Liberdade de Expressão, Discurso de Ódio e ‘Fake News’: O Papel da Jurisdição Constitucional na Construção do Sentido Jurídico-Político de Pluralismo

Kepler Gomes Ribeiro – Juiz Federal, Mestre em Ciências Jurídico-Políticas (Ambientais) – Universidade de Lisboa, Pós-Graduado em Direito Constitucional. (E-mail: [email protected])

Resumo: No atual cenário brasileiro, o nominado discurso de ódio passou a fazer parte do cotidiano. Por sua perniciosidade à democracia, o quadro deve motivar a academia a compreender o fenômeno e a procurar fomentar o debate a respeito do tema. Crescente, sobretudo em redes sociais, manifestações depreciadoras a certos grupos humanos, por razões as mais diversas: preferências ideológicas, político-partidárias, questões de etnia, gênero e opção sexual, e agora ataques a instituições republicanas. Para além disso, não se conhece outro período da história nacional em que tenha havido tanta distorção de verdades e com disseminação massiva, inclusive através de robôs, as nominadas fake news. O debate a respeito do direito à liberdade de expressão e de seus limites é o grande propósito de trabalho. O enfoque do artigo será propor uma análise do fenômeno à luz do direito constitucional, tanto o brasileiro como o comparado; trazendo à baila a compreensão de importantes Cortes Constitucionais, como a norte-americana, a alemã, e demais Cortes Europeias de Justiça, a respeito do nominado discurso do ódio, da censura e suas implicações, bem como a análise da questão da posição de preferência da liberdade a partir da compreensão de vertente liberal (EUA) ou comunitarista (União Europeia). Por fim, propõe uma série de questionamentos a serem necessariamente enfrentados no Brasil; com ênfase para papel da jurisdição constitucional, notadamente a desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição, para seja encontrado o sentido jurídico-político de pluralismo a partir da interpretação holística das liberdades e dos direitos fundamentais.

Palavras-chave: Discurso de ódio. Fake news. Liberdade de expressão. Limites. Jurisdição constitucional.

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Abstract: In the current Brazilian scenario, the so-called hate speech became part of everyday life. Due to its perniciousness to democracy, the board must motivate the academy to understand the phenomenon and to seek to foster the debate about the subject. Increasing, especially in social networks, disparaging manifestations to certain human groups, for the most diverse reasons: ideological, political-party preferences, issues of ethnicity, gender and sexual option, and now attacks against republican institutions. Furthermore, there is no other period in national history in which there has been so much distortion of truths and with massive dissemination, including through robots, the so-called fake news. The debate about the right to freedom of speech and its limits is the main purpose of the work. The focus of the article will be to propose an analysis of the phenomenon to keep the spirit of constitutional law, both Brazilian and comparative; bringing to the fore the understanding of important Constitutional Courts, such as the American, the German, and other European Courts of Justice, regarding the so-called hate speech, censorship and its implications, as well as the analysis of the issue of the preferred position of freedom from the understanding of liberal (USA) or communitarian (European Union). Finally, it proposes a series of questions to be necessarily faced in Brazil; with emphasis on the role of constitutional jurisdiction, notably that played by the Supreme Federal Court as guardian of the Constitution, in order to find the legal-political sense of pluralism from the holistic interpretation of fundamental freedoms and rights.

Keywords: Hate speech. Fake news. Freedom of speech. Limits. Constitutional jurisdiction.

 

Sumário: Introdução. 1. Histórico político-jurídico do princípio da liberdade de expressão e o debate acadêmico sobre o hate speech. 2. A liberdade de expressão lida pela Suprema Corte dos EUA e pelos tribunais constitucionais europeus quanto ao tema ‘hate speech’: perspectiva liberal vs. perspectiva comunitarista. 3. Liberdade de expressão e discurso do ódio no Brasil: a oscilante linha interpretativa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 4. Direito fundamental à liberdade de expressão e interpretação constitucional. 4.1. Uma síntese metodológica. 4.2. Marco teórico do método hermenêutico. 4.2.1. O caráter ‘prima facie’ das posições jurídicas extraídas das normas de direitos fundamentais. 4.2.2. Teoria externa como teoria apropriada para a análise hermenêutica dos direitos fundamentais. 4.3. ‘Hard cases’ atuais no direito brasileiro: o papel da jurisdição constitucional na construção do sentido jurídico-político do pluralismo. Conclusão. Referências bibliográficas.

 

Introdução

O trânsito livre de ideais para a construção do bem comum seria a grande luz inspiradora da mensagem que John Stuart MILL procurou passar nos primórdios do pensamento sobre o Direito à Liberdade de Expressão.

Sequer haveria, à época, que se cogitar que o nominado marcado livre de ideias viesse a se tornar verdadeiro trânsito de mensagens de ódio e disseminação de inverdades sobre fatos e sobre pessoas.

A realidade verificada no presente cenário brasileiro é justamente o descrito: DISCURSOS DE ÓDIO (ideológico, político-partidário, étnico, homofóbico, e agora também contrários ao independente funcionamento de instituições da República).

Para além disso, não se conhece outro período da história nacional em que tenha havido tanta distorção de verdades e disseminação massiva destas, sobretudo por meio de redes sociais, inclusive através de robôs: as nominadas FAKE NEWS.

A isso ainda se associa, agora a respeito de outra espécie de liberdade de expressão – a liberdade artística –, questionamentos judiciais visando à censura de veiculação, nas mídias, de paródias e outras manifestações humorísticas, de canções abordando temas político-jurídicos, dentre outros temas relacionados ao humor e à arte crítica.

Ainda se vislumbra, na quadra presente, veiculações de ideias minoritárias relacionadas ao negacionismo científico, bem como releitura de fatos históricos à luz de construções de matiz ideológico.

O desafio para a JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL é dos maiores. E, diga-se de passagem, que, quando se fala em jurisdição constitucional, esta expressão tem a mais ampla abrangência, vez que o Constitucionalismo brasileiro adota o controle difuso e concreto de constitucionalidade, onde todos os juízes podem e devem aferir a constitucionalidade de leis e atos normativos em casos concretos, quando se põe em questão um tema tão envolvente quanto indispensável como o é o direito fundamental à liberdade de expressão, seu âmbito, suas restrições e as respectivas violações. Ou seja: Jurisdição Constitucional – inerente ao nominado judicial review desde Marbury vs. Madison –, ao contrário do que pode apressadamente pensar um leigo no Direito, não se restringe à atuação do Supremo Tribunal Federal, mas, sim, diz respeito à atuação de todo o Sistema de Justiça nacional, desde a comarca mais humílima até a Corte Máxima da Nação Brasileira.

Em questão: o valor Liberdade, conquistado a sangue, a suor e vidas, no passar dos séculos da Humanidade.

Não atoa a frase cunhada por Evelyn Beatrice Hall, célebre biógrafa de VOLTAIRE, que seria o cerne do pensamento filosófico do francês: “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o si direito de dizê-lo”.

Do pondo de vista ainda do discurso focado no ideal Libertário, também célebre a síntese de George ORWELL: “Liberdade é o direito de dizer às pessoas aquilo que elas não querem ouvir”.

O ponto principal do pensamento filosófico em análise, sob o exclusivo prisma da Liberdade de Expressão, seriam o ideal de pluralismo, de igualdade de consideração de ideias em oposição. Este era o exato discurso pela primazia da liberdade contidas nestas sínteses de brocardos filosofais.

A simplicidade do discurso deixa encoberto, contudo, alguns graves problemas: o primeiro, a respeito do real direito de voz das minorias e de grupos vulneráveis; e o segundo, aquilo que vem com decorrência do uso irrestrito e ilimitado da liberdade de expressão: as manifestações de ódio por maiorias supremacistas, quase sempre dirigidas àquelas mesmas minorias sem voz.

Pertinente um colóquio pelo direito de liberdade de expressão defendido na filosofia popular do grupo musical O RAPPA: “Pois paz sem voz, não é paz, é medo”. Nada mais particular e coerente esta expressão, que faz sair do peito a luta pelo direito de voz dos vulneráveis.

Ora, o artista, usufruindo autenticamente do seu direito à liberdade de expressão, conclama a que se assegure igual direito aos vulneráveis.

Mas a questão contemporânea já não se resume a se assegurar que tal direito garantido constitucionalmente seja efetivamente oportunizado a todos; o problema já se encontra nas expressões majoritárias de ódio contra aqueles que sequer “têm voz”.

O suprassumo da opressão o fato de não ter assegurado que ideias e sentimentos de mundo sejam levados em conta no debate político[1], e ainda mais: ter de ouvir berros livres contra sua própria existência ou modo de ser como cidadão-indivíduo pretensamente livre e igual.

Na quadra moderna nacional, mais um componente assombroso da liberdade de expressão tem sido a tônica: manifestações categoricamente contrárias ao funcionamento de instituições que servem como autênticos pilares do próprio Estado de Democrático de Direito, notadamente voltadas para a supressão das funções-fins do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

 

  1. Histórico político-jurídico do princípio da liberdade de expressão e o debate acadêmico sobre o hate speech

Remonta o Direito à Liberdade de Expressão ao contexto geral das Liberdades desde a Magna Charta Libertatum inglesa, outorgada pelo Rei João Sem Terra ao Barões do Reino (1215), sequenciada pela Revolução Gloriosa e pela Bill of Rights; após, pela Declaração do Bom Povo da Virgínia, pela Independência das 13 Colônias dos Estados Unidos da América (1776) e pela Constituição Federal americana de 1787; e, por fim, com um caráter mais universal, através da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 em França, no pós-Revolução Francesa e Americana. Podendo-se dizer ser este o berço em que se consagrou o primitivo e ainda fundamental Regime das Liberdades, hoje incrementado e consagrado através de inúmeras Cartas e Tratados Internacionais de Direitos Humanos; fazendo parte os direitos de liberdade do verdadeiro pilar normativo das mais diversas cartas constitucionais desta era.

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A Liberdade de Expressão, pela sua completa associação com o princípio da Dignidade Humana, pode ser tratada como componente associado ao próprio Estado Democrático. Figurando-se, ademais, como um direito de primeira geração/dimensão; tratando-se de um direito defensivo, tendo o sentido normativo dirigido a impor uma abstenção do Estado frente ao indivíduo, de modo a este não embaraçar, dificultar ou impedir a livre possibilidade de manifestação.

A partir do discurso predominantemente presente nos ideais liberais, o direito à liberdade de expressão foi difundido e interpretado na jurisprudência de vários países a partir de uma compreensão inicial utilitarista. Quer-se dizer, sendo este o viés difundido desde as publicações de Stuart Mill, a ideia primeira, na análise do âmbito de proteção deste princípio jurídico, seria tudo o que abrangesse a noção de livre mercado de ideias (marketplace of ideas), idealizada por Mill, cujo sentido nada mais seria o de que, permitindo-se a expressão de todos, a melhor ideia prevaleceria. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 89 e ss.).

Dworkin, em seu contributo doutrinário sobre a liberdade de expressão, compreende haver dois aspectos elementares do princípio: um instrumental e outro constitutivo. Destaca que o caráter instrumental da liberdade de expressão vem a servir como uma inerência à democracia funcional (ou seja, enseja que o pluralismo viva como prática coletiva), este primeiro caráter associado àquelas primordiais ideias de Stuart Mill; por sua vez, o elemento constitutivo desta liberdade ensejaria a vivência do que denomina de justiça democrática. (DWORKIN, 2006, p. 264).

