Sumário: Introdução. 1. A relação entre processo e verdade: a verdade obtenível no processo; 1.1. Crise de verdade: a verossimilhança como medida da falibilidade do conhecimento humano; 1.2. Thema probandum. 2. Diálogo judicial e colaboração; 2.1. O direito à prova no processo civil e o perfil da atuação do juiz; 2.1.1. Fixação dos fatos a provar; 2.1.2. Produção das provas; 2.1.3. Valoração das provas; 2.2. O papel das partes; 2.2.1. Deveres em matéria probatória; 2.2.2. Novas tendências: apreciação do comportamento processual e dinamização do ônus da prova. 3. Conclusões.[1]
Introdução
O Rabi quis antever: “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque estes serão saciados”.[2] A promessa é ora transformada em direito fundamental, garantido pelas mais diversas cartas de declarações do mundo. Assim, o Estado brasileiro, pretendendo garantir que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”,[3] assumiu o dever de prestar eficazmente a jurisdição, dotando-se de meios materiais e humanos para garantir o gozo do direito pela parte que tem razão.
A solução remete ao contido na Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, subscrita em 1950, cujo item 1 de seu artigo 6º preconiza que “toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada eqüitativa e publicamente num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial instituído por lei…”.[4] Remete também à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de que o Brasil é signatário,[5] cujo item 1 do artigo 8º praticamente repete o texto da Convenção Européia.[6] Emprestando-se a tais declarações a conotação mais ampla possível para envolver as variadas espécies de interesses substancialmente previstos,[7] exige-se do Estado instrumento compatível com a premência da tutela jurisdicional.
Para atender a essa promessa, diz-se que o processo judicial – e aos limites deste trabalho interessa o processo civil – é o instrumento estatal destinado a, pelo conhecimento da verdade dos fatos, oferecer aos jurisdicionados a “justa composição da lide”[8] pela heterocomposição e imposição de regra de conduta. Revela-se aí a função distributiva do processo civil enquanto instrumento de acesso à justiça, isto é, “instrumento de acesso à ordem jurídica justa”.[9]
Todavia, os fatos só têm sentido no processo se a linguagem empregada para sua descrição estiver não apenas materialmente perfeita (linguagem escrita), mas também formalmente correta (linguagem provada). Nesse sentido, revelam-se de nuclear importância as provas, dando vida ao processo e justificando, na tutela de conhecimento, a opção da proteção jurídica estatal a uma ou a outra das partes envolvidas no litígio submetido à sua apreciação. Ter direito e não ter meio de prová-lo é processualmente quase como não o ter, decorrendo daí a sempre atualidade da lição segundo a qual “el arte del proceso no es esencialmente otra cosa que el arte de administrar las pruebas”.[10]
Além de histórico, reside ínsito à prova no processo civil o caráter argumentativo, sendo necessária:
“l’attenzione sull’esistenza di una concezione classica della prova come argumentum, e sull’esistenza di una logica del probabile e del verosimile, legata alle tecniche di una ratio dialectica, ed all’idea di una verità probabile, construita in relazione alle tecniche ed alla problematica del processo.”[11]
Nessa ordem de idéias, o resultado do processo civil só tende a ser equo e giusto se no seu iter for alcançado um optimum de reconstituição e apreciação dos fatos, isto é, se 1) puderem ser propostas, admitidas e produzidas todas as provas aptas a ensejarem o convencimento do julgador, e 2) se este as valorar adequadamente. Eis então a relação entre verdade e distribuição de justiça: “a verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena”.[12]
Já no campo da tutela executiva, a eficácia do processo é mensurada pela capacidade de produzir o resultado equivalente ao da observância voluntária da regra de conduta, importando ao Estado a satisfação completa do interesse tutelado pelo ordenamento, mas não se obnubila tampouco aqui a importância das provas. A tal propósito, é suficiente a noção de que tutela com tal feição só pode ser exercida com base em pressuposto específico documental: o título. É o brocardo nulla executio sine titulo,[13] que, desatendido, conduz à nulidade do processo.[14] [15]
À obtenção da verdade no processo civil concorrem, porém, limites ditados pela natural falibilidade do conhecimento humano, pelo thema probandum (há fatos que são irrelevantes, incontroversos, impertinentes ou mesmo de impossível reconstituição)[16] e pela admissibilidade da prova.[17] Tais limites, impostos naturalmente ou pelo próprio ordenamento jurídico, acabam-se revelando entraves à reconstrução dos fatos.
Vinculados a esses lindes, outros há ditados pela postura dos sujeitos processuais, em resistências que decorrem, ora de fatores internos, como desconhecimento, má fé ou direitos da personalidade, ora de fatores externos, como acúmulo de serviço ou falta de condições de trabalho.[18] Estabelecer os parâmetros de atuação de tais sujeitos em relação às provas no processo civil – especialmente a partir do dever genérico de colaboração – é o objetivo precípuo deste trabalho, para o que se utiliza o método hermenêutico, fixando, ao longo do texto, premissas com implicações concretas na atividade dos sujeitos principais do processo civil.
