A Prisão Processual em Regime Domiciliar: Um Direito Subjetivo de Gestantes e Mães de Crianças

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Nome do Autor: Luciano Rizzato Martins, bacharel em direito pela Universidade São Francisco (campus Bragança Paulista), Especialista em Direito Público pela EPM de São Paulo e em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio de Jesus. E-mail: [email protected]. 

Resumo: O artigo 318 do Código de Processo Penal trata, literalmente, da possibilidade de conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar. Embora o texto do artigo apresente a expressão “poderá”, há discussões doutrinária e jurisprudencial quanto à discricionariedade do julgador em convolar a segregação da agente em prisão domiciliar se se tratar de uma das hipóteses descritas nos incisos IV e V. Em razão desta significante alteração legislativa, o “poderá” do magistrado não mais persiste diante da interpretação trazida pelo Supremo Tribunal Federal que apresentou uma exegese paradigmática dos mencionados incisos do artigo 318 do Código de Processo Penal e modulou sua aplicabilidade, traduzindo tratar-se de um dever do juiz em converter a prisão preventiva da agente em regime domiciliar, desde que situações excepcionalíssimas não estejam presentes. A interpretação teleológica dos incisos IV e V retira do julgador sua discricionariedade, impondo a ele o dever de substituir a prisão preventiva pela domiciliar, uma vez que os objetivos da Lei nº 13.257/2016 ao introduzir novas redações aos respectivos incisos foram a proteção e garantia de direitos aos infantes. O mesmo resultado interpretativo é alcançado quando a análise é feita sob os enfoques da constitucionalidade e da convencionalidade. 

Palavras-chave: Prisão domiciliar. Gestante. Mãe.

 

Abstract: Article 318 of the Code of Criminal Procedure literally deals with the possibility of converting preventive detention into house arrest. Although the article text presents the expression “may”, there are doctrinal and jurisprudential discussions regarding the judge’s discretion to modify the segregation of the house arrest agent if it is one of the hypotheses described in items IV and V. Due to this significant legislative change the “may” of the magistrate no longer persists in the face of the interpretation  by the Federal Supreme Court, which presented a paradigmatic exegesis of the mentioned items of article 318 of the Code of Criminal Procedure and modulated its applicability, it expressing it is a duty of the judge to convert the preventive detention of the agent into a home regime, as long as exceptional situations are not present. The teleological interpretation of items IV and V removes the judge’s discretion, imposing on him the duty to replace preventive detention by home detention, since when it introducing new wording to the respective items, the aims of Law number 13.257/2016 were protection and guarantee rights for infants. The same interpretative result is achieved when the analysis is made under the approaches of constitutionality and conventionality. 

Keywords: Prison. Home Regime. Pregnant. Mother.

 

Sumário: Introdução; 1. Prisão cautelar; 1.1. Conceito e aplicabilidade instrumental; 1.2. Pressupostos: “fumus commissi delicti” e “periculum libertatis”; 2. Prisão domiciliar; 2.1. A prisão domiciliar cautelar ou recolhimento domiciliar noturno; 2.2. A segregação domiciliar substitutiva da prisão preventiva; 2.3. A conversão da prisão preventiva na custódia domiciliar; 2.4. A interpretação teleológica dos incisos IV e V do artigo 318; 2.5. A verdadeira proteção: a pessoa do nascituro e do filho criança; 3. O poder-dever dos juízes; 3.1. Abuso de poder pelos Juízes; 3.2. A relevância de ser gestante e mãe; 3.3. A semântica do “poderá”; 3.4. O “habeas corpus” coletivo 143.641; 3.5. A inadequação dos presídios e o constrangimento ilegal; 3.6. A (des) prioridade absoluta do ECA; 3.7. As normas constitucionais e o aprisionamento de mães e filhos; 3.8. O Controle de convencionalidade e o aprisionamento feminino; 3.9. A proteção à primeira infância; Conclusão; Referências. 

 

Introdução 

  Os incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal foram alterados pela Lei 13.256 de 08 de maio de 2016, o Marco Legal da Primeira Infância. Embora o caput mencionado artigo traga a expressão “poderá”, a exegese teleológica, o entendimento jurisprudencial e as interpretações constitucional e convencional traduzem outro sentido que pode retirar do julgador qualquer discricionariedade. Assim, a conversão da custódia preventiva em regime domiciliar da agente que for gestante ou mãe de criança torna-se obrigatória ou constitui um juízo de admissibilidade a ser analisado no caso concreto pelo julgador? A perspectiva do julgador, diante do caso concreto, deve atentar para a proteção integral e de absoluta prioridade relacionados à primeira infância ou apenas levar em consideração a agente custodiada e as circunstâncias do delito, muitas vezes, de forma meramente abstrata? 

As respostas para os questionamentos podem estar numa leitura mais abrangente e globalizada dos dispositivos legais pertinentes. A interpretação literal do dispositivo do caput do artigo 318 do Código de Processo Penal pode ser insuficiente para elucidar a problemática atual. O Estatuto da Primeira Infância tem objetivos claros e introduziu mudanças nos dois incisos que tratamos neste trabalho. Os tratados internacionais, dos quais se destacam as Regras de Tóquio e as Regras de Bangkok também são direcionadas ao tratamento diferenciado destinado às gestantes e demais mulheres encarceradas, buscando não só amenizar os efeitos do encarceramento feminino, mas sobretudo garantir efetivamente a integral proteção às crianças. 

Os assuntos conjugados neste artigo científico consubstanciados nos entendimentos doutrinários e na atual posição da jurisprudência a respeito, delineiam um panorama diferenciado quanto ao aprisionamento de gestantes e mães de crianças que pode impactar de forma positiva nos estabelecimentos prisionais femininos, sem causar, na prática, qualquer insegurança social ou jurídica. 

O objetivo, portanto, é demonstrar uma interpretação do artigo 318 do Código de Processo Penal, no que tange as circunstâncias contidas nos incisos IV e V, que atenda aos fins pelos quais a redação dos respectivos dispositivos legais foi alterada e, acima de tudo, que respeite os preceitos constitucionais e convencionais pertinentes à prisão processual de mulheres grávidas ou mães de crianças. 

Para tanto, foram analisadas posições doutrinárias a respeito e expostos os entendimentos jurisprudenciais sobre o assunto, sem, contudo, deixar de lado as questões interpretativas da legislação e os controles constitucional e convencional indispensáveis aos casos concretos pela relevância do tema. 

 

  1. Prisão cautelar – noções generalíssimas

1.1. Conceito e aplicabilidade instrumental 

A prisão cautelar, carcer ad custodium, processual ou prisão sem pena é a segregação de natureza puramente processual, decretada em desfavor do agente com vistas ao bom desempenho da investigação dos fatos, do regular andamento do processo penal ou de futura execução de eventual aplicação de pena e também para se evitar que o custodiado venha a praticar outras infrações. Havendo razões concretas e a necessidade excepcional de que algo a mais deva ser feito para que o processo penal atinja seus objetivos e a persecução penal se perfaça nos seus regulares moldes, a prisão processual cautelar poderá ser decretada pelo juiz independentemente da gravidade do delito ou do brado popular, desde que os pressupostos de periculum in mora e fumus boni iuris estejam fundamentadamente presentes e demonstrados, observando-se a norma do caput do artigo 312 do Código de Processo Penal1, desde que não seja possível a substituição da segregação por outra medida cautelar, conforme determina a regra do parágrafo 6º do artigo 282 do Código de Processo Penal2 (CAPEZ, 2018, p. 303). 

