também, no parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, a previsão de realização de audiências públicas – para as quais a sociedade civil é convidada a participar.

“Art. 983. § 1o Para instruir o incidente, o relator poderá designar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria.”

Insta asseverar que embora a lei dite o termo “poderá”, trazendo a ideia de que a designação da escuta pública é uma faculdade do julgador, os princípios democráticos determinam a superação da literalidade da norma escrita, sendo, portanto, imperiosa sua realização.

4. CONCLUSÃO

Em paralelo às inovações legislativas que apontam para um Direito preocupado com os reflexos que causa na sociedade, é necessário, também, promover a conscientização dos sujeitos processuais acerca da necessidade de ultrapassar as fronteiras da demanda em questão. É certo que, embora o conceito de “Justiça” seja objeto de controvérsia desde os primórdios da organização jurídica da sociedade, trata-se de um ideal a ser perseguido. Qualquer que seja a acepção a ser adotada, é indiscutível que não se coaduna com a possibilidade de haver decisões distintas/antagônicas para casos semelhantes. Alinhando-se a essa perspectiva, a exposição de Motivos do Novo Código de Processo Civil assim dispôs:

“Por outro lado, haver, indefinidamente, posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas, tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos.

Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade.”[4]

O surgimento de técnicas processuais de julgamento de questões jurídicas análogas enseja o sentimento de confiança do jurisdicionado no sistema de justiça, pois fortalece a certeza de que haverá uma solução previsível, e livre de arbítrios pessoais do julgadores. Ocorre que não podemos perder de vista a ideia de que o Direito não é uma ciência exata, de modo que ao magistrado cabe a função de perceber as nuances do caso concreto, sensibilizando-se com os traços que distinguem a demanda em julgamento das demais que lhe são semelhantes – daí porque a decisão judicial não é um documento pronto e alheio às necessidades individuais dos que estão a ela submetidos.

 

Referências
FUX, Luiz (coord.). O novo processo civil brasileiro. Direito em expectativa (reflexões acerca do Projeto do novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
CUNHA, Leonardo Carneiro. “Anotações sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no Projeto do novo Código de Processo Civil”.
TEMER, Sofia. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Editora JusPodivm, 2016.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – Lei 13105/2015. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2015.
CABRAL, Antônio do Passo. “A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos” Revista de Processo | vol. 231/2014 |.
 
Notas
[1] CABRAL, Antônio do Passo. “A escolha da causa-piloto nos incidentes de resolução de processos repetitivos” Revista de Processo | vol. 231/2014 | p. 201 – 223

[2] FUX, Luiz (coord.). O novo processo civil brasileiro. Direito em expectativa (reflexões acerca do Projeto do novo Código de Processo Civil (LGL19735)). Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 22.


Informações Sobre o Autor

Renata Moura Tupinambá

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes aprovada nos concursos públicos para o cargo de analista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e defensor público do Estado da Bahia


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