1. A relação entre processo e verdade: a verdade obtenível no processo
A idéia de verdade ocorre freqüentemente nas reflexões humanas sobre a linguagem, o pensamento e a ação, ultrapassando, pois, o linde estritamente jurídico.[19]
Não se hão de exaurir aqui noções epistemológicas nem filosóficas como a metafísica idealista defendida por Kant[20] ou a eticidade proposta por Hegel,[21] bastando mencionar, aos efeitos do trabalho, que a tutela jurisdicional prestada pelo Estado sempre teve como pressuposto tradicional, haurido do racionalismo cartesiano, a verdade, a razão, a assistir a parte tutelada. Nesse sentido, o conhecimento é identificado com a verdade: “o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão”.[22] Esse é o motivo por que se alude a que “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos (…) são hábeis a provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou defesa”.[23]
Neste momento, importa estabelecer a importância da conduta dos sujeitos processuais à obtenção dessa “verdade”, isto é, à busca da prova dos fatos que constituem o thema probandum.
1.1. Crise de verdade: a verossimilhança como medida da falibilidade do conhecimento humano
Dados os limites à reconstrução de fatos pretéritos, o discurso judicial não pode alimentar a esperança de obtenção da verdade absoluta, livre de vícios ou imperfeições. Esse é o primeiro óbice enfrentado na instrução da causa, e decorre do abandono da ilusão liberal individualista. Com efeito:
“Los predicados “verdad” y “falsedad” no pueden ser atribuídos a las normas del Derecho, ni tampoco a los programas de Derecho ideal. Las reglas jurídicas, positivas o ideales, no son ni verdadera ni falsas. Las reglas jurídicas no pueden ser juzgadas desde el punto de vista de la verdad o falsedad. Pueden y deben ser enjuiciadas desde los ángulos de otros valores: justicia, dignidad de la persona humana, criterios de libertad, de igualdad ante el Derecho, de igualdad de oportunidades, de servicio al bienestar general, de adecuación a las circunstancias, de eficacia, etc.”[24]
A idéia implica a derrocada dos padrões rígidos adotados desde a promulgação do Código Civil Francês (também conhecido como Código Napoleônico), em 1804, a partir do que a aplicação do Direito passou a ser vista como procedimento meramente lógico-formal por dogma de subsunção.[25] A insuficiência desse paradigma é notória porque a aplicação do direito, enquanto decisão jurídica de conflitos sociais, não pressupõe apenas um raciocínio de índole formal, fundado na Lógica Clássica;[26] pelo contrário, encontra-se intimamente vinculada a discursos que articulem valores, que não se confundem com evidências racionais ou empíricas (pressupostos básicos da aplicação do raciocínio silogístico dedutivo ou indutivo), o que faz sobrelevar a importância da argumentação.[27]
Deve-se discutir, isto sim, sobre uma lógica do razoável,[28] “sull’esistenza di una logica del probabile e del verosimile, legata alle tecniche di una ratio dialectica, ed all’idea di una verità probabile, construita in relazione alle tecniche ed alla problematica del processo”.[29] Daí a arguta advertência segundo a qual “les vérités historiques ne sont que des probabilités”.[30]
Nesse contexto, a retórica assume papel primordial enquanto processo argumentativo que, ao articular discursivamente valores tem por objetivo a persuasão dos destinatários da decisão jurídica quanto à razoabilidade da interpretação prevalecente. Relembra-se a propósito da recuperação aristotélica feita por Chaïm Perelman e por Lucie-Olbrechts Tyteca, para quem a finalidade da argumentação é provocar ou acrescer a adesão dos espíritos às teses que se apresentam ao seu assentimento,[31] pacificando o sozial Übel.[32]
Esmaece também o brilho da distinção entre verdade real e verdade formal, que de todo modo careceria de lógica. A busca da verdade real pelo juiz tornou-se impraticável visto que essa verdade diz respeito a fatos passados que são reconstituídos indiretamente no processo,[33] numa estrutura social hodierna muito mais etérea e baseada em relações de massa. Avultam noções indeterminadas de conceitos jurídicos tais como boa fé e risco, e crescem os litígios supra-individuais, dificultando ou mesmo impedindo o resgate pelo julgador.[34]
Tem-se, portanto, que a aspiração máxima do processo é a reconstrução fática verossímil, com caráter de suficiência a embasar o juízo.[35] Identifica-se o fenômeno com a chamada verossimilitude, conjectura sobre base físico-corroborativa conforme a lição de Karl Popper,[36] obtendo-se uma certeza clarificada na sentença eis que, na síntese feliz de Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, “a certeza do juiz é a verdade do processo”.[37]
1.2. Thema probandum
À natural possibilidade de incorreção da reconstrução fática somam-se obstáculos havidos do thema probandum.[38] Alguns fatos, porque impertinentes, irrelevantes (são pertinentes e relevantes os fatos “em que se funda a ação ou defesa”)[39] ou incontroversos (dispensa-se a produção de provas de fatos “admitidos, no processo, como incontroversos”)[40], revelam-se contemporâneos ao juízo de sua admissão no processo. Já outros se revelam de aferição impossível mesmo depois de esgotadas as providências dos sujeitos processuais, restando a dúvida invencível autorizadora da aplicação do ônus da prova, tomado no caráter que lhe é peculiar (objetivo).[41]
Da impertinência, irrelevância ou incontrovérsia do fato (logo, falta de questão) decorre a inutilidade da produção da prova, apresentando-se como limite do próprio direito a tanto.[42] Compatibilizar a instrução da causa com a economia processual[43] é dever do juiz: “caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias”.[44] Assim, verificada a inexistência de objeto de prova (o que exige fundamentação adequada),[45] revela-se necessário dispensar sua produção.