A segregação cautelar tem natureza instrumental, pois objetiva garantir o desenvolvimento regular do processo e consequentemente o poder punitivo estatal, sendo, portanto, medida legitimada à tutela do processo (LOPES, 2019, p. 717). 

 

1.2. Pressupostos: fumus commissi delicti e periculum libertatis 

Como dito acima, a doutrina identifica como pressupostos da prisão cautelar o fumus boni iuris e o periculum in mora. 

Entretanto, Aury Lopes Júnior ensina que há um equívoco em se aplicar conceitos doutrinários do direito processual civil de maneira literal ao processo penal. O juiz poderá determinar a prisão cautelar do agente se houver um fato aparentemente punível e não pela potencialidade de se fazer presente o direito acusatório. Portanto, o molde do requisito ensejador da custódia cautelar é a presença do fumus commissi delicti, que configura a eventualidade fática criminosa, e não a probabilidade de um direito, ou seja, o fumus boni iuris. Na mesma linha de pensamento, o periculum in mora não é requisito de prisão cautelar porque se trata de medida coercitiva pessoal e a situação de perigo relaciona-se com o comportamento do agente e da situação de sua liberdade, não havendo, pois, qualquer referência temporal determinante entre o provimento provisório e o definitivo. A fuga, ausência ou comportamento inadequado do sujeito passivo podem ocasionar entraves ou até prejuízos processuais e até tornar inócua a aplicação da pena, o que faz do periculum libertatis o fundamento da prisão cautelar (LOPES, 2019, p. 718). 

 

  1. Prisão domiciliar

2.1. A prisão domiciliar cautelar ou recolhimento domiciliar noturno 

Não deve haver confusão entre a prisão domiciliar e o recolhimento domiciliar previsto no artigo 319, inciso V do Código de Processo Penal. O recolhimento noturno domiciliar é medida cautelar diversa da prisão domiciliar e aplicável a qualquer pessoa independentemente das circunstâncias previstas no artigo 318 do Código de Processo Penal. A prisão domiciliar cautelar aqui tratada é prisão preventiva cumprida em regime domiciliar, decretada pelo juiz quando constatado ser insuficiente quaisquer das medidas previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal. Assim, verificadas as situações excepcionais contidas no artigo 318 do Código de Processo Penal, o agente preso preventivamente poderá, segundo o professor Fernando Capez, cumprir a restrição de sua liberdade em seu próprio domicílio (CAPEZ, 2018, p. 341). 

E não é só. 

A prisão domiciliar existe apenas quando substitui a prisão preventiva, ou seja, se não houver prévia decretação de prisão preventiva, não há o que se falar em prisão domiciliar. O recolhimento domiciliar noturno, por sua vez, tem aplicação independente por se tratar de medida cautelar autônoma, nos termos do parágrafo 1º do artigo 282 do Código de Processo Penal. Interessante notar que as circunstâncias legais previstas nos artigos 317 e 318 do Código de Processo Penal pressupõem a decretação da prisão preventiva do agente que cumprirá a segregação em regime domiciliar. Para o recolhimento domiciliar noturno não se faz necessária a imposição prévia de prisão preventiva, mas se o agente injustificadamente não se recolher em domicílio no período noturno, a medida cautelar a ele imposta poderá ser convertida em prisão preventiva se outra cautelar, cumulada ou não, se verificar insuficiente (AVENA, 2018, p. 1183). 

Cioso destacar a localização desses dois institutos no Código de Processo Penal. A prisão domiciliar está prevista no Capítulo IV e o recolhimento domiciliar no Capítulo V, ambos do Título IX. Disso se extrai que poderá haver detração penal em ocasiões de prisão domiciliar, que não deixa de ser uma prisão provisória, uma autêntica prisão preventiva cumprida pelo custodiado em seu domicílio. A referida benesse, prevista no artigo 42 do Código Penal, é incompatível com o recolhimento domiciliar por se tratar de medida cautelar diversa da prisão nos exatos termos do artigo 319 do Código de Processo Penal (CAPEZ, 2018, p. 342). 

 

2.2. A segregação domiciliar substitutiva da prisão preventiva 

Inserida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 12.403 de 04 de maio de 2011, a prisão domiciliar é medida cautelar prevista no artigo 317 do Código de Processo Penal que impõem o confinamento do agente em seu domicílio. Esse recolhimento deve ser permanente e não apenas durante o período noturno. O custodiado em domicílio somente poderá deixar o local onde declarou como sua residência com autorização judicial que assim o permita. Com efeito, a prisão domiciliar não se confunde com as medidas cautelares alternativas à prisão elencadas no artigo 319 do Código de Processo Penal, podendo ser aplicada somente quando em substituição à prisão preventiva decretada e diante de uma das circunstâncias previstas no artigo 318 do Código de Processo Penal (PACELLI, 2019, p. 698/699). 

O legislador tratou a prisão domiciliar em comento como uma forma de prisão preventiva, o que, como já mencionado, não se confunde com qualquer medida cautelar alternativa à restritiva de liberdade. Assim, a prisão domiciliar cautelar não foi trazida para obstar a decretação da prisão preventiva, mas para excepcionalmente substituí-la quando as circunstâncias previstas no artigo 318 do Código de Processo Penal estiverem presentes (LIMA, 2017, p. 1021). 

Antes da Lei nº 12.403/2011, a prisão domiciliar tinha aplicabilidade legal quando não havia local apto para o cumprimento de prisão especial conforme determina o artigo 295 do Código de Processo Penal e o artigo 1º da Lei nº 5.256/19673 ou quando se tratasse de condenados definitivos, nos termos do artigo 117 da Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal), desde que estivessem cumprindo sua pena em regime aberto e preenchessem alguns dos requisitos dispostos nos seus quatro incisos, quais sejam: “I – condenado maior de 70 (setenta) anos; II – condenado acometido de doença grave; III – condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental; IV – condenada gestante” (NUCCIb, 2014, p. 83). 

A Lei nº 12.403/2011 trouxe a prisão domiciliar para as fases de inquérito policial e da instrução processual, não obstante a jurisprudência já houvesse indicado uma tendência para aplicação da prisão domiciliar em momento anterior à sentença de condenação e seu trânsito em julgado. Logo, a prisão cautelar domiciliar é admissível durante no trâmite do inquérito policial e também no transcorrer da instrução processual (TÁVORA, 2018, p. 317). 

Não existe prisão cautelar domiciliar sem prévia decretação de prisão preventiva. Por conseguinte, não há falar em prisão domiciliar se, ao caso concreto, não houver anterior decretação da prisão preventiva do agente. A prisão processual em regime domiciliar é substitutiva da segregação preventiva em cárcere. 

Essa substituição está prevista no artigo 318 do Código de Processo Penal. As hipóteses de comutação elencadas no mencionados dispositivo são de natureza taxativa, não se admitindo, portanto, interpretação extensiva (MARCÃO, 2014, p. 786). 