Compreende Dworkin (2006), para sua conclusão sobre o elemento constitutivo da liberdade de expressão, que este está associado à ideia de Igualdade, esta a exigir que se dê oportunidade a que todas as opiniões possam exercer influência no debate público, havendo uma necessidade de igual oportunidade de influenciar, o que não significa, obviamente, que triunfará frente a outras correntes.

Defende que a Primeira Emenda à Constituição norte-americana (através da qual se introduziu a liberdade de expressão no constitucionalismo daquela nação) não protege apenas o trânsito livre de ideias que colaborem para decisões políticas no sentido estricto sensu do termo. Segundo o notável catedrático, mesmo que de mal gosto ou insultuosas demais, a liberdade de expressão deve ser preservada e protegida constra censura indevida.

Nas palavras do mestre, “O modo como as pessoas me tratam, minha noção de identidade e minha autoestima são determinadas em parte pelo conjunto de convenções sociais, opiniões, gostos, convicções, preconceitos, culturas e estilos de vida que se manifestam na comunidade”, e que não existiria um pretenso direito “de não ser ofendido ou prejudicado pelo fato de outras pessoas terem gostos hostis ou destoantes ou terem a liberdade de expressar estes gostos e gozá-los em sua vida particular”. (DWORKIN, 2006, p. 380-381).

A suma de seu raciocínio é que opiniões ofensivas (sejam políticas ou mesmo morais) não poderiam ser proscritas de antemão, e que o ideal de igualdade deve ser norteador quando da interpretação do direito à liberdade de expressão.

Defendendo sua ideia geral de serem os direitos fundamentais verdadeiros trunfos contra a maioria, adverte que, se for deixada de lado a compreensão tradicional quanto ao princípio da igualdade, e admitir-se uma novel compreensão de que uma maioria pode determinar que certas pessoas são demasiadamente violentas, corruptas ou radicais para participar da vida moral informal do país, estar-se-ia nada mais do que se praticando uma tirania. (DWORKIN, 2006, p. 382-383).

Pode-se concluir, pelo discurso analítico do professor, que a síntese de seu raciocínio consiste em que a liberdade de expressão não se adstringe à primitiva noção (inerente ao livre mercado de ideias) –, uma vez que também associa o mesmo princípio à ideia de liberdade de exprimir para sociedade compreensões de identidade e de autoestima (compreensão esta última inerente a uma interpretação sistemática com o princípio da igualdade). Portanto, a liberdade de expressão não precisaria corresponder sempre ao ideal de embates políticos propiciadores para que as melhores ideias convençam e vençam. Vai além Dworkin: liberdade de expressão também seria uma inerência à humanidade de exprimir sua identidade.

O fato é que, no final das contas, Ronald Dworkin é um defensor da primazia pela liberdade de expressão frente a outros direitos pretensamente atingidos pelo exercício daquela; ou, em outras palavras, seu entendimento é o de que haveria uma primazia abstratamente considerada pró-liberdade de expressão frente a outros bens jurídicos constitucionais, vez que, para o notável jurista, por mais excêntricos ou desprezíveis que sejam algumas opiniões dispersas na sociedade, a oportunidade de exercer o direito de externá-las deve ser assegurado tanto quando disser respeito ao âmbito político propriamente dito como quando disser respeito ao âmbito da moral em geral.

Clara é esta a posição do jusfilósofo quando, admitindo os choques e colisões normativas, sustenta: “Numa sociedade verdadeiramente igualitária, essas opiniões não podem ser proscritas de antemão pelo direito civil ou penal: têm, antes, de ser desacreditadas pela repugnância, pela indignação e pelo desprezo das outras pessoas”. (DWORKIN, 2006, p. 382).

Não há como negar que a compreensão por demais elástica dada ao âmbito de proteção ao princípio em questão, tal como preconizado pelo próprio Ronald Dworkin, enseja que o nominado o Hate Speech (Discurso de Ódio) possa ser admitido e amparado no seio das democracias da contemporaneidade.

BAKER, por sua vez, chega a defender abertamente a proteção ao Hate Speech. Para este, até mesmo o discurso de ódio carregaria em si algo de grande valia, pois traria algo de si do emissor, a visão de mundo de alguém e, por isso, digno de proteção. Para Baker, quando racistas e fanáticos alardeiam seu pensamento, a intensão do falante é a de pretender revelar a sua determinação de desfazer determinado arranjo social, isto caracterizaria uma autonomia individual do emissor da expressão de ódio, e por isso, segundo Baker, digna de valor. (MEDRADO, 2019, p. 109; 117).

Destacada é a contraposição do destacado jurista americano Jeremy Waldron a respeito do hate speech. Os questionamentos de WALDRON advêm de análise a partir do foco para as restrições normativas ao direito à liberdade de expressão. Reforça este professor o lado das limitações ao direito de se expressar. Sua abordagem parte em razão da compreensão analítica da colisão das normas de princípio, ou seja, do balanceio da liberdade de expressão com outros direitos fundamentais. Direitos como a honra, a privacidade, a intimidade, além de outros valores contidos em princípios fundamentais de nível constitucional, como a dignidade da pessoa humana, seriam essenciais para desconstituir o pretenso direito ao discurso de ódio. Sua análise reforçando o lado daqueles que eventualmente sofrem as consequências do livre direito de outrem de se expressar.

Em relevante estudo sobre o tema, Medrado (2019) – embora no final conclua em sentido contrário à tese de Waldron –, colaciona a compreensão central deste último jurista quanto ao valor da dignidade da pessoa humana quando em confronto com a liberdade de expressão:

A dignidade de uma pessoa não é apenas um fato decorativo sobre esse indivíduo. É uma questão de status e, como tal, é, em grande parte, normativo: é algo sobre uma pessoa que demanda respeito pelos outros e pelo Estado. (WALDRON apud MEDRADO, 2019, p. 117).

O cerne do pensamento de Waldron reside na consideração de que o hate speech tornaria difícil o gozo da igual cidadania por parte daqueles pertencentes a grupos vulneráveis, havendo, pois, um dano inerente ao discurso de ódio; e mais, que as ideias de Stuart Mill não forneceriam argumento satisfatório para este tipo de manifestação, pois não haveria, no discurso de ódio, um honesto engajamento para um debate sincero no espaço público. (MEDRADO, 2019, p. 120).

Ademais, o discurso de ódio exigiria coragem e esforço descomunal de alguns grupos sociais contra quem o ódio foi dirigido, a comprometer, de consequência, a máxima da igualdade:

Não deve ser necessário que eles evoquem trabalhosamente a coragem de sair e tentar se desenvolver no que agora é apresentado para eles como um ambiente parcialmente hostil. (WALDRON apud MEDRADO, 2019, p. 110).

No campo doutrinário, portanto, a partir das ideias acima invocadas, é possível verificar três importantes posições a favor da primazia pela liberdade de expressão, ainda que efetuada mediante discurso de ódio (MILL, DWORKIN e BAKER); enquanto WALDRON se posiciona abertamente contrário à proteção do discurso de ódio pela norma constitucional que estatui a liberdade de expressão, defendendo este último, inclusive, que haja regulação através de reserva legal da Primeira Emenda à Constituição norte americana para os casos de hate speech, a fim de em abstrato configurar estas situações, restringindo o âmbito de proteção desta liberdade.

 

  1. A liberdade de expressão lida pela suprema corte dos eua e pelos tribunais constitucionais europeus quanto ao tema ‘hate speech’: perspectiva liberal vs. perspectiva comunitarista

O sentido jurídico visado pelo direito fundamental à liberdade de expressão é o objetivo deste capítulo. Nele, será resumido não o resultado final dos julgamentos que ganharam notabilidade, que seria menos relevante que a ratio decidendi ou os motivos determinantes dos resultados. Esta sim, a razão de decidir seria o que de mais relevante interessa: concluir como se deu a construção das normas de decisão em casos concretos; isto sendo possível através de investigação da jurisprudência do direito comparado e também por casos verificados no cenário nacional, que têm gerado grandes debates acadêmicos e na sociedade como um todo.

A propósito, em análise da evolução da interpretação do direito à liberdade de expressão na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, o que se pode enxergar, claramente, é um desenvolvimento completamente voltado para a prevalência da liberdade frente a outros bens jurídico – preferred position doctrine.

O que se pode verificar, no entanto, são conformações construídas pela jurisprudência norte americana no sentido de que não houvesse abuso do referido direito, porém com nítida tendência de não se querer diminuir o valor liberdade; a prevalecer a compreensão, muitas vezes, até mesmo de se prestigiar a liberdade de expressão em casos tipicamente de discursos de ódio ou de fake news.

Antes de se passar imediatamente ao tratamento dos casos específicos, é de se advertir o leitor que o direito geral à Liberdade de Expressão, para os propósitos deste ensaio, abrangerá as subespécies do referido direito fundamental. Portanto, serão tratadas, em bloco, todas as Liberdades de Expressão, incluídas aqui a Liberdade de Imprensa, a Liberdade de Manifestação do Pensamento, a Liberdade de Expressão Artística, Literária, Científica, dentre outras.

Emblemático sobre a Liberdade de Imprensa o nominado Caso Sullivan, marco jurisprudencial nos Estados Unidos da América.

A síntese do voto construído pelo Justice Brennan, acompanhado por toda a Suprema Corte, foi no sentido de estabelecer certos critérios para que – somente presentes todos eles – pudesse a liberdade de expressão jornalística (de imprensa) ser vencida pela honra ou por demais direitos de personalidade do suposto sujeito ofendido pela publicação.

O caso em espécie (caso Sullivan) nasceu de uma disputa judicial em que L.B. Sullivan, servidor público, exigia judicialmente uma milionária indenização por danos à sua reputação, por ter o jornal The New York Times publicado matéria jornalística em que o mesmo entendia ter este órgão de imprensa distorcido fatos, publicando inverdades que, segundo Sullivan, manchavam sua honra e dignidade.

A Suprema Corte, além de não ter dado ganho de causa a Sullivan, construiu um esboço de inteligência sobre a liberdade de imprensa que até hoje funciona como norte interpretativo naquele país.

Referido voto foi tão favorável à liberdade de expressão que chega a inverter o ônus da prova da verdade dos fatos publicados. Ou seja, o ofendido, caso fosse um agente ou servidor público, é quem teria de provar que se tratava de uma mentira o fato publicado, ou seja, o agente público teria de provar se tratar ser caso de uma fake news.

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E mais, teria o ofendido (servidor público) de provar: a) que a acusação contra ele era falsa; b) que o órgão de imprensa tenha agido com malícia efetiva ou ciência da falsidade; c) que tivesse havido uma temerária desconsideração (reckless disregard) na investigação da verdade. Em suma, a Suprema Corte dos EUA impôs uma pesadíssima inversão do ônus da prova quando fosse o caso de publicações jornalísticas alusivas a atos praticados por servidores no exercício de suas funções públicas, visando com isso que não se impusesse um medo paralisante aos órgãos de imprensa, que impedisse a livre divulgação de fatos relativos à vida pública. (DWORKIN, 2006, p. 309-310).

O objetivo maior desta construção jurisprudencial norte americana sempre o foi no sentido de entender que a liberdade de imprensa (e de expressão em geral) era o de inibir a censura prévia. Porém – e isso é de conhecimento geral – uma vez provada a inverdade da matéria e a desconsideração do veículo de imprensa em obter e divulgar a verdade sobre algum agente público, a indenização imposta pelo Judiciário americano é digna de nota, tamanha é a importância que também aquele país dá à reputação humana denegrida.

Se o caso Sullivan guarda completa pertinência quanto ao propalado tema Fake News, os casos Brandenburg vs. Ohio dentre outros guardam total aplicabilidade quanto à história jurisprudencial no constitucionalismo norte americano trata sobre outro tema tão em voga no Brasil e no mundo: o Discurso de Ódio.