Em ambas as hipóteses, as restrições são dadas pelo princípio dispositivo, o qual se liga à conduta dos sujeitos processuais e é por elas balizado. Com efeito, a determinação das questões de fato deriva, de modo geral, do cotejo da causa de pedir remota (causa petendi remota), isto é, dos fatos minudenciados pelo autor[46] com os apresentados pelo réu.[47] Vincula-se o juiz a tais fatos,[48] apenas não se agrilhoando aí a subsunção dos fatos à norma jurídica (causa petendi proxima).[49]
De outra sorte, os fatos vinculam-se à admissibilidade de sua prova no ordenamento jurídico, tendo como limites nesse sentido a licitude, a legitimidade e a constitucionalidade do método de sua obtenção.[50]
A existência de tais limites, porém, não autoriza desilusão nem inércia dos sujeitos processuais. Não se deve renunciar à busca da verdade porque tal busca é inerente à função social do processo, daí ganharem especial relevo a dialética e o contraditório concretizados pelo diálogo no processo. É o que se procurará demonstrar no item seguinte.
2. Diálogo e colaboração
A plausibilidade no uso da linguagem jurídica apropriada é obtida através da participação dos sujeitos do processo. Etimologicamente, participar significa tomar uma parte (do latim partem capere), daí ser possível referir também que a relação jurídica processual impõe às partes (autor e réu) que participem concreta e ativamente do processo, cada qual com o seu fenômeno causal, a fim de que o juiz possa formar convencimento – e portanto certeza – da verossimilhança dos fatos apropriados. Autor e réu têm parte do todo concretizado pelo juiz em sua sentença, o que é feito mediante um movimento de superação do momento imediato, pré-compreensivo.[51] Reside aqui a função democrática do diálogo processual, corrigindo constantemente a visão imperfeita que o julgador e as partes podem ter acerca do thema probandum e até mesmo do direito aplicável à causa.
Como mencionado alhures,[52] os eflúvios trazidos pela lógica jurídica contemporânea recuperaram o ars dissedendi, isto é, a noção retórica que acompanha o processo, especificamente pelo contraditório. “Non è la logica che controlla il dialogo ma il dialogo che corregge continuamente le logiche”,[53] resgatando-se aqui seu valor perdido na transição dos séculos XVIII e XIX.
Tende-se a aceitar a ética do discurso já que:
“O mundo como síntese de possíveis fatos só se constitui para uma comunidade de interpretação, cujos membros se entendem entre si sobre algo no mundo, no interior de um mundo de vida compartilhado intersubjetivamente. “Real” é o que pode ser representado em proposições verdadeiras, ao passo que “verdadeiro” pode ser explicado a partir da pretensão que é levantada por um em relação ao outro no momento em que assevera uma proposição”.[54]
Nesse sentido, adotando-se uma visão dinâmica do processo, compreende-se que o mesmo é relação jurídica impulsionada em um procedimento.[55] Haure-se daí o conjunto de situações jurídicas que envolvem partes e juiz,[56] coordenando suas atividades com vistas à obtenção da tutela jurisdicional, o que só ganha relevo se legitimado em contraditório, isto é, se lhe for inerente o diálogo. Ocorrido isso, justifica-se o provimento e confortam-se os jurisdicionados.[57]
Como conseqüência, reforça-se a importância das regras de conduta dos sujeitos processuais, sobrelevando as situações de deveres (de facere ou non facere, fazer ou não fazer), dotadas de exigibilidade pelos respectivos titulares dos direitos subjetivos, em detrimento das de ônus, incoercíveis porque lícitas dentro da esfera de potestatividade do seu titular.[58] Isto é: dentro dessa nova perspectiva de formalismo equilibrado, avulta a idéia do dever genérico de colaboração entre juiz e partes, a permear toda a instrução probatória. A reconstrução dos fatos será tanto mais próxima da verdade quando maior e mais responsável for a participação dos sujeitos processuais, não se admitindo mais o processo como coisa das partes (Sach dei Parteien).[59] [60]O fundamento e os reflexos da divisão de tarefas assim modelada indicam-se a seguir.