 

2.3. A conversão da prisão preventiva na custódia domiciliar 

O texto do artigo 318 do Código de Processo Penal informa, em sua literalidade, que o juiz poderá substituir a prisão preventiva pela custódia domiciliar quando o agente contar com mais de oitenta anos de idade (inciso I), ou estiver extremamente debilitado por motivo de doença grave (inciso II), ou for pessoa imprescindível para os cuidados específicos de pessoa menor de seis anos de idade ou com deficiência (inciso III), ou for gestante (inciso IV), ou for mãe de criança (inciso V), ou, se homem, for o único responsável pelos cuidados de filho enquanto criança (inciso VI). 

Salienta-se que os incisos IV e V foram incluídos pela Lei nº 13.257 de 08 de março de 2016, o Março Legal da Primeira Infância4. 

Segundo o professor Renato Marcão, configurada quaisquer das circunstâncias previstas no rol taxativo do artigo 318 do Código de Processo Penal, se presentes os requisitos legais, a substituição da prisão preventiva pela cautelar domiciliar, ou seja, a conversão da segregação com encarceramento em estabelecimento prisional em custódia de regime domiciliar é direito subjetivo do agente e, por consequência, um poder-dever conferido ao julgador (MARCÃOb, 2017). 

No mesmo sentido, o professor Gustavo Henrique Badaró ensina que, segundo Geraldo Prado, não obstante o dispositivo do artigo 318 do Código de Processo Penal apresente o verbo “poderá”, perfazendo-se a subsunção do caso concreto às hipóteses legais presentes nos incisos IV e V do mencionado artigo, o julgador deverá convolar a prisão preventiva em prisão domiciliar, de forma que o “poderá” deve ser visto, sentido e cumprido como “deverá”. Além disso, o professor anota que, para Geraldo Prado, independentemente de a redação do artigo 318 do Código de Processo Penal adotar o termo “poderá”, as circunstâncias autorizadoras previstas nos incisos IV e V constituem direito subjetivo da custodiada e indica não haver poder discricionário para o julgador (BADARÓ, p. 985). 

 

2.4. A interpretação teleológica dos incisos IV e V do artigo 318 

A redação dos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal foi alterada pela Lei nº 13.257 de 08 de março de 2016, que instituiu o Marco Legal da Primeira Infância. Com efeito, essas alterações foram trazidas pela mencionada lei federal que, por sua vez, instituiu políticas públicas para a denominada primeira infância. Eis o alvo da exegese. 

A contrario sensu, a simples interpretação gramatical dos dispositivos em comento serviria apenas se a pretensão do julgador fosse a de denegar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, uma vez que a análise subjetiva da pessoa que está sob custódia cautelar, que é medida extremamente excepcional e cabível apenas e tão somente quando não adequada outras aplicações processuais restritivas, nos traz a conclusão que no cárcere ela deverá permanecer e nunca lhe ser substituído o regime de cumprimento, ou seja, do encarceramento em estabelecimento prisional para o regime domiciliar. 

E é nesse contexto que a intepretação teleológica se faz a mais adequada à espécie. O julgador deve atentar para o motivo pelo qual os dispositivos dos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal foram efetivamente alterados em 08 de março de 2016, pois aquele que está preso, o está porque não tem atributos subjetivos favoráveis para lhe ser concedido prisão domiciliar. É insustentável afirmar que a pessoa que foi preventivamente presa para garantia da ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar futura aplicação da lei penal detenha requisitos pessoais para fundamentar seu pedido de prisão domiciliar. Entretanto, o foco dos atuais dispositivos dos incisos V e IV do artigo 318 do Código de Processo Penal é outro e, como ensina o jurista Renato Marcão, não se trata de “dar ou não uma chance” à aquela que foi cautelarmente presa (MARCÃOb, 2017).  

É importante ressaltar que toda lei certamente tem um objetivo perseguido por aqueles que a elaboraram, de forma ser plausível presumir que eles pretenderam tornar realidade aquilo que idealizaram. Assim, a lei deve ser interpretada de forma que atenda aos propósitos de seus criadores. O Direito é uma ciência precipuamente finalística e, por tal razão, sua interpretação deve ser essencialmente teleológica, devendo o hermeneuta mover-se na direção da finalidade da lei e o resultado prático que ela busca, pois a ela reúne um conjunto de ordens e ações comissivas ou omissivas que visam assegurar a tutela de interesses pelos quais foi criada (MAXIMILIANO, 2017 p. 150). 

O Ministro Reynaldo Soares da Fonseca ao conceder ordem de habeas corpus a uma mãe de três crianças, enfatizou que a intepretação teleológica e a garantia dos direitos dos mais fragilizados devem preponderar. A interpretação restritiva da norma tem potencialidade lesiva e prejuízo à criança, o que contraria sobremaneira a proteção absoluta e integral em atenção ao artigo 227 da Constituição Federal (STF, HC 470.549 TO). 

 

2.5. A verdadeira proteção: a pessoa do nascituro e do filho criança 

O Estatuto da Primeira Infância, instituído pela Lei nº 13.257/2016, alterou as normas dos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal, cuja vigência iniciou-se em 08 de março do respectivo ano. Antes disso, porém, o dispositivo do inciso IV trazia em sua redação duas circunstâncias que poderiam autorizar a substituição da prisão preventiva da gestante pela sua custódia cautelar domiciliar, ou seja, naquela época, a gestação teria de ser a partir do sétimo mês de gravidez ou fosse ela considerada de alto risco, conforme mudanças introduzidas pela Lei nº 12.303 de 04 de maio de 20115. 

No que tange à aplicabilidade do inciso IV do artigo 318 do Código de Processo Penal, especifica e literalmente direcionado às mulheres gestantes, é suficiente a simples prova do estado gestacional para que a segregação preventiva deva ser substituída pela prisão cautelar domiciliar. 

A concessão da prisão processual em regime domiciliar, segundo o Ministro Gilmar Mendes, tem substrato jurídico na garantia constitucional de proteção à maternidade e infância, fundamentada inclusive na dignidade da pessoa humana porque privilegia a segurança e estabilidade física e mental de crianças e de nascituros, seja pelos indispensáveis cuidados devidos em seu nascimento e fase de amamentação, bem como pelo saudável desenvolvimento deles6. 

Segundo Guilherme Souza Nucci, ao comentar dispositivo do artigo 318 do Código de Processo Penal, relata que a finalidade da lei não é de proteger o agente criminoso, mas de se resguardar crianças e pessoas com deficiência, invariavelmente vulneráveis, necessitadas de maiores e específicos cuidados, que detém, inclusive, maior amplitude de direitos e garantias constitucionais, infraconstitucionais e também internacionais, sustentando o eminente jurista que o julgador deverá considerar aquilo que é melhor para os mais fragilizados e não o que poderia beneficiar a pessoa que está cautelarmente presa (NUCCI, p. 86). 

