Rafaela Martins da Silva[1], Alessandro Dorigon[2]
Resumo: Objetivou-se com a presente pesquisa analisar o novel instituto do acordo de não persecução penal, mecanismo da justiça consensual inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Resolução n. 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e regulamento pela Lei 13.964/2019, de modo a examinar a regulamentação do instituto, analisar os requisitos necessários para sua celebração e cumprimento da avença, bem como examinar as questões controvertidas a respeito do instituto.
Palavras-chave: Acordo de Não Persecução Penal. Justiça Consensuada. Processo Penal. Legalidade do Acordo de Não Persecução Penal.
Non Criminal Prosecution Agreement: An Analysis Over The Novel Instrument Of Consensual Justice And Its Controversies
Abstract: This present research aims to analyse the novel instrument of the non criminal prosecution agreement, an consensual justice device introduced in the brazilian legal system by the no. 181/2017 Resolution of the National Council of the Public Ministry and regulated by the 13.964/2019 Law, in order to study the instrument’s regulation, to analyse the requisites for its effectuation and fulfillment of its pact, as well as to examine the controversies regarding the instrument.
Keywords: Non Criminal Prosecution Agreement. Consensual Justice. Penal Suit. Legality of the Non Criminal Prosecution Agreement.
Sumário: Introdução. 1. A inserção do acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico brasileiro. 2. O acordo de não persecução penal. 2.1. Da aplicação do acordo de não persecução penal. 2.1.1 O momento em que o ANPP deve ser celebrado. 2.1.2 Requisitos para a celebração do ANPP. 2.1.2.1. Requisitos objetivos. 2.1.2.2. Requisitos subjetivos. 2.1.3 Condições a serem acordadas entre o Ministério Público e o investigado. 2.2 Da apreciação judicial do ANPP. 2.3. Da execução do ANPP. 2.3.1 Do descumprimento do ANPP. 2.3.2. Do cumprimento do ANPP. 3. Questões controvertidas. 3.1. As ações penais privadas e privadas subsidiárias da pública e o ANPP. 3.2 ANPP: direito subjetivo do investigado ou mera faculdade do Ministério Público?. 3.3. A confissão em sede de ANPP e sua utilização como prova em eventual instrução. 3.4. Processo com múltiplos réus e a confissão do réu que celebrou ANPP. 3.5. Descumprimento do acordo e julgamento do processo pelo mesmo juiz que homologou o ANPP. 3.6. A celebração de ANPP na Justiça Especial. 3.7. A celebração de ANPP em processos instaurados antes da vigência da Lei 13.964/2019. Conclusão. Referências.
Introdução
O Poder Judiciário é frequentemente criticado pela sociedade, que vê nele uma dificuldade de tornar efetiva a lei penal. Contudo, tal dificuldade se deve ao aumento do número de processos nos últimos anos, como aponta estudos do Conselho Nacional de Justiça, bem como a morosidade da tramitação de referidos processos, que por sua vez, é resultado da ausência de recursos, tanto materiais como humanos, dos mais diversos órgãos que compõe o sistema penal.
Frente a crise enfrentada pela justiça criminal brasileira, não é possível que todos os crimes sejam tratados da mesma forma, é preciso destacar aqueles que trazem maior prejuízo social, de forma que aqueles que são menos prejudiciais possam ser resolvidos de forma mais célere, como por exemplo, através da justiça consensual/negociada.
Buscando solução a esses problemas e seguindo uma tendência internacional, o Brasil vem adotando desde 1995 medidas de consenso no âmbito do Direito Penal, como se pode notar com a criação da Lei 9.099/95 que traz ao ordenamento jurídico os institutos da composição civil, da transação penal e da suspensão condicional do processo; a Lei 12.850/13 que regulamentou a colaboração premiada, e agora, mais recentemente, com a Lei 13.964/2019 que instituiu o acordo de não persecução penal.
Então, visando despender mais tempo e recursos aos crimes de maior prejuízo social, o legislador acolheu no ordenamento jurídico brasileiro o instituto do acordo de não persecução penal, que será objeto de estudo no presente artigo.
Nesse sentido, o presente artigo se propõe a abordar a história do instituto no Brasil e no direito comparado, de forma a analisar a introdução desse mecanismo no ordenamento jurídico brasileiro pela Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, bem como analisar a utilização do referido instituto em países europeus.
Ainda, conceituará o novel acordo de não persecução penal, de modo a verificar o momento em que deve ser celebrado, analisando os requisitos exigidos para a celebração do pacto, assim como a averiguar as condições de cumprimento que podem ser pactuadas, a homologação do acordo pelo judiciário e a execução do referido acordo.
Além disso, fará uma breve análise dos modelos de justiça consensual e diferenciará o novo mecanismo com as medidas conciliatórias já presentes na legislação brasileira, como a suspensão condicional do processo, a colaboração premiada e a transação penal.
Também, analisará a controvérsia acerca constitucionalidade do instituto que estava previsto na Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, bem como a compatibilidade do acordo com alguns princípios do processo penal pátrio.
Por fim, analisará as principais problemáticas relacionadas ao acordo de não persecução penal e dilemas práticos que poderão surgir.
- A inserção do acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico brasileiro
O acordo de não persecução penal (ANPP) surgiu no Brasil por meio da Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) – mais tarde alterada pela Resolução 183/2017 também do CNMP – que fundamenta a adoção do instituto na tendência mundial do emprego da justiça consensuada como resposta ao crime, bem como o princípio da eficiência e a opção que a Constituição Federal faz pelo sistema acusatório, de forma que facilita que sejam realizadas mudanças no que tange as investigações criminais e o processamento de ações penais no Brasil (CUNHA; SOUZA, 2020).
Conforme preceitua Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020), antes da adoção de institutos da justiça consensuada o sistema penal brasileiro enfrentava uma situação de deterioração, pois a impunidade juntamente com a sua falta de credibilidade, vinham e ainda vem ocasionando o surgimento de diversos movimentos na sociedade que são muito perigosos e que, uma vez instalados, resultam na dificuldade de retomar a normalidade.
“Nesse sentido, basta observar os preocupantes movimentos de milícias, de grupos de extermínio e de justiceiros que vêm se espalhando, com uma força cada vez maior, em nossa sociedade. Na própria polícia, tem-se notado um grande sentimento de revolta contra a impunidade. No meio de certas facções policialescas e no seio de muitas comunidades e agrupamentos menos esclarecidos, a revolta contra a impunidade tem se transformado em um aberto ataque aos direitos humanos. Como se não fosse possível punir, respeitando-se os direitos fundamentais. […]” (CABRAL, 2020, p. 37).
Destarte, levando em consideração que o cenário apresentado não pertence somente ao Brasil, é possível entender o porquê da tendência mundial em adotar mecanismos consensuais no âmbito penal. Esses que se mostram necessários, inclusive para aqueles que são críticos da justiça penal consensuada, como é o caso do professor alemão Bernd Schünemann (apud CABRAL, 2020 p. 14), que reconhece que “O ideário do século XIX, de submeter cada caso concreto a um juízo oral completo […] somente é realizável em uma sociedade sumamente integrada, burguesa, na qual o comportamento desviado cumpre quantitativamente somente um papel secundário. Nas sociedades pós-modernas […] com sua propagação quantitativamente enorme de comportamentos desviados, não resta outra alternativa que a de chegar-se a uma condenação sem um juízo oral detalhado, nos casos em que o suposto fato se apresente como tão profundamente esclarecido já na etapa da investigação, que nem sequer ao imputado interessa uma repetição da produção da prova em audiência de instrução e julgamento.”.
Analisando esse contexto, é que o CNMP, visando à solução institucional do problema, optou por prever o acordo de não persecução penal por meio de resolução, pois embora ciente de que a melhor forma de introduzir o mecanismo fosse através de uma legislação, sabia também que era a solução mais célere para se alcançar os objetivos pretendidos com o ANPP (CABRAL, 2020).
O Brasil, no entanto, não foi o único país a adotar soluções desse modelo sem autorização legal, já que outros países de tradição democrática, como a Alemanha, Portugal e França, implementaram medidas consensuais por meio de iniciativa institucional sem amparo legal (CABRAL, 2020), sendo inclusive citados pelo CNMP como fundamento.
Contudo, o referido instituto foi alvo de muitas críticas, principalmente em relação à forma (resolução) pela qual foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro, motivo pelo qual foi questionada sua constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal.
Todavia, as discussões a respeito da constitucionalidade do referido instituto cessaram com a entrada em vigor da Lei 13.964/2019, denominada Pacote Anticrime, pois o ANPP passou a ser regulamentado por uma lei ordinária, nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal.
Assim, o ANPP é um instituto da justiça consensuada, que visa à solução de problemas criminais por meio de um acordo por meio do qual o parquet tem a possibilidade de resolver a prática de um delito de médio potencial ofensivo, sem a necessidade de um processo penal, trazendo, dessa forma, celeridade e econômica de recursos, vez que não precisa movimentar a máquina judiciária.
No que concerne a natureza jurídica do acordo, essa deve ser caracterizada por um negócio jurídico que objetiva a política criminal do titular da ação penal na persecução dos delitos. Isso porque, conforme preceitua Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 84), “No acordo de não persecução penal há um consenso, um acordo de vontades, em que o investigado voluntariamente concorda em prestar serviços à comunidade ou pagar prestação pecuniária (ou cumprir outros requisitos previsto na Lei), em troca do compromisso do Ministério Público de não promover a ação penal e de pugnar pela extinção da punibilidade, caso a avença seja integralmente cumprida.”.
No entanto, o Ministério Público somente realizará esse acordo caso exista uma vantagem político-criminal para a persecução penal, cujos parâmetros de avaliação encontram-se previstos no art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP), mas que têm subjacentes a ideia de que se o MP abrir mão da persecução penal realizará uma eleição de prioridades, é dizer, priorizará a persecução penal em juízo dos crimes mais graves.
Isso posto, passa-se a analisar da aplicação do referido negócio jurídico extrajudicial nos termos apresentados pela Lei 13.964/2019.
- O acordo de não persecução penal
O acordo de não persecução penal, como já exposto, foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e mais tarde, foi regulamentado pela Lei 13.964/2019, conhecida como Lei Anticrime.
O ANPP é um instituto da justiça consensuada, que visa à solução de problemas criminais através de um acordo por meio do qual o parquet tem a possibilidade de resolver a prática de um delito de médio potencial ofensivo, sem a necessidade de um processo penal, trazendo, dessa forma, celeridade e econômica de recursos, vez que não precisa movimentar a máquina judiciária.
Entende Aras (2020, p. 321) que o acordo de não persecução penal é “[…] um negócio jurídico bilateral de eficácia condicionada à sua homologação judicial, que impacta sobre o exercício da ação penal pública, condicionada ou incondicionada.”, que acaba por implicar na confissão voluntária, contudo não exigindo a delação de terceiros. Já Vasconcellos (2020, p. 05),entende que o ANNP “trata-se de mecanismo consensual, em que o imputado se conforma com a imposição de sanção (não privativa de liberdade) em troca de eventual benefício, como redução da pena e a não configuração de maus antecedentes.”.
Nesse sentido, de acordo com Cabral (2020, p. 81), a natureza jurídica do ANPP pode ser analisada de duas perspectivas diferente, uma no que tange a natureza do próprio acordo e outro no que se refere à natureza das condições que o acusado assume no ANPP.
No que concerne a natureza jurídica do acordo, essa deve ser caracterizada por um negócio jurídico que objetiva a política criminal do titular da ação penal na persecução dos delitos.
Isso porque, conforme preceitua Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 84), “No acordo de não persecução penal há um consenso, um acordo de vontades, em que o investigado voluntariamente concorda em prestar serviços à comunidade ou pagar prestação pecuniária (ou cumprir outros requisitos previsto na Lei), em troca do compromisso do Ministério Público de não promover a ação penal e de pugnar pela extinção da punibilidade, caso a avença seja integralmente cumprida.”.
No entanto, o Ministério Público somente realizará esse acordo caso exista uma vantagem político-criminal para a persecução penal, cujos parâmetros de avaliação encontram-se previstos no art. 28-A do Código de Processo Penal, mas que têm subjacentes a ideia de que se o MP abrir mão da persecução penal estará realizando uma eleição de prioridades, é dizer, estará priorizando a persecução penal em juízo dos crimes mais graves.
Já no que tange a natureza jurídica das condições que o acusado assume, pode-se dizer que trata-se apenas de obrigação negocial que se concretiza como um equivalente funcional da pena.
Posto isto, Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 274) dispõe que o acordo de não persecução penal “Na sistemática adotada pelo art. 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), cuida-se de negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessariamente homologado pelo juízo competente […], celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso – devidamente assistido por seu defensor -, que confessa formal e circunstanciadamente a prática do delito, sujeitando-se ao cumprimento de certas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do Parquet de não perseguir judicialmente o caso penal extraído da investigação penal, leia-se, não oferecer denúncia, declarando-se a extinção da punibilidade caso a avença seja integralmente cumprida.”.
Dessa forma, passa-se a analisar a aplicação do referido negócio jurídico extrajudicial nos termos apresentados pela Lei 13.964/2019.
2.1 Da aplicação do acordo de não persecução penal
Por ser um instituto novo no ordenamento jurídico brasileiro, é natural que haja inúmeras dúvidas e questionamentos que circundem o acordo de não persecução penal, inclusive quanto a sua aplicação.
Assim, é necessário que se delibere no sentido de esclarecer pontos como o momento em que deve ser aplicado, os requisitos objetivos e subjetivos para o cabimento do acordo, se o referido mecanismo é um direito subjetivo do acusado ou apenas uma faculdade do Ministério Público, entre outros questionamentos que aqui serão esclarecidos.
2.1.1 O momento em que o ANPP deve ser celebrado
Antes da vigência da Lei 13.964/2019, o Ministério Público possuía três opções após a instauração, instrução e conclusão dos inquéritos policiais ou procedimento investigatório institucional, quais sejam: a) denunciar, se presentes as condições necessárias para o exercício da ação penal; b) solicitar mais diligências ou c) ordenar o arquivamento. No entanto, após a vigência da Lei Anticrime o Ministério Público obteve mais uma opção dentre aquelas que já possuía, qual seja o oferecimento do acordo de não persecução penal (LOPES JUNIOR, 2020, p. 220).