2.1. O direito à prova no processo civil e o perfil da atuação do juiz
O direito fundamental ao due process of law[61] contém, no bojo da ampla defesa, o direito à amplitude da produção de provas.[62] “Diritto processuale è diritto costituzionale applicato”.[63] É nesse sentido, aliás, que se fala em um direito constitucional à prova no processo civil, cujo conceito pode ser haurido de Michele Taruffo: “il diritto alla prova, in quanto elemento del diritto d’azione e di difesa, può essere definito come il diritto della parte di impiegare tutte le prove di cui dispone, al fine di dimostrare la verità dei fatti che fondano la sua pretesa”.[64]
A idéia não é nova:
“… se lo scopo del diritto di azione e di difesa è, come abbiamo notato in precedenza, quello di dare all’interessato una adeguata opportunità di incidere sullo svolgimento e sull’esito del giudizio, sembrerebbe evidente che il concreto esercizio di questo diritto sia essenzialmente subordinato alla effettiva possibilità di rappresentare al giudice la realtà dell’evento posto a fondamento della domanda o dell’eccezione, vale a dire alla possibilità di servirsi degli appositi strumenti, le prove, con cui si cerca di verificare quel dato avvenimento.”[65]
No direito pátrio:
“… apesar de a maioria dos textos não fazer referência expressa a outros meios de prova, deve-se entender que a enumeração não é exaustiva, abarcando todos os instrumentos probatórios idôneos a influenciar no convencimento do juiz. Portanto, o que se pretende assegurar é o direito ao processo justo, com a possibilidade de utilização de todos os meios necessários para a concretização da justiça da decisão. Garante-se, destarte, o princípio do fair trial, que contém o direito de as partes obterem, em igualdade de posições, todas as oportunidades suficientes e apropriadas de tomar posição em relação aos fatos relevantes para o julgamento da causa.
Com efeito, por força do art. 5º, § 2º, da CF, é possível sustentar que o direito à prova não é apenas uma decorrência das garantias constitucionais da ação, da ampla defesa e do contraditório, mas, após a ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, também uma regra de direito positivo, que integra o catálogo dos direitos fundamentais e deve ser interpretada com a finalidade de assegurar a máxima realização da justa tutela jurisdicional.”[66]
Logo, quando se fala em direito à prova no processo civil, está-se a dizer que as partes têm direito à:
a) proposição e admissão das provas dos fatos componentes do thema probandum;
b) produção das provas necessárias à reconstituição da tendência à verdade histórica dos fatos componentes do thema probandum,[67] com fiscalização e acompanhamento pessoal ou profissional;
c) por fim, adequada apreciação dos fatos e das provas pelo Estado-juiz no momento da sentença.
A tais direitos correspondem os deveres do julgador, em matéria probatória,[68] minudenciando-se-os abaixo.
2.1.1. Fixação dos fatos a provar
A proposição e a admissão de provas, pelos meios não proibidos ou pelos previstos em lei nos casos em que a cognição é limitada pela natureza do fato,[69] tem limite efetivo na sua relevância: “in linea di principio, il solo limite che si può porre alla deduzione probatoria delle parti deriva dalla regola sulla rilevanza della prova”.[70]
À idéia é subjacente o primeiro dever judicial nesta senda: a fixação dos fatos a provar. Atendendo à máxima de disposição (Verhandlungsmaxime) preconizada pela litiscontestatio, o juiz, em atuação supletiva às partes, deve identificar, dentro do objeto do processo, os pontos controvertidos de fato (questões), identificando, por conseqüência, os meios existentes para a prova dos mesmos.
Enquanto para as partes o momento próprio para a proposição das provas corresponde, em regra, à sua primeira manifestação,[71] para o juiz, em homenagem às premissas que se estão fixando, bem como em atenção à oralidade, tal atividade exerce-se na audiência preliminar no procedimento ordinário segundo a regra cogente de que, “se, por qualquer motivo, não for obtida a conciliação, o juiz fixará os pontos controvertidos, decidirá as questões processuais pendentes e determinará as provas a serem produzidas, designando audiência de instrução e julgamento, se necessário”.[72] No procedimento sumário, a atividade desenvolve-se durante a audiência de conciliação.[73] [74] A idéia deita reflexos também na atribuição da responsabilidade pelo aporte dos meios de prova, como se verá adiante.[75]
É bem verdade que não é esse o vezo atual; seja por falta de prévio estudo da causa (justificada, em alguns casos, pela real sobrecarga dos órgãos judiciários), seja por lassidão (ou, quando menos, por ojeriza ao contato pessoal), juiz e mesmo partes fomentam a omissão quanto ao julgamento conforme o estado do processo,[76] que indica o momento propício ao cumprimento do dever ora alvitrado.
Resultam daí paliativos consagrados na prática forense que denotam a má compreensão do fenômeno. Tal é o que ocorre na primeira situação, quando, após as providências preliminares, as partes são intimadas de olímpico despacho para “indicação de provas que desejam ver produzidas”, por uma interpretação permitida hoje pelo § 3º do artigo 331 do CPC, de valor assaz discutível (há na regra como que uma presunção implícita, pelo julgador, da impossibilidade de conciliar as partes, relegando a tentativa – em muitos casos apenas formal – à audiência de instrução e julgamento, nos termos dos artigos 447 a 449 do CPC).