 

  1. O poder-dever dos juízes

Com a vigência da Lei nº 13.257, o artigo 318 do Código de Processo Penal passou a dispor de duas outras circunstâncias autorizadoras da conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar envolvendo a gestante e a mãe de criança, fazendo com que os requisitos da gestação em risco ou acima do sétimo mês, anteriormente taxados fossem excluídos do ordenamento jurídico. Portanto, diante das situações elencadas nos incisos IV e V do supramencionado artigo, o julgador deverá converter a prisão preventiva anteriormente decretada em prisão domiciliar, ou seja, se o agente custodiado se tratar de gestante ou mãe de criança, a segregação em estabelecimento prisional deverá ser convertida para o regime domiciliar, restando acentuado o caráter humanitário e protetivo de mulheres e crianças em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se, assim, de um direito subjetivo público das mulheres presas preventivamente, se gestante ou mãe de criança, de cumprirem a medida cautelar em sua residência, podendo ser pleiteado, inclusive, por intermédio do remédio constitucional do habeas corpus (MOREIRA, 2019, p. 01/05). 

Os dispositivos contidos nos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal tem natureza jurídica de norma processual de direito material e deve ser aplicada retroativamente. As normas em comento referem-se ao direito de liberdade do agente e portando constituem disciplina de ordem material. O procurador de justiça e professor, Rômulo Moreira, ensina que, segundo Grandinetti Castanho de Carvalho, se a limitação de direitos fundamentais advém de norma processual não há como tratá-la de norma processual pura e sim como norma processual de teor material, devendo ser submetida às regras de aplicabilidade do direito penal, pois não se deve levar em consideração o local onde a norma esteja inserida, mas o seu conteúdo (MOREIRA, 2019, p. 06). 

 

3.1. Abuso de poder pelos Juízes 

 Em decisão prolatada em 1º de dezembro de 2015, portanto, antes da vigência da Lei 13.257/2016, o Ministro Gilmar Mendes, ao julgar uma medida cautelar em ordem de habeas corpus, onde as autoridades coatoras eram o Juiz de Direito de primeira instância, o Tribunal de Justiça de São Paulo e o respectivo relator do Superior do Tribunal de Justiça, concedeu a ordem a uma gestante e, verificando tratar-se de patente constrangimento ilegal ou abuso de poder, enfatizou que a concessão de prisão domiciliar tem o suporte legal na proteção da maternidade e infância, o que inclui a dignidade da pessoa humana, visto que o objetivo é dar prioridade ao bem estar da criança e também do recém-nascido, mormente pelas condições especiais de zelo e tratamento indispensáveis nesta fase da vida, sem se olvidar da fundamental ação para o desenvolvimento completo deles que é a amamentação materna (STF, HC MC 131760-SP, j. 01.12.2015). 

 

3.2. A relevância de ser gestante e mãe 

A prisão cautelar é medida ultima ratio e somente tem cabimento quando se tratar de situações de “necessidade extrema”. Nesta esteira, ensina a defensora pública, doutora Juliana Garcia Belloque, que “às medidas extremas resguardamos apenas as situações de necessidade extrema”. Logo, a decretação da prisão processual pressupõe estrita necessidade, especialmente em razão da conjuntura deteriorante dos estabelecimentos prisionais brasileiros, devendo o julgador analisar com minúcia a aplicabilidade de outras medidas cautelares distintas da restritiva de locomoção que se mostrem aptas ao caso concreto, ainda que essa aptidão não beire à perfeição. O prejuízo à dignidade humana é permanente com a segregação cautelar determinada sem o devido rigor, que também é a responsável pelos sérios entraves econômico-sociais originados pelo considerável número de prisões cautelares atualmente no Brasil. Na verdade, discute-se aqui o trabalho que o julgador deve fazer diante do caso concreto que é terminantemente anterior e em separado a qualquer discussão de cabimento ou não do regime domiciliar para cumprimento da medida cautelar. Não há questão de ordem pública que possa superar o raciocínio humanitário que culminou na redação dos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal, pois a tortura sofrida pela gestante ou mãe encarcerada é repugnante e se sobrepõem a contento qualquer desvalia inerente ao comportamento ilícito objeto dos inquéritos policiais ou processos judiciais (BELLOQUE, 2016, p. 02). 

 

3.3. A semântica do “poderá” 

 Configuradas as situações legais no artigo 318 do Código de Processo Penal, a prisão domiciliar é, segundo Juliana Belloque, imperativa em obediência ao Princípio da Proporcionalidade. O mesmo entendimento, diz a defensora pública, é compartilhado pelo professor Gustavo Badaró, ao concluir que se presente uma das circunstâncias determinantes da prisão domiciliar, o juiz deverá utilizar essa medida humanitária de segregação, pois não há o que falar em poder discricionário do magistrado. Na mesma linha, o juiz de direito e professor de processo penal, André Nicolitt, ensina que as circunstâncias personalíssimas descritas nos incisos do artigo 318 do Código de Processo Penal traçam certamente uma “barreira” que sempre impedirá o juiz de decretar a prisão preventiva do agente naqueles casos. (BELLOQUE, 2016, p. 02). 

 

3.4. O Habeas Corpus coletivo 143.641 

 No dia 20 de fevereiro de 2018 a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu ordem de habeas corpus coletivo em favor de todas as mulheres provisoriamente presas que sejam gestantes, em estuado puerperal ou tenham filho criança ou deficientes sob sua responsabilidade, independentemente da idade. Na ordem, os Ministros da Corte reconheceram que o Poder Judiciário insiste em não sanar e superar os abusos de segregações cautelares ao não aplicarem o Estatuto da Primeira Infância, Lei nº 13.257/2016. Afirmaram que os parâmetros legais da Lei nº 13.257/2016 devem ser estendidos a todas as mulheres, de forma a garantir não apenas os direitos de gestantes e mães, mas sobretudo das crianças que, pela própria natureza, necessitam de especiais cuidados, convivência e desenvolvimento saudáveis. Entretanto, a decisão trouxe exceções, alertando que se se tratar de crimes praticados mediante violência ou grave ameaça ou contra os próprios filhos, a substituição da prisão preventiva poderá ser negada pelo julgador, que, diante de situação excepcionalíssima que não essas ora mencionadas, também poderá, desde que com forte fundamentação, denegar a benesse (ALMEIDA, 2018, p. 01). 

 

3.5. A inadequação dos presídios e o constrangimento ilegal 

 Não se trata apenas da restrição da liberdade, mas também de uma privação qualificada que abrange e tolhe a capacidade de se determinar e até de conceber de forma natural, com o mínimo de dignidade e respeito. Esses são os efeitos sensíveis de uma decretação da prisão preventiva de uma gestante ou mãe de criança. Há, portanto, um constrangimento ilegal quando o juiz determinada a segregação provisória de gestantes e mães e as coloca nos estabelecimentos prisionais deteriorantes, uma vez que os riscos à sua vida, ao bebê e às crianças se propagam com as situações mais penosas do que aquelas buscadas pela lei (ALMEIDA, 2018, p. 02). 

É metódico o desrespeito aos ditames da Lei de Execuções Penais, Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984, no que se refere às mulheres grávidas e mães no instante em que o Estado insiste em manter estabelecimentos precários e carentes do mínimo legalmente exigido. O parágrafo terceiro do artigo 14 da mencionada lei diz que deverá ser garantido acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido; o parágrafo 1º do artigo 82 completa, afirmando que a mulher será recolhida em estabelecimento prisional próprio e adequado à sua condição pessoal. E não é só isso. O parágrafo 2º do artigo 83 protege também as crianças quando determina que os presídios têm de disponibilizar berçário aptos para que as mulheres condenadas possam zelar pelos filhos e quando necessário, amamentá-los, além de espaço específico para gestantes e parturientes, além de creches destinadas a crianças entre seis e sete anos de idade, conforme regra do artigo 89 da lei em comento (ALMEIDA, 2018, p. 02). 