Nesse sentido, o art. 28-A do Código de Processo Penal dispõe que “Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente.”.
Assim, não sendo caso de arquivamento, ou seja, sendo o caso de oferecimento de denúncia, a Lei permite que o Ministério Público, nos casos em que o investigado confesse formalmente e circustancialmente a prática do delito, este que deve ter sido praticado sem violência ou grave ameaça e ainda ter pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, não ofereça a denúncia, mas sim o ANPP.
Dessa forma, por óbvio, o ANPP é proposto na fase anterior ao eventual oferecimento de denúncia, sendo então celebrado, de acordo com o texto legal, ainda na fase de investigação, por isso que é considerado um negócio jurídico extrajudicial.
Insta consignar que a Resolução nº 183/2017 do CNMP previa em seu art. 18, § 7º, a possibilidade do acordo de não persecução penal ser celebrado em ocasião da audiência de custódia, no entanto, o art. 28-A do CPP não prevê tal possibilidade, contudo não significa que essa oportunidade esteja vedada. Conforme o entendimento de Aury Lopes Júnior (2020), se for o caso de realização do acordo e a especificidade do caso permitir, poderá sim ser celebrado em audiência de custódia.
Dessa forma, alguns Tribunais e Ministério Público do país fizeram orientações quanto a quando à celebração do ANPP se der em audiência de custódia. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entende que “a proposta de acordo de não persecução penal poderá ser formalizada no plantão judiciário ou na audiência de custódia; devendo-se, para tanto, consignar no termo de audiência a proposta ministerial.” (BRASIL, 2020, p. 08), em contrapartida o Ministério Público do Estado de Goiás orienta os seus promotores que embora possa ser celebrado o ANPP na mesma oportunidade da audiência de custódia, a celebração nas audiências de custódia realizadas em plantão judicial é inadequada, pois fere o princípio do juiz e promotor natural (BRASIL, 2020, p. 04).
Ainda, há discussão acerca da possibilidade de aplicação do ANPP nos processos que já estavam em curso quando a Lei 13.964/2019 entrou em vigor.
Nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima (2020) entende que o ANPP poderá ser celebrado nos casos ocorridos em momento anterior a Lei, desde que a denúncia não tenha sido recebida pelo magistrado, fundamentando no Enunciado n. 20 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), que diz que “Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.” (BRASIL, 2020, p. 06). Contudo, considera que, tendo o art. 28-A, § 13º do CPP previsto a extinção da punibilidade como uma conseqüência do cumprimento integral do ANP, é possível a celebração do acordo nos processos criminais em andamento, pois trata-se de norma de natureza material mais benéfica ao acusado. Já Aury Lopes Junior (2020) entende que o ANPP pode ser oferecido aos processos que já estavam curso quando a Lei 13.964/2019 entrou em vigor, pois sendo uma norma mista, retroage para beneficiar o réu. Entretanto, acredita não existir obstáculos para o oferecimento do ANPP em qualquer fase do procedimento, na eventualidade de não ter sido acordado no início do processo.
Observa-se que, no que tange a aplicação do ANPP nos processos em andamento quando da entrada em vigor da Lei Antricrime, a discussão acaba por ser a natureza material ou processual do acordo, pois entendendo tratar-se de natureza processual não há que se falar em aplicação nas ações penais em andamento, visto que normas dessa natureza não retroagem, no entanto, se o entendimento for de que trata-se de norma de natureza material ou mista, que é o caso dos doutrinadores supracitados, deve então retroagir e atingir os processos em andamento.
Portanto, como muitos outros pontos que serão abordados no presente estudo, a questão da celebração do acordo durante a audiência de custódia e a retroatividade da norma que prevê o acordo, não possuem entendimento jurisprudencial firmado.
2.1.2 Requisitos para a celebração do ANPP
O art. 28-A do Código de Processo Penal determina requisitos para a celebração do acordo de não persecução penal. Tais requisitos podem ser divididos didaticamente em requisitos objetivos, quando dizem respeito ao fato objetivo, ou requisitos subjetivos, quando estão ligados ao investigado. Passe-se então a análise de cada um deles.
2.1.2.1 Requisitos objetivos
De acordo com a doutrina, os requisitos objetivos exigidos para a celebração do ANPP têm relação com a pena mínima cominada ao delito, a utilização de violência e/ou grave ameaça no seu cometimento e também com o cumprimento das funções político-criminais. Há, também, requisitos objetivos quanto à vedação da celebração do acordo, os quais também serão analisados.
No que tange a pena mínima cominada ao delito, o caput do art. 28-A do CPP dispõe que o acordo de não persecução penal será cabível apenas para os delitos cuja pena mínima seja inferior a 4 (quatro) anos, devendo levar em consideração, conforme o § 1º, as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.
Assim, Cabral (2020, p. 89) entende que com a previsão desse requisito objetivo “[…] buscou-se, ainda que de forma aproximativa, descortina-se a eventual pena que o investigado receberia caso condenado e – uma vez constatado que, provavelmente, não seria o caso de aplicação de pena privativa de liberdade, mas sim restritiva de direito – acabou o legislador optando por possibilitar a celebração do acordo de não persecução penal, como solução alternativa ao processo penal.”.
Ainda, vale ressaltar que “para a aferição da pena mínima cominada ao delito, devem ser levadas em consideração as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto” (LIMA, 2020, p. 279-280), conforme prevê o § 1º do art. 28-A do CPP.
Nesse sentido, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e o Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM) criaram o Enunciado n. 29 que dispõe que “Para a aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o art. 28-A, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto, na linha do que dispõe os enunciados sumulados n. 243 e n 723, respectivamente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.” (BRASIL, 2020, p. 08).
Ademais, é possível verificar que muitas das soluções necessárias a problemas referentes ao acordo de não persecução penal, serão encontradas com base nos entendimentos acerca dos institutos consensuais já existentes em nosso ordenamento jurídico. Veja, por exemplo, o que dispões as súmulas citadas no Enunciado n. 29 do CNPG e GNCCRIM. “Súmula 243 do STJ – O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.”. (BRASIL, 2001). “Súmula 723 do STF – Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano.”. (BRASIL, 2003).
Dessa forma, entende-se, então, que o acordo de não persecução penal não poderá ser aplicado quando, seja por concurso material, formal, continuidade delitiva ou crime continuado, a pena mínima cominada, observando a soma das penas e a incidência de majorante, ultrapassar 4 (quatro) anos.
Além disso, importante ressaltar que para o estabelecimento da pena mínima, quando houver causa de aumento deve-se optar abstratamente pelo aumento mínimo previsto na lei, e quando houver causa de diminuição, está deve ser aplicada em seu máximo (CABRAL, 2020).
Já em relação ao emprego de violência e grave ameaça no cometimento do delito, o caput do art. 28-A dispõe que só é cabível o acordo de não persecução penal caso a infração penal investigada não tenha sido cometida com violência ou grave ameaça.
A opção por esse requisito pelo legislador trata-se de uma escolha política-criminal que visa não beneficiar pessoas que utilizaram da violência ou da grave ameaça para praticar os delitos cometidos. Certo é que isso se deve a maior reprovabilidade dessas condutas (BITENCOURT, 2018).
Conforme preceitua Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 91), esse requisito deve ser interpretado de acordo com o art. 44, I do Código Penal que agoura as possibilidades de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito. Ainda, entende que o acordo foi possibilitado nesses casos, pois provavelmente quando condenado o réu, esse seria beneficiado com a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.
Como se sabe, a violência pode ser contra a pessoa ou contra coisas, nesse caso, entende-se que a restrição à celebração do acordo por violência no cometimento do delito se refere a violência contra a pessoa, devido a interpretação sistemática do Código de Processo Penal, no mesmo sentido da aplicação da possibilidade da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos (CABRAL, 2020).
Existe uma divergência na doutrina quanto a vedação da celebração do acordo nos casos de violência culposa. De acordo com Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020), a restrição vale tanto para a violência dolosa como a culposa, uma vez que o legislador não optou por restringir ao dolo, como no parágrafo único do art. 71 do Código Penal, nem mesmo fez previsão expressa da possibilidade de celebração do ANPP para os delitos culposos, como o fez no art. 44, I, in fine do Código Penal. Ainda, entende que deve ser abrangida qualquer modalidade de violência, como por exemplo, a violência real, imprópria e presumida, vez que o legislador não restringiu o conceito de violência. Já Renato Brasileiro de Lima (2020), preceitua que diante do silêncio do art. 28-A, caput do Código de Processo Penal, deve ser entendido que àquele se refere à violência ou grave ameaça praticada a título doloso, sendo permitida então a celebração do acordo nas hipóteses de eventual crime culposo com resultado violento. No mesmo sentido de Lima é o entendimento do CNPG e do GNCCRIM, que levou a edição do Enunciado n. 23 que dispõe que “É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pelo agente, apesar de previsível. ” (BRASIL, 2020, p. 07).
Destarte, no que se refere a necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção do crime, o art. 28-A do Código de Processo Penal dispõe que o acordo só poderá ser celebrado se ele for necessário e suficiente para a prevenção e reprovação do crime.
Conforme alude Cabral (2020, p. 93), é possível verificar se o ANPP é suficiente para a prevenção e a reprovação do delito conforme o contexto que este foi cometido, assim, entende que “[…] se no caso concreto exista algum elemento que não recomende, desde uma perspectiva preventiva do delito, a celebração a avença, não deverá ser celebrado o acordo de não persecução penal. É dizer, a simples dúvida se o acordo preenche ou não essas diretrizes político-criminais já é suficiente para o seu não oferecimento. Isso porque, o que deve estar provado nos autos é que o acordo cumpre esses requisitos político-criminais, não o contrário.”.
Assim, para verificar se o ANPP é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, é recomendado utilizar como critério as circunstâncias judiciais presentes no art. 59 do Código Penal, assim como ponderar as agravantes previstas na legislação penal que estiverem relacionadas ao caso, do mesmo modo, observa-se também o disposto no art. 44, III do Código Penal para a análise da necessidade e suficiência do ANPP. Nesse sentido, há o entendimento de que ao membro do Ministério Público é possibilitada a utilização de parâmetros normativos que forem estabelecidos pela própria instituição para que seja evitado o tratamento disforme (CABRAL, 2020).
Ademais, conforme dispõe Cabral (2020) vale ressaltar que o juízo da necessidade e suficiência para a prevenção e reprovação do crime integra a liberdade que a Constituição Federal atribui aos membros do Ministério Público no art. 127, § 1º, que se origina da função de titular do exercício da ação penal, conforme prevê o art. 129, I também da Constituição Federal, fato pelo qual o Poder Judiciário não pode interferir.
Dessa forma, não há que se falar em subjetivismo na análise da necessidade e suficiência, visto que as decisões do membro do Ministério Público devem sempre ser fundamentadas.
Por fim, para que a celebração do ANPP seja possível é necessário que não seja o caso de arquivamento do procedimento investigatório, de acordo com o caput do art. 28-A.
Consoante a isso, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 106) estabelece que para que o ANPP possa ser proposto e celebrado “[…] a investigação criminal (seja IP, PIC, CPI ou outros elementos de informação) já deve estar madura para o oferecimento da denúncia. É dizer, devem estar plenamente preenchidas as condições da ação penal.”.
Assim, de acordo com o nobre doutrinador Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 280), “[…] deverá existir aparência da prática criminosa (fumus comissi delicti), punibilidade concreta (v.g., não estar prescrita a pretensão punitiva), legitimidade da parte (v.g., ser o crime de ação penal pública, praticado por pessoa maior de idade) e justa causa (suporte probatório mínimo a fundamentar uma possível acusação.”.
Quanto a justa causa, Cabral (2020) compreende que essa é merecedora de uma atenção especial, pois o ANPP não pode ser utilizado como instrumento para se obter justa causa à investigação, de forma que o acordo só será cabível quando já existir justa causa amparada em uma base factual investigativa e quando não for o caso de arquivamento da investigação.
Dessarte, se o titular da ação penal entender que é caso de arquivamento, não poderá proceder à celebração do acordo. Embora o Código de Processo Penal não prevê expressamente as hipóteses que autorizam o arquivamento do procedimento investigatório, é possível, através de analogia, a aplicação das hipóteses de rejeição da peça acusatória e de absolvição sumária, que estão previstas nos arts. 395 e 397 do Código de Processo Penal.
Outrossim, há requisitos objetivos que constituem causas de vedação da celebração do acordo de não persecução penal, que serão analisados a seguir.
Conforme dispõe o art. 28-A, § 2º, I, é vedada a possibilidade de celebração de acordo nos casos em que a transação penal for cabível, isso porque o legislador escolheu impossibilitar a aplicação de um mecanismo mais gravoso quando fosse possível a aplicação de um menos gravoso.
Dessa forma, a transação penal possui preferência sobre a celebração do acordo de não-persecução penal, de modo que se o agente fizer jus ao benefício previsto no art. 76 da Lei nº 9.099/95, não será cabível o ANPP (LIMA, 2020).
Dessarte, o legislador optou por essa vedação “para impedir uma confusão de dupla incidência de modalidade de acordo para um mesmo caso, em que há uma distinta gravidade de intervenção e uma distinta gravidade de crime” (CABRAL, 2020, p. 100).
Nessa lógica, surge o questionamento se o ANPP estaria vedado também quando fosse cabível a suspensão condicional do processo. Nesse caso, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020) entende que não seria o caso de vedação, vez que não houve vedação expressa pela Lei e o art. 28-A, § 11º do CPP dispõe que o descumprimento do ANPP pode ser justificativa para o Ministério Público deixar de oferecer uma eventual suspensão condicional do processo, deixando claro que é possível a celebração de acordo nos casos em que é cabível a suspensão condicional do processo.
Outro critério objetivo que impede a celebração do acordo está previsto no inciso IV, § 2º, art. 28-A do CPP, que dispõe que o ANPP também será vedado quando o crime for cometido no âmbito de violência doméstica ou familiar ou se for praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino. Assim, deve-se analisar as duas hipóteses separadamente.