Na segunda hipótese, não é difícil notar quando o diálogo processual fica deturpado em jogo de tênis de mesa (vulgo pingue-pongue) de escritos, com sucessivas e intermináveis trocas de intimações dos tipos “diga o autor” e “diga o réu”, especialmente com proposições de prova documental, sem solução, nem quanto à prova, nem quanto à lide.[77]
A regra, evidentemente, não é absoluta: o juízo feito em determinado momento processual não impede os sujeitos processuais de modificarem posteriormente a noção tida acerca das questões de fato, autorizando igualmente o juiz a admitir a produção de prova não admitida ou mesmo não proposta em época própria, daí o dizer-se que a este primeiro momento sucede outro: a produção da prova admitida.
2.1.2. Produção das provas
Ressalta-se, como premissa, que:
“… punto fondamentale è che il diritto alla prova, inteso come diritto delle parti di dedurre tutte le prove rilevanti a loro disposizione, non implica che solo alle parti spetti l’iniziativa probatoria: altro è invero il diritto delle parti di “difendersi provando”, alto la possibilità che il giudie disponga l’acquisizione di prove d’ufficio. (…) È invero evidente che il diritto delle parti alla prova non significa monopolio esclusivo delle parti sulle prove, e quindi non implica l’esclusione di autonomi poteri istruttori del giudice.”[78] [79]
A iniciativa instrutória é flexibilizada pela inexistência de preclusão pro iudicato em nome do superior interesse na justiça concreta da decisão:
“… le decadenze, che a carico della parte conseguono al mancato tempestivo esercizio dell’attività, non vietano al giudice di svolgere, mediante interventi spontanei o stimolati dalle stesse parti, un ruolo di suplenza, che la legge gli attribuisce entre limiti più o meno ampi e può esercitarsi con suficiente discrezionalita per la più idonea preparazione della causa, e quinde non “a favore” della parte inattiva, ma nel superiore interesse della sostanziale giustizia della decisione.”[80]
Na relação entre a preclusão e o direito à prova, a primeira serve ao desenvolvimento do processo, mas não pode servir como obstáculo à ampla defesa:
“Le principali espressioni di tale diritto (o autor refere-se ao direito à prova), che possono vedersi coinvolti nella verifica di compatibilità costituzionale dei sistemi di preclusione o di decadenza, sono le seguenti:
1) il diritto di produrre e di diedurre tutte le prove (anche quelle che si trovino nella disponibilità della controparte o di un terzo), la cui acquisizione e la cui assunzione occorrano per comprovarei l fondamento delle proprie allegazioni;
2) il diritto alla prova contraria, vale a dire il diritto di dedurre o di produrre tutte le prove che servano a dimostrare il contrario di ciò che la contraparte allega e intende provare;
3) il diritto di far effettivamente assumere tutte le prove che siano state dedotte ed ammesse (salvi restando i controlli del giudice sull’ammissibilità, sulla rilevanza, sulla superfluità o sull’applicabilità di determinate regole di esclusione);
4) il diritto alla motivazione sulla prova e sui criteri di selezione o di valutazione, adottati dal giudice nella decisione sulla controversia concreta.
Ciascuno di questi profili è, dunque, meritevole della più attenta considerazione, non potendo mai essere irragionevolmente compresso (o addirittura sacrificato), sia pur di fronte alle esigenze pubblicistiche dell’‘ordine’ o dell’‘accelerazione’ del processo.”[81]
Deve-se superar a visão do juiz inerte, passivo, transformando-o num sujeito ativo ao lado das partes para a reconstrução dos fatos.
“Tradicionalmente, a relação entre as partes e a prova tem sido tratada pela doutrina processual em termos de ônus, o que corresponde a uma ótica que se pode afirmar negativa da questão, pois ao litigante que tinha o encargo de provar e não o fez são atribuídos os riscos da falta de prova no julgamento da causa.
Essa colocação, que, segundo Verde, é própria do formalismo positivista, traz consigo a idéia de que o processo constitui mero instrumento de pacificação dos conflitos, sem se importar com uma correta reconstrução dos fatos; assim, revela-se absolutamente insatisfatória e inadequada à moderna concepção de processo justo….”[82]
Com efeito, ao juiz, enquanto diretor do processo, coloca-se o dever de investigação oficiosa do thema probandum, cujo cumprimento exigirá a colaboração da parte ou de terceiros para subministrar o meio de prova.[83] Nessa senda, destacam-se, por exemplo:
a) a ordem para comparecimento e interrogatório das partes;[84]
b) a ordem para depoimento pessoal;[85]
c) a exibição de documentos que esteja em poder da parte[86] ou de terceiro;[87]
d) a requisição de informações a órgãos públicos e também privados;[88]
e) a inquirição de testemunhas referidas e a acareação entre estas ou entre estas e as partes;[89]
f) a realização de perícia[90] ou inspeção.[91]
A par do que se considera um equívoco conceptual em relação ao alcance do princípio dispositivo,[96] à restrição há inescondível argumento prático ditado pela idéia de que o processo deve andar para a frente e não para trás.[97] Isso não convence porque não se há de obnubilar a garantia maior do due process of law, orientada pela busca da verdade independentemente de preclusão para as partes,[98] cujos lindes para atuação, aumentados mesmo em sistemas como o da common law (onde tradicional o cross-adversary system),[99] estão apenas na novidade do fato[100] ou na lealdade do seu desconhecimento anterior.[101]
Da iniciativa oficial em matéria probatória não se dessume autorização para relegar o contraditório a segundo plano. Pelo contrário, a legitimidade da iniciativa instrutória está condicionada ao contraditório.[102] As partes hão de ter o controle do procedimento da produção da prova, ainda que a posteriori como ocorre nas hipóteses – excepcionais – de medidas inaudita altera pars,[103] porque repugna ao direito processual civil moderno a idéia de provas secretas nos termos do sistema inquisitorial medieval.[104]
Observar o contraditório nesse iter, inclusive com a comunicação aos procuradores das partes,[105] é tão caro ao ordenamento processual que sua falta anula o processo desde então,[106] tal como já se pronunciou a jurisprudência:
De outro lado, do direito à produção das provas decorre também o direito à prova contrária. Expressão do princípio da isonomia material,[108] em termos de paridade de armas (Waffengleichheit), o contraditório exige aqui a oportunidade de manifestação da parte sobre a prova proposta pela outra e admitida pelo julgador, ensejando a proposição e igual admissão de outras provas a lançarem a dialética para a síntese fática buscada na causa.[109]
2.1.3. Apreciação das provas
A expressão derradeira do direito à prova no processo civil consiste na adequada apreciação das provas, a permitir o controle da motivação extrínseca do discurso da sentença.