Como lida o Direito à Liberdade de Expressão com manifestações onde se utilizam Cruzes da Ku Klux Klan – manifestação cruelmente voltada aos afrodescendentes norte-americanos? Como lidam os norte-americanos com sua bandeira nacional sendo queimada em casos de protestos mais simbolicamente agressivos?

O caso Brandenburg vs. Ohio é notável para se entender o quanto a Suprema Corte Americana tem dado de prevalência à liberdade de expressão mesmo em caso nítido de discurso de ódio.

A síntese jusfilosófica deste julgamento é o de que a maioria não tem o poder de censurar manifestações que considera política ou diplomaticamente delicadas.

Tratou o caso em questão da proteção ao direito à liberdade de expressão de um sujeito, mascarado em um comício da Ku Klux Klan, que grita que negro deve ser devolvido à África. O caso envolvia a possibilidade de este cidadão vir a ser punido por esta manifestação do pensamento nitidamente ofensiva a um grupo específico de cidadãos norte-americanos. A resposta jurisdicional da Suprema Corte norte-americana foi: os Estados não podem punir tais espécies de manifestações tipicamente de ódio. (DWORKIN, 2006, p.325).

Caso semelhante a este, ocorrido na cidade de Skokie, em Illinois, onde moram inúmeros judeus sobreviventes do Holocausto; local onde se realizou uma Marcha de Neonazistas. O questionamento judicial que se fez neste caso foi o de se poderia ou não ser proibida a marcha onde grupos neonazistas se manifestariam ostentando o símbolo da suástica, atos dos mais ofensivos para os judeus.

Ronald Dworkin, analisando estes casos de manifestação do pensamento, aduz que, por mais que estes discursos de ódio causem sofrimento e sentimentos de raiva, medo ou ressentimento – já que atingem pessoas e grupos devido à sua origem, raça ou crença – tais discursos, ainda assim, deveriam ser protegidos pela liberdade de expressão por mais que sejam formas politicamente incorretas de se expressar. (DWORKIN, p. 326).

Nas palavras de Dworkin (2006, p. 327), “a Primeira Emenda protege até mesmo manifestações que odiamos”. Para o mestre, nenhuma censura seria compatível com esse compromisso constitucional.

Mas não se pode compreender o pensamento do jusfilósofo norte-americano sem compreender o significado constitutivo da liberdade de expressão que o mesmo jurista empresta ao direito à liberdade de expressão. Evidentemente que discurso de ódio não serviria ao discurso instrumental da liberdade de manifestação de pensamento, que – desde Stuart Mill – seria a contribuição de cada um no livre mercado de ideias, a significar que a verdade seria encontrada a partir do contributo de todos, indistintamente.

O discurso de ódio, portanto, estaria protegido pela liberdade de expressão não no seu significado instrumental de contribuição para a vivência coletiva político-democrático (DWORKIN, 2006, p. 326). A proteção, pela qual inclusive para os hate speech estariam abrangidos, seria pelo aspecto da cooriginalidade da igualdade inclusive para as manifestações de pensamento. O interesse jurídico para tal proteção se justificaria, assim, por questões de proteger discursos e manifestações referentes à identidade pessoal do emissor, de sua autoestima; e que não se poderia “incluir um pretenso direito de não ser ofendido ou prejudicado pelo fato de outras pessoas teres gostos hostis ou destoantes ou terem a liberdade de expressar estes gostos”. (DWORKIN, 2006, p. 380-382).

No entanto, o caráter constitutivo do direito da liberdade de expressão – na compreensão de Dworkin – faria com que o discurso de ódio também estivesse coberto e protegido pelo direito à liberdade de expressão.

As palavras do jusfilósofo sintetizam seu pensamento – diga-se, indignado – com tais tidos de expressões de ódio, porém dignos de proteção, pois estariam associados ao valor que ele entende maior: a liberdade. São suas estas palavras:

Os arruaceiros nos lembram daquilo que costumamos esquecer: do preço da liberdade, que é alto, às vezes insuportável. Mas a liberdade importante, importante a ponto de poder ser comprava ao preço de um sacrifício muito doloroso. (DWORKIN, 2006, p. 362)

O cerne do pensamento do jurista concentra-se na compreensão de que o discurso de ódio deve ser repreendido não por censura prévia do Estado por meio de criminalização destes discursos. Ao contrário, prega ele a liberdade para os emissores destas opiniões odiosas, concluindo não podem ser proscritas de antemão pelo direito civil ou penal opiniões tidas como odiosas, teriam elas – isto sim – serem desacreditadas pelo descrédito e pela indignação das pessoas, devendo mentiras ser refutadas publicamente com todo o desprezo que merecem, mas não por meio de censura estatal.

E, numa expressiva advertência do Mr. Dworkin (2006, p. 361): “Tome cuidado com princípios em que você só pode confiar se forem aplicados por aqueles que pensam como você”.

Concluindo-se que, do pensamento externado pela Doutrina de Ronald Dworkin, ao analisar a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana a respeito da liberdade de expressão, resta evidenciada que, naquele país, há uma verdadeira primazia ou preferência pela liberdade de expressão, dificilmente esta cedendo para outros valores; o que, quando se trata de casos de discurso de ódio, causa impacto e divisão de opiniões até mesmo nos tribunais e nos debates acadêmicos.

Se esta é a compreensão norte-americana, não parece ocorrer o mesmo nas Cortes Constitucionais europeias.

Quando se trata de discurso de ódio (mormente o racial ou étnico) e também em casos como o de negação de fatos históricos marcantes e emblemáticos como o Holocausto, o Tribunal Constitucional Alemão costuma ser firme no sentido de não admitir expressões como a negação do massacre ocorrido como o povo judeu durante a 2ª Guerra Mundial.

Emblemático, a respeito, o Caso Deckert. Deckert foi líder do Partido Nacional Democrata, de extrema direita, e teria organizado um encontro no qual um especialista norte-americano que projetou câmaras de gás em cadeias dos EUA, Mr. Fred Leuchter, apresentaria pesquisas para demonstrar não ter nenhum judeu sido morto em câmaras de gás em Auschwitz.

Tal situação teria escandalizado o público ao ponto de ser editada uma lei para coibir (leia-se: censurar) tal espécie de manifestação de difusão do pensamento. No ano de 1994, o Tribunal Constitucional Alemão veio a declarar que “negações do holocausto não são protegidas pela liberdade de expressão”. (DWORKIN, 2006, p. 259-260).

Em outro caso que se notabilizou na Alemanha (caso Auschwitz Lie, ou Caso Irving), a corte também declarou a constitucionalidade de ato administrativo que proibia a realização uma palestra revisionista do Holocausto, que seria promovida pelo britânico David Irving.

O que houve de diferente no respectivo acórdão foi a distinção que a Corte Constitucional fez entre afirmações sobre opiniões vs. afirmações sobre fatos, tanto que o caso ficou marcado e conhecido como o “Caso Fabricação Histórica”. A diferença estaria na gravidade em se distorcer ou se negar fatos comprovadamente certificados pela História; fazendo o Tribunal uma distinção no sentido de que seria possível e permitido manifestar-se sobre opiniões sobre os fatos, enquanto o ato de distorcê-los (a exemplo do caso de negação do Holocausto) não estaria protegido pela liberdade de expressão, logo seria proibido/vedado. Poder-se-ia, portanto, expressar-se no sentido de que a Alemanha não deu causa à 2ª Guerra, vez que seria uma opinião; porém negar ou minimizar o Holocausto seria vedado, pois se trataria de uma afirmação falsa sobre fatos. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 132).

Também de se citar que, entre os britânicos, a Lei de Relações Raciais do Reino Unido, que proíbe expressões de ódio racial e – veja-se – não só quando tendem a gerar uma situação de violência iminente; a lei restringe até mesmo manifestações por ‘simples’ insulto racista. (DWORKIN, 2006, p. 251).

Na Espanha, para se dar outro exemplo, é proscrita a manifestação que venha a denegrir a bandeira nacional daquele país; enquanto a jurisprudência estadunidense é bem mais condescendente com tal forma de expressar, desde que o intuito do protesto tenha um fim proposto e que a queima ou destruição da bandeira seja um meio de atingir aquele fim, qual seja o de chamar atenção para a causa. Ou seja, ainda que de mal gosto ou grosseira a manifestação, os norte-americanos admitem tal espécie de proteção devido ao valor dado à liberdade para superar o valor simbólico do estandarte nacional

Há um evidente desajuste entre os limites da liberdade de expressão defendidos na Suprema Corte norte-americana e a interpretação que se identifica na jurisdição constitucional europeia. Esta última preocupada em restringir a liberdade para discursos de ódio ou inverídicos, enquanto na América do Norte há uma nítida primazia pela liberdade.

A resposta para esta diferente compreensão a respeito da proteção ou não proteção do hate speech pela liberdade de expressão estaria, segundo Cavalcante Filho (2018, p. 71 e ss.) no fato de a União Europeia adotar o comunitarismo como corrente filosófica a subsidiar sua interpretação dos direitos fundamentais, enquanto os EUA adotam claramente o liberalismo como filosofia.

Se forma sintética, poder-se-ia dizer que:

(…) os ideais comunitaristas à restrição do discurso do ódio, de maneira a proteger a dignidade e a honra dos integrantes da comunidade; a reforçar os laços de unidade comunitários; e a desencorajar atitudes ameaçadoras da democracia. (CAVALCANTE FILHO, 2018. p. 76). (Grifos não constantes do original)

Citando Gargarella, Cavalcante Filho leciona que o “liberalismo defende que o Estado deve ser ‘neutro’ diante das distintas concepções do bem. (…) Por outro lado, para o comunitarismo, o Estado deve ser essencialmente um Estado ativista, comprometido com certos planos de vida e com certa organização da vida pública.”. (GARGARELLA apud CAVALCANTE FILHO, 2018. p. 74).

 

  1. Liberdade de expressão e discurso do ódio no brasil: a oscilante linha interpretativa na jurisprudência do supremo tribunal federal

Pode-se falar que, para além do direito geral de liberdade, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de Lei (art. 5º, II, da CF/88), existem diversas modalidades de Liberdades de Expressão. Seriam elas, v.g.: Liberdade de Manifestação do Pensamento, Liberdade Artística, Liberdade Científica, Liberdade de Imprensa, dentre outras…

O presente ensaio denomina liberdade de expressão todo este conjunto de liberdades de expressão como um gênero do qual estas são espécies. E, diga-se de passagem, que esta especialidade é extremamente relevante do ponto de vista jurídico. Isto porque estas liberdades são previstas em distintos artigos da Constituição Federal de 1988, e cada uma destas normas têm seus específicos limites constitucionais expressamente previstos.

Sobre o tema limites/restrições, por exemplo, a liberdade de expressão na modalidade livre expressão do pensamento, prevista no art. 5º, IV, da CF/88, possui como uma limitação a este direito o fato de ser vedado o anonimato: “IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Portanto, este específico direito tem seu âmbito de proteção limitado pela necessidade de ser condicionada à informação sobre quem é o emissor da expressão de pensamento ou opinião.

A liberdade de imprensa, prevista no artigo 220 da CF/88, em seu § 1º, estipula restrições constitucionais à tal liberdade, ainda que o § 2º, do mesmo artigo, expressamente vede toda e qualquer censura. Verbis:

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

  • 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
  • 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Portanto, a liberdade de imprensa encontra expressas condições ou limites no seu âmbito, vez que a informação jornalística divulgada terá, necessariamente, de observar os incisos IV, V, X, XIII e XIV do art. 5º da CRFB, os quais estatuem o direito de resposta; a indenização por danos morais e patrimoniais e à imagem; a preservação da intimidade, da vida privada, da honra e assegura a todos o direito de acesso à informação, etc.; portanto limites expressamente previstos à liberdade de imprensa.

