A identidade de gênero no cenário jurídico-social

Resumo: A nova ótica constitucional, de valorização do indivíduo em sua essência, levanta debates recentes e atuais – entre eles, a questão da identidade de gênero. O tema não se limita às subjetividades do sentimento humano; é necessário que os juristas discutam a implementação de mecanismos que permitam o amplo exercício da Dignidade da Pessoa Humana – entre eles, a possibilidade de receber assistência pelo Sistema Único de saúde (SUS) e de ter o nome civil em compasso com a auto-percepção. É certo que não bastam os esforços para a efetivação das diversas medidas cabíveis – se faz necessário maior conscientização da sociedade como um todo.

Palavras-chave: Direito Civil. Direito Constitucional. Identidade de gênero. Transgenitalização. Direitos da personalidade.

Sumário: 1. Introdução; 2. A transgenitalização no atual contexto dos direitos fundamentais; 3. Algumas questões que merecem reflexão; 4. O nome como direito fundamental; 5. Conclusão. Referências.

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1. INTRODUÇÃO

A redesignação de sexo está diretamente ligada à medicina como ciência, uma vez que dela dependem as pessoas que querem fazer alterações físicas, não importando para aquelas que não possuem essa necessidade. São várias as cirurgias a que o indivíduo transgênero mulher tem acesso: desde a raspagem do “pomo de Adão”, passando pelo afinamento da cintura, até constituição do órgão genital feminino. O objetivo é fazer com que o aspecto físico desse indivíduo fique de acordo com o que ele espera de si próprio e com o que se apresenta e é conhecido em seu meio social e/ou familiar.

Mas não é só.

A transgenitalização não significa, necessariamente, apenas a alteração da genitália. Muitos são as pessoas transgêneros que não se submetem a esse tipo de intervenção, ou seja, realizam diversas cirurgias, mas não alteram a genitália. O tratamento hormonal, por vezes, já satisfaz o indivíduo quanto aos seus aspectos físicos, e reduz a números baixos os casos dos que recorrem à cirurgia.

Conforme agasalhado pela jurisprudência, e, recentemente, pelo STJ[1], não permitir a mudança registral de sexo com base em uma condicionante meramente cirúrgica equivale a prender a liberdade desejada pelo transexual às amarras de uma lógica formal que não permite a realização daquele como forma de ser reconhecido por terceiros, mas principalmente a sua auto percepção de si próprio, construída ao longo de anos de muito sofrimento e preconceito.

2. A TRANSGENITALIZAÇÃO NO ATUAL CONTEXTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

No que tange aos direitos humanos fundamentais, inicialmente, o bem jurídico que inicialmente preponderava era o da propriedade e a liberdade de querer ser proprietário de alguma coisa. Em um segundo momento, o que preponderou foram os direitos públicos e de cidadania, isto é, o povo começou a querer ter voz. Em um terceiro momento, o foco passou a ser o direito às liberdades individuais. Vida privada e intimidade passaram a categoria de direito fundamental de todo ser humano.

Dessa forma, foram-se escalonando os direitos fundamentais até os dias de hoje, em que o amplo direito à dignidade engloba todos os anteriores. O direito da personalidade é um direito nato, intrínseco, aquele que o cidadão já traz com ele ao nascer: o direito a viver com dignidade, receber tratamento digno, de dizer quem é e de expressar sua personalidade. Essa questão, então, se insere dentro de um contexto familiar e o que se busca hoje em dia é despatrimonializar a família, as relações de afeto e os direitos de liberdade sexual.

 O movimento social para despatrimonialização do casamento ganhou força para fazer prevalecer questões emocionais, sentimentais e amorosas, reduzindo as imposições externas tanto para casar quanto para descasar. O divórcio, nesse contexto, virou direito potestativo de busca pela felicidade.

À despatrimonialização, somou-se a igualdade e a dignidade da família. Os papéis muito bem definidos de marido e esposa foram suplantadas pela igualdade de gênero e das condutas sociais, retirando-se o caráter desigual de dentro das famílias brasileiras. As comunidades conservadoras julgam que a luta por essa igualdade dentro do seio familiar prenuncia seu fim, o que não traduz a realidade, visto que os novos modelos de família se somam aos já existem e não os excluem do cenário.