Com efeito, além do dever de motivação ínsito a qualquer provimento,[110] a apreciação das provas, dita “livre”,[111] implica padrão razoável e convincente dentro das expectativas sociais, a teor do sistema codificado e do Estado Democrático de Direito, permeado por checks and balances (freios e contrapesos):[112]
“…tem-se como exigência fundamental que os casos submetidos a juízo sejam julgados com base em fatos provados e com aplicação imparcial do direito vigente; e, para que se possa controlar se as coisas caminharam efetivamente dessa forma, é necessário que o juiz exponha qual o caminho lógico que percorreu para chegar à decisão a que chegou. Só assim a motivação poderá ser uma garantia contra o arbítrio. (…)
Para o direito é irrelevante conhecer dos mecanismos psicológicos que, às vezes, permitem ao juiz chegar às decisões. O que importa, somente, é saber se a parte dispositiva da sentença e a motivação estão, do ponto de vista jurídico, lógicos e coerentes, de forma a constituírem elementos inseparáveis de um ato unitário, que se interpretam e se iluminam reciprocamente.”[113]
A liberdade conferida ao órgão judicial no Direito brasileiro é diretamente correspondente à confiança que se lhe deposita.[114] No entanto, se de um lado liberta-o de maneira geral das amarras da prova legal ou tarifada (basta lembrar que a própria confissão não constitui prova plena do fato confessado), de outro exige-lhe consciência da relevante função social que desempenha, não se lhe permitindo expressões lacônicas dos tipos “o documento é imprestável”, “o depoimento pessoal não é suficiente para embasar um juízo de certeza” ou “ausentes provas, julgo (im)procedente a demanda”.
É dever do julgador, pois, explicitar adequada e suficientemente as razões de decidir, cotejando as provas produzidas sob pena de nulidade,[115] como já se detectou em vários precedente de que é exemplo o seguinte:
O limite para tanto é jurídico, que a partir da verossimilhança chega à certeza judicial: as motivações de ordem pessoal, se não podem ser perscrutadas, também não devem ser sobrelevadas pelo julgador sob pena exatamente de configurar arbítrio porque insuscetível de controle.[117] O limite dado pelas regras de experiência não alcança o conhecimento privado do juiz:[118]
Logo, controla-se o provimento pela retórica de que se constitui.
2.2. O papel das partes
Ao lado do juiz, deontologicamente, as partes, ainda que contrapostas, dividem tarefas de colaboração no processo. Devem atuar com probidade, sem meios escusos ou ilícitos, porque o processo não pode ser uma arena de surpresas nem o duelo judiciário, eminentemente dialético, como se disse acima, uma emboscada.[120] À liberdade na atuação da parte corresponde sua responsabilidade, daí que “maior será a responsabilidade quanto maior for a liberdade, porque não há liberdade sem responsabilidade”.[121]
O dever de lealdade processual, haurido da probidade,[122] implica a submissão da parte ao interesse maior do Estado na reconstrução dos fatos.[123] Assim ocorre com a veracidade (Wahrheitspflicht e não Wahrheitslast, como pretendia Wieczorek):[124] a parte, quando tergiversa, sustenta teses infundadas ou ainda mente no processo, desrespeita diretamente o Estado. Por isso, o Código de Processo Civil brasileiro adotou regras de cumprimento específico, sendo “deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade; II – proceder com lealdade e boa-fé”.[125]
Ou seja:
“se existe uma comunidade harmônica de trabalho entre as partes e o Juiz (Tribunal) não pode este ser dolosamente enganado pelos litigantes, daí decorrendo a necessidade da lei processual impor determinado comportamento para as partes – de acordo com a verdade subjetiva, – no processo civil.”[126]
Por isso, admite-se a exegese da conduta das partes como dever, cujas sanções se estabelecem diretamente no campo probatório. É o que se identifica a seguir.