Logo, vê-se a importância de se subdividir em espécies a liberdade de expressão, pois – no caso concreto de julgamento – cada uma destas liberdades de expressão encontra seu próprio substrato normativo, tanto relativo ao seu significado textual e finalístico, como por contar, cada uma delas, com suas próprias limitações constitucionais específicas.

Ao mais, de se deixar claro que se considera as mais diversas formas de exercício da liberdade de expressão, podendo ser verbal ou não verbal, musical, corporal, por imagem ou símbolos, por uma encenação, por um determinado tipo de comportamento, etc.

Assenta-se a livre expressão em argumento humanista e em um argumento democrático, como um autogoverno de expressão política protegido de interferências do poder; havendo ainda de se falar de um argumento psicossocial, alusivo à indispensável liberdade de se comunicar, inerente ao ser humano. (MENDES; GONET BRANCO, 2017, p. 264).

Trata-se, como já mencionado, como um direito de defesa frente ao Estado, dentro do bloco de direitos individuais, liberais ou de 1ª geração/dimensão. Sendo, pois, um direito a se ter uma abstenção do Estado, uma não interferência sobre a esfera de liberdade individual, em outras palavras: um direito a não sofrer censura, ressalvadas as hipóteses que a própria Constituição estipula como limites, seja expressamente prevendo o limite, seja a restrição decorrente da colisão com demais direitos a ensejar um sopesamento de bens no caso concreto a ser decidido.

Dentre as restrições possíveis e recorrentes, dispersas na Constituição Federal, há aquelas destinadas à proteção da criança e do adolescente, no sentido de ser verem a salvo de discriminação, violência, exploração e opressão, que limitariam a divulgação ou manifestação de pensamento, inclusive de informação jornalística, a fim de proteger o jovem.

O respeito ao direito do próximo a ter sua honra preservada é outra restrição à liberdade de expressão muito comumente verificada. Quanto a este aspecto, a doutrina cita a particularidade das charges políticas (que não tem pretensão de manchar a honra) cujo intuito é informar em tom jocoso, como uma crítica através do riso; a se citar voto do Min. Ayres Brito na ADI 4.451, no qual assentou que “a locução humor jornalístico enlaça pensamento crítico, informação e criação artística”. Afirmando o Excelso STF, contudo, que o dever de equidistância e imparcialidade jornalística não significa uma impossibilidade a uma posição crítica, vedando-se esta apenas se se vier a descambar para propaganda política. Também se menciona que, no contexto eleitoral, costuma serem aceitáveis manifestações contundentes, própria das disputas político-partidárias (MENDES; GONET BRANCO, 2017, p. 277-278).

Também os direitos personalíssimos são outras fontes normativas de restrição à liberdade de expressão, tendo o STF, a título de exemplo, na Pet. 2.702, rel. Min. Sepúlveda Pertence, impedido veiculação de fitas com conversas telefônicas gravadas clandestinamente relativas a um conhecido político.

Também a dignidade da pessoa humana costuma ser outro princípio muitas vezes utilizado como uma limitação à liberdade de expressão que exponha o ser humano a uma situação de “coisa”.

O próprio direito à integridade física (como uma vertente do direito à saúde em seu sentido negativo – de não se afetar) é outra restrição à liberdade de expressão, ensejando, em casos concretos, a vedação de manifestações que descambem para violência física.

Em casos cujo perigo se encontra iminente e o a verossimilhança das alegações seja algo patente, excepcionalmente, o Judiciário chega a obstar publicações de notícias jornalísticas de modo a impedir que a honra ou outros direitos personalíssimos sejam irreversivelmente violados com as consequências mais nefastas possíveis.

Adverte-se que “dada a relevância da liberdade de expressão para o sistema de valores da ordem constitucional, tais hipóteses hão de atrair um escrutínio rigoroso”. (MENDES; GONET BRANCO, 2017, p. 280), diante da expressa vedação da censura à liberdade.

Traçado um quadro geral do cenário normativo-constitucional brasileiro e das colisões e tensões normativas usualmente enfrentadas pelo Poder Judiciário, a seguir se passa a tratar de alguns julgados marcantes realizados pelo Supremo Tribunal Federal referentes ao tema liberdade expressão, dando-se mais destaque aos temas do momento: discursos de ódio e fake news.

Entre os casos do que se entende por hate speech, o famoso Caso Ellwanger (HC 82.424/RS) teria sido aquele que mais repercutiu em termos de análise crítica quanto à metodologia e os critérios hermenêuticos utilizados pelo STF na interpretação do princípio da liberdade de expressão para julgar um típico caso de discurso negacionista de fatos históricos comprovadamente admitidos; seria um caso que se poderia enquadrar como sendo um discurso de ódio.

Não se adentrará em detalhes de cada um deste julgado tendo em vista não ser possível uma análise mais detida em artigo jurídico de poucas linhas. Ademais, o caso é por demais conhecido não só no mundo jurídico, mas pela comunidade em geral. O que principalmente importa destacar no Caso Ellwanger é ter o Supremo Tribunal Federal adotado, naquele julgado, uma vertente mais comunitarista para interpretação do princípio da liberdade de expressão, o que veio a ser modificado por sua jurisprudência verificada nos anos seguintes, como se verá logo mais à frente.

Neste caso, o Supremo Tribunal Federal admitiu a tese de que se tratava de incitação ao ódio racial, e que, assim, seria incompatível com o a ideia constitucional de vedação do preconceito, diante do que entendeu por restringir a liberdade de expressão neste caso concreto.

Em síntese, o cidadão Siegfried Ellwanger Castan escreveu e publicou um livro cujo título era “Holocausto Judeu ou Alemão? ”, no qual sustenta que os verdadeiros vitimados teriam sido os alemães. Tendo, por essa razão, sido denunciado por incitação ao racismo, nos termos do art. 20 da Lei n. 7.716/89. O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio de um Habeas Corpus, no qual se denegou o pedido formulado por Ellwanger, entendendo a Corte que o impetrante havia, sim, cometido o crime em questão, vez que a liberdade de expressão não protegeria o que defendido em seu livro.

Importante a análise realizada por Cavalcante Filho (2018, p. 175-178) a respeito das diferenças de abordagens metodológicas e de fatos abordados nos julgados do Supremo Tribunal Federal (Brasil) em comparação com julgamentos realizados pelo Tribunal Constitucional Alemão para casos similares envolvendo o tema relativo à proibição de Negação do Holocausto.

No caso Ellwanger, o julgado do STF mereceu inúmeras críticas, por estar presente no caso uma hermenêutica considerada questionável para, ao fim, justificar-se a punição a título de incitação ao racismo. Tendo por isso, à época, recebido o Supremo Tribunal vários questionamentos do ponto de vista metodológico, sobretudo daqueles defensores da proteção do hate speech, isto porque a Corte não teria debatido, com profundidade devida, a distinção entre defesa de ideias de uma autêntica e real incitação. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 178).

Depois deste julgamento do Caso Ellwanger, jurisprudência do Supremo Tribunal Federal parece ter dado uma guinada para o lado da primazia da liberdade de expressão.

Isto pôde ser notado em julgamentos como o das Bibliografias não Autorizadas, em que o STF compreendeu pela impossibilidade de censura prévia à publicação; o da nominada Marcha da Maconha – onde a Corte Suprema fez distinção entre apologia/incitação vs. manifestação pela descriminalização, estatuindo pela liberdade de expressão para última espécie de discurso. Também merece destaque, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre discursos de ódio, o Caso Jair Bolsonaro, relativo a suposta incitação ou injúria racial, relativas a grupos quilombolas, pelo então Deputado Federal e hoje Presidente da República, oportunidade em que a Corte entendeu que o discurso estaria protegido pelo direito à liberdade de expressão.

O Caso Bolsonaro surgiu a partir de um evento ocorrido em abril de 2017, no Clube Hebraica, na zona sul do Rio de Janeiro, ocasião em que o então Deputado Federal expressou-se contra a demarcação de terras indígenas e de comunidades quilombolas neste País. Os dizeres que ficaram mais marcados foram os seguintes: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem pra procriador ele serve mais. Mais de 1 bilhão de reis por ano é gastado com eles”. (MEDRADO, 2019, p. 149).

O Ministério Público Federal, então, moveu uma ação civil pública, pretendendo condenação por danos morais coletivos a comunidades quilombolas e à polução negra, afirmando ter o então deputado usado palavras injuriosas, preconceituosas e discriminatórias com o objetivo de ofender e ridicularizar tais comunidades, quando acabou condenado a pagar 50 mil reais como indenização por danos morais. (MEDRADO, 2019, p. 149).

Seguidamente, a Procuradoria-Geral da República ingressou com denúncia contra o Deputado Federal Jair Messias Bolsonaro em razão do mesmo discurso em questão. Segundo a PGR, o parlamentar teria cometido crime de racismo. Este processo, porém, que tramitava do Supremo Tribunal Federal, acabou por ter sua denúncia rejeitada exatamente por ter dado esta Corte preferência pela liberdade de expressão, ainda que tenha havido uso de palavreado considerado ofensivo ou discriminatório.

Aqui um questionamento que se deixa: Afinal de contas, seria o caso de acompanhar o sentido de liberdade de expressão com sua primazia frente a outros direitos, conforme prega Dworkin, ou se estaria diante dos ensinamentos de Waldron, para quem haveria um dano inerente ao discurso do ódio, que tornaria mais difícil o gozo de igual-cidadania por parte de cidadãos pertencentes a grupos vulneráveis? (MEDRADO, 2019, p. 153).

Em caso emblemático mais recente, lapidar é a lição que se pode extrair do seguinte julgado, da lavra do eminente Ministro Celso de Mello, que, no prelúdio de uma carreira gloriosa como magistrado, constrói um voto digno de registro. O caso tratava-se de um pedido para que a Corte impedisse/censurasse uma grande manifestação agendada com a finalidade de criticar o Supremo Tribunal Federal e seus ministros, a ocorrer no mês de maio de 2020. O decano encontra as palavras certas para, com a maestria que lhe é peculiar, refutar a pretensão contida na ação (ainda que advertindo para que o direito não descambasse para o abuso); de pronto arquivando o processo, com os seguintes fundamentos, dentre outros:

(…) a liberdade de manifestação do pensamento, revestida de essencial transitividade, destina-se a proteger qualquer pessoa cujas opiniões possam, até mesmo, conflitar com as concepções prevalecentes, em determinado momento histórico, no meio social, impedindo que incida sobre ela, por conta e efeito de suas convicções, não obstante minoritárias ou absurdas, qualquer tipo de restrição de índole política ou de natureza jurídica, pois todos hão de ser igualmente livres para exprimir ideias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante no âmbito da coletividade.

É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado democrático de direito: o respeito ao pluralismo político e à tolerância. (PET 8.830/DF).

 

Ainda não se pode, desta forma, concluir a respeito da predominância jurisprudencial a respeito do hate speech no Brasil através de sua Corte mais alta, e os exatos limites do que se entenderia como permitido. No caso Ellwanger tenderia para uma abordagem predominantemente comunitária, tal como realizada pelas Cortes Constitucionais europeias; ao passo que, nestas últimas decisões citadas, predomina uma compreensão mais liberal, no sentido aproximado ao dos julgados pela Suprema Corte norte-americana a respeito de uma maior permissibilidade para discursos de ódio. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 184-185).