No que se refere ao crime cometido no contexto doméstica, têm-se que este engloba os delitos que envolvam pessoas, não sendo necessário a distinção de gênero, que convivam num mesmo lugar físico, devendo este lugar integrar o lar que abriga a comunhão de vida entre tais pessoas, embora essa convivência possa ser eventual e não necessariamente ser uma relação familiar. Já no que tange aos crimes que são cometidos no âmbito familiar, estes não levam em consideração o espaço físico em que as pessoas envolvidas estão inseridas, mas sim a relação de parentesco entre elas, podendo a vítima ser de qualquer sexo, gênero, orientação sexual ou idade (CABRAL, 2020).
Ainda, de acordo com Rodrigo Ferreira Leite Cabral (2020), deve-se observar que a violência de que se trata o art. 28-A, § 2º, inciso IV do CPP não corresponde a violência física, pois o cometimento de crime com violência física rompe o requisito objetivo previsto no art. 28-A, caput do CPP, mas sim a violência psicológica, sexual, patrimonial ou moral.
Ressalta-se que tal vedação segue a mesma linha da Súmula 536 do STJ (BRASIL, 2015) que dispõe que “A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha.”.
Já em relação aos crimes cometido contra mulher, por razões da condição do sexo feminino, em favor do agressor, “pouco importa se o delito foi (ou não) praticado no contexto da violência doméstica ou familiar” (LIMA, 2020, p. 282).
Conforme dispõe Núñez Castaño (apud Cabral 2020, p. 103), nos crimes cometidos nessa circunstância “[..] estão incluídos aqueles delitos que são cometidos contra as mulheres, pela sua própria condição de mulher ou valendo-se da condição da mulher ofendida, em que se pretenda sua diminuição, coisificação ou que se pretenda tratá-la como se fosse um objeto disponível ou inferior.”.
Ademais, vale ressaltar que essa vedação não se aplica exclusivamente aos crimes cometidos com violência, seja ela física, moral, psicológica ou sexual, mas se aplica também aos crimes contra a mulher, por razão da condição do sexo feminino, praticados sem violência, diferenciando do requisito presente na primeira parte do inciso IV, ora em comento (CABRAL, 2020).
2.1.2.2 Requisitos subjetivos
Para que o acordo de não persecução penal possa ser celebrado o investigado deve cumprir alguns requisitos subjetivos previsto na lei, tais requisitos se revelam através de uma condição e duas vedações.
No que concerne ao requisito subjetivo como condição para a celebração do acordo, esse está estabelecido no caput do art. 28-A do Código de Processo Penal que dispõe que para a celebração do ANPP o investigado deve confessar formal e circunstanciadamente a prática da infração penal.
Nesse diasapão, entende-se como confissão circunstanciada “[…] aquela que apresenta a versão detalhada dos fatos, cujas informações mantenham uma coerência lógica, compatibilidade e concordância com as demais provas contidas no procedimento.” (SOUZA; DOWER, 2020, p. 176).
Destarte, a formalidade dessa confissão resta assegurada pelo art. 18, § 2º da Resolução nº 181/2017 do CNMP, vez que o art. 28-A do CPP não a revogou, de forma que ainda vigora. O art. 18 da referida resolução dispõe que “A confissão detalhada dos fatos e as tratativas do acordo serão registrados pelos meios ou recursos de gravação audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações, e o investigado deve estar sempre acompanhado de seu defensor.” (BRASIL, 2018).
Ademais, Renee Ó Souza e Patrícia Eleutério Campos Dower (2020, p.176) preceituam que a confissão “Trata-se de providência de viés unicamente processual, que busca assegurar que o acordo é celebrado com a pessoa cujas provas indicam ter sido a autora da infração penal. A confissão produz deste modo dois efeitos práticos: impede que um acordo de não persecução seja celebrado por pessoas cujas provas não indicam ou convirjam para sua participação no delito. Além disso, a confissão produz, no confitente, um novo mindset com efeito psíquico de arrependimento pela prática da infração penal, sentimento apto a produzir uma mudança de atitude e comportamento que parte da ideia de que para corrigir um erro é necessário que o responsável o admita, o que aumenta seu senso de responsabilidade e comprometimento com o ato, atributos que reforçam a confiança no cumprimento integral do Acordo de não persecução.”.
Vale ressaltar, também, que não há que se falar que a confissão poderá ser induzida pelo Ministério Público, pois para que o acordo seja proposto é necessário que antes a opinio delict do parquet esteja formada.
Em relação aos requisitos subjetivos classificados como vedações ao acordo, esses estão previstos no § 2º, art. 28-A do Código de Processo Penal. A vedação prevista no inciso II do artigo supramencionado diz respeito a reincidência, habitualidade, reiteração ou profissionalismo do investigado na prática de crimes, enquanto o inciso III está relacionado com a inexistência de um acordo anterior.
Para a análise do inciso II é importante observar que nele consta dois requisitos diferentes. Em um primeiro momento veda-se o acordo no caso do investigado ser reincidente, após, a vedação deve ocorrer no caso de existirem elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional.
Trata-se o impedimento previsto na parte inicial do inciso II, § 2º do art. 28-A do CPP de um critério político-criminal adotado pelo legislador, o qual não permite a celebração do acordo de não persecução penal nos casos em que o investigado for reincidente (CABRAL, 2020).
Nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 280) dispõe que “[…] reincidente é aquele que comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior, respeitando o lapso temporal de 5 (cinco) anos e a prática de crimes militares próprios e políticos (CP, arts. 63 e 64).”.
Considerando a impossibilidade de celebração do acordo pelo investigado reincidente, é possível notar que o legislador optou por oportunizar o ANPP apenas para as pessoas que se envolveram em práticas delitivas somente uma vez.
Quanto a reincidência, essa poderá ser comprovada através de folha de antecedentes presente nos autos, conforme a Súmula 636 do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2019).
Ainda, o doutrinador Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 108) lembra que “[…] o fato de o investigado estar respondendo a outro processo penal […] ou investigações criminais não impede, por si só, a celebração do acordo de não persecução penal.”.
Já em relação ao requisito previsto na segunda parte do inciso II, § 2º do art. 28-A do CPP, esse impede a celebração do acordo quando há elementos probatórios que indiquem que o investigado tenha conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se as infrações penais pretéritas forem insignificantes.
Veja que o legislador traz três elementos (conduta habitual, reiterada ou profissional) que devem ser diferenciados.
Conforme preceitua Renato Brasileiro de Lima (2020), não se pode confundir o conceito de criminoso habitual com crime habitual, isso porque, enquanto o crime habitual é um único delito, mas que tem a habitualidade como sua elementar, como é o caso do crime de casa de prostituição, previsto no art. 229 do Código Penal, a habitualidade criminosa necessita de uma pluralidade de crimes, sendo a habitualidade uma característica subjetiva do agente e não do delito cometido. Ainda, o doutrinador dispõe que a conduta criminal reiterada é aquela que o agente repete e renova e que a conduta criminal profissional é aquela adotada pelo agente que se volta para a prática de uma atividade, que caracteriza um crime, como se fosse um ofício ou profissão.
Nesse aspecto, pode-se observar que “[…] são inúmeros os crimes que podem se enquadrar nesses conceitos, como é o caso de todos os crimes contra a Administração Pública, os de organização criminosa […] e os de lavagem de dinheiro […].” (PACELLI, 2020, p. 823).
Ainda, Eugênio Pacelli (2020, p. 823) analisa a possibilidade de celebração do ANPP no crime de tráfico de drogas privilegiado. Veja: “O crime de tráfico de drogas privilegiado, por exemplo, não pode mais ser considerado hediondo, por força da nova legislação, o que, à vista da causa de diminuição nele contido (art. 33, § 4º, Lei nº 11.343/06), permitirá o acordo de não persecução penal.”.
Quanto aos elementos comprobatórios, esses devem indicar que o agente pratica de forma habitual, reiterada ou profissional infrações penais. Portanto, conforme o entendimento de Cabral (2020, p. 110), “Deve existir justa causa nesse sentido. A exigência dessa justa causa sobre a habitualidade, reiteração ou profissionalismo é em grau semelhante à justa causa para o oferecimento da denúncia uma vez que o exame é feito – pela própria natureza da investigação criminal – por meio de um juízo de cognição sumária. Assim, não basta a mera desconfiança, deve existir um juízo de plausibilidade sobre esses elementos.”.
Contudo, há também que se analisar a parte final do inciso II que permite a celebração do acordo nos casos de conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, quando as infrações penais pretéritas forem insignificantes.
Nesse sentido, Aury Lopes Junior (2020, p. 223) entende que “Esse é um critério vago e impreciso, que cria inadequados espaços de discricionariedade por parte do MP”, no entanto não parece ser uma grande problemática, visto que, conforme entende Renato Brasileiro de Lima (2020), o legislador usou o termo insignificante erroneamente quando, possivelmente, queria se referir às infrações de menor potencial ofensivo. O entendimento do doutrinador supramencionado é corroborado pelo Enunciado n. 21 do CNPG e do GNCCRIM, que dispõe que “Não caberá acordo de não persecução penal se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, entendidas estas como delitos de menor potencial ofensivo.” (BRASIL, 2020, p. 06).
Por fim, a segunda vedação, prevista no art. 28-A, § 2º, III do Código de Processo Penal, diz respeito a inexistência de acordo anterior.
Assim, estará vedado o acordo de não persecução penal para aqueles que, nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração penal, já tenham sido beneficiados por qualquer um dos acordos penais previsto no ordenamento jurídico, sejam ele transação penal, suspensão condicional do processo ou até mesmo ANPP.
De acordo com Renato Brasileiro de Lima (2020), tal vedação visa evitar a banalização do acordo de não persecução penal e destacar a ideia de que a celebração do acordo destina-se, primordialmente, aos acusados primários, que tenham praticado um delito pela primeira vez.
Conforme dispõe Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 111), “O termo a quo desse prazo deve ser – não a data da infração anterior ou da extinção da sua punibilidade – mas: i) o dia em que o acordo de não persecução penal foi homologado (CPP, art 28-A, § 6º); ii) na data da “aplicação da pena” decorrente da transação penal (leia-se: homologação da transação penal – Lei n. 9.099/95, art. 76, § 4) ou iii) na suspensão condicional do processo, no dia em que o juiz suspender o processo, submetendo o acusado ao período de prova (Lei n. 9.099/95, art. 89, § 1º).”.
Enfim, para que esse requisito seja aplicado corretamente, é necessário que os Tribunais registrem corretamente os ANPPs que forem realizados, para que constem das certidões de antecedente, esta que deve ser analisada para que o acordo seja admitido, conforme recomenda o art. 28-A, § 12 (CABRAL, 2020).
2.1.3 Condições a serem acordadas entre o Ministério Público e o investigado
Uma vez preenchidos os requisitos para a celebração do acordo de não persecução penal, deverão ser ajustadas entre o Ministério Público e o investigado as condições que esse deverá assumir para que seja extinta sua punibilidade.
O art. 28-A do Código de Processo Penal traz em seus incisos as condições possíveis de serem celebradas. Passa-se agora para uma análise detalhada de cada uma delas.
A primeira condição foi estabelecida pelo inciso I do art. 28-A do CPP, dispondo que o investigado deve “reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo”.
Ao optar pela referida condição, o legislador adotou uma política criminal que visa diminuir ou reparar totalmente os danos causados à vítima em virtude do delito cometido pelo investigado, resultando assim em uma incontestável celebração de justiça, que sem dúvida alguma é um dos principais objetivos que o sistema penal deve buscar (CABRAL, 2020).
De acordo com Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020), tal condição pode ser uma das mais importantes do acordo de não persecução penal, pois dá oportunidade para que a vítima seja ouvida e sinta-se satisfeita com a justiça.
Assim, no que tange à reparação da vítima, para que o acordo de não persecução penal seja cumprido, não basta a declaração formal de compromisso de ressarcimento pelo investigado, deve haver a efetiva reparação, isso porque a indenização por via de acordo, se mostra mais célere, efetiva e adequada, de forma que a vítima reconheça que a justiça foi feita, sem que tenha precisado despender recursos para isto, sendo essa uma forma acessível de reparação para todas as vítimas (CABRAL, 2020).
Conforme preceitua Renato Brasileiro de Lima (2020), é possível a reparação de qualquer espécie de dano, vez que o inciso I do art. 28-A do CPP não faz qualquer restrição, assim, poderá ser reparado o dano material, moral e estético.
Ainda, a reparação do dano deve ser integral, motivo pelo qual é necessária a apuração das vítimas e da extensão dos danos causados pelo delito.
Todavia, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 130) faz uma importante observação: “Veja-se que, caso a vítima entenda insuficiente a reparação do dano constante do acordo de não persecução penal, nada impede que ela postule em juízo cível valor complementar, salvo se ela assinou, também, o termo de acordo de não persecução, hipótese em que fica vinculada ao seu teor.”.
Contudo, o inciso I, in fine do art. 28-A do Código de Processo Penal estabelece que caso a reparação seja impossível, tal condição poderá ser dispensada, não sendo um empecilho à celebração do acordo, vez que perante a impossibilidade de reparar o dano serão pactuadas outras condições que assegurarão ao Estado seu direito de punir e a satisfarão as expectativas sociais pelo cumprimento da justiça (SOUZA; DOWER, 2020).
No entanto, quando existe a impossibilidade de reparar o dano? Os doutrinadores Renee do Ó Souza e Patrícia Eleutério Campos Dower (2020, p. 162) apresentaram algumas hipóteses. Veja: “Assim, como primeira situação de impossibilidade de reparar o dano, de se citar os casos tais, em que não se verifica a ocorrência de um dano, em que pese tenha ocorrido o delito. Há situações outras, em que a reparação do dano é impossível em razão do perecimento do objeto tutelado, que não pode ser mais recomposto, típico caso de alguns crimes ambientais em que, uma vez ocorrida a degradação, não há mais possibilidade de retorno ao status quo ante.Por fim, pode-se ainda evidenciar a impossibilidade de reparar o dano decorrente de incapacidade financeira do investigado. Em referidas situações, assim como ocorre naquelas relativas à suspensão condicional do processo, em que o acusado tem a possibilidade de não ter o benefício revogado, caso comprove motivo justificado para a não reparação do dano, tal fator não seria peremptoriamente impeditivo da realização do acordo. Emergindo mencionada situação, pontos relevantíssimos devem ser considerados: (a) incumbe ao investigado a prova cabal de sua vulnerabilidade financeira, não bastando a mera alegação; (b) deve o agente ministerial, convencido e seguro da situação de insolvência do investigado, atentar-se para a conveniência de propor o cumprimento de outra condição, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.”.