 

3.6. A (des) prioridade absoluta do ECA 

 As garantias e proteções às gestantes e aos filhos de mulheres submetidas à segregação não se encerram com a Lei de Execução Penal.  

O princípio constitucional da absoluta prioridade está previsto no artigo 227 da Constituição Federal 1988 e também estabelecido nos artigos 4º e 100, parágrafo único e inciso II do Estatuto da Criança e do Adolescente. E, segundo Andréa Rodrigues Amin, a Lei 13.257/2016 quando tratou da prioridade absoluta obrigou ao Estado estabelecer políticas, planos, programas e serviços em prol das crianças de até seis anos de vida com objetivo de garantir o pleno desenvolvimento, bem como incontestável primazia de seus interesses em detrimento de quaisquer outros, de qualquer natureza, de forma que a preponderância de seus direitos e garantias não admite qualquer questionamento ou ponderação, uma vez que esse atributo origina-se da vontade da nação manifestada pelo legislador constituinte (AMIN, 2018, p. 49/50).  

O Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu Título II, trata dos Direitos Fundamentais e no Capítulo I, do Direito à Vida e à Saúde, dizendo, a priori, no artigo 7º que “a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Embora a referência em tela seja o Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu artigo 8º, a proteção recai sobre as mulheres e o tratamento especial dirige-se às gestantes. 

Não se pode olvidar do direito à liberdade, uma vez que o foco deste trabalho envolve a restrição a ela. Para a promotora de justiça, Andréa Rodrigues Amin, o direito à liberdade não se trata apenas de ir e vir, mas, sobretudo, nos termos do artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente, na liberdade de expressão, de opinião, inclusive de crença e culto religiosos. Ademais, consiste em garantir às crianças e aos adolescentes o direito de praticar esportes, de brincar e de simplesmente se divertir, participando do cotidiano familiar, social e político. Para Gustavo Ferraz de Campos Monaco, citado por Andréa, à criança deve estar garantido a possibilidade de se locomover e estar, de forma a construir sua personalidade com finalidade à sua plena estrutura e observado o seu interesse transcendente, dotado de restrições inerentes à própria natureza e necessidade especiais da criança em face do seu desenvolvimento, perfazendo-se, assim, para o professor Gustavo Monaco, “uma liberdade que se autocontém ou que é autocontida pelos princípios e pelas finalidades desse direito” (AMIN, 2018, p. 79/80). 

Oportuno discorrer que a primazia inerente às crianças e aos adolescentes no tocante à sua integral proteção também reflete como regra de interpretação da lei, compreensão de crises jurídicas e até para criação de novas regras, servindo de princípio norteador, seja para o legislador como também para o aplicador da lei. Portanto, o princípio do interesse superior, quando da análise do caso concreto, deve superar quaisquer situações, independentemente se jurídicas ou não, de maneira a resguardar objetivamente os direitos fundamentais pertencentes às crianças e adolescentes visando atender à dignidade no mais elevado nível, sendo vedado ao exegeta ou julgador utilizar-se da subjetividade para resolução dos impasses (AMIN, 2018, p. 56/57). 

O professor Guilherme Souza Nucci ensina que a proteção integral funciona como se fosse o princípio da dignidade elevado ao seu maior potencial e força diante de eventual ponderação a qualquer outro direito cujo titular seja um adulto e afirma que as crianças e os adolescentes possuem uma “hiperdignificação de suas vidas”, o que faz suplantar qualquer objeção presente em leis destinada a normatizar ou mitigar os direitos a eles garantidos (NUCCI, 2014a, p. 24). 

Com efeito, a negligência estatal em propiciar condições legais mínimas às gestantes, às mães e aos filhos que se encontram em situação de privação de liberdade configura global desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente pelo sistema prisional. O Estado “desprioriza” de forma absoluta os direitos inerentes às crianças e aos adolescentes no instante em que ignora a realidade em que estão submetidos e justifica sua inércia impondo às gestantes e mães os ditames de uma lei que ele próprio não cumpre (ALMEIDA, 2018, p. 02/03). 

 

3.7. As normas constitucionais e o aprisionamento de mães e filhos 

 O teor de outros dispositivos constitucionais contidos nos incisos do artigo 5º da Carta Constitucional pertinentes às penas e aos encarcerados não deixam dúvidas quanto à sua imediata aplicabilidade. O inciso III diz que nenhuma pessoa deve sofrer tortura ou ser submetido a qualquer tratamento cruel ou humilhante. O XLVII, talvez por consequência da norma do III, veda a existência de qualquer tipo de reprimenda que seja cruel. Deverão existir estabelecimentos prisionais específicos para o cumprimento de pena observando-se a idade e o sexo do encarcerado, bem como a natureza da infração (inciso XLVIII). E mais uma vez a Constituição Federal garante a integridade física e moral da pessoa presa no inciso XLIX. 

O aleitamento materno é mais uma garantia constitucional prevista no inciso “L” do artigo 5º, pelo qual o Estado fica obrigado a assegurar condições para que a mães encarceradas possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. Essa garantia de ordem constitucional e de caráter humanitário é, segundo o promotor de justiça José Heitor dos Santos, um corolário do princípio de que a pena aplicada não deve transpor a pessoa do réu (SANTOS, 2003, p. 01). 

A norma constitucional prevista no artigo 227 assegura às crianças e adolescentes os direitos fundamentais lá estampados, mas com absoluta prioridade. É bom lembrar que as crianças filhas de mães encarceradas também estão protegidas pelo mencionado dispositivo. Neste, a Constituição Federal de 1988 repeliu a doutrina da situação irregular do menor e inseriu no contexto constitucional a prioridade em efetivar a integral proteção com primazia e de forma imediata, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha construído sistematicamente a doutrina da absoluta prioridade (AMIN, 2018, p. 11-20). 

O professor Guilherme de Souza Nucci faz uma construção crítica acerca do dispositivo constante no caput do artigo 227 da Constituição Federal e, ao posicionar, diz que verificou “ao longo de décadas, o desprestígio da pessoa menor de 18 anos no Brasil. Não tem voz; não tem amparo; não tem afeto; não tem estudo; não tem tratamento de saúde. Não tem o que a Constituição Federal expressamente promete”, e nomeando de anódinos aqueles que meramente comentam o mencionado dispositivo legal, não tomando parte na controvérsia e considerando não existir, na prática, qualquer descumprimento dos direitos fundamentais nele inseridos7 (NUCCI, 2014a, p. 16). 