Afora estes casos já definitivamente apreciados pela Suprema Corte brasileira, necessário, no capítulo seguinte – voltado notadamente para casos nacionais presentes no momento – análise desenvolver-se uma metodológica prospectiva para as condicionantes, limites e configurações relativas à liberdade de expressão, mormente em casos de discurso de ódio e fake news, uma constante na presente quadra histórica desta nação.

 

  1. Direito fundamental à liberdade de expressão e interpretação constitucional

4.1. Uma síntese metodológica

Muito do que já se desenvolveu nos capítulos retro expostos se apresenta como o que seriam os ingredientes do bolo. Mas se ter o ingrediente não significa que o bolo sairá a contento. Sem que se saiba a receita – o método – não se conclui a missão.

Como ingredientes, já se demonstrou existirem uma salada de normas referentes propriamente à liberdade de expressão contidas na Constituição Federal de 1988, bem como já se mencionou, várias vezes ao curso deste trabalho, aquelas outras normas que costumam funcionar como limites e restrições àquelas liberdades.

Como dito, há na CF/88, além do direito geral de liberdade contido no art. 5º, inciso II, diversas modalidades de liberdades de expressão, quais sejam a liberdade de Manifestação do Pensamento, a Liberdade Artística, a Científica, a Liberdade de Imprensa, dentre outras…

Estas, além de encontrarem limites expressos em seus próprios textos (limites propriamente ditos); também entram em constante choque com outros direitos fundamentais (honra; direitos de personalidade <privacidade, intimidade> e com outros valores de envergadura constitucional), estas seriam restrições à liberdade de expressão.

Portanto, a norma – cada uma delas e o seu conjunto – é a matéria-prima do Direito. Somente sendo possível compreender os resultados normativos a partir de colisões de casos concretos. Não se concebe, hoje, a possibilidade de se estabelecer respostas jurídicas prévias, de antemão preconcebidas, como se fosse possível aferir se uma determinada expressão exposta por alguém em algum lugar e contra outro alguém estaria ou não protegida pelo direito de liberdade de expressão sem que se afira a concreta situação para, verificando com que norma colide, então se encontrar o direito como resposta.

Voltando-se à analogia antes feita, somente sabendo os ingredientes que se tem (que normas estão em conflito e quais as circunstâncias do caso), pode-se saber que bolo se pode fazer (qual o resultado final do conflito se tem como resposta).

De outro lado – da banda das restrições à liberdade de expressão – não é simplesmente por serem ofensas à honra tipificadas como crime que torna proibido um individual e específico exercício do direito à liberdade de expressão. O que o pode tornar proibido uma posição de liberdade, no caso concreto, é a vitória de outro princípio de direito fundamental como resultado de um caso concreto apreciado à luz de cada detalhe e circunstâncias nele verificadas. E mais: o direito fundamental a não ter a honra ofendida injustamente poderia vencer, em um caso concreto, o direito à liberdade de expressão mesmo que não existisse a tipificação para crimes como os de calúnia, injúria, difamação ou denunciação caluniosa. Em outras palavras, deve-se ler o direito penal à luz do direito constitucional e não o contrário.

Outrossim, por sua vez, existem casos no direito comparado onde mesmo normas tipificadoras de crime de opinião (v.g. a Lei da Sedição nos EUA) as quais, mesmo considerando certas formas expressões como crime, vieram a ser afastadas por inconstitucionalidade em razão de restringirem impropriamente uma forma de manifestação que devia ser protegida pelo direito à liberdade de expressão. O que importa é a Constituição e não a lei, o que importa é outro direito fundamental que venha a se chocar com a liberdade de expressão em determinado caso (como a igualdade, a honra e demais direitos personalíssimos), e não uma eventual norma proibitiva no Direito Penal. Esta última, evidentemente, funciona a favor de restrições constitucionais – reforçando uma proibição que a própria Constituição admite – mas requer a norma penal um substrato em norma alguma constitucional. Somente isto explica a razão pela qual a injúria, a calúnia e a difamação (tipos do direito penal) limitam uma norma constitucional de direito fundamental como o é a liberdade de expressão.

Feito este alerta, importante sobretudo para leitores de fora do mundo jurídico, passa-se à análise da metodologia – ou na comparação aqui feita: a receita –, que seria o percurso de interpretação de normas constitucionais em colisão para casos envolvendo a liberdade de expressão.

Uma vez o juiz ou outro intérprete estando certos de quais normas constitucionais regem a interpretação de um caso de direito de liberdade de expressão, primeiramente deve procurar entender a inteligência semântica do texto da norma-princípio em questão, bem como o sentido semântico também de suas limitações, contidas no seu próprio texto.

A primeira seleção a que o magistrado deve proceder, em casos de liberdade de expressão, é a de identificar qual das subespécies de normas de liberdades de expressão se adequa ao caso em sua análise: seria liberdade mais geral de manifestação de pensamento? Seria liberdade de imprensa? Seria liberdade de expressão artística, intelectual, científica?

Selecionar a norma especial é primeira tarefa do intérprete. E isto é fundamental! A extrema importância desta seleção adequada reside nada mais nada menos no fato de que cada uma destas normas possui uma espécie de limite diferente. Não sendo possível explicar um âmbito de proteção deste ou daquele direito de liberdade de expressão sem que se estabeleça de qual destas liberdades se adequa ao caso.

Como já dito antes, por exemplo, a liberdade de imprensa, prevista no artigo 220 da CF/88, em seu § 1º, estipula restrições constitucionais à tal liberdade como o direito de resposta, a indenização por danos morais e patrimoniais e à imagem, a preservação da intimidade, da vida privada, da honra e assegura a todos o direito de acesso à informação, etc.; portanto limites expressamente previstos à liberdade de expressão. Por sua vez, a liberdade de expressão do pensamento, prevista no art. 5º, IV, da CF/88, possui como uma limitação a este direito o fato de ser vedado o anonimato, nos termos do inciso IV.

Ou seja, inexistindo superioridade hierárquica entre tais normas, nem se havendo de falar em critério cronológico para se afastar antinomias normativas, o critério da especialidade deve ser o primeiro a ser manuseado pelo intérprete quando diante de um caso envolvendo o direito à liberdade de expressão.

O passo seguinte do jurista que lida com o direito à liberdade de expressão é encontrar seus limites normativos expressamente estatuídos no texto constitucional, ou seja limitações que já são previstas pelo próprio constituinte para aquele determinado direito, como é o caso, por exemplo, da vedação ao anonimato para a liberdade de manifestação do pensamento; ou do direito de resposta em caso de liberdade de imprensa.

Há ainda de o intérprete, em seguida, verificar se a norma constitucional que estabelece um direito fundamental remete ou não sua regulação a uma lei. Trata-se este caso de regulação que, necessariamente, deve ser protegido pela reserva legal, somente uma lei em sentido estrito ou equivalente (como uma medida provisória nos casos permitidos, lei complementar ou lei delegada) pode regular um direito fundamental.

Cabe, então, ao juiz checar a existência desta lei regulamentadora e verificar como o legislador limitou abstratamente o direito fundamental; no caso aqui, como abordou uma liberdade de expressão. É aqui onde a doutrina convenciona pela possibilidade de o Poder Judiciário sindicalizar o acerto dos limites que o legislador impôs a um direito fundamental a partir da teoria dos limites aos limites. (NOVAIS, 2019). Embora tenha o Judiciário por dever prestigiar a obra do legislador, cabe a ele verificar se o próprio Legislativo não teria ferido princípios constitucionais estruturantes quando delimitou o âmbito de proteção de uma liberdade, inclusive de expressão.

Como observa Reis Novais (2019, p. 19), “medidas restritivas que vierem a ser adotadas pelos poderem públicos têm de observar as garantias constitucionais e, para o que aqui especialmente nos importa, têm que respeitar as exigências, condicionamentos e limitações impostos pelos princípios estruturantes”.

Os princípios que mais funcionam como limites aos limites são: o da dignidade de pessoa humana, o da proibição do excesso, o da igualdade e o da proporcionalidade. São estes os principais.

Então o juiz/intérprete verifica se a limitação abstrata do legislador funcionou de tal forma a exterminar um núcleo fundamental do direito fundamental sob o pretexto de regulamentá-lo.

Passo seguinte.

Encontrado o sentido normativo daquele princípio fundamental de liberdade – à luz dos limites e da teoria dos limites aos limites –, o passo seguinte é o sopesamento do direito à liberdade de expressão com outras tantas normas com as quais colidem em casos concretos. É aqui o que se chama propriamente de restrições, normas constitucionais que colidem com outras também constitucionais e que, em determinado caso concreto, podem vir a derrotá-las. Somente então o que prima facie era uma liberdade (de se expressar) pode vir a torna-se uma proibição definitiva (de se expressar).

É onde entra a fórmula do peso de Alexy, o princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito <proibição do excesso e do déficit, peso em abstrato dos princípios, importância do princípio restritivo, grau de intervenção, o prejuízo que representa o sacrifício>).

Resultado final para a existência ou não de um direito à liberdade de expressão em um caso concreto somente após todo este percurso desenvolvido neste capítulo pela chamada norma de decisão. Uma proteção definitiva à liberdade somente após a ponderação em cada caso particular, após análise dos limites (propriamente ditos) e das restrições (teoria externa).

Para tanto, entra em cena a maior das tarefas hoje exigidas ao Poder Judiciário: o dever fundamentação adequada, com uma lógica e consistente argumentação jurídica (tendo em conta, inclusive, que as consequências da decisão podem ser medidas no âmbito da apreciação da proporcionalidade em sentido estrito – os prós e contras ao sacrifício a uma liberdade); todo este percurso a proporcionar a controlabilidade da decisão judicial através da fundamentação.

Todo este itinerário interpretativo para se chegar a um resultado normativo aceitavelmente justo.

Sendo primordial, sobretudo para Tribunais Constitucionais, que haja uma definição ajustada de qual a ratio decidendi foi desenvolvida como resposta do colegiado em cada caso, e não apenas uma mera junção de votos em determinado sentido.

Uma vez tornada compreensível, pelo corpo social, a razão de decidir (a tese desenvolvida pela Corte) a respeito do sentido e significado jurídico que um país dá a um direito fundamental ou a um instituto, o que se requer, na sequência, é que haja coerência nas decisões (importância dos precedentes) para decisões futuras a fim de satisfazer os propósitos da segurança jurídica e do postulada da igualdade de tratamento pelo Judiciário em casos similares; sem, contudo, fechar-se neste circuito.

Deve sim se fechar às possibilidades semânticas do texto (o Judiciário é intérprete e não criador do Direito); pode até verificar erros de interpretação passadas (vide caso Brown nos EUA, onde a igualdade era que havia sido sacrificada nos precedentes). Neste caso, não se trata de mutação propriamente dita, pois o texto permaneceu, mudou a maneira de enxerga-lo à luz dos mesmos princípios, porém revistas as aspirações, encontrado o sentido de constituição enquanto norma, mas também enquanto realidade a ser concretizada.

 

4.2. Marco teórico do método hermenêutico

4.2.1. O caráter ‘prima facie’ das posições jurídicas extraídas das normas de direitos fundamentais

Credita-se, ao direito e às normas jurídicas, a função de servir como diretivas socialmente obrigatórias que, não seguidas, dariam ensejo a uma resposta (ROSS, 2000, p. 37-43). O dever ser, no sentido de um discurso diretivo, e não o conteúdo de um discurso meramente indicativo, seria então o traço distintivo de uma norma (DUARTE, 2006, p. 72-73).