Ademais, conforme entendimento dos mesmos doutrinadores, tais hipóteses não impede que a vítima busque o Juízo Cível no sentido de obter reparação ao dano sofrido (SOUZA; DOWER, 2020).
No que tange a condição prevista no inciso II do art. 28-A do Código de Processo Penal, esta estabelece que o investigado deverá renunciar a bens e direitos, a serem indicados pelo Ministério Público, que sejam instrumentos, produtos ou proveitos do crime.
Evidente que “nenhum sentido faria a celebração do acordo de não-persecução penal se o investigado pudesse manter consigo […] os instrumentos do crime, muito menos se pudesse preservar o produto direto ou indireto da infração penal” (LIMA, 2020, p. 284).
Dessa forma, para que o ANPP venha a ser celebrado, o investigado deverá concordar voluntariamente com a renúncia de bens e direitos a serem indicados pelo Parquet, como por exemplo, instrumentos, produtos ou proveitos do crime, tratando-se, assim, de um confisco aquiescido (LIMA, 2020).
Nesse sentido, conforme preceitua Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 132), temos que “[…] o produto do crime é todo o bem obtido diretamente com o delito (producta celeris); o proveito (ou produto indireto) do crime é todo bem que decorre da transformação ou modificação do produto ou que seja dele gerado e instrumento do delito é todo objeto empregado na prática do crime.”.
Destarte, essa condição foi inspirada e guarda semelhanças aos efeitos extrapenais obrigatórios previstos no art. 91, II, alíneas “a” e “b” do Código Penal, no entanto, como no caso do ANPP não existirá uma sentença condenatória transitada em julgado, não há que se falar em efeitos da condenação (LIMA, 2020).
De acordo com o que dispõe Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 132-133), o Ministério Público poderá também indicar para a renúncia bens ou valores equivalentes ao produto e proveito do crime, nos termos dos §§ 1º e 2º do art. 91 do Código Penal, isso porque, conforme preceitua Raquel Cristina Rezende Silvestre (apud CABRAL, 2020, p. 133), “Se o produto foi usufruído, gasto ou repassado a terceiros de boa-fé, houve um enriquecimento ilícito por parte do condenado que precisa ser corrigido. Ademais, o patrimônio lícito do investigado só existe porque foi economizado, enquanto dispendia o patrimônio ilícito. Justa, portanto, a compensação. […] Além disso, se o produto foi profissionalmente ocultado, o confisco por equivalente serve como desestímulo à prática, que, na imensa maioria das vezes, é apenas preparatória ao crime de lavagem de dinheiro.”.
Por último, vale ressaltar a importância da versada condição, visto que essa (i) acelera o processo de transferência dos bens que foram utilizados como instrumento, produto ou proveito, de forma a acabar com a longa espera por uma sentença penal condenatória para que aqueles sejam destinados; (ii) evita que os eventuais bens permaneçam apreendidos sem destino certo, e (iii) auxilia no cumprimento da condição prevista no inciso I, do art. 28-A do CPP, pois viabiliza de forma concreta, efetiva e ampla a reparação do dano ou restituição da coisa (CABRAL, 2020).
No tocante a condição instituída no inciso III do art. 28-A do Código de Processo Penal, essa estabelece como uma das condições possíveis de serem pactuadas a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas.
Dessa forma, o investigado deverá prestar “[…] serviços à comunidade ou entidades públicas, a título gratuito, por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução.” (CABRAL, 2020, p. 134).
Com relação ao local do cumprimento da referida condição, a Resolução 181/2017 atribuía ao Ministério Público a indicação do local do cumprimento da condição, conquanto a Lei 13.964/2019 modificou tal posicionamento no sentido de quem deve indicar o local da prestação do serviço é o juízo da execução. Essa modificação é alvo de críticas, visto que retira o poder de negociação das partes, pois o local da prestação do serviço poderia ser um dos pontos a ser negociado (CABRAL, 2020).
Todavia, vale lembrar que “por se tratar de condição para a celebração do acordo de não persecução penal, e não de pena restritiva de direito, seu descumprimento jamais poderá acarretar a conversão em pena privativa de liberdade.” (LIMA, 2020, p. 284).
Ainda, conforme preleciona Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020), a referida condição consiste em uma medida que o investigado cumprirá como forma de reprovação de sua conduta, de forma que funcionará como medida preventiva necessária para a celebração do ANPP, de forma que o cumprimento de tal condição visa provocar no investigado certa reflexão acerca do seu comportamento delitivo.
Sendo assim, é importante levar em consideração na hora da escolha do local de cumprimento do serviço à aptidão do investigado, vez que seu conhecimento poderá ser aproveitado em benefício à comunidade, bem como, observando o art. 46, § 1º do Código Penal, atribuir ao investigado tarefas que já sabe cumprir e, até mesmo, nos termos do art. 46, § 3º do Código Penal, analisar a jornada de trabalho oficial do investigado, vez que essa não pode ser prejudicada pelo cumprimento da medida (CABRAL, 2020).
Já quanto ao que estabelece o inciso IV do art. 28-A do Código de Processo Penal., o pagamento de prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social pelo investigado poderá ser uma das condições a serem negociados pelas partes.
Nesse sentido, o dispositivo supramencionado dispõe que a prestação pecuniária será estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, que trata da conversão das penas restritivas de direitos, devendo o pagamento ser feito para entidade pública ou de interesse social que será indicada pelo juízo da execução (LIMA, 2020).
Dessa forma, observando o § 1º do art. 45 do Código Penal, a fixação do valor da prestação pecuniária não poderá ser inferior a 1 (um) salário mínimo, nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. Ressalta-se que para tal fixação deverá ser observado dois critérios, quais sejam, a gravidade do injusto e da culpabilidade e a capacidade econômica do investigado (CABRAL, 2020).
Observa-se que prestação pecuniária fixada em ANPP é diferente daquela fixada como pena, pois essa objetiva a reparação do dano à vítima, enquanto naquela não a que se falar em reparação ao dano, visto que trata-se de outra condição prevista no art. 28-A, inciso I do CPP, que já deve ter sido pactuada (CABRAL, 2020).
Além disso, o inciso III, in fine do art. 28-A do CPP, preceitua que, sendo possível, “a prestação [deve] ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.” (LIMA, 2020, p. 284), pois essa prática auxilia na função preventiva do ANPP.
Por fim, a última condição está prevista no inciso V do art. 28-A do Código de Processo Penal, possibilita ao Ministério Público a estipulação de condição diversa daquelas previstas nos incisos I, II, III e IV do mesmo dispositivo, desde que por prazo determinado e desde que seja proporcional e compatível com a infração penal cometida.
Não obstante, Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 284) entende que a possibilidade convencionar condições diferentes daquelas prevista expressamente no art. 28-A do CPP “[…] são predispostas não para punir o investigado, mas para demonstrar sua autodisciplina e senso de responsabilidade na busca da ressocialização, corroborando a desnecessidade de deflagração da persecutio criminis in iudicio.”.
Já em relação a proporcionalidade e compatibilidade das condições, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 141) dispõe que “A medida deve ser proporcional – ou seja, manter uma relação de gravidade incidência semelhante à gravidade do injusto e da culpabilidade do agente, no caso concreto -, além do que a medida deve ser compatível com a infração imputada, o que significa dizer que deve existir uma relação finalística entre o crime aparentemente cometido e a medida a ser proposta.”.
Dessa forma, é notório o alargamento significativo das possibilidades de condições a serem pactuadas no ANPP, assim, visando a objetividade na fixação das referidas condições, além da proporcionalidade da compatibilidade, é oportuno a consulta a outras legislações no sentido de identificar exemplos de medidas que podem ser aplicadas. Nesse contexto, pode-se identificar como possíveis condições a serem pactuadas: i) as hipóteses previstas no art. 47 do Código Penal, que trata da interdição temporária de direitos; ii) a condição prevista no art. 28, I da Lei de Drogas; iii) o requisito contido no art. 22, I e II da Lei dos Crimes Ambientais; iv) o compromisso referente ao art. 256, VII do Código Nacional de Trânsito; entre muitos outros (CABRAL, 2020).
Destarte, vez que as possibilidades são inúmeras é necessária, também, a discussão acerca dos limites transação das condições, pois o ANPP não pode ser igualado a um contrato de adesão, visto que a liberdade de negociação resulta em uma relativa liberdade no que se refere ao conteúdo do acordo, vez que não são permitidas a pactuação de condições que violem direitos fundamentais do investigado (SOUZA; DOWER, 2020).
Nesse contexto, Renee do Ó Souza e Patrícia Eleutério Campos Dower (2020, p. 180) prelecionam que “[…] como primeiro limite às condições ajustáveis em um acordo, não são possíveis prestações que atinjam direitos de terceiros e/ou absolutamente vedadas pelo ordenamento jurídico, como aquelas consideradas cruéis, cumpridas por outra pessoa que não o investigado, com castigos físicos, etc. Também não são permitidas prestações que impliquem em violações a valores sociais de modo que deve ser resguardado o núcleo protetivo da dignidade da pessoa humana. […] Respeitando os limites acima, nem sempre claros, é verdade, podem ser fixadas outras condições ou medidas de interesse social que atendem a tutela do direito subjacente à infração penal praticada, embora seja recomendável a utilização de condições prestacionais semelhantes àquelas penas alternativas já previstas na legislação penal […].”.
Simplificando, as condições a que se referem o inciso V podem ser acordadas contanto que não sejam proibidas, não atinjam direito de terceiros, não viole valores sociais e nem a dignidade da pessoa humana, que o investigado tenha sua consciência e voluntariedade conservadas, que seja amparada pela juridicidade, de forma que sejam levados em consideração os elementos materiais presentes no sistema jurídico em seu aspecto substancial e que implique na restauração do bem jurídico tutelado pela infração penal cometida (SOUZA; DOWER, 2020).
Destarte, o art. 28-A, caput do Código de Processo Penal estabelece que as condições previstas nos incisos I, II, III, IV e V devem ser pactuadas cumulativamente e alternativamente. Veja que os referidos termos, normalmente, se excluem, pois algo que é cumulativo, não pode ser alternativo e vice-versa.
Nesse contexto, o doutrinador Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020) entende que o legislador ao estabelecer que as condições deveriam ser ajustadas cumulativamente e alternativamente, pretendeu que as condições previstas nos incisos I, II e III fossem sempre necessárias e cumulativas, enquanto as condições previstas nos incisos IV e V fossem alternativas, devendo uma delas ser incluídas no acordo. O referido doutrinador justifica seu entendimento através de uma análise textual, onde se verifica que a conjunção “ou” se encontra somente entre os incisos IV e V.
Portanto, embora doutrinadores como Renato Brasileiro de Lima (2020), Eugênio Pacelli (2020) e Aury Lopes Junior (2020) entendam que as condições são alternativas ou cumulativas, Rodrigo Leite Ferreira Cabral reconhece que ainda que sua interpretação não seja a melhor, pois engessa a possibilidade do acordo, “[…] essa é a única interpretação que respeita o sentido literal do dispositivo da lei.” (2020, p. 126).
2.2 Da apreciação judicial do ANPP
Originariamente, a Resolução nº 181/2017 do CNMP não estabelecia a necessidade de nenhum tipo de controle jurisdicional à celebração do ANPP, no entanto, a falta de previsão nesse sentido causava insegurança jurídica aos investigados que aceitavam o acordo, visto que corriam o risco de cumprir todas as condições que negociaram com o Ministério Público e no final não terem a respectiva punibilidade extinta. Assim, a Resolução nº 183/2017, também do CNMP, passou a prever o controle jurisdicional prévio ao ANPP, no sentido de analisar o cabimento do acordo e o conteúdo das condições que foram pactuadas. Dessa forma, o Código de Processo Penal resolveu manter tal posicionamento, prevendo expressamente em seu art. 28-A, § 4º que o ANPP deverá ser homologado judicialmente.
De acordo com o que prelecionada Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 150), “[…]a presença do Poder Judiciário apresenta-se como um reforço publicista no acordo, de modo verificar, ao final, se houve o devido respeito à legalidade e à voluntariedade do agente. Em outras palavras, a função do juiz na apreciação do acordo de não persecução penal é de garantia dos direitos do investigado e da legalidade da avença.”.
Assim, a homologação do ANPP representa um requisito legal para que o acordo ganhe eficácia, de maneira que ele começa a produzir efeitos apenas depois da homologação (CABRAL, 2020).
Dessa forma, após celebrado o acordo, esse será submetido a homologação judicial, me regra, na mesma audiência em que se realizou a celebração, contudo, caso o acordo tenha sido celebrado apenas por escrito, será designada audiência específica para o referido fim, nesta ocasião o juiz deverá ouvir o investigado na presença de seu advogado, de forma a avaliar a voluntariedade do acordo e sua legalidade (LOPES JUNIOR, 2020). Conforme o entendimento de Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 153) “[…] essa homologação não pode se dar por simples decisão nos autos. Ela deve ser precedida de uma audiência pública, em que se avaliará a voluntariedade e legalidade do acordo.”.
Quando da apreciação do ANPP, o juíz poderá (i) homologar o acordo, caso em que os autos serão devolvidos ao Ministério Público para que promova a execução perante o juízo competente, qual seja, o juízo da execução penal, nos termos do § 6º do art. 28-A do CPP, bem como deverá o juízo, intimar a vítima da decisão homologatória, no termos do § 9º do art. 28-A do CPP; (ii) devolver os autos ao Ministério Público, na hipótese de entender que as condições pactuadas no ANPP sejam inadequadas, insuficientes ou abusivas, cabendo, nesse caso, ao Ministério Público a reformulação do acordo com a concordância do investigado e seu defensor, conforme dispõe o § 5º do art. 28-A do CPP; ou ainda (iii) recusar a homologação do acordo, se entender que esse não atende os requisitos legais ou quando devolvido na hipótese anteriormente mencionada, não houver adequação do referido acordo, conforme o disposto no § 7º do art. 28-A do CPP (LIMA, 2020).