 

3.8. O Controle de convencionalidade e o aprisionamento feminino 

O controle de convencionalidade é um instrumento que surgiu a partir da harmonização entre atos normativos realizados por um Estado e as regras de tratados internacionais por ele assinado. Busca-se adequar o ordenamento jurídico do Estado com o padrão estabelecido pelo respectivo tratado com vistas a fomentar a proteção direcionada às pessoas ou a grupos delas classificadas vulneráveis. A convencionalidade é um meio que traz eficiência prática às regras contidas nos tratados internacionais de direitos humanos quando permite a inserção dessas normas no conjunto de leis internas de um Estado visando proporcionar um mínimo de garantias tidas com efeito vinculante no âmbito internacional (GOMES, 2018, p. 17).  

O professor Jesus Tupã Silveira Gomes diz que é obrigação do Estado ajustar o seu ordenamento jurídico de acordo com as disposições convencionais e dirigir seus agentes no propósito da prevenção e combate às condutas violadoras de direitos humanos, bem como a punição àqueles que as causaram e a restauração, naquilo que for possível, ao status quo ante das vítimas dos abusos (2018, p. 18). 

Assim, se o Estado é signatário de um tratado internacional de direitos humanos, vincula-se ao resguardo dos direitos e proteção mínima das garantias convencionalmente previstos em favor daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, obrigando-se os órgãos estatais a instituírem e executarem medidas públicas, de natureza administrativa, jurídica ou legal aplicáveis e aptas para tanto, sendo vedado ao Estado a utilização ou ponderação de regras do direito interno para justificar sua inércia ou violação a tais  normas convencionais (GOMES, 2018, p. 16). 

Pode-se dizer que ha três modelos de controle de convencionalidade, ou seja, o controle internacional, o interamericano e o interno. O controle internacional é feito pelas Cortes Internacionais e pelas Cortes Regionais com base na superioridade das regras convencionais sobre as normas jurídicas de cada Estado. A Corte Internacional de Direitos Humanos utiliza-se do controle internacional para invalidar ato normativo interno do Estado que contrarie as regras dispostas em tratados internacionais. O controle interamericano, por sua vez, é de competência dos três poderes estatais, ou seja, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, desde que respeitadas as suas respectivas competências. Por último, o controle interno, que pode ser posto em prática pelos juízes, em controle difuso, ao utilizarem como modelo o conjunto de normas internacionais em complemento ao ordenamento jurídico nacional com vistas à maior garantia e proteção à pessoa sem que haja hierarquia de forma entre as regras internacionais convencionais e as normas de direito interno, observando-se sempre o princípio pro persona (GOMES, 2018, p. 136). 

Oportuno saber que as normas dos tratados internacionais de direitos humanos ao se incorporarem no ordenamento jurídico brasileiro são consideradas como direito interno e agem de maneira semelhante aos atos normativos nacionais. Entretanto, se uma norma oriunda de um tratado internacional sofrer revogação ou for declarada inconstitucional não desonera o Estado brasileiro de suas obrigações assumidas no âmbito internacional e por tal razão pode vir a ser responsabilizado por eventual descumprimento (GOMES, 2018, p. 145). 

O controle de convencionalidade a ser realizado pelos magistrados em qualquer instância deve seguir o rito do controle difuso de constitucionalidade, pois não há o que se falar em controle concentrado de convencionalidade pelo Supremo Tribunal Federal por falta da devida previsão legal, a não ser que as normas internacionais tenham adentrado no ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do procedimento previsto no artigo 5º, §3º da Constituição Federal de 1988. Além disso, na busca de maior efetividade na proteção das vítimas, cujos direitos foram desrespeitados, o Poder Judiciário deve, observado o princípio pro persona, manter uma conexão abrangente com a Corte Interamericana de Direitos Humanos (GOMES, 2018, p. 152). 

Com efeito, relativamente ao encarceramento feminino e atribuição dos juízes brasileiros em realizar o controle de convencionalidade, promover e garantir, de forma mais efetiva, a dignidade humana e a integridade física e psíquica das pessoas presas, principalmente das gestantes, das mulheres presas e seus filhos, o desrespeito aos tratados internacionais de direitos humanos é vexatório. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 5º, dispõe que “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes” (Assembleia Geral da ONU, 1948)8. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, promulgado pelo Decreto nº 592, de 06 de julho de 1992, em seus artigos 7 e 10 também proíbe qualquer tipo de tortura, principalmente as pessoas em situação de privação de liberdade, ou seja, “ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes” (…); o artigo 10 impõem que qualquer pessoa presa deverá ter tratamento humanizado e ter sua dignidade garantida, salientando que as pessoas ainda não condenadas deverão assim serem tratadas e determina que o regime penitenciário deve atender aos fins da reabilitação e reforma dos segregados9. A Convenção Americana de Direitos Humanos, ou o Pacto de San José da Costa Rica, em seus artigos 5º e 11º trazem garantias ligadas à integridade física, psíquica e moral das pessoas e também proíbem qualquer prática de tortura ou abordagem cruel, mormente das pessoas encarceradas; os princípios da intranscendência da pena da presunção de inocência estão estampados quando a norma do artigo 5º, números 3 e 4, diz que “a pena não pode passar da pessoa do delinquente” e que os processados “devem se submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas”; o artigo 11 eleva ao status de dispositivo convencional, em especial a honra e a dignidade, quando diz que “toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade” e que “toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas”. Os dispositivos são claros quando mencionam “toda pessoa”. As Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, Regras de Bangkok, em seu dispositivo 58, proíbe que mulheres infratoras sejam separadas de suas famílias sem se levar em consideração seus laços familiares, devendo serem adotadas medidas alternativas à privativa da liberdade (ALMEIDA, 2018, p. 03). 

A importância do papel dos juízes na eliminação dos abusos, prejuízos e descasos promovidos pelo encarceramento desmedido, principalmente daqueles decretados de maneira cautelar em evidente constrangimento ilegal, é evidenciado pelas palavras do Ministro Marco Aurélio, relator da ADPF 34710, ao descrever o caos em que se encontram os estabelecimentos prisionais brasileiros que não possuem condições mínimas de salubridade e instalações inapropriadas à própria existência humana, apresentando celas imundas que expõem em risco a saúde, pois apresentam precários aparatos hidráulico, sanitário e elétrico, e área externa com esgotos abertos, e constante indisponibilidade de água para banho ou hidratação ou uma alimentação adequada que invariavelmente é servida já inapta para o consumo. Segundo O ministro Marco Aurélio, o descaso é sistemático e as mulheres presas são submetidas a condições sub-humanas, sem acesso ao mínimo de objetos de higiene pessoal, ressaltando a cadeia pública de São Paulo na qual as custodiadas fizeram uso de miolo de pão para substituir o inexistente absorvente íntimo descartável. 

Noutro ponto, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio ressalta que as prisões processuais desmedidas geram um efeito negativo e inócuo, pois além de causar sérios transtornos no sistema prisional brasileiro, também não trazem resultados positivos relacionados aos procedimentos jurídicos processuais e à segurança pública. O ínclito julgador deixa claro que a responsabilidade é do Poder Judiciário e alerta que “o Judiciário, ao implementar número excessivo de prisões provisórias, coloca em prática a “cultura do encarceramento”, que, repita-se, agravou a superlotação carcerária e não diminuiu a insegurança social nas cidades e zonas rurais. 