E como qualquer enunciado normativo, os princípios, enquanto texto, somente mediante interpretação e análise concreta podem se tornar norma (ALEXY, 2015, p. 103-104) (BULYGIN, 2016, p. 06-07). Porém, se para a interpretação de regras o silogismo parecia evidenciar uma estatuição com menos dificuldade; para as normas-princípio, que hoje permeiam o ordenamento, a tarefa se torna mais complexa.

Por sua vez, a norma encontra-se prevista, enquanto estrutura linguística, por meio de proposições normativas, das quais se extrai o sentido do dever ser nelas expresso.

Partindo da consideração de que a norma jurídica possui uma natureza deôntica, tal natureza encontra-se intrinsecamente associada à ideia de uma consequência referente ao cumprimento do dever ser normativo. Da natureza deôntica, logo consiste a norma em uma ordenação em determinado sentido (DUARTE, 2006. P, 72-73), este sentido podendo ser o de ordenar, permitir ou proibir certas condutas humanas (RUIZ, 2006/2007, p. 53).

A estrutura normativa, assim, assenta-se na arrumação de uma previsão, de um operador deôntico e de uma estatuição em uma formulação normativa. De tal estrutura, podendo-se depreender todas as propriedades acima aludidas (DUARTE, 2006, p. 75-86).

Sendo assente que formulação normativa não se confunde com norma; pois enquanto a primeira se configura com a estrutura linguisticamente formulada, a segunda consiste no resultado extraído da primeira (BULYGIN, 2016, p. 06-07).

A partir de tal premissa, há de se admitir que uma formulação normativa nem sempre expressa uma norma considerada completa, e outras vezes pode-se detectar a existência de mais de uma norma em um só enunciado normativo (DUARTE, 2012, p. 37-38).

A existência de conflitos normativos depende exatamente da sobreposição dos antecedentes das normas colidentes (DUARTE, 2012, p. 47).

Sentadas as premissas metodológicas a definirem o conteúdo do material normativo, pode-se dispor a respeito da propriedade inerente a qualquer norma do ordenamento jurídico, a derrotabilidade, da qual se depreende que o preenchimento dos pressupostos contidos no antecedente de um enunciado normativo não enseja, necessariamente, a aplicabilidade do mesmo.

Quer-se dizer, traduz-se a derrotabilidade na possibilidade de exclusão da consequência jurídica como um resultado efetivo, face à possibilidade de ser este resultado excepcionado por comando normativo diverso (FIGUEROA, 2003, p. 197).

A propriedade da defeasibility ou derrotabilidade das normas de direitos fundamentais explica a constatação de a norma garantidora dever ser interpretada apenas como uma proteção prima facie, dependendo a proteção definitiva de um passo seguinte, qual seja a verificação de prevalência ou não de restrições oriundas de uma norma em sentido contrário (DUARTE, 2012, p. 44; 56).

Para efeito de compreensão do conteúdo aqui desenvolvido, de modo bem simplório e didático, poder-se-ia dizer que que a norma que garante do direito à liberdade de expressão contém um sentido de dever ser de liberdade, de permissão, de ser permitida a conduta humana de se expressar. Esta norma de liberdade, porém, pode vir a ceder em um caso concreto de colisão, por exemplo, com a norma que protege a honra. Em suma, o que aparentava estar protegido prima facie (a priori) pela liberdade de expressão, em um específico caso, pode não se mostrar devida a proteção por uma derrotada sofrida pela norma de liberdade em face de uma norma proibitiva à liberdade (como é o caso da norma que protege a honra, que veda ou restringe a liberdade de outro se expressar livremente). Em síntese, esta a derrotabilidade da norma, a possibilidade de ser derrotada por outra em casos concretos.

Como se vê, é de se compreender que, enquanto diante apenas de proposições normativas, somente é possível a identificação de posições jurídicas defensáveis com características nada além que prima facie. O resultado concludente, conforme ficou dito, é somente alcançado uma vez clarificado o significado normativo-linguístico à luz do espectro de possíveis interpretações; e mostrando-se necessária uma avaliação dos enunciados passíveis de aplicação, guiado por critérios extraídos do sistema normativo, sob enfoque do posto no caso concreto, cuja resolução requer sempre uma decisão entre as alternativas abertas e de acordo com as singularidades postas (BAYON, 2000, p. 104-105).

Portanto, observa-se que haveria, em qualquer situação jurídica, um dever/direito não concludente ou prima facie, já que vencível; e por outro lado haveria o dever/direito tido como concludente ou final, sendo este o que resolve a questão, tornando o que era uma posição jurídica de vantagem em situação jurídica em concreto regida pelo direito (CARACCIOLO, 2005, p. 88).

O certo, porém, é que atributo da derrotabilidade para as normas-princípios assume relevo ainda maior, pois será a norma em sentido contrário que findará por determinar qual parte da realidade será regida pelo estatuído neste ou naquele princípio conflitante (DUARTE, 2012, p. 55).

Ou seja, a norma em sentido contrário acaba por determinar onde pára a consequência de outra norma-princípio (DUARTE, 2012, p. 55), pois os princípios – diversamente das regras – possuem o diferencial quanto à estrutura de seu antecedente, possibilitando uma grande extensão de condições disjuntivas não limitadas (DUARTE, 2012, p. 54), o que enseja, sem dúvidas, significativas possibilidades potenciais de conflitos normativos.

Devendo ser esclarecido que o nascedouro de tal colisão normativa se dá quando condições são partilhadas pelo antecedente de mais de uma norma, uma passível de derrota por outra (DUARTE, 2012, p. 55-56).

Por serem os direitos fundamentais quase sempre estatuídos mediante normas-princípio, além de estarem mais sujeitos aos conflitos devido à estrutura de seu antecedente, tais conflitos são solucionados comumente por meio da ponderação, já que, como salientado supra, o próprio sentido da norma-princípio somente pode ser delimitado pelo sentido que a restrição o imponha sob as circunstâncias relevantes de um caso concreto.

Assim, a natureza prima facie, no sentido aqui defendido, não decorreria apenas do fato de os princípios serem normas vagas, gerais, abstratas, abertas, indeterminadas ou axiológicas, mas por serem derrotáveis ou superáveis (FIGUEROA, 2003, p. 206).

Dito de outro modo, os princípios, por expressarem direitos e deveres prima facie, somente têm seu conteúdo definitivo estabelecido após o sopesamento com outros colidentes, que lhe podem impor uma eventual derrota (SILVA, 2002, p. 25).

O exame de um direito delimitado se realizaria através de dois passos, quais sejam, primeiro se pergunta se a consequência jurídica buscada forma parte do conteúdo do direito prima facie. Sendo esta a situação, o passo seguinte seria o de se examinar se o direito prima facie há de ser limitado no caso concreto. Mediante um processo de decisão onde se estabelece qual dos princípios, em conformidade com as circunstâncias concretas de colisão, possui um maior peso, ao fim do qual se alcançaria um direito definitivo (CARACCIOLO, 2005, p. 87).

É de se deixar evidenciado, ademais, que as restrições aos direitos fundamentais podem se configurar tanto através de princípios como através de regras (BOROWSKI, 2000. p. 40-41); sendo, através da ponderação, que se vem a obter o conteúdo juridicamente ordenado pelos direitos fundamentais, chegando-se ao que se entende por proteção definitiva (BOROWSKI, 2000, p. 43).

Não havendo hierarquização precisa nos sistemas constitucionais entre os vários direitos fundamentais, de modo tal que os conflitos podem se dar de diversas maneiras e em circunstâncias as mais diversas (BAYÓN, 2000, p. 89), podendo-se concluir que a vencibilidade das normas é inerente a todas elas e pode ser imposta por quaisquer delas.

De modo que as premissas que seriam suficientes para uma conclusão de uma norma podem ser modificadas constantemente a partir de novas premissas que a vida cotidiana apresenta, sendo não enumeráveis previamente as tantas possíveis exceções àquela conclusão inicial. Se é correto afirmar não ser possível de antemão determinar os precisos casos de aplicabilidade de uma norma-princípio, também é certo que não é possível saber-se o conjunto de exceções ao mesmo (BAYÓN, 2000, p. 92-94).

Demais disso, tendo em vista que não há a prioridade entre umas sobre outras normas, significa afirmar que duas normas de colisão funcionam, cada uma, como uma exceção à aplicabilidade da outra. De forma tal que, quando são verificados os respectivos antecedentes normativos de ambas, nenhum deles de per si é considerado já suficiente para despoletar a respectiva estatuição, pois até então tudo o que se tem é um conflito de deveres prima facie (BAYÓN, 2000, p. 107-108).

Para a solução de tais conflitos, em que cada uma das normas funciona como restrição à outra – não havendo um critério prévio para determinar os fatores que estabeleçam maior peso a qualquer delas – é de se observar o grau de afetação no caso concreto, o peso em abstrato das mesmas, bem como a segurança das premissas relativas à tal afetação (PULIDO, 1989, p. 17-18).

Ou seja, uma prioridade prima facie determina carga de argumentação suficiente para justificar a prevalência de uma norma de direito fundamental sobre outra; sendo robustos os fundamentos em favor de um dos princípios (mesmo que funcionem como uma restrição no caso concreto), está cumprida suficientemente aquela prioridade prima facie em determinado sentido, através de procedimento decisório racional (RUIZ, 2006/2007, p. 62).

A característica da derrotabilidade das normas de direitos fundamentais exige, assim, este largo procedimento em todos os casos, afinal estar a haver uma preterição de uma norma, a qual merece ser sempre devidamente justificada.

Deste modo, apresenta-se indispensável um modelo constitucionalmente adequando de controle da atuação dos poderes constituídos no domínio dos direitos fundamentais, que permita uma metodologia de ponderação de interesses e valores sem perda da força normativa da Constituição (NOVAIS, 2003, p. 360-361).

Este dever de estabelecer a preponderância de uma e a derrota de outra norma, embora deva ser um procedimento técnico e racional, não é, contudo, “um procedimento algorítmico” que dê ensejo à obtenção de uma resposta pronta e apriorística. Ao contrário, pelo fato de a metodologia requerer a consideração pormenorizada das circunstancias fáticas relevantes, há de se proporcionar ao intérprete campo de ação necessário para estabelecer com racionalidade e equidade a prevalência de uma das normas (PULIDO, 1989, p. 28-29).

Tal mecanismo sendo a chave para se atribuir a consequência definitiva ao que antes seria uma posição jurídica em potencial ou prima facie; quando, a partir de circunstâncias concretas de colisão, possa-se atribuir maior peso a uma das normas envolvidas (BOROWSKI, 2000, p. 39).

Mecanismo ponderativo que, embora dê certa margem de ação ao intérprete, oferece suficiente racionalidade, que limita possível arbítrio, e por isso a merecer valor metodológico (BOROWSKI, 2000, p. 29-30).

A centralidade de tal metodologia – pela qual se estabelece a prioridade em concreto de uma norma – evidencia-se, sobretudo, por se estar a decretar o afastamento da aplicabilidade de uma norma de modo definitivo para aquele caso em particular. Convertendo em definitivo um direito que era prima facie defensável, e, no mesmo ato, a estabelecer a derrota da norma em sentido inverso.

Por isso, o dever de se cumprir o brocardo alexyano segundo o qual “quão alto seja o grau de prejuízo a um princípio, tanto deve ser a importância da realização do outro” (ALEXY, 2009, p. 09).