Ademais, a Lei 13.964/2019 incluiu no art. 581 do Código de Processo Penal o inciso XXV, que dispõe que no caso do juiz se recusar a homologar o ANPP, poderão as partes impugnar a decisão através de recurso em sentido estrito.
2.3 Da execução do ANPP
O art. 28-A, § 6º do Código de Processo Penal, prevê que após a homologação do acordo de não persecução penal, os autos serão devolvidos para o Ministério Púbico para que este inicie a execução do mesmo.
A competência para execução do acordo foi atribuída pelo legislador ao juízo da execução penal, no entanto, tal previsão é alvo de críticas por doutrinadores como Rogério Sanches Cunha (2020), pois a Vara de Execuções Penais é destinada à execução de penas e não de medidas resultantes de acordos.
No mesmo sentido, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020) estabelece que a execução das condições pactuadas no ANPP ser atribuída ao juízo de execução de penas pode acarretar em confusões aos leigos, no sentido de se equivocarem quanto a natureza do próprio acordo, podendo achar que se trata de efetiva condenação. No entanto, Cabral (2020, p. 177) também entende que “o legislador optou por tomar uma decisão muito mais pragmática, no sentido de aproveitar as estruturas das Varas de Execuções Penais, como forma de concretizar de modo mais célere a fiscalização […]” do referido acordo.
Assim, em relação a fiscalização do cumprimento do acordo de não persecução penal é de se observar a modificação trazida pela Lei 13.964/2019 em relação à Resolução nº 181/2017 do CNMP. Enquanto a Resolução nº 181/2017 previa que a fiscalização estaria a cargo do Ministério Público, a Lei 13.964/2019 dispôs que a competência para fiscalizar e analisar o cumprimento do acordo passa a ser totalmente do Poder Judiciário, cabendo a Vara de Execuções Penais, então, atos como acompanhar o cumprimento das condições, receber justificativas de eventuais descumprimentos, intimar as partes e a vítima quando necessário (CABRAL, 2020).
Quando da execução do acordo de não persecução penal, podem surgir duas hipóteses, quais sejam: i) o descumprimento das condições pelo investigado ou ii) o cumprimento integral das condições pelo investigado. Tendo em vista tais hipóteses, passa-se a análise de cada uma delas.
2.3.1 Do descumprimento do ANPP
Uma vez que o acordo resta celebrado e homologado, o investigado deve cumprir com as condições estabelecidas para que tenha sua punibilidade extinta, no entanto, caso descumpra com as medidas pactuadas injustificadamente, o Ministério Público deverá requerer a rescisão do acordo e posteriormente, oferecer denúncia contra o investigado, conforme dispõe o § 10 do art. 28-A do Código de Processo Penal.
Nesse sentido, de acordo com Renato Brasileiro de Lima (2020), descumprindo o acordo o investigado estará sujeito ao oferecimento de denúncia, assim como ocorre quando há o descumprimento injustificado da transação penal, conforme o teor da Súmula Vinculante nº 35 do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2014), que dispõe que “A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial.”.
Assim, para que haja a rescisão do ANPP, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 181) entende que “deverá o Ministério Público, postular ao Juiz de Execução a rescisão do acordo, oferecendo, logo em seguida […] requerendo a devolução dos autos à Vara de Origem para posterior oferecimento de denúncia.”, no entanto, Renato Brasileiro de Lima (2020) possui entendimento contrário, seguindo o Enunciado n. 28 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal que dispõe que “Caberá ao juízo competente para a homologação rescindir o acordo de não persecução penal, a requerimento do Ministério Público, por eventual descumprimento das condições pactuadas, e decretar a extinção da punibilidade em razão do cumprimento integral do acordo de não persecução penal.” (BRASIL, 2020, p. 08).
Todavia, antes de revogar o acordo, o juízo competente deverá intimar o investigado, ou até mesmo designar audiência, para que esse possa, eventualmente, apresentar justificativa ao descumprimento. Sendo assim, é necessário para revogação do acordo, além do contraditório, decisão fundamentada do juiz (LOPES JUNIOR, 2020).
Dessa forma, revogado o acordo o Ministério Público deverá, imediatamente, oferecer a denúncia ou se for o caso, determinar a instauração de inquérito policial ou outras diligências investigativas no procedimento investigatório criminal ou mesmo do inquérito policial, objetivando obter elementos mínimos para desencadear a ação penal (SOUZA; DOWER, 2020).
Destarte, a revogação do acordo de não persecução penal enseja algumas consequências para o investigado. De acordo com Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020), tais consequências podem ser divididas em endoprocessuais e extraprocessuais. Com relação as consequências endoprocessuais, essas podem ser o oferecimento de denúncia pelo Ministério Público (art. 28-A, § 10 do CPP), a recusa do Ministério Público em oferecer a suspensão condicional do processo (art. 28-A, § 11 do CPP) e a utilização da confissão circunstanciada como fonte de informação e corroboração das provas (art. 155 do CPP), sendo essa última consequência um tanto quanto polêmica. Já no que tange as consequências extraprocessuais essa podem ser caracterizadas pela perda dos instrumentos, produtos ou proveitos do crime, nos termos do art. 28-A, II do CPP, a possibilidade da vítima executar no cível o título executivo judicial formado pelo ANPP, bem como a perda dos valores referente ao pagamento da prestação pecuniária. Vale ressaltar também que, conforme preceitua Renee do Ó Souza e Patrícia Eleutério Campos Dower (2020), vez que as condições pactuadas no ANPP não possuem natureza de sanções penais, uma vez que o acordo é descumprido, não pode-se falar em possível detração posteriormente, pois a perda do referido tempo é uma consequência natural resultante do descumprimento do acordo, sendo assim, ônus da desídia e da deslealdade do investigado.
Por fim, embora a legislação não tenha previsto expressamente a natureza do recurso contra as decisões proferidas na fase de execução do ANPP, por uma questão lógica e interpretativa do art. 197 da Lei de Execuções Penais, o recurso cabível é o agravo em execução, vez que não existe uma previsão específica e muito menos uma ressalva ou limitação (CABRAL, 2020).
2.3.2 Do cumprimento do ANPP
O cumprimento do acordo de não persecução penal trata-se de situação bem mais simples do que a do descumprimento do referido acordo.
Assim, iniciada a execução do acordo, o investigado deve, observando o tempo e o modo, cumprir as condições pactuadas no acordo de não persecução penal. Dessa forma, quando da comprovação do cumprimento das condições avençadas, deve-se abrir vista dos autos ao Ministério Público para que este solicite ao juízo competente a decretação da extinção da punibilidade.
No que se refere ao juízo competente para a decretação da extinção da punibilidade existe controvérsia. Enquanto Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020) entende que a competência é do juízo da execução penal, pois a este cabe a fiscalização do cumprimento das condições estabelecidas no acordo, Renato Brasileiro de Lima (2020) entende recair sobre o juízo que homologou o acordo. Nesse sentido, parece mais razoável o entendimento de Cabral, pois não seria necessário remeter os autos ao juízo que homologou o referido acordo, sendo assim, a extinção da punibilidade se daria de forma mais célere.
Não obstante a controvérsia em relação a competência, Aury Lopes Junior (2020, p. 225) preceitua que “Uma vez cumprido integralmente o acordo, o juiz deverá decretar a extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito, exceto o registro para o fim de impedir um novo acordo no prazo de 5 anos (§ 2º, inciso III).”.
Finalmente, é importante ressaltar a previsão feita pelo § 9º do art. 28-A do CPP, que dispõe que a vítima deverá ser intimada acerca do cumprimento do acordo pelo investigado (CABRAL, 2020).
- Questões Controvertidas
3.1 As ações penais privadas e privadas subsidiárias da pública e o ANPP
Prevista no art. 5º, LIX da Constituição Penal, a ação penal subsidiária da pública é a autorização constitucional que oportuniza que a vítima (ou seu representante legal) ingresse com ação penal, mediante oferecimento de queixa, nas hipóteses em que o Ministério Público, nos casos de ações penais públicas, queda-se inerte, deixando decorrer o prazo legal previsto no art. 46 do CPP (NUCCI, 2020, p. 436).
Nesse contexto, questiona-se a possibilidade da vítima ingressar com ação penal subsidiária da pública em virtude do oferecimento de ANPP pelo Ministério Público ao acusado.
Dessa forma, para que a ação penal subsidiária da pública seja cabível é necessária a omissão do Ministério Público, essa que se caracteriza pela carência de qualquer forma de manifestação dentro do prazo legal para oferecimento de denúncia, de modo que a justificativa do eventual ajuizamento da ação subsidiária é a inércia do Ministério Público e não apenas o não oferecimento de denúncia (SOUZA; DOWER, 2020).
Ocorre que o oferecimento do ANPP “[…] constitui um claro impulso (ação) promovido pelo Ministério Público, com base em um dispositivo legal (CPP, art. 28-A), que disciplina a atuação da Instituição […]” (CABRAL, 2020, p. 189). Assim, não há que se falar em qualquer omissão ou inércia do órgão ministerial, mas apenas em cumprimento do dever do agente político, que acata a legislação, porém desde que presentes os requisitos necessários para a celebração e a ausência de hipóteses de vedação do acordo (SOUZA; DOWER, 2020).
Portanto, estando ausente o principal requisito para o ajuizamento da ação penal subsidiária da pública, qual seja a omissão ministerial, é completamente incabível a ação penal subsidiária da pública quando o Ministério Público deixa de oferecer denúncia em virtude da realização do ANPP.
Já com relação a ação penal privada, onde o Estado legitima o ofendido a agir em nome próprio, ajuizando ação penal e pleiteando a condenação do agressor (NUCCI, 2020), a discussão é se o ANPP pode ser celebrado pelo ofendido.
Analisando o dispositivo legal que prevê o ANPP, não parece que a intenção do legislador era oportunizar a celebração do acordo nas ações penais privadas, isso porque o texto do caput do art. 28-A do CPP diz que “[…] o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal […]”, ou seja, parece óbvio que caso o interesse do legislador fosse viabilizar o acordo nas ações privadas teria utilizado a expressão “o titular da ação”. No entanto, a doutrina oferece interessantes considerações.
Nesse âmbito, o entendimento de Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020) é de que a ação penal privada está sujeita à discricionariedade da vítima (ou seu representante legal), ou seja, cabe apenas ao ofendido avaliar a oportunidade quanto ao ajuizamento ou não da ação e desse modo, não vê sentido na aplicação do ANPP nessa ação penal, pois entende que quando do juízo de oportunidade e conveniência da vítima, essa ao cogitar celebrar acordo com o ofensor, já decidiu por dar início à ação, vez que apenas há duas opções: ajuizar ação ou não ajuizar.
No entanto, mesmo acreditando que tal hipótese não faz sentido, Cabral (2020), assim como Aury Lopes Junior (2020), acredita que será autorizada a extensão do ANPP as ações penais privadas, tendo em vista o que ocorreu com os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo e o respectivo entendimento jurisprudencial. Veja:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A HONRA. ARTS. 138, 139 E 140, C/C 141, III, TODOS DO CÓDIGO PENAL. AÇÃO PENAL PRIVADA. QUEIXA-CRIME. PENAS QUE SUPERAM DOIS ANOS. COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS AFASTADA. ALEGAÇÃO DE ERRO NA TIPIFICAÇÃO. SUPOSTA DISPUTA ELEITORAL. REVOLVIMENTO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. TRANSAÇÃO PENAL. LEGITIMIDADE DO QUERELANTE. INÉPCIA DA QUEIXA-CRIME. NÃO CONFIGURAÇÃO. DESCRIÇÃO DE CONDUTA QUE, EM TESE, CONFIGURA CRIME. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS DESPROVIDO. IV – A jurisprudência dos Tribunais Superiores admite a aplicação da transação penal às ações penais privadas. Nesse caso, a legitimidade para formular a proposta é do ofendido, e o silêncio do querelante não constitui óbice ao prosseguimento da ação penal. (STJ – RHC 102.381/BA, Rel. Ministro Félix Fischer, 5º turma, julgado em 09/10/2018, DJe 17/10/2018).”.
“I. Suspensão condicional do processo e recebimento de denúncia. Cabível, em tese, a suspensão condicional do processo, é válido o acórdão que – não a tendo proposto o autor da ação – recebe a denúncia ou queixa e determina que se abra vista ao MP ou ao querelante para que proponha ou não a suspensão: não faria sentido provocar a respeito o autor da ação penal antes de verificada a viabilidade da instauração do processo. II. Suspensão condicional do processo instaurado mediante ação penal privada: acertada, no caso, a admissibilidade, em tese, da suspensão, a legitimação para propô-la ou nela assentir é do querelante, não, do Ministério Público. (STF – HC 81720, Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence, 1º turma, julgado em 26/03/2002, DJ 19-04-2002 PP-00049 EMENT VOL-02065-03 PP-00667).”.
Ademais, Cabral (2020, p. 187) faz um questionamento muito importante. Observe: “[…] se nos casos de ação penal pública é possível a realização de acordo para evitar as graves consequências de um processo penal e da aplicação de uma pena, por que não aplicar essa medida, também, nos casos de ação privada, em que o interesse público sequer é tão saliente?”.
Além disso, verifica-se que, embora não seja essa sua razão de ser, a aplicação do ANPP nas ações penais privadas resulta em benefícios tanto para o ofendido quanto para o ofensor, enquanto aquele pode obter a reparação do dano de forma rápida, aquele pode se livrar do estigma de ser réu em uma ação penal. Nesse sentido, Cabral (2020, p. 187) preleciona o abaixo exposto: “[…] o acordo de não persecução penal, nos casos de ação penal privada, pode, inclusive, ser mais vantajoso ao ofendido que o oferecimento de queixa-crime, pois i) poderá receber, concreta e imediatamente, a reparação do dano; ii) verá o investigado cumprindo medidas, como prestação de serviços à comunidade, em uma solução célere para o caso e iii) não terá gastos que envolvem necessariamente o patrocínio de uma ação penal privada.”.