2.2.1. Deveres em matéria probatória
De forma exemplificativa, o Código de Processo Civil traz condutas devidas pelas partes, assim resumidas:[127]
a) esclarecimento e complementação;
b) submissão à inspeção judicial;
c) cumprimento das ordens judiciais.
No primeiro viés, destaca-se que as partes têm o dever de comparecer e esclarecer ao juízo as circunstâncias dos fatos da causa, e mesmo as provas produzidas, naquilo que se convencionou chamar de richterliche Aufklärungspflicht.[128] Na sistemática do CPC, tal ocorre basicamente no interrogatório[129] ou no depoimento pessoal,[130] que não se confundem, seja pela iniciativa, seja pelas sanções pelo seu descumprimento.
Ao passo que o interrogatório pode ser proposto pela própria parte,[131] com cominação máxima de má fé, não se admite proposição do depoimento pessoal nesses moldes eis que é notória sua finalidade principal (apesar de relativa) condutora da confissão.[132] Os limites a tanto estão dados pela natureza do fato (torpe, criminoso, sigiloso ou de que resulte perigo para a parte ou parente em grau sucessível)[133], o que deve ser aferido in casu.
O segundo viés impõe às partes a submissão à inspeção judicial,[134] decretada de ofício ou a requerimento de qualquer delas. A decisão implica respeitar a atuação do órgão judicial e, sendo o caso, de peritos nas atividades tendentes à produção da prova. Em contrapartida, porém, encontra-se nos direitos da personalidade[135] limite à inspeção, como se resolveu em leading case do Supremo Tribunal Federal (STF) cuja ementa é transcrita a seguir:
“Investigação de paternidade – Exame DNA – Condução do réu “debaixo de vara”. Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica da obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, “debaixo de vara”, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos.”[136]
A solução é dada à luz do dever de proporcionalidade (Verhältniβmäβigkeitspostulät)[137], preservando o direito à intimidade mas retirando conseqüências da recusa, em desfavor da parte recalcitrante.[138] Mais uma vez, porém, utiliza-se de paliativo pela impossibilidade de reconstrução de fatos pretéritos, derivada, neste particular, da atitude da parte.
O terceiro viés implica a necessidade de respeito à autoridade judiciária, havendo, nesse contexto, congruência entre regra específica e regra geral (artigo 340, III, e artigo 14, V, do CPC). No contraditório equilibrado, não há autorização para manobras protelatórias ou manifestamente inverossímeis.
“En todo proceso ocurre casi siempre que, frente a la parte que tiene prisa, está la que quiere ir despacio: de ordinario quien tiene prisa es el actor, y quien no la tiene es el demandado, interesado en alargar lo más que puede la rendición de cuentas. (…) En un sistema procesal de tipo dispositivo como es el nuestro, es normal, ya que las palancas de velocidad están dejadas a la iniciativa de las partes, que el ritmo del proceso esté dominado por ellas: y, por tanto, es natural que dentro de ciertos límites (es decir, dentro de la elástica disciplina de los términos procesales, cuyo sistema, algunos con función retardataria y otros com función aceleratriz, tiende a mantener entre los diversos actos del proceso una justa separación), cada parte se valga de su propio poder de impulso para acelerar o retardar el cumplimiento de ciertas actividades que de él dependen. Pero el abuso comienza cuando una parte, habiendo agotado ya aquel margen de lícito retardo que le era concedido por la elasticidad de los plazos, trata de alargar el proceso mediante peticiones que sabe son infundadas y que se proponen, no para que sean acogidas, sino únicamente a fin de ganar el tiempo que el contrário tendrá que gastar en oponerse a ellas y el juez en rechazarlas….”[139]
Resulta que o descumprimento do terceiro dever específico destaca sanções que medeiam entre o contempt of court[140] e a confissão,[141] mas pode desencadear também efeitos probatórios como segue.