Para o caso aqui amplamente debatido, por exemplo, poder-se-ia assim externar: quão alta seja a censura a um direito de liberdade de expressão em um caso concreto, tão alta deve ser a importância para se resguardar aquele outro direito supressor da liberdade prevaleça justificadamente, como os valores dignidade da pessoa humana, igualdade ou mesmo honra do ofendido.

Este método (de atribuição da prevalência de uma norma e a derrota de outra) seria algo para além da subsunção, muito embora esta também não seja dispensada, pois antes de ponderar e estabelecer a vitória/derrota de uma norma, primeiro se subsume o caso àquelas normas passíveis de serem aplicadas[2], naquelas situações onde há a sobreposição de previsões.

Para, seguidamente, verificar-se o grau de prejuízo a um princípio; a comparação da importância da realização de outro princípio contrário; e, por fim, averiguar-se se a importância da realização do princípio contrário justifica o prejuízo sofrido pelo outro (ALEXY, 2009, p. 09).

Exsurgindo com especial destaque na escolha da norma vencedora e, portanto, da vencida, a obrigatoriedade de dever de proporcionalidade; a se impor como uma condição formal ou estrutural de aplicação de normas de direitos fundamentais; com o que se promove a devida e integral realização dos bens juridicamente resguardados no ordenamento (ÁVILA, 2001, p. 30). Funcionando o dever de proporcionalidade como uma chave do balanceio, propiciando um controle jurídico do mecanismo de estabelecimento definitivo de posições jurídicas até então prima facie.

É devido, por fim, deixar assente que o atributo da derrotabilidade tem por significado a possibilidade de a norma vencida poder se mostrar vencedora em outras circunstâncias fáticas estabelecidas. Dito de outra forma, a determinação em sentido de vitória de uma norma sobre outra não implica invalidação daquela cuja aplicabilidade foi afastada no caso concreto, pois o peso que enseja a vitória/derrota de cada norma varia de acordo com cada situação específica (RUIZ, 2006/2007, p. 58).

Portanto, a inteligência que se pode extrair de tais pressupostos é a de que os princípios como sendo mandamentos de otimização; diretrizes que podem se realizar em diversos graus, a depender das várias circunstâncias factuais e notadamente da presença de demais normas contrárias para ordenarem em definitivo (SANCHÍZ, 2001, p. 213).

Dito isto, outra realidade se apresenta. A da necessidade de se adotar uma Teoria Externa para a solução de conflitos de normas de direitos fundamentais. É o passo seguinte.

 

4.2.2. Teoria externa como teoria apropriada para a análise hermenêutica dos direitos fundamentais

A teoria alexyana, ao firmar serem prima facie as posições jurídicas estabelecidas por normas de direitos fundamentais – exatamente em virtude do atributo da derrotabilidade das normas jurídicas – configura-se entre aquelas teorias denominas externas. Pois que orientada pela compreensão de que qualquer limite ao um direito fundamental seria decorrência de uma restrição extrínseca (SILVA, 2006, p. 46).

Por questões didáticas, pergunta-se: o que seria a Teoria Externa aplicável à Liberdade de Expressão? Responde-se:

Externa tem o sentido de ser extraído fora da norma, ou seja a partir de outras normas colidentes. Quer-se dizer: o direito à liberdade de expressão não pode ser compreendido simplesmente a partir da norma que confere a liberdade de expressão; há de ser lido o conjunto (externo àquela norma permissiva de liberdade!) para se compreender o sentido final. Enquanto não se fizer a análise sistêmica da unidade da constituição, está-se dentro de um sistema interno (apenas dentro da norma de liberdade de expressão, sem analisar outras com as quais colide). Ou seja, a liberdade de expressão enquanto for analisada somente internamente, dentro da norma permissiva de liberdade é uma liberdade apenas prima facie; a liberdade definitiva tem de ser aferida externamente à norma de liberdade – ou seja, a partir da colisão com as restrições –, para então se obter o resultado concreto fina ou concludentel: que pode ser uma real liberdade de expressão, sem censura alguma, ou uma proibição à liberdade de expressão, que pode ser uma censura no sentido de impedir que se expresse ou uma sanção normativa, como por exemplo uma indenização por danos perpetrados por um ato de expressão da liberdade.

Distingue-se, neste tipo de abordagem de normas, o dever não concludente (não definitivo), o qual pode ser vencido, ou seja derrotável, daquele concludente ou final. Compreendendo-se que o conjunto de situações dispostas no antecedente de uma norma não basta para se alcançar um direito em definitivo ou conclusivo, pois o antecedente de uma norma somente atribui razões ainda prima facie em determinado sentido (CARACCIOLO, 2005, p. 88-89).

Assim, como uma teoria externa, estabelece-se a distinção entre direitos restringíveis (limitáveis) e não restringíveis (não limitáveis), no sentido de que qualquer direito pode ser restringido por norma diversa, entendendo-se não restringíveis aqueles já dispostos em definitivo, já quando a norma de decisão vem a torná-lo final para uma dada situação fático-jurídica.

Em outras palavras, nas teorias externas, o direito fundamental não se encontra precisamente delimitado originariamente, apenas expressa um direito que tende a expandir-se e cujos limites/exceções somente futuramente poderão determinar-se caso a caso; por isso apresentando o caráter prima facie, já que a determinação final se dará posteriormente, ou seja, após a ponderação com normas em sentido contrário (FIGUEROA, 2003, p. 209).

Por sua vez – agora analisando não o lado da liberdade, mas o lado das normas que a restringem – tem-se que estas normas (restrições ou limites), por serem normas autônomas e aptas a serem aplicadas também em sua plenitude de acordo com a colisão em concreto, também elas (as restrições e limites) devem ser verificadas em sua potencialidade de optimização. De modo tal a se constatar que tanto como os direitos não são absolutos, também não o são as correspondentes restrições (RUIZ, 2006/2007, p. 63), podendo-se afirmar existir uma mútua restringibilidade entre os vários princípios, uns a funcionarem como limites de outros.

A engenharia para elaboração da teoria dos direitos fundamentais em Alexy, como teoria externa que é, apresenta-se como estruturada em conformidade com dogmática científica que concebe a interpretação jurídica como passos a serem seguidos em sequência.

Deveras, a teoria ampla de suporte fático, por ser externa, tem o mérito de não pretender suplantar, do texto, conteúdo disposto na correspondente expressão linguística da formulação normativa, tal como ocorre em teorias restritas (como a dos limites imanentes), que indevidamente se dispõem a delimitar a previsão normativa (NOVAIS, 2003, p. 392-393).

De ser acolher a teoria alexyana ao se estabelecer nesta a necessidade de ponderação no domínio da análise das restrições, por se tratar esta a metodologia a estar necessariamente presente na dogmática para os direitos fundamentais (NOVAIS, 2003, p. 357), associada a uma teoria de argumentação e fundamentação jurídica (NOVAIS, 2003, p. 341); de tal modo que, tanto o modelo dos direitos fundamentais enquanto princípios tanto o modelo da teoria externa, ambos seriam aqueles que mais satisfatoriamente correspondem aos propósitos de um controle adequado da atuação dos poderes no que se refere às restrições (NOVAIS, 2003, p. 342; 359-360).

Neste sentido, expressar um discurso de ódio seria sim prima facie permitido, dentro do âmbito da liberdade de expressão; porém, ADVIRTA-SE: sua proteção é apenas prima facie até então. Ou seja, é protegido enquanto ainda não se houver sido sopesado com outros princípios fundamentais, como a honra individual ou coletiva por exemplo. Somente após o analítico percurso interpretativo apresentado, é que então se dirá se o tal discurso de ódio é ou não garantido e coberto pela norma de liberdade de expressão ou se, no caso, devem prevalecer outros princípios como a honra, a igualdade, a dignidade da pessoa humana.

Dentro da teoria externa do suporte fático de Alexy, a liberdade de expressão em um caso somente teria a resposta se é apenas prima facie ou se realmente é definitivamente protegida após a construção da norma de decisão. É assim que se deve tratar o discurso do ódio em casos concretos.

Longe, pois, de ser um mero processo subsuntivo, consiste a dicção dos direitos fundamentais em um complexo procedimento metodológico mediante o qual se estabelece a resolução dos conflitos que se criam. Fundado na técnica da ponderação que, iluminada pelo dever de proporcionalidade, através do discurso jurídico-argumentativo (ALEXY, 2014, p. 24; 219-221; 228 e ss.) (BOROWSKI, 2000, p. 46), enseja a configuração da situação jurídica em definitivo, que vem a tornar específicas (definitivas) situações meramente potenciais ou prima facie (BOROWSKI, 2000, p. 43).

Com as maestrais lições de Luís Roberto Barroso (2001, p. 196), é possível sintetizar o se procurou formular neste capítulo. Tudo o que se desenvolveu não é outra coisa senão ponderação de bens e valores, que deriva diretamente da unidade constitucional; cabendo ao intérprete o esforço de optimizar ao máximo os princípios envolvidos, em busca de uma solução equânime através de uma concordância prática entre aqueles; não se tratando jamais esta adequação metodológica em voluntarismo pernicioso (BARROSO, 2001, p. 239), mas um mecanismo racional pelo qual se torna possível encontrar o verdadeiro sentido jurídico de liberdade de um povo.

 

4.3. ‘Hard Cases’ atuais no direito brasileiro: o papel da jurisdição constitucional na construção do sentido jurídico-político do pluralismo

O que mais importa, para decisões de casos difíceis a serem solucionados pela jurisdição constitucional – sobretudo os casos em que se verifica desacerto moral quanto a determinado tema fundamental –, é a compreensão de que qualquer julgamento deste naipe deve ter por premissa o que tão amorosamente difundido por Paulo Bonavides (2005, p. 98): “imersa num sistema objetivo de costumes, valores e fatos, componentes de uma realidade viva e dinâmica, a Constituição formal não é algo separado da Sociedade, senão um feixe de normas e princípios que devem refletir não somente a espontaneidade do sentimento social mas também a força presente à consciência de uma época, inspirando a organização política fundamental, regulada por aquele instrumento jurídico”.

O rumoroso ‘Inquérito das Fake News’, bem como o nominado ‘Inquérito dos Atos Antidemocráticos’ ensejam uma oportunidade ímpar de a Suprema Corte brasileira se posicionar e estabelecer os exatos limites do tratado discurso de ódio e sobre a atual praga de disseminação de notícias falsas.

Outra situação de destaque a situação da caracterização e tratamento jurídico a ser dado às fake news em ambiente eleitoral, outro assunto dos mais decisivos para a democracia brasileira.

Recusa-se a se adentrar na questão preliminar a respeito da forma como se deu a abertura do referido Inquérito das Fake News, embora o tema seja também dos mais intrigantes, vez que diz respeito a questões fundamentais no Estado de Direito, como o é a questão do significado do que se entende por sistema acusatório brasileiro. No entanto, o presente trabalho certamente não é o espaço adequado para este outro tema, tendo em vista ser outro o espectro de análise aqui presente, e também em razão de tamanha profundidade que merece este outro assunto.

A matéria de fundo discutida a partir do Inquérito das Fake News e dos Atos Antidemocráticos é, portanto, o cerne da atual controvérsia verificada, pois diz respeito a dois temas essências quanto o assunto é liberdade de expressão: a construção e divulgação massiva de fake news e o discurso de ódio, notadamente atentatórias, em tese, ao próprio Supremo Tribunal Federal enquanto instituição e aos seus ministros como cidadãos.

Após tudo o que se tratou até aqui a respeito do tratamento dado à matéria na doutrina e jurisprudência nacional e comparada, respostas são pedidas a alguns questionamentos:

Que riscos à democracia as fake news e sua disseminação representam?