A família continua sendo a célula mater da sociedade e, independentemente da sua formação (seja anaparental, pluriparental, adoção, etc.), mantém seu papel de núcleo, detentor do potencial dever de transmitir aos seus descendentes as primeiras regras de hierarquia, respeito e boas práticas de convivência social. Os direitos humanos da família buscam, exatamente, sobrepor o caráter humano ao patrimonialismo, às imposições e às desigualdades, fazendo prevalecer o direito à liberdade e felicidade junto à comunidade. Dessa forma, expande-se o conceito de família para uma unidade de afeto.

Barreiras culturais imprimiram ritmo lento à implementação dos  princípios gerais de Liberdade, Igualdade e Dignidade. Todos os indivíduos, portanto, nascem livres, iguais e têm direito à dignidade. No Brasil, já foram criadas inúmeras leis que priorizam tais valores no ordenamento jurídico, como a lei que proíbe o racismo, e agora estamos à espera da lei contra a homofobia. Ainda lutamos contra grupos religiosos que se opõem a essa causa e admitem e até incentivam a homofobia, desconsiderando o crescente número de casos de violência e mortes provocados pelos mais radicais.

3. ALGUMAS QUESTÕES QUE MERECEM REFLEXÃO

Nesse contexto, é fundamental entender a diferença entre homossexuais e transexuais. Esses últimos dizem respeito à questão de identidade de gênero, que é a convicção íntima de pertencer ao gênero feminino ou masculino, independentemente de como o outro quer que o indivíduo se sinta. É como ele se percebe. Já a homossexualidade tem relação com o sentimento; a quem o sentimento e o desejo sexual é direcionado. Por isso, não pode ser chamada de “opção” sexual, já que não se escolhe o sentimento: ele aflora, é algo natural que não se escolhe.

O Código Internacional de Doenças (CID), elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), traz a transexualidade como doença psiquiátrica. Todas as disfunções físicas e biológicas estão incluídas nesse código.  A homossexualidade foi tratada como doença pelo CID até 1990. Quando foi retirada do código, em 17 de maio, a data ficou conhecida como Dia do Orgulho Gay (LGBT). A luta atual dos indivíduos transgênero é pelo reconhecimento da transgeneridade sem caráter patológico. Diversas associações médicas e psiquiátricas já retiraram a transexualidade do rol das doenças mentais, mas o Código Internacional de Doenças, que é mundialmente utilizado, permanece inalterado, o que acaba por perpetuar o preconceito já existente nas sociedades.

O processo transexualizador inclui várias etapas e procedimentos que se iniciam com acompanhamento psicológico, seguido por tratamento hormonal e cirurgias eletivas. O Sistema Único de Saúde (SUS) prevê atendimento a essas pessoas, sendo pacífico o entendimento da doutrina e jurisprudência sobre a possibilidade de custeio da cirurgia de transgenitalização pelo Estado, por meio do SUS.

Existe uma discordância no grupo transexual entre os que temem a saída da transexualidade do CID e a eventual perda dos direitos públicos e os que apoiam a retirada da classificação de doença por entenderem que o direito ao atendimento está assegurado dentro do direito à saúde sexual – devendo essa visão ser amplamente difundida entre os diversos setores da sociedade, e, também, nos espaços de poder. É preciso conscientizar a opinião pública acerca do dever de respeito à identidade como direito individual fundamental, um dos vetores de uma vida digna.

Algumas crianças transgênero têm o privilégio de ter pais que buscam esclarecimento, e conseguem lidar com a situação de uma forma pacífica, compreensiva e acolhedora, mas a maioria, infelizmente, ainda têm desfechos cruéis, senão fatais, precedidos por atos de violência física e psicológica, episódios de agressão e abandono.

4. O NOME COMO DIREITO FUNDAMENTAL

O CNJ garante a desnecessidade da cirurgia de transgenitalização para alteração de nome e retificação de sexo jurídico no registro civil, respectivamente. Recentemente, o STJ, em decisão inovadora e condizente os novos rumos tomados pelo ordenamento jurídico brasileiro pós Constituição de 1988, dispensou qualquer tipo de obrigatoriedade de cirurgia para modificação dos assentos civis das pessoas. Este julgado se apresenta como um importante precedente na seara dos direitos individuais e da personalidade.