 

3.9. A proteção à primeira infância 

 O alvo das proteções da Lei nº 13.257/2016 não foi apenas a criança de até seis anos de idade, mas também a gestante ao fazer modificações importantes no Estatuto da Criança e do Adolescente admitindo que a mulher, neste período, também careça de cuidados específicos e contínuos de serviços de saúde, tudo adaptado para fomentar a conexão entre mãe e filho e os benefícios referentes à saúde deles como um todo (EGAS, 2016, p. 259-264).  

Uma das modificações introduzidas pela Lei nº 13.257/2016 foi, ao demonstrar sua responsabilidade protetiva com as crianças na primeira infância, estender as circunstâncias de conversão da prisão preventiva em regime domiciliar, fazendo constar qualquer mulher em estado gestacional, ou mulher com filhos crianças, com as alterações dos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal. Afirma também o defensor Bruno que toda norma deve ser interpretada de acordo com a Constituição Federal e Tratados internacionais e, para o caso em comento, os incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal devem ser lidos com observância aos propósitos do Marco Legal da Primeira Infância, devendo sempre haver preponderância do princípio da proteção integral previsto no artigo 227 da Carta Magna e item 64 das Regras de Bangkok (SILVA, 2016, p. 279-284). 

Toda lei interna deve ser interpretada de acordo com as normas constitucionais e em observância a todos os Tratados internacionais, principalmente aqueles que versam sobre direitos humanos, sendo imprescindível o controle de constitucionalidade e também o de convencionalidade, pois uma lei verdadeiramente válida é aquela que respeita não somente a Constituição Federal, mas sobretudo os Tratados internacionais pertinentes. Assim, a melhor forma de se interpretar os novos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal é ter em consideração o melhor interesse da criança e, diante da estrita necessidade da prisão preventiva, convolá-la em prisão domiciliar cautelar, de forma retirar a criança do cárcere e mantê-la no convívio familiar maternal (SILVA, 2016, p. 279-284). 

O Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Doutor Reynaldo Soares da Fonseca, ao conceder ordem de habeas corpus e converter a prisão preventiva da paciente em regime domiciliar, sustenta que a proteção da criança deve se sobrepor ao direito legalmente destinado às mulheres. O ínclito julgador ensina com maestria que a atual aplicabilidade jurídica da prisão domiciliar implantada pela Lei 13.257/2016, inclusive nos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal, com vistas à integral proteção dos filhos da agente deriva incontestavelmente do princípio constitucional da fraternidade previsto no preâmbulo e no artigo 3º da Carta constitucional, cujos ditames não se originam somente da moral ou de religiões, mas configura-se, sobretudo, como uma categoria jurídica que se mostra como um elemento angular de suma relevância por se envolver com crises sociais e jurídicas de alta complexidade, sendo valorada pelas atuais Constituições como igualdade e liberdade e pode surgir também no âmbito penal por intermédio da conhecida “justiça restaurativa”, da subordinação aos direitos humanos11 (STJ, HC 470459 TO, j. 12/02/2019). 

O direcionamento da proteção às crianças nos casos em que suas mães encontram-se preventivamente presas também foi objeto de alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mesmo antes da entrada em vigor do Marco Legal da Primeira Infância. Percebe-se na fundamentação dos acórdãos que, embora estivessem presentes os requisitos subjetivos para a mantença da custódia cautelar das agentes, houve deferimento da substituição e a conversão para o regime domiciliar com vistas à proteção e garantia dos direitos da criança. O Desembargador Ronaldo Sérgio Moreira da Silva, relator do Habeas Corpus nº 0167165-24.2013.8.26.0000, ao conceder a ordem e substituir a prisão preventiva pela domiciliar, entendeu ser irrefutável que a filha da custodiada, por se tratar de uma recém-nascida, era carecedora dos cuidados da mãe e encontrava-se em período lactante, reconhecendo, inclusive, que o estabelecimento prisional onde a agente estava recolhida era local inapropriado para uma bebê que não teria cometido qualquer crime e em nenhuma circunstância poderia ser castigada pela conduta e comportamento de seus genitores12. 

A colenda 11ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento do Habeas Corpus nº 0095688-38.2013.8.26.0000, o relator, Desembargador Nilson Xavier de Souza fundamenta em seu voto que não há condições mínimas nos presídios brasileiros para preservação da integridade física e higidez psíquica dos custodiados comuns e sequer para garantir e proteger a vida de um recém-nascido e sua genitora puérpera, uma vez que, pela própria natureza deles, há inegável exigência de especial zelo e tratamento diferenciado e específico. Ao conceder a ordem, o iminente julgador também ressaltou a presunção de inocência da agente e lembrou que a decisão efetivamente visa proteger a criança, buscando garantir a ela condições mínimas indispensáveis ao seu regular desenvolvimento saudável13. 

A Procuradoria de Justiça paulista ao se manifestar favoravelmente à concessão de uma ordem de habeas corpus e à conversão da prisão preventiva em domiciliar, considerou tratar de um dever do juiz quando a agente for gestante tendo em vista as inadequadas situações sanitárias dos estabelecimentos prisionais do Brasil, principalmente quando se leva em conta que manter a gestante presa seria infligir à criança sua nascença em local repugnante e apená-la por ilícito jamais cometido. Argumenta também o portentoso Procurador que, apesar da obrigatoriedade legal e estatal consistente na existência e mantença de berçários nos presídios aptos a favorecer que as custodiadas cuidem e zelem pelo desenvolvimento de seus filhos e, principalmente, possam amamentá-los até que contem seis meses de vida, é cediço que esse preceito nunca foi cumprido14. 

Na mesma linha, o Desembargador da 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, juiz Alberto Viegas Mariz de Oliveira, entendeu que o único requisito exigido para que a prisão preventiva possa ser convertida em prisão domiciliar é a prova objetiva de uma das circunstâncias previstas no artigo 318 do Código de Processo Penal e, no caso concreto, a agente era mãe de criança, fazendo, portanto, jus à mencionada conversão. Ao conceder a ordem de habeas corpus, o ilustre Desembargador afirmou que não há o que se analisar a vida pregressa da paciente, pois a norma legal procurou sobrelevar a proteção da criança em detrimento de qualquer outra situação, inclusive à penalização por conduta ilícita15. 

 

Conclusão 

A prisão preventiva é medida cautelar excepcional e somente poderá ser decretada se a lei o permitir e estarem presentes o requisito do fumus commissi delicti e o fundamento do periculum libertatis, desde que haja requerimento do Ministério Público ou representação da Autoridade policial. Essa medida cautelar é pressuposto da prisão domiciliar. Portanto, a prisão domiciliar somente poderá existir se estiver previamente autorizada a segregação preventiva. Se não for cabível a custódia preventiva, não há o que se falar em prisão domiciliar, devendo o agente permanecer em liberdade. 

Embora a Lei nº 13.257 de 08 de maio de 2016 não tenha modificado o caput do artigo 318 do Código de Processo Penal, alterou a norma do inciso IV fazendo constar como circunstância autorizadora da conversão da prisão preventiva em domiciliar apenas e tão somente a qualidade de gestante, ou seja, bastando que a agente se encontrasse em estado gestacional, sendo irrelevante o período da gravidez ou se fosse classificada de alto risco. Mas não foi só isso. O Estatuto da Primeira Infância, como também foi chamada a Lei nº 13.257, fez incluir o inciso V no rol do artigo em comento e pautou o tratamento destinado às mães de crianças quando submetidas à prisão preventiva. 