Dessa forma, caso o ofendido escolha oferecer o ANPP ao ofensor, deverá fazê-lo em audiência, observando as regras previstas no art. 28-A do CPP, inclusive com a presença do Ministério Público, mas apenas como fiscal da lei, nos termos do art. 257, II do CPP (CABRAL, 2020).
Ainda, o ofendido pode se recusar a propor o acordo ao ofensor e essa decisão não passível de revisão, como nos casos em que ocorre a recusa do Ministério Público (CABRAL, 2020). Assim, embora Sauvei Lai (2020) entenda que caso o ofendido se recuse a propor o ANPP para o ofensor, abre-se oportunidade para que o Ministério Público, atuando como custos legis conforme previsto no art. 257, II do CPP, ofereça o aludido acordo, tal possibilidade não se verifica, pois como o órgão ministerial não é titular da ação penal privada, não possui legitimidade para propor o acordo (CABRAL, 2020).
Logo, sendo cabível o ANPP nas ações penais privadas e sendo celebrado pelas partes, o ofensor fica obrigado ao cumprimento das condições e o ofendido fica obrigado a não oferecer queixa-crime, desde que aquele cumpra integralmente a avença.
3.2 ANPP: direito subjetivo do investigado ou mera faculdade do Ministério Público?
Com o advento da Lei 9.099/95 houve certo debate acerca da natureza jurídica da transação penal e da suspensão condicional do processo, pois não sabia-se se tais institutos podiam ser considerados direito subjetivo do investigado ou tratavam-se de mera discricionariedade do Ministério Público. Ocorre que esse debate surge novamente com a Lei Anticrime e a regulamentação do acordo de não persecução penal.
Nessa temática, Aury Lopes Junior (2020) entende que, preenchidos os requisitos legais para a celebração do acordo, o investigado tem direito ao benefício, de forma que o instituto seria um direito subjetivo do acusado. Deste modo, de acordo com o autor supramencionado (2020), o imputado deverá postular o reconhecimento de seu direito que lhe está sendo negado pelo Ministério Público, e o juiz decidirá mediante invocação, pois assim não se atribuiria ao juiz o papel de autor. Logo, o papel do juiz será apenas de garantidor da eficácia do direito do investigado, de forma a cumprir sua missão constitucional (LOPES JUNIOR; 2020).
Contudo, é importante lembrar que o ANPP trata-se de um negócio jurídico e assim sendo, deve observar o acordo de vontades e a voluntariedade na celebração do pacto (CABRAL, 2020). Dessa forma, Renato Brasileiro de Lima (2020) preleciona que “Partindo da premissa de que o acordo de não persecução penal deve resultar da convergência de vontades, com necessidade de participação ativa das partes, não nos parece correta a assertiva de que se trata de direito subjetivo do acusado, sob pena de se admitir a possibilidade de o juiz determinar sua realização de ofício, o que, aliás, lhe retiraria sua característica mais essencial, qual seja, o consenso.”.
Destarte, é dizer que “[…] o investigado (uma das partes do acordo) não tem direito subjetivo a que a outra parte (o Ministério Público) faça um acordo com ela.” (CABRAL, 2020, p. 199), de modo que a negativa da propositura do acordo pelo Ministério Público não autoriza o juiz a conceder o acordo, substituindo a atuação do parquet, sob pena de violar o sistema processual penal acusatório (LIMA, 2020).
Ainda, a discricionariedade do Ministério Público é explícita na parte final do caput do art. 28-A do CPP, que diz que “[…] o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime […]”, ou seja, o verbo deixa claro a intenção do legislador de que o ANPP é uma faculdade do titular da ação penal, pois caso não fosse essa a intenção, de certo o verbo empregado seria outro. Além disso, embora preenchido todos os requisitos necessários à celebração do acordo, o parquet pode entender que o ANPP não é suficiente para a reprovação e prevenção do delito cometido, de forma que se fosse obrigado a propor tal acordo esse comportamento poderia “[…] resultar na negação da legitimidade do Ministério Público para traçar política de persecução penal criminal […]” (SOUZA; DOWER, 2020, p. 150), além de gerar uma incompatibilidade com a razão de ser da justiça consensuada. Ressalta-se também que este assunto é, inclusive, tema do Enunciado n. 19 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), que diz: “O acordo de não persecução penal é faculdade do Ministério Público, que avaliará, inclusive em última análise (§14), se o instrumento é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime no caso concreto”.
No entanto, isso não significa que o Ministério Público pode escolher, dentre os casos que preenchem os requisitos para a celebração do ANPP, entre oferecer o acordo para alguns e não oferecer para outros. Ora, as autoridades públicas devem dar tratamento isonômico e adequado para todos os cidadãos. Ressalta-se que sob a atuação do parquet incidem os princípios da administração pública, o que quer dizer que sempre que estiverem preenchidos os requisitos exigidos para a celebração do ANPP e o Ministério Público entender que o acordo não é cabível, deverá existir uma decisão fundamentada esclarecendo a questão (CABRAL, 2020). Cabe dizer então que “Se não se trata de direito subjetivo do acusado, […] estamos diante de uma discricionariedade ou oportunidade regrada […]” (LIMA, 2020, p. 277). É nesse sentido, inclusive, o Enunciado 32 da I Jornada de Direito Penal e Processo Penal. Veja: “A proposta de acordo de não persecução penal representa um poder-dever do Ministério Público, com exclusividade, desde que cumpridos os requisitos do art. 28-A do CPP, cuja recusa deve ser fundamentada, para propiciar o controle previsto no §14 do mesmo artigo.” (BRASIL, 2020).
Apesar disso, o § 14º do art. 28-A do CPP prevê a possibilidade do investigado requerer a remessa dos autos ao órgão superior do Ministério Público, nos termos do art. 28 do CPP, caso esse se recuse a propor o ANPP. Desse modo, Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 277) lembra o seguinte sobre o dispositivo supramencionado, “O dispositivo caminha no mesmo sentido do entendimento jurisprudencial já sedimentado quanto à transação penal e à suspensão condicional do processo, evidenciado pelos dizeres da Súmula n. 696 do Supremo: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o Promotor de Justiça a propô-la, o Juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do CPP.”.
Nesse sentido, a 3ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo negou o pedido de habeas corpus, impetrado pela Defensoria Pública daquele estado, que pedia a abertura de vista ao Ministério Público, para que esse se manifestasse sobre o cabimento do ANPP ao paciente acusado de tráfico privilegiado. Nesse caso, o Ministério Público, em primeiro grau, teria recusado a propositura do acordo, de forma que os autos foram remetidos ao Procurador-Geral de Justiça, que manteve o entendimento de primeiro grau. De acordo com relator desse habeas corpus, “O acordo de não persecução penal deve ser resultante da convergência de vontades (acusado e MP), não podendo se afirmar, indubitavelmente, que se trata de um direito subjetivo do acusado, até porque, se assim o fosse, haveria a possibilidade do juízo competente determinar a sua realização de ofício, o que retiraria a sua característica mais essencial, que é o consenso entre os envolvidos.” (TJSP; Habeas Corpus Criminal 2064200-84.2020.8.26.0000; Relator (a): Xisto Albarelli Rangel Neto; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Criminal; Foro Central Criminal Barra Funda – 27ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 21/06/2018; Data de Registro: 05/05/2020).
Logo, verifica-se que o entendimento predominante é de que o acordo de não persecução penal não se trata de direito subjetivo do acusado, mas sim faculdade do Ministério Público.
3.3 A confissão em sede de ANPP e sua utilização como prova em eventual instrução
Um dos requisitos previstos no art. 28-A do Código de Processo Penal para a celebração do acordo de não persecução penal é a confissão circunstanciada, onde o acusado confessa formal e circunstanciadamente o fato delituoso, como demonstrado no item 3.1.2.2. No entanto, questiona-se a possibilidade da utilização da confissão circunstanciada em sede de ANPP como prova em eventual instrução penal, desencadeada pelo descumprimento do acordo.
De acordo com Carolina Soares Ferreira Castro e Fábio Prudente Netto (2020), a confissão em sede de ANPP não se dá na esfera judicial, devendo ser classificada então como um ato extrajudicial, motivo pelo qual deve ser entendida apenas como um pressuposto de existência e requisito de validade do acordo de não persecução penal. Desta forma, Castro e Netto (2020) entendem que não é possível estender os efeitos da confissão para outros fins que não o da celebração do acordo, pois com isso haveria um rompimento do sistema acusatório e dos princípios do contraditório, ampla defesa e nemo tenetur se detegere.
Todavia, trata-se o direito de não produzir prova contra si mesmo de um direito disponível, de forma que o acusado não é obrigado a colaborar com a investigação apresentando provas contra si, mas caso entenda conveniente, não pode ser impedido de fazê-lo. Ainda, vale dizer que não violação do contraditório e ampla defesa, vez que durante a instrução penal os referidos princípios serão exercidos.
Congruente é o entendimento de Fabiano Leniesky (2020), que entende também não ser possível a utilização da confissão como prova sob três argumentos: i) a confissão é realizada extrajudicialmente, sendo equivalente à confissão realizada em sede policial, devendo ser aplicado, dessa forma, a regra contida no art. 155 do CPP; ii) a confissão circunstanciada do ANPP não é colhida de acordo com os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa; além de que, iii) a confissão em sede de ANPP, de acordo com Rogério Sanches Cunha (apud LENIESKY, 2020), não reconhece expressamente a culpa do acusado, havendo apenas uma admissão implícita de culpa, não possuindo repercussão jurídica.
Contudo, observa-se que, conforme dispõe a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal (1941), a confissão do acusado não pode constituir, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. Nesse sentido, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020) preleciona que uma das consequências do descumprimento do ANPP é a possibilidade do Ministério Público utilizar a confissão circunstanciada, feita pelo investigado quando da celebração do ANPP, no entanto a utilização deve ser feita nos termos do art. 155 do CPP, ou seja, como fonte de informação, tanto para corroborar outras provas, como também para contrapor a depoimentos e até mesmo ao interrogatório do agora réu.
Ademais, vale ressaltar que, de acordo com o art. 197 do CPP, o valor dado a confissão deve ser verificado através dos mesmos critérios adotados para outros elementos de prova, devendo o juiz, quando de sua apreciação, confrontá-la com todas as provas apresentadas no processo, de forma que apure a existência de compatibilidade e concordância entre as provas analisadas.
Portanto, a utilização da confissão feita pelo investigado para a celebração do acordo como prova é viável no caso de descumprimento, desde que não seja utilizada como rainha das provas, o que já não é permitido pelo CPP, visto que nosso sistema processual é acusatório.
No entanto, é necessária aqui uma ressalva, pois a confissão não poderá ser usada como prova na instrução criminal se não houver homologação do ANPP. Assim, Ricardo Silvares (2020) entende que caso o juízo não homologue o acordo e o Procurador-Geral entenda que não estavam presentes os requisitos para a celebração do ANPP, de modo que seja caso de oferecimento de denúncia, deverá ser desconsiderada a confissão, sendo restituídos os elementos de prova ao investigado. Dessa forma, se garante a boa-fé processual e impede alegações de vício da fase inquisitorial.
3.4 Processo com múltiplos réus e a confissão do réu que celebrou ANPP
Imagine a seguinte hipótese: um crime é cometido em concurso de pessoas, no entanto o acordo de não persecução penal é cabível apenas a um dos réus. Assim, tal réu celebra a avença com o Ministério Público e como requisito para a realização desse acordo, confessa formal e circunstancialmente a prática delitiva. Questiona-se: a confissão do réu que celebrou o ANPP poderá ser usada como prova na instrução da ação penal dos coautores/partícipes? Essa é uma questão de importante debate, mas pouco discutida pela doutrina.
De acordo com uma pesquisa empírica realizada por Thiago Diniz Barbosa Nicolai e Renata Rodrigues de Abreu Ferreira (2020) em banco de sentenças do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 35% dos crimes cometidos em concurso de pessoas, a confissão do coautor que celebrou o ANPP foi considerada no mérito da prolação da sentença, de forma a condenar o coautor ou partícipe.
No entanto, a utilização da confissão do coautor como prova para eventual condenação dos outros coautores constitui outro negócio jurídico, qual seja a colaboração premiada.
A colaboração premiada é uma técnica especial de investigação através da qual o coautor/partícipe do delito cometido confessa o seu envolvimento no fato delituoso e também fornece ao Ministério Público informações pertinentes em troca de um prêmio legal (LIMA, 2020). Veja que confissão do coautor, como requisito para a celebração do ANPP, não possui a finalidade fornecer informações ao Ministério Público em troca de um prêmio legal, mas apenas garantir o acusado é mesmo responsável pelo fato delituoso cometido e em segundo lugar, servir como uma garantia ao Ministério Público, para que no caso de descumprimento do acordo, esse ingresse com a ação penal.
É muito perigosa a utilização da confissão do coautor que celebrou o ANPP como prova na instrução penal dos demais coautores, pois essa utilização pode esconder uma tentativa ilegal de deslocar os elementos da colaboração premiada para o instituto do ANPP, visto que o acordo de colaboração premiada se reveste de certa complexidade em sua celebração, enquanto o acordo de não persecução penal é um instituto simplificado, pois seu intuito é evitar a deflagração da ação penal.
Ainda, vale ressaltar que, conforme exposto no item 3, o acordo de não persecução penal é um negócio jurídico bilateral personalíssimo celebrado apenas entre o Ministério Público e o investigado, assistido por seu defensor. Dessa forma, as tratativas resultantes desse negócio jurídico só produzem efeitos inter partes, de modo que eventuais declarações feitas pelo coautor em sede de ANPP não podem ser usadas contra os demais coautores que não celebração o ANPP, sob pena de violar princípios como o contraditório e a ampla defesa.
Portanto, a confissão do coautor que celebrou o acordo de não persecução penal não deve ser utilizada como prova na instrução penal dos demais coautores, sob pena de descaracterizar o instituto do ANPP e violar direitos fundamentais, como o contraditório e a ampla defesa.
3.5 Descumprimento do acordo e julgamento do processo pelo mesmo juiz que homologou o ANPP
Como analisado no item 3.3.2 e conforme o § 10 do art. 28-A do CPP, o descumprimento do acordo de não persecução penal acarreta sua rescisão e posteriormente, o oferecimento de denúncia, essa que dá início a ação penal.