O que se observa é que a designação sexual assentada no primeiro registro leva em consideração somente a observação física, que, com o tempo, pode ser suplantada pelo aspecto do sexo psicológico; pela real identidade e representação de gênero dos indivíduos que buscam a retificação civil de seu nome e a redesignação sexual como meio de promoção de sua dignidade, cidadania e bem estar. A falha primária acometida sobre a transexualidade é um engano no primeiro registro do tipo sexual, determinado ao nascer, e apenas em observância dos fatores biológicos, mas que, com o passar dos anos, demonstra-se incoerente com o aspecto do sexo psicológico e da real identidade de gênero. A busca é pela reparação desse engano; para que adquira sua real identidade registral, podendo ser identificado publicamente através de seus registros civis em total coerência com sua representação de gênero e nome frente à sociedade.

O entendimento foi firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao acolher pedido de modificação de prenome e de gênero de transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para demonstrar identificação social como mulher. Para o colegiado, o direito dos transexuais à retificação do registro não pode ser condicionado à realização de cirurgia, que pode inclusive ser inviável do ponto de vista financeiro ou por impedimento médico.

No pedido de retificação de registro, a autora afirmou que, apesar de não ter se submetido à operação de transgenitalização, realizou intervenções hormonais e cirúrgicas para adequar sua aparência física à realidade psíquica, o que gerou dissonância evidente entre sua imagem e os dados constantes do assentamento civil. Tal decisão é de tamanha importância para conjuntura atual de preconceito e homofobia em que vivemos, que cabe aqui colacioná-la na íntegra:

“Ação de retificação de registro de nascimento. Troca de prenome e do sexo (gênero). Pessoa transexual. Cirurgia de transgenitalização. Desnecessidade. DESTAQUE O direito dos transexuais à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização. INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR A controvérsia está em definir se é possível a alteração de gênero no assento de registro civil de pessoa transexual, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização (também chamada de cirurgia de redesignação ou adequação sexual). Inicialmente, e no que diz respeito aos aspectos jurídicos da questão, infere-se, da interpretação dos arts. 55, 57 e 58 da Lei n. 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), que o princípio da imutabilidade do nome, conquanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual ou o benefício social da alteração, o que reclamará, em todo caso, autorização judicial, devidamente motivada, após audiência do Ministério Público. Quanto ao ponto, cabe destacar ser incontroversa a possibilidade de alteração do prenome, na medida em que o Tribunal de origem manteve a sentença que rejeitou tão somente o pedido de alteração do gênero registral da transexual mulher. Ocorre que a mera alteração do prenome das pessoas transexuais, não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade. Nesse contexto, o STJ, ao julgar casos nos quais realizada a cirurgia de transgenitalização, adotou orientação jurisprudencial no sentido de ser possível a alteração do nome e do sexo/gênero das pessoas transexuais no registro civil – entendimento este que merece evolução tendo em vista que a recusa de modificação do gênero nas hipóteses em que não realizado tal procedimento cirúrgico ofende a cláusula geral de proteção à dignidade da pessoa humana. Vale lembrar que, sob a ótica civilista, os direitos fundamentais relacionados com a dimensão existencial da subjetividade humana são também denominados de direitos de personalidade. Desse modo, a análise do tema reclama o exame de direitos humanos (ou de personalidade) que guardam significativa interdependência, quais sejam: direito à liberdade, direito à identidade, direito ao reconhecimento perante a lei, direito à intimidade e à privacidade, direito à igualdade e à não discriminação, direito à saúde e direito à felicidade. Assim, conclui-se que, em atenção à cláusula geral de dignidade da pessoa humana, a jurisprudência desta Corte deve avançar para autorizar a retificação do sexo do indivíduo transexual no registro civil, independentemente da realização da cirurgia de adequação sexual, desde que dos autos se extraia a comprovação da alteração no mundo fenomênico (como é o caso presente, atestado por laudo incontroverso), cuja averbação, nos termos do § 6º do artigo 109 da Lei de Registros Públicos, deve ser efetuada no assentamento de nascimento original, vedada a inclusão, ainda que sigilosa, da expressão transexual ou do sexo biológico.” ( REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por maioria, julgado em 9/5/2017, DJe 1/8/2017.)