Tem-se, portanto, duas normas introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro por uma lei que dispõe sobre as políticas públicas voltadas à primeira infância. Oportuno dizer que primeira infância, segundo a própria lei, é “o período que abrange os primeiros seis anos completos ou setenta e dois meses de vida da criança”. 

De fato, as normas dos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal foram introduzidas por uma lei que tem como objetivo promover a integral e absoluta proteção das crianças, mormente aquelas que se encontram nos primeiros estágios da vida. Entretanto, os incisos IV e V cuidam da prisão processual em regime domiciliar e, apenas para argumentar, sabe-se que nenhuma criança será submetida à medida cautelar privativa da liberdade fundamentada em tais regramentos. Por conta disso, poderia surgir a seguinte indagação: a alteração trazida pela Lei nº 13.257 de 2016 aos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal buscou apenas e tão somente beneficiar as gestantes e mães de crianças amenizando os efeitos da segregação em cárcere ou fomentar a integral proteção das crianças com absoluta prioridade? 

Há decisões judiciais denegando à substituição da prisão preventiva de gestantes e mães para o regime domiciliar sob os mais diversos argumentos, dentre eles a gravidade abstrata do delito, chance de reiteração da prática criminosa, contenção da sensação social de impunidade e até com fundamentações baseadas na própria condição do gênero, sob a alegação de que a mulher deveria dar bom exemplo e, por ser mulher e ter cometido um ilícito, sua reprimenda deve ser mais rigorosa. Entretanto, a resposta para a pergunta acima deixada é diferente do entendimento exarado por alguns julgadores. O foco da alteração legislativa sofrida pelos incisos IV e V é a proteção da criança, de maneira integral e absoluta. 

O preceito contido no inciso IV destinado às gestantes não permite qualquer discricionariedade do juiz. Desse modo, comprovada a situação gestacional da agente e sendo necessária sua segregação cautelar, o regime domiciliar se faz imperioso. Neste aspecto não há dúvidas ao julgador que, diante de um caso concreto, constatada a excepcionalidade e necessidade da prisão preventiva da gestante, deverá ela sofrer a segregação em seu próprio lar. 

A circunstância prevista no inciso V do artigo 318 do Código de Processo Penal demanda um procedimento um pouco mais trabalhoso, porém simples. Provado fato que a agente é mãe de criança (artigo 2º do ECA), o juiz deve converter o regime de sua prisão processual em domiciliar. A norma do inciso V, conjugada com aquela contida no parágrafo segundo do mesmo artigo 318 não exigem nada além de prova idônea de que a mulher tenha um filho de até doze anos de idade incompletos. Entretanto, é comum encontrar decisões denegatórias da substituição baseadas no fato de que não há provas que o filho criança esteja sob os cuidados da mãe ou resida com ela. Para conter esse abuso judicial, bastaria o magistrado atender à melhor interpretação da regra do inciso V e converter a preventiva em domiciliar e, na ocasião de pairar dúvida se a criança realmente esteja sob os cuidados da mãe, bastaria determinar um estudo social pela equipe interdisciplinar colocada à disposição do juízo. 

Questão fundamental a ser considerada pelo juiz quando está convencido ser caso de decretação da prisão preventiva de gestante, mãe, lactante ou puérpera, é o princípio do melhor interesse da criança que jamais deverá ser superado por quaisquer circunstâncias. 

A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de habeas corpus coletivo (HC 143.641), traçou importantes regras para a interpretação dos dispositivos legais dos incisos IV e V do artigo 318 do Código de Processo Penal e determinou a conversão da prisão preventiva de todas as gestantes que se encontravam em situação de segregação processual. O Ministro Enrique Ricardo Lewandowski, relator da decisão em tela, deixou claro que a regra é a substituição da prisão preventiva em prisão domiciliar de todas as gestantes e mães de crianças. Também elencou exceções a tal regra, aduzindo que se o crime foi cometido com ameaça ou violência ou contra os filhos, o julgador poderá manter a prisão em cárcere e que se houver outra situação excepcionalíssima, caberá o magistrado, se entender pelo encarceramento, fundamentar especificamente sua decisão. 

Com efeito, ao magistrado incumbe, de forma indispensável, atender aos dispositivos constitucionais e também convencionais ao decidir pelo encarceramento feminino ou pela aplicação de medidas alternativas menos gravosas. 

A Constituição Federal é a chave para que muitas injustiças ou constrangimentos ilegais cometidos pelo próprio Poder Judiciário sejam evitados. O dispositivo do artigo 227 da Constituição Federal é esclarecedor, mas ignorado pelos operadores do direito. O Ministro Marco Aurélio enfatiza que a intervenção judicial deve amenizar a sistêmica omissão estatal de violação de direitos fundamentais. 

Os tratados internacionais de proteção às mulheres e crianças, e especificamente aquelas que se encontram encarceradas, destacando-se assim, o Tratado de Bangkok e as Regras de Tóquio, delineiam um panorama bem diferente daquele que o Brasil atualmente está seguindo.  

Com efeito, se fosse atribuída uma interpretação teleológica aos dispositivos legais dos incisos IV e V e ao caput do artigo 318 do Código de Processo Penal, certamente o melhor interesse da criança seria atendido e as normas constitucionais e convencionais seriam, inclusive, respeitadas. Além disso, muitos problemas e efeitos do nefasto encarceramento feminino seriam resolvidos ou deveras amenizados. 

A semântica do poderá evoluiu para poucos. Muitos juízes ainda leem o “poderá” do caput do artigo 318 do Código de Processo Penal de forma literal, limitada e ignoram de forma contumaz a vontade do legislador quando inovou os dispositivos dos incisos IV e V, destinados primordialmente à proteção da primeira infância, e também desconsideram por completo os controles constitucionais e convencionais que poderiam trazer às decisões dos magistrados um caráter mais humano e menos mecanizado. As normas do artigo 318 e incisos IV e V do Código de Processo Penal constituem autêntico direito subjetivo de gestante e mães de crianças e não mera expectativa. A função do juiz é garantir e fazer cumprir esse direito. 

Por fim, a prisão processual de gestantes e mães de crianças no cárcere, sob a égide de mera exegese literal, configura nítido constrangimento ilegal, seja porque contraria o melhor sentido da lei e porque fere os ditames constitucionais e desrespeita os dispositivos de controles convencionais. Essa prisão, portanto, contraria a legislação brasileira, afronta a Constituição Federal e desrespeita as normas convencionais. 

 

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SANTOS, José Heitor dos. Aleitamento materno nos presídios femininos.  Disponível em <https://www.ibccrim.org.br/artigo/551-Artigo-Aleitamento-materno-nos-presidios-femininos>. Acesso em 08 de junho de 2019. 

 

SILVA, Bruno César da. A prisão domiciliar como a melhor forma de garantir os direitos dos filhos de mães presas no período da primeira infância. Avanços do Marco Legal da Primeira Infância – Caderno de Trabalho e Debates, p. 279-284. Disponível em < https://bit.ly/3vPT9NI>. Acesso em 24 de março de 2021. 

 

TÁVORA, Nestor e ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 12. ed., São Paulo: Juspodivm, 2017. 

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