Nesse contexto, questiona-se a legalidade do julgamento da ação penal pelo mesmo juiz que homologou o ANPP e que, por consequência da homologação, teve contato com a confissão formal e circunstancial do agora réu.
Em tese, essa não deveria ser uma questão a ser debatida, pois com a inserção o art. 3-B, inciso XVII no Código de Processo Penal pela Lei 13.964/2019, a homologação do ANPP se dará pelo juiz das garantias, de forma que em uma eventual instrução criminal, o juiz julgador será outro e esse não terá conhecimento de nenhum conteúdo das negociações do ANPP. Contudo, a implementação do juiz de garantias em nosso ordenamento jurídico está suspensa por decisão proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidades 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Assim, até que seja decida a constitucionalidade (ou não) do juiz de garantias, essa é uma questão a ser avaliada.
Dessa forma, analisando a problemática exposta é preciso recorrer ao princípio da imparcialidade do juiz. Embora o referido princípio não tenha previsão expressa na Constituição Federal de 1988, “[…] é inegável que a imparcialidade do magistrado é conditio sine quae non de qualquer juiz, funcionando, pois, como verdadeira garantia constitucional implícita decorrente do devido processo legal.” (LIMA, 2020, p. 121).
Assim, de acordo com Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 120), o princípio da imparcialidade do juiz auxilia na prestação jurisdicional, “De modo a evitar que uma parte seja beneficiada em detrimento da outra, ainda que involuntariamente, o magistrado só pode atuar de maneira imparcial, conduzindo o processo como um terceiro desinteressado em relação às partes, comprometendo-se a apreciar na totalidade ambas as versões apresentadas sobre os fatos em apuração, proporcionando sempre igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos.”.
Ainda, a imparcialidade do juiz pode ser subdividida em imparcialidade subjetiva e imparcialidade objetiva, conforme expõe Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 121): “Subdivide-se em imparcialidade subjetiva e objetiva: a primeira é examinada no íntimo da convicção do magistrado, e visa evitar que o processo seja conduzido por alguém que já tenha formado uma convicção pessoal prévia acerca do objeto do julgamento, ou seja, pode ser traduzida na impossibilidade de o magistrado aderir às razões de uma das partes antes do momento processual estabelecido; a segunda é aferida a partir da postura da entidade julgadora, que não deverá deixar qualquer espaço de dúvida de que conduz o processo sem preterir uma parte à outra, ou seja, não basta ser imparcial, sendo indispensável que o juiz aparente tal imparcialidade.”.
Isto posto, observe que o juiz que homologa o ANPP e por conseguinte, tem contato com a confissão circunstanciada do infrator, forma no momento da homologação uma convicção pessoal do caso concreto, de modo que o seu julgamento em uma eventual ação penal decorrente do descumprimento do acordo, resultaria na sua parcialidade subjetiva. Isso porque, o juiz, assim como todo ser humano, não consegue desconhecer daquilo que um dia conheceu, ou seja, não há a garantia da originalidade cognitiva, isto é, o conhecimento do caso penal apenas na fase processual de instrução, que se exige do juiz criminal para que esse seja imparcial (LOPES JUNIOR, 2020).
Nesse sentido, Aury Lopes Junior (2020, p. 143-144) preceitua o seguinte: “Não podemos ter um juiz que já formou sua imagem mental sobre o caso e que entra na instrução apenas para confirmar as hipóteses previamente estabelecidas pela acusação e tomadas como verdadeiras por ele (e estamos falando de inconsciente, não controlável) […]. É óbvio que outro juiz deve entrar para que exista um devido processo. Do contrário, a manter o mesmo juiz, a instrução é apenas confirmatória e simbólica de uma decisão previamente tomada. Para compreender isso, recordemos o que diz a Teoria da Dissonância Cognitiva.”.
A respeito da Teoria da Dissonância Cognitiva, Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 123) preleciona que a referida teoria “[…] está fundamentada na ideia de que seres racionais tendem a sempre buscar uma zona de conforto, um estado de coerência entre suas opiniões (decisões, atitudes), daí por que passam a desenvolver um processo voluntário ou involuntário, porém inevitável, de modo a evitar um sentimento incômodo de dissonância cognitiva. Há, por assim dizer, uma tendência natural do ser humano à estabilidade cognitiva, intolerante a incongruências, que são inevitáveis no caso de tomada de decisões e de conhecimento de novas informações que coloquem em xeque a primeira impressão.”.
Logo, é notória a incompatibilidade psíquica/erro psicológico do juiz que atua na homologação do acordo de não persecução penal, que se dá na fase de investigação, e mais tarde venha a ser um julgador imparcial na instrução penal (LOPES JUNIOR, 2020).
Assim sendo, em caso de descumprimento do ANPP e decorrente ação penal, o juiz que homologou o aludido acordo e consequentemente teve contato com a confissão do acusado, não poderá atuar como juiz julgador na instrução criminal – tendo em vista que, inconscientemente, é impossível ignorar o conteúdo probatório da fase de investigação – sob pena do julgamento ser dotado de parcialidade.
3.6 A celebração de ANPP na Justiça Especial
Pouco discutida na doutrina, a controvérsia acerca da possibilidade de aplicação do ANPP nas Justiças Especiais, como a Justiça Militar e a Justiça Eleitoral, é de importante debate.
No que tange a Justiça Militar, a Resolução 181/2017 do CNMP previa no art. 18, § 12 que as disposições referentes ao ANPP não se aplicavam aos delitos cometidos por militares que afetassem a hierarquia e a disciplina. No entanto, o art. 28-A do CPP, que agora regulamenta o acordo de não persecução foi omissa quanto a esse tema.
Isto posto, assim como em outras problemáticas relacionadas ao ANPP, faz-se importante a análise dos institutos previstos pela Lei nº 9.099/95.
Destarte, observando a referida legislação nota-se que o art. 90-A, inserido pela Lei nº 9.839/99, veda a possibilidade de aplicação da transação penal e da suspensão condicional do processo no âmbito da Justiça Militar. Todavia, nem sempre foi assim, pois quando do advento da Lei nº 9.099/95 não havia vedação expressa quanto a aplicabilidade de tais institutos (CABRAL, 2020).
Dessa forma, antes da vedação prevista no art. 90-A da Lei nº 9.099/95, o entendimento do Pretório Excelso era de que os referidos institutos podiam ser aplicados no âmbito castrense, pois “[…] não poderia a pretensão punitiva do Estado ser regida por norma processual mais desfavorável ao réu […] simplesmente porque o mesmo tipo penal está previsto nesta ou naquela lei substantiva.” (BRASIL, 1997).
Ainda, aqueles que são contrários à aplicação do novel instituto na Justiça Militar argumentam que o ANPP está previsto apenas no Código de Processo Penal e não havendo previsão no Código de Processo Penal Militar (CPPM), que trata-se de norma especial. Contudo, tal argumento é facilmente rebatido, pois o CPP pode ser aplicável de forma subsidiária ao CPPM quando esse for omisso, nos termos do art. 3º, alínea “a” do próprio CPPM, e mais, o CPP pode ser aplica até mesmo quando o CPPM não é omisso, desde que seja necessário para potencializar a ampla defesa e o contraditório dos acusados em geral (CABRAL, 2020).
Além disso, o entendimento de Paulo Tadeu Rosa (apud SILVA, 2020, p. 275), é de que: “O não reconhecimento deste direito é uma violação flagrante aos princípios que foram consagrados pelo texto constitucional de 1998 e na própria mens legis da Lei 9099-95, que tem por objetivo permitir ao infrator primário e de bons antecedentes, civil ou militar, que este mediante um acordo com o titular da ação penal, Ministério Público da União, dos Estados e do Distrito Federal, possa dar prosseguimento a sua vida, tanto no aspecto social como no aspecto profissional. Se os militares assim como os civis também são cidadãos da República Federativa do Brasil, premissa do Estado democrático de Direito, não existem motivos para se exigir destes funcionários do Estado um tratamento diverso daquele que é assegurado aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país em termos de direitos e de garantias fundamentais.”.
Assim, por analogia ao entendimento do Supremo Tribunal Federal e pelo silêncio do CPP quanto a possibilidade ou não de aplicação à Justiça Militar, pode-se entender que o acordo de não persecução penal é plenamente admissível em tal âmbito.
3.7 A celebração de ANPP em processos instaurados antes da vigência da Lei 13.964/2019
Sabe-se que o momento para o oferecimento e celebração do acordo de não persecução penal é o fim da fase investigatória e antes do oferecimento da denúncia. Contudo, essa é uma regra a ser aplicada aos casos novos, aqueles ocorridos após a vigência da Lei 13.964/2019. Com relação aos processos criminais instaurados antes da Lei Anticrime, a jurisprudência e a doutrina defendem que “[…] o ANPP tem aplicação retroativa e pode beneficiar investigados ou acusados por fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019.” (WALMSLEY; CIRENO; BARBOZA, 2020, p. 355).
Nesse sentido, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 210) entende o seguinte: “[…] com relação aos processos penais instaurados antes da vigência da Lei 13.964/19, até mesmo para franquear um tratamento isonômico entre os investigados, nos parece que, nessa fase de transição entre o novo e o antigo sistema, é perfeitamente possível a celebração de acordo de não persecução penal para os processos em curso.”.
Assim, Cabral (2020) fundamenta seu posicionamento através de dois argumentos: i) Interpretando a contrário sensu o art. 3º-B, inciso XVII do Código de Processo Penal, é possível dizer que admite o oferecimento do ANPP em momento diferente da investigação, ou seja, durante a ação penal. Veja a redação do referido dispositivo: “XVII – decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação” (grifo nosso); e ii) O entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto a retroatividade virtual de normas semelhantes ao ANPP, vide ADI 1719 MC[3].
Destarte, a retroatividade do acordo de não persecução penal é fundamentada na natureza híbrida do instituto. Assim, observando-o como instituto de natureza processual penal, sua aplicação deve ser imediata, conforme dispõe o art. 2º do Código de Processo Penal; no entanto, observando o instituto como de natureza penal e tratando-se de norma mais benéfica ao réu, essa deve retroagir por repercutir no jus puniendi estatal (WALMSLEY; CIRENO; BARBOZA, 2020).
Nesse contexto, Douglas Fischer (2020) entende que, defender que a regra é apenas penalmente mais benéfica, resultaria, sem sombras de dúvida, na possibilidade de celebração do acordo até mesmo nos casos com sentença já transitada em julgado, pois assim seria possível ajustar a pena de modo mais favorável do que aquela prevista em abstrato ou até mesmo aquela aplicada pelo juízo criminal. Isso porque, de acordo com o princípio da retroatividade da norma penal mais benéfica, a norma mais benéfica deve retroagir até mesmo aos casos já transitados em julgado. Dessa forma, seguindo tal argumentação, ou a norma deve retroagir para todos os casos, sem exceções, ou por tratar-se de norma de natureza processual penal, ela deve ser limitada por fatores objetivos, como o recebimento da denúncia.
Sucede que o debate em torno da retroatividade do ANPP diz respeito até qual o momento em que o acordo poderá ser oferecido. Nesse sentido, há diversos entendimentos.
De acordo com o entendimento do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), inclusive firmado pelo Enunciado n. 20, o acordo é cabível para fatos ocorridos antes da vigência da Lei Anticrime, desde que não tenha sido recebida a denúncia (LIMA, 2020).
Já Aury Lopes Junior e Higyna Josita (2020) entende que o ANPP pode ser oferecido em todos os processos em curso, desde que não sentenciados, pois o acordo adquiriu natureza híbrida ao elaborar uma causa extintiva da punibilidade no art. 28-A, § 13 do CPP, e dessa forma deve retroagir para beneficiar o infrator já que é mais benéfico do que a possível condenação criminal.
Consoante é o entendimento de Ali Mazloum e Amir Mazloum (2020), que defendem a incidência do acordo nos processos penais em curso, tendo em vista a natureza híbrida da norma que inseriu o ANPP do ordenamento jurídico, acordo este que traz inquestionável benefício em favor do investigado, de forma que deve ter ampliada sua aplicação, nos moldes do art. 5º, inciso XL da Constituição Federal.
Nesse mesmo sentido, Rodrigo Leite Ferreira Cabral (2020, p. 213) entende que “[…] o marco final para que se possa celebrar o acordo de não persecução penal, a nosso sentir, é a sentença penal condenatória, não, portanto, sendo cabível o ANPP para os casos penais que se encontram na fase recursar.” e complementa dizendo que “[…] uma vez já proferida a sentença (condenatória), o acusado não poderia mais colaborar com o Ministério Público com sua confissão, que é, como já visto, um importante trunfo político-criminal para a celebração do acordo.” (CABRAL, 2020, p. 213).
Congruente aos doutrinadores anteriores é o posicionamento de Vladimir Aras (apud WALMSLEY; CIRENO; BARBOZA, 2020, p. 356-357), veja: “Também é admissível a celebração de acordo de não persecução penal após a deflagração da ação penal, sendo esta uma interpretação mais benéfica para o acusado. Em tais casos, o ANPP converte-se em acordo de não prosseguimento da ação penal. Vide, a propósito, o inciso XVII do art. 3º-B do CPP. Cabe ao juiz de garantias decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, “quando formalizados durante a investigação”. Ações penais já em curso na data da vigência da Lei 13.964/2019 podem ser encerradas mediante a celebração de ANPP, com a decretação da extinção da punibilidade, nos termos do §13 do art. 28-A do CPP. Cuida-se de situação semelhante à prevista no §5º do art. 89 da Lei 9.099/1995, no tocante à suspensão condicional do processo. Esta solução não ofende o art. 42 do CPP, porque não se tem aí desistência da ação penal, mas utilização extensiva de instituto jurídico legítimo, que atende ao interesse público, na medida em que observa os direitos da vítima e do acusado e as contingências da justiça criminal. A indisponibilidade da ação penal é preservada, porque, se descumprido o acordo, a ação volta a tramitar. O jus puniendi estatal restará intacto. Nesta formatação, o acordo quanto ao não início da persecução criminal em juízo ou ao não prosseguimento desta será cabível entre a data do fato e o momento imediatamente anterior à sentença condenatória, inclusive em caso de desclassificação. Diferentemente do que ocorre com o acordo de colaboração premiada (art. 4º, §5º, da Lei 12.850/2013), não é possível a formalização de ANPP após a decisão condenatória.”.