O relator do referido recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão, lembrou em seu voto inicialmente que, como Tribunal da Cidadania, cabe ao STJ levar em consideração as modificações de hábitos e costumes sociais no julgamento de questões relevantes, observados os princípios constitucionais e a legislação vigente. Além disso, na hipótese específica dos transexuais, o ministro entendeu que a simples modificação de nome não seria suficiente para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e que também seriam violados o direito à identidade, o direito à não discriminação e o direito fundamental à felicidade. [2]

Pode-se dizer, então, que o nome registral de um indivíduo é um elemento de identificação. O nome no registro civil, se presta a duas funções sociais, ambas identificadoras: o indivíduo se identificar e fazer com que a sociedade o identifique. A partir do momento que esse registro passa a não cumprir essa função social, é preciso revê-lo juridicamente.

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Quanto aos argumentos no sentido de que a alteração do nome poderia ocultar aqueles que desejam finalidades ilícitas, é certo que nome não configura mais um fator determinante na segurança pública. Na verdade, é de somenos importância quando se dispõe de tantos outros recursos como a digital, a íris, a curvatura da mão e o reconhecimento facial. A tecnologia é que traz segurança e não o nome, que é um fator de relevância enquanto vetor de inclusão social.

A identidade é, portanto, um fator de inclusão social, mas não de segurança pública, uma vez que somente o nome é alterado, os números dos documentos como CPF e carteira de identidade continuam os mesmos.

Nas palavras no ministro Salomão: “ademais, impende relembrar que o princípio geral da presunção de boa-fé vigora no ordenamento jurídico. Assim, eventuais questões novas deverão ser sopesadas, futuramente, em cada caso concreto aportado ao Poder Judiciário, não podendo ser invocados receios ou medos fundados meramente em conjecturas dissociadas da realidade concreta”.

Ainda sobre esse aspecto, o direito ao segredo de justiça preserva a privacidade do indivíduo transgênero sem que represente qualquer perigo para a sociedade, restringindo o assunto ao âmbito dos diretamente interessados. Dessa forma, ampliam-se as chances de integrá-lo e mantê-lo resguardado de qualquer tipo de discriminação.

5. CONCLUSÃO:

Reconhecer o indivíduo frente à sua própria identidade é respeitá-lo enquanto pessoa e cidadão – e não trará nenhum prejuízo à sociedade, gerando, ao contrário, enorme bem-estar, dignidade e sentimento de justiça, conduzindo à uma convivência harmônica e respeitosa entre todos que a compõem, com todas as suas diversidades raciais, sexuais, étnicas, etc.  

Sem ter uma identidade civil compatível com a aparência, torna-se impossível desfrutar de tratamento igualitário em uma sociedade já marcada por traços de ódio e preconceito.

Além das questões jurídicas que envolvem o tema, e que devem ser debatidas para que o Direito acompanhe a evolução da sociedade, existe a preemente necessidade alarmante de promover a conscientização coletiva, de modo que o indivíduo se sinta acolhido no meio em que vive.

 

Referências
Problemas de Gênero – Feminismo e Subversão da Identidade. Judith Butler. Acessível em http://erosdita.ne10.uol.com.br/2015/10/18-textos-essenciais-para-estudos-e-pesquisas-sobre-genero-e-sexualidade-para-ler-e-baixar/ (acesso em 04 de novembro de 2017);
Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – 5ª Ed. 2015; Barroso, Luis Roberto; Saraiva;
Temas de Direito Civil – 4ª Ed.; Tepedino,Gustavo; Renovar.
 
Notas
[1] Número de processo não divulgado por ser segredo de justiça.

[2] O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.


Informações Sobre o Autor

Renata Moura Tupinambá

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes aprovada nos concursos públicos para o cargo de analista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e defensor público do Estado da Bahia


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