Conforme se disse, a doutrina norte-americana, em casos de liberdade de imprensa a respeito de indenizações em casos de matérias com conteúdo falso, inverte o ônus da prova da verdade dos fatos divulgados quando em questão um agente público. Seria correta esta compreensão para o Brasil ou isso traria um afrouxamento pela busca da verdade pelos órgãos de imprensa?

E, no que diz respeito às fake news fabricadas/difundidas por particulares no âmbito da liberdade de manifestação do pensamento, quais as diferenças haveria no tratamento jurídico para esta conduta (do particular) em relação a matérias falsas difundidas pela imprensa oficial?

Como intuitivo, é das maiores a gravidade de uma notícia falsa circulando no âmbito eleitoral, sendo uma situação das mais perniciosas para uma nação que preze pela democracia. Isto em razão de que, diante da imediatidade entre a propagação nefasta de informação falsa e o ato do voto, ocorre, nestas situações, direcionamento em favor de outra candidatura, sobremaneira quando não se tem tempo suficiente para um desagravo público que venha a neutralizar a situação posta.

É certo que o Código Eleitoral – iluminado por normas de direitos fundamentais como a honra, a vida privada, e os próprios valores do Estado Democrático de Direito – chega a tipificar a conduta de quem, com finalidade eleitoral, comprovadamente ciente da inocência de alguém, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, ato ou fato falsamente atribuído a este outrem. (Código Eleitoral. Brasil. Art. 326-A, § 3º).

Na seara criminal, portanto, resta encontrada a solução através do dispositivo citado, norma regente de casos em que ocorre a difusão de notícias falsas a respeito de algo ou alguém durante o decisivo embate eleitoral. O fundamento para a criminalização de condutas de tal natureza seria o de que o direito à liberdade de expressão não protegeria estas situações, uma vez que atingiriam o próprio funcionamento do jogo democrático, que encontra, na seara eleitoral, o ambiente fundamental para uma democracia real, momento dos mais decisivos, já que se apresenta como sendo o cenário adequado para que o cidadão-eleitor promova uma acertada escolha de seus representantes políticos para um mandato de tempo considerável.

Algumas questões se colocam para o tema: Nos casos em que fake news acabam por alterar o clima eleitoral, mexer com os ânimos do eleitorado e até direcionar a escolha do eleitor, como quantificar o prejuízo à honra do prejudicado? Como a Justiça Eleitoral pode proporcionar um direito de resposta real e efetivo ao ponto de desmentir a divulgação falsa a tempo? Quais critérios para se estabelecer uma justa indenização no caso de real e comprovado prejuízo em um pleito eleitoral por uma fake news (considerando que não há só prejuízo individual, mas também um prejuízo coletivo, vez se tratar da própria democracia)?

Tema urgente e fundamental a ser enfrentado e resolvido tanto no âmbito da Justiça Eleitoral quanto no âmbito da Suprema Corte, ambas no exercício nítido da jurisdição constitucional.

E quanto aos ataques promovidos em face da instituição Supremo Tribunal Federal? Como compreender a liberdade de expressão quanto o alvo é o próprio funcionamento de instituições fundamentais no Estado de Direito, como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal?

Quais normas estariam em colisão com a liberdade de expressão (honra, saúde/integridade física, direito de propriedade/patrimônio público do STF)?

Havia, no caso tratado no Inquérito dos Atos Antidemocráticos, risco iminente, ou algo como uma prévia para um real ataque à instituição, considerando as manifestações anteriores de políticos, ainda que fora do ambiente parlamentar, marcando presença física em atos públicos em que se manifestava pelo fechamento das Instituições Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional?

E se partido o ataque verbal de integrante de outro poder? Haveria algum conflito da liberdade de expressão com o próprio postulado da Separação dos Poderes, a partir dos anunciados de Montesquieu;, ou esta certa tensão admite palavras em tom mais exasperado? Estaria ou não ameaçada a harmonia entre as funções do Poder diante da força desproporcional capitaneada pelo Poder Executivo? Estariam as Forças Armadas neutras no cenário brasileiro, mantendo uma devida equidistância?

Haveria ou não de se considerar, nestes casos de discursos de massa, a condição de desigualdade do Poder Judiciário em termos de apoio popular – vez que atua como agente contramajoritário (os direitos fundamentais são trunfos contra a maioria – Ronald Dworkin e Reis Novais), e por ter por dever o de agir nos termos da norma com imparcialidade e equidistância?

Tornaria este traço de imparcialidade e contramajoritário a condição do Poder Judiciário desigual em relação ao Executivo, quando um agente político consegue mobilizar massas não apenas em tom naturalmente crítico à atuação de outro Poder, mas fomentando seu próprio fechamento enquanto instituição? Haveria de se avaliar, nestes casos, a liberdade de expressão frente a outros bens caros à Democracia e ao funcionamento independente de suas instituições democráticas?

E os particulares (não mais os agentes políticos) quando, com base no direito à liberdade de expressão, pedem o fechamento da Corte Constitucional de seu país?

A crítica, como uma manifestação da liberdade de expressão, obviamente, deve certamente merecer amparo o mais amplo e expansivo que se puder. Mas e quando se pode detectar que o discurso já é um ato prévio a um pronto desencadear de consequências imediatas e danosas a uma instituição republicana?

Relevante, sobre o tema, o que a doutrina norte-americana dispõe quanto a uma restrição à liberdade de expressão, para os quais foi construída a nominada Fórmula Homes, desenvolvida a partir de um julgado da corte constitucional em que ficou estabelecido que, quando se verifica no caso um perigo iminente e imediato e um evidente risco de dano, é de se entender como possível uma supressão legítima da liberdade de expressão (DWORKIN, 2006, p. 314-316).

Sendo de se ressaltar que mesmo a jurisprudência constitucional norte-americana – majoritariamente preferente à liberdade de expressão –, admite a restrição ou corte à liberdade quando se apresentam os casos de expressões nominadas “fighting words”, manifestações de pensamento com potencial de gerar conflitos reais e concretos. (MARMELSTEIN, 2018, p. 131-132).

Seria o caso de o Supremo Tribunal Federal adotar raciocínio semelhante ao contido da Fórmula Homes?

Até que ponto estaria permitida pela liberdade de expressão manifestações simbólicas (como aquelas com fogos de artifício sobre a sede da Corte, ou o uso vestimentas da Ku Klux Klan e uso de tochas durante à noite). Devem ou não tais expressões serem entendidas como um direito à crítica, assegurado pela Constituição?

Tudo depende de análise muito detida dos fatos, sobretudo se investigando a fundo os reais propósitos do manifesto; se faziam parte ou não de uma prévia a um ato concreto e amparado por forças que dessem ensejo a um real risco ao funcionamento da instituição STF.

Se toda a encenação não passasse de uma simples crítica contundente, há de ser protegida a liberdade de expressão.

Que terror um grupo de pessoas com tochas, encapuzadas com vestimentas típicas de integrantes de grupos supremacistas como a Ku Klux Klan proporcionam? Há risco de lesão por este só ato? Ou há de se compreendê-lo no contexto geral, integrado inclusive por ameaças à vida e à integridade física de ministros do STF e de seus familiares?

São questões que merecem ser colocadas.

Se estas manifestações ensejam um clima político-social contrário a uma instituição indispensável ao Estado Democrático de Direito tanto ou até mais importante que o próprio Direito à Liberdade de Expressão – de modo a ser possível se compreender que a própria existência ou pelo menos sua estabilidade do Estado de Direito estaria efetiva e perigosamente ameaçada com estes discursos –, haveria ou não colisão da liberdade de expressão com outras normas de envergadura constitucional, que também devem ser protegidas?

Se por um lado há de se defender a primazia da liberdade de expressão, necessário que se encontre harmonia com demais princípios também caros à Democracia e ao Regime do Estado de Direito, que merecem igual proteção e cuidado.

Há de se compreender quando se estará em risco a própria estrutura do Estado de Direito, que encontra um pilar fundamental na Separação de Poderes. Devendo-se interpretar o significado preciso de Liberdade de Expressão para quando se estiver diante de riscos de uma real ruptura institucional.

Para além de princípios basilares do Estado Democrático, que devem servir de balizas para interpretações desta grandeza; há de se verificar direitos das pessoas contra quem se dirige a crítica.

Estabelecer limites entre liberdade de crítica quando em casos fronteiriços com outros princípios fundamentais; e sobretudo casos nos quais – a pretexto de se exercer o direito à liberdade de expressão – investe-se com expressões de ameaças a direitos fundamentais como o direito à vida e à integridade física daquele a quem se crítica.

Que a liberdade de expressão, tantas vezes associada à liberdade de reunião, também observe a necessidade de respeito ao direito de locomoção (ir e vir) do criticado; bem como que a liberdade de expressão, se realizada com sinais sonoros e luminosos, consiga guardar respeito ao direito do criticado quanto à sua saúde física e mental, sobretudo respeitando horário de descanso noturno.

Enfim, liberdade, liberdade sempre, mas liberdade enquanto convivência com a liberdade alheia.

Que a Corte Constitucional compreenda a norma e também o tempo; que o interpretar constitucional tenha abertura suficiente para absorver o sentir de um povo – não o sentido da maioria, mas o sentido do uno pluralmente –, de modo a que possa resolver, com maestria, os maiores dissensos morais de uma época, jamais admitido o afrouxamento da normatividade da Carta, mas embebido de sincera vontade de encontrar o sentido material de Constituição. (BONAVIDES, 2005, p. 517).

 

Conclusão

Afinal, o que pode e o que não pode ser exteriorizado como expressão dentro da margem de liberdade conferida pelo constitucionalismo brasileiro?

Até que ponto a liberdade de expressão abrange discursos e mensagens ofensivas ou desagradáveis à luz da interpretação material da CF/88?

Deve-se ou não distinguir a situação quando o contexto for eleitoral? Até que limite se deve admitir, como protegidas, manifestações tendentes ao fechamento de instituições da República? Haveria de se distinguir ou não este tipo de manifestação quando a situação tiver como emissor um agente detentor de Poder, ou o tratamento deve ser o mesmo dado ao um manifestante popular?

Como proteger a honra de personalidades públicas quando em situação de criações e disseminações massivas de fake news? Há ou não há de se distinguir quando o veículo divulgador ou propagador for um órgão profissional de imprensa?

Como restituir a reputação de quem teve violada a sua honra e dignidade em razão de fake news em patamares de divulgação massiva e com disseminação em redes sociais, inclusive com a utilização de robôs? Como se poderia proporcionar o direito de resposta proporcional ao agravo nestes casos e o quantum de indenização seria devida tamanho o prejuízo?

São respostas a serem dadas mediante debate público na esfera de cada Poder, assim como no âmbito pulverizado da sociedade em geral. É urgente que o cidadão brasileiro aprenda sobre compromisso com a liberdade associado a uma responsabilidade cívica de viver uma democracia dentro de uma margem de responsabilidade individual e também coletiva no discurso (seja qual for a forma ou o meio em pelo qual este é difundido), mormente se apercebendo que o convívio plural requer cuidado não só para com os direitos de outrem, mas também para com o funcionamento da própria democracia e de suas instituições democráticas.

Embora exsurja da Ciência Jurídica – a partir da normatização constitucional dos direitos fundamentais –, é certo que a vivencia da liberdade de expressão permeia tantas outras ciências sociais e sociais aplicadas. Cabendo a estas um constante diálogo com o Direito (academia e jurisprudência) para que o cidadão seja educado e informado a respeito do exato âmbito do direito à liberdade de expressão, de seus limites e de suas restrições.

Que, no entanto, nunca a busca da verdade quanto à liberdade de expressão