2.2.2. Novas tendências: apreciação do comportamento processual e dinamização do ônus da prova
Conseqüência dos deveres de conduta é sentida no campo probatório do processo de conhecimento (especialmente do procedimento ordinário), não só por sanções específicas (como a confissão), mas também por eflúvios decorrentes de novos paradigmas sociais. Desse modo, é possível sustentar que o comportamento processual das partes pode constituir prova a ser apreciada pelo juiz.[142] São situações como, por exemplo, o não comparecimento a audiências, a recusa à submissão a exame corporal e a sucessão de requerimentos desconexos ou contraditórios, as impugnações sem critério, onde a parte revela sua intenção não cooperativa, ou, ao invés, a delimitação precisa da lide, o atendimento diligente das determinações judiciais, a prestação de cauções reais e não meramente fidejussórias, a prestação de contas em relação a quantias monetárias, aquelas onde se estampa a probidade da parte.[143]
De outra sorte, os deveres de conduta das partes implicam acréscimo dos poderes do juiz em relação à aquisição do material probatório, sistematizando da maneira mais adequada o ônus da prova, ligado tradicionalmente ao direito romano tardio,[144] onde sempre se exigiu cognição plena e exauriente a partir da figura do autor, impondo-lhe o ônus da prova independentemente da natureza da relação jurídica controvertida.[145] “La posizione del convenuto è naturalmente più comoda, perchè non sorge a suo carico nessun onere, finchè l’attore non abbia provato il fatto costitutivo (actore non probante, reus absolvitur)…”.[146] Fala-se agora, não em inverter, mas em dinamizar o ônus da prova, de tal modo que o meio de prova há de ser trazido aos autos pela parte que se encontra em melhores condições de fazê-lo segundo análise do caso concreto.[147]
Aplicada a teoria inicialmente a relações jurídicas de massa,[148] tende a ver ampliado seu campo, havendo precedentes, por exemplo, na responsabilidade profissional:
Em outra ocasião:
“…em doutrina, com alguns reflexos jurisprudenciais, tem-se trazido a esta seara a denominada “Teria da Carga Dinâmica da Prova”, que outra coisa não consiste senão em nítida aplicação do princípio da boa-fé no campo probatório. Ou seja, deve provar quem tem melhores condições de demonstrar os fatos, deixe de fazê-lo, agarrando-se em formais distribuições dos ônus de demonstração. O processo moderno não mais compactua com táticas ou espertezas procedimentais e busca, cada vez mais, a verdade. (…) Pois é na área da responsabilidade médica, em que o profissional da medicina tem, evidentemente, maiores (senão a única) possibilidade de demonstração dos fatos, que a referida concepção probatória encontra campo largo à sua incidência. Como conseqüência prática, inverte-se o ônus probatório. O médico é quem deve demonstrar a regularidade de sua atuação.”[151]
Disso decorre que inversão ou dinamização do ônus da prova não são fenômenos vinculados unicamente ao julgamento, como ocorre com a regra tradicional, tratando-se, ao invés, de regra subjetiva de comportamento quanto ao thema probandum resultante de aferição concreta do juiz no exercício de seus poderes (rectius: deveres) instrutórios. É incorreto, portanto, relegar a análise da inversão ou dinamização do ônus da prova ao momento da sentença, pois que isso quebra o dever de colaboração ora alvitrado,[152] podendo-se discutir até mesmo a sistematização da questão dentro da problemática do ônus da prova (embate que não se fará em virtude dos limites deste trabalho).
De todo modo, o que ressai é que, numa estrutura fundada predominantemente no dever de colaboração e no princípio inquisitório, como é o caso do direito brasileiro, o ônus da prova há de ficar adstrito ao caráter objetivo que lhe é peculiar, isto é, como regra de distribuição do risco da ausência de prova do fato.[153]
3. Conclusão
Pelo exposto, tem-se que o processo civil, enquanto instrumento de pacificação social, implica atitudes compatíveis com a nova realidade alhures mencionada. Assim, reconhece-se que:
a) a verdade obtenível no processo tem natureza retórica e identifica-se com a verossimilhança;
b) a verossimilhança depende da atuação dos sujeitos processuais, por isso que, na dinâmica da relação processual, avultam seus deveres de conduta, especialmente em matéria probatória;
c) os poderes do Estado-juiz em matéria probatória são, na realidade, deveres, falando-se hoje em um direito à prova no processo civil;
d) o direito à prova no processo civil exige do Estado-juiz a atuação em relação à proposição, admissão, produção e apreciação do thema probandum;
e) as partes têm deveres para com o Estado na reconstituição dos fatos pretéritos, destacando-se aqui a probidade processual com seus consentâneos de lealdade, verdade, esclarecimento, complementação, submissão à inspeção judicial e cumprimento das ordens que lhe forem dirigidas.
Essa premissas permitem elaborar juízo positivo de existência de dever genérico de colaboração entre os sujeitos processuais, Trata-se aqui de uma visão de razoabilidade que procura conciliar a visão lógica com a ideológico-social, configurando um modelo eficaz de decidibilidade no processo.
Para isso, porém, é necessário ter em mente que:
“debaixo da ponte da justiça passam todas as dores, todas as misérias, todas as aberrações, todas as opiniões públicas, todos os interesses sociais. E seria bom que o juiz fosse capaz de reviver em si, para compreendê-los, cada um desses sentimentos: experimentar a prostração de quem rouba para matar a fome ou o tormento de quem mata por ciúme; ser sucessivamente (e, algumas vezes, ao mesmo tempo) inquilino e locador, meeiro e proprietário de terras, operário em greve e industrial.”[154]
A advertência vale aos sujeitos processuais para que, ouvindo o apelo social, não se encastelem em seu Olimpo jurídico nem se escondam sob o manto de uma duvidosa legalidade, Iara hipócrita do conformismo e da passividade.
Informações Sobre o Autor
Jair Pereira Coitinho
Advogado. Especialista em Direito Processual (UNISC/RS). Mestrando em Direito (PUC/RS). Ex-professor de direito processual civil da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS). Professor de graduação e pós-graduação em direito processual civil na Universidade da Região da Campanha (URCAMP/RS). Professor de pós-graduação em direito processual civil na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC/RS).