Ademais, essa corrente pode ser reforçada pelo entendimento jurisprudencial acerca da suspensão condicional do processo, que definiu que o referido benefício somente poderia ser aplicado aos processos penais em curso que não havia sido proferida sentença. Observe: “HABEAS CORPUS – SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO PENAL (“SURSIS” PROCESSUAL) – LEI Nº 9.099/95 (ART. 89) – CONDENAÇÃO PENAL JÁ DECRETADA – IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEX MITIOR – LIMITES DA RETROATIVIDADE – PEDIDO INDEFERIDO. – A suspensão condicional do processo – que constitui medida despenalizadora – acha-se consubstanciada em norma de caráter híbrido. A regra inscrita no art. 89 da Lei nº 9.099/95 qualifica-se, em seus aspectos essenciais, como preceito de caráter processual, revestindo-se, no entanto, quanto às suas consequências jurídicas no plano material, da natureza de uma típica norma de direito penal, subsumível à noção da lex mitior. – A possibilidade de válida aplicação da norma inscrita no art. 89 da Lei nº 9.099/95 – que dispõe sobre a suspensão condicional do processo penal (“sursis” processual) – supõe, mesmo tratando-se de fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da vigência desse diploma legislativo, a inexistência de condenação penal, ainda que recorrível. Condenado o réu, ainda que em momento anterior ao da vigência da Lei dos Juizados Especiais Criminais, torna-se inviável a incidência do art. 89 da Lei nº 9.099/95, eis que, com o ato de condenação penal, ficou comprometido o fim precípuo para o qual o instituto do “sursis” processual foi concebido, vale dizer, o de evitar a imposição da pena privativa de liberdade. Precedente.”. (STF, Primeira Turma, HC: 74463SP, Relator: Celso de Mello, Data de julgamento: 10/12/1996).
Ainda, há quem defenda a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal até mesmo após a sentença condenatória. Nesse contexto, nota-se que “Tal entendimento é equivocado. A sentença transitada em julgado é um título que já permite a execução da pena imposta e, em consequência, a satisfação da pretensão punitiva do Estado. O primeiro óbice à concordância com esse entendimento amplíssimo é, portanto, o fato de que não haverá interesse público a amparar um acordo em situações semelhantes. A sanção justa já foi fixada pelo Estado-juiz e não há sentido em simplesmente substituir essa reprimenda por outra, arbitrada pela vontade das partes (MP e condenado). A pena a ser executada é exatamente aquela que o Judiciário, após regular processo no curso do qual o réu exerceu o contraditório e a ampla defesa, entendeu ser a sanção “necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime” – para usar as palavras do caput do art. 28-A do CPP, que prevê um dos requisitos para o ANPP. Não bastassem todos esses argumentos, a própria lógica do ANPP é a de evitar o processo, impedindo custos para o Estado e para os sujeitos envolvidos. Se o processo já acabou, restando apenas a execução do que foi decidido, o ANPP não tem lugar.”. (WALMSLEY; CIRENO; BARBOZA, 2020, p. 359).
No entanto, conforme dispõe Eugênio Pacelli (2020, p.116): “[…] A própria natureza do instituto parece sugerir que a proposta deverá ser feita na fase pré-processual, tanto pelo texto da lei (“Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado…”) quanto pela consequência de seu descumprimento ou não homologação (possibilidade de oferecimento de denúncia). Contudo, a lei diz que cabe ao juiz das garantias decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação (art. 3º-B, XVII). Ora, se é certo que as colaborações premiadas podem ser formalizadas ao longo do processo (art. 4º, § 5º da Lei nº 12.850/13), o mesmo não pode ser dito quanto ao acordo de não persecução penal, que deveria ser proposto em momento anterior. A única possibilidade que conseguimos visualizar de esta questão surgir durante o processo é a de o Ministério Público oferecer diretamente a denúncia sem ter proposto o acordo de não persecução, e após o recebimento da exordial, o réu se insurgir contra a ausência de possibilidade de formalizar o acordo. Assim, concordando o juiz com o pleito, o ideal seria suspender o processo até a questão ser solucionada (com remessa ao órgão superior interno do parquet em caso de discordância, nos termos do § 14 do art. 28-A do Código de Processo Penal).”.
Por fim, assim como o entendimento doutrinário, o entendimento jurisprudencial também é divergente, isso pode ser observado através da análise de julgados de alguns tribunais, de forma que é possível encontrar divergência até mesmo em uma mesma turma de um mesmo tribunal. Veja:
A Egrégia 8º Turma do Tribunal Regional Federal da 4º Região, em 09/07/2020, decidiu nos Autos de Correição Parcial nº 5031486-65.2020.4.04.0000/RS que é possível o oferecimento do ANPP nos processos em curso[4]. Contudo, em 15/07/2020, a mesma turma tinha decidido na Apelação Criminal nº 5015547-31.2019.4.04.7000/PR, que o ANPP deveria ser oferecido somente aos procedimentos de investigação que possuíam denúncia recebida[5].
Já a 5º Turma do Superior Tribunal de Justiça possui o seguinte entendimento: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ESTELIONATO TENTADO. CONVERSÃO DO JULGAMENTO EM DILIGÊNCIA. INOVAÇÃO RECURSAL. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO. I – Os embargos declaratórios não constituem recurso de revisão, sendo inadmissíveis se a decisão embargada não padecer dos vícios que autorizariam a sua oposição (obscuridade, contradição e omissão). Na espécie, à conta de omissão no v. acórdão, pretende o embargante a rediscussão, sob nova roupagem, da matéria já apreciada. II – Ademais, da simples leitura do art. 28-A do CPP, se verifica a ausência dos requisitos para a sua aplicação, porquanto o embargante, em momento algum, confessou formal e circunstancialmente a prática de infração penal, pressuposto básico para a possibilidade de oferecimento de acordo de não persecução penal, instituto criado para ser proposto, caso o Ministério Público assim o entender, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, na fase de investigação criminal ou até o recebimento da denúncia e não, como no presente, em que há condenação confirmado por Tribunal de segundo grau. III- Embargos de declaração rejeitados. (Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.1.668.298/SP, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 26.5.2020, publicado no DJ em 3.6.2020) (grifos nossos).”.
Os Tribunais de Justiça dos estados do Mato Grosso do Sul[6], São Paulo[7] e Alagoas[8], seguem o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Enunciado 20 do CNPG e do GNCCRIM, de forma que entendem que o ANPP somente pode ser oferecido nos fatos ocorridos antes da vigência da Lei 13.964/2019, se a denúncia não estivesse recebida.
Logo, verifica-se que não há um entendimento pacífico acerca do assunto, mas que a maioria entende ser possível o oferecimento do acordo nos fatos delituosos ocorridos antes da vigência da Lei 13.964/2019, apenas quando estes não tenham denúncia recebida.
Conclusão
O acordo de não persecução penal foi uma grande conquista para a expansão da justiça consensual no ordenamento jurídico brasileiro, pois a busca por mecanismos de consenso no âmbito penal é uma tendência mundial. A Resolução n. 181/2017 do CNMP se inspirou em
modelos consensuais de países europeus, de modo que o Brasil possui a chance de aprender
com os erros internacionais e aplicar um mecanismo eficiente em seu ordenamento jurídico.
A celebração do acordo entre o Ministério Público e o acusado pressupõe requisitos objetivos e subjetivos. Requisitos como aqueles que determinam que a pena mínima do delito cometido seja inferior a 4 (quatro) anos, que na execução do delito, o acusado não tenha se utilizado violência ou grave ameaça, que o acusado não seja reincidente e que não tenha sido beneficiário de outro instituto consensual nos 5 (cinco) anos anteriores, permitirá que o judiciário dê mais atenção aos crimes de maior prejuízo social, pois os crimes que se enquadram nesses requisitos, e que causam menos prejuízos, serão resolvidos de forma mais célere. No entanto, o requisito mais polêmico é a exigência da confissão circunstanciada do delito cometido pelo acusado, pois embora se discuta que a exigência seja ilegal, vez que fere o direito de não produzir provas contra si mesmo, a confissão constitui a troca de interesses entre o acusado e o parquet, isso porque sendo o acordo de não persecução penal um negócio jurídico bilateral, ambas as partes precisam ser alcançar benefícios com o acordo e consequentemente abrir mão de alguns direitos, enquanto o Ministério Público abre mão do direito de oferecer a denúncia, beneficiando o acusado com a ausência do processo, o acusado escolhe confessar o delito para assegurar que cumprirá o acordo, vez que caso não cumpra, o parquet poderá usar sua confissão como prova na instrução criminal. Ainda, o acordo deve ser celebrado apenas e exclusivamente na fase pré-processual, portanto, antes do oferecimento da denúncia, não havendo a possibilidade de se oferecer o acordo durante a instrução do processo, em grau de recurso ou até mesmo após o trânsito em julgado. Já com relação a homologação judicial, esta deve ocorrer para que seja avaliada a voluntariedade e legalidade do acordo, para que então tenha eficácia. Além disso, no que tange a execução do acordo não existe divergência, cumprido o acordo será extinta a punibilidade do acusado, descumprido o acordo será oferecida a denúncia.
Ademais, no que tange as questões controvertidas, tem-se que é possível a celebração do acordo de não persecução penal nas ações penais privadas, no entanto as ações penais privadas subsidiárias da pública não poderão ser proposta quando o Ministério Público oferecer o referido acordo. Além do mais, verificou-se que o acordo de não persecução penal não é um direito subjetivo do acusado, isso porque é uma faculdade do Ministério Público, que é responsável pela análise quanto a suficiência do acordo para a reparação e prevenção do crime. Já com relação a utilização da confissão feita em sede de ANPP na instrução criminal, concluiu-se não haver nenhuma ilegalidade, sendo apenas uma consequência do descumprimento do referido acordo. Ainda, tem-se que a confissão do acusado que celebra o ANPP não poderá ser utilizada como prova em desfavor de coautores ou partícipes que não vierem a celebrar o ANPP, isso porque caracterizaria o instituto da colaboração premiada transvestida de acordo de não persecução penal. Além disso, caso haja o descumprimento do acordo pelo acusado, a ação penal não poderá ser julgada pelo mesmo juiz responsável pela homologação do acordo (pelo menos enquanto a suspensão do juiz de garantias), em virtude do princípio da imparcialidade do juiz. Não obstante o silêncio do Código de Processo Penal, o ANPP poderá ser aplicado na Justiça Militar por analogia ao entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação aos institutos da suspensão condicional do processo e da transação penal. Por fim, com relação a celebração de ANPP em processos instaurados antes da vigência da Lei 13.964/2019, concluiu-se pela impossibilidade de celebrar o acordo em processos já instaurados, de modo que apenas será possível oferecer o acordo para fatos ocorridos antes da vigência da Lei 13.964/2019, se não tiverem sido denunciados.
Finalmente, conclui-se que a regulamentação do acordo de não persecução penal através Lei 13.964/2019 contribui para o desafogamento do judiciário, atualmente precário frente as incontáveis demandas que aguardam julgamento nas Varas Criminais do país, de modo a trazer celeridade processual; assim como contribui para a economia de recursos pelo Estado, tanto materiais, como humanos, vez que a máquina judiciária não precisará ser movimentada. Já no âmbito social, o acordo de não persecução penal possibilita a não manutenção do movimento de encarceramento em massa, evitando que pessoas sobre o poder do Estado acabem em estabelecimentos insalubres e desumanos, bem como possibilita o enaltecimento da vítima, de modo que a previsão de reparação do dano como requisito para a celebração do acordo provoque a ela a sensação de justiça efetiva.
Referências
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ARAS, Vladimir. Acordos penais no Brasil: uma análise à luz do direito comparado. In: BARROS, Francisco Dirceu; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira; CUNHA, Rogério Sanches; SOUZA, Renee do Ó (orgs). Acordo de Não Persecução Penal: Resolução 181/2017 do CNMP com as alterações feitas pela Res. 183/2018. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2020.
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_______. Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União e Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal. Enunciado n. 20. Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. Disponível em: https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 12 set. 2020.
_______. Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União e Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal. Enunciado n. 21. Não caberá o acordo de não persecução penal se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, entendidas estas como delitos de menor potencial ofensivo. Disponível em: https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 12 set. 2020.
_______. Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União e Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal. Enunciado n. 23. É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível. Disponível em: https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 12 set. 2020.
_______. Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União e Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal. Enunciado n. 28. Caberá ao juízo competente para a homologação rescindir o acordo de não persecução penal, a requerimento do Ministério Público, por eventual descumprimento das condições pactuadas, e decretar a extinção da punibilidade em razão do cumprimento integral do acordo de não persecução penal. Disponível em: https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 12 set. 2020.
_______. Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União e Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal. Enunciado n. 29. Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o artigo 28-A, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto, na linha do que já dispõe os enunciados sumulados nº 243 e nº 723, respectivamente, do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRIME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 12 set. 2020.
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[1] Acadêmica de Direito na Universidade Paranaense. E-mail: [email protected]
[2] Mestre em direito; Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal, Advogado Criminalista. E-mail: [email protected]
[3] ADI 1719 MC, Relator(a): Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/1997, DJ 27-02-1998 PP-00001 EMENT VOL-01900-01 PP-00001
[4] TRF-4, Oitava Turma, COR: 50314866520204040000 5031486-65.2020.4.04.0000, Relator: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, Data de Julgamento: 09/07/2020.
[5] TRF-4, Oitava Turma, ACR: 5015547-31.2019.4.04.7000, Relator: Leandro Paulsen, Data de Julgamento: 15/07/2020.
[6] TJMS, Segunda Turma, APC: 0074863320178120001, Relator: Luiz Gonzaga Mendes Marques, Data de julgamento: 07/07/2020
[7] TJSP, Quarta Turma, APC: 15003258720198260630, Relator: Edison Brandão, Data de julgamento: 15/07/2020
[8] TJAL, Câmara Criminal, HC: 08054168420208020000, Relator: Washington Luiz D. Freitas, Data dejulgamento: 12/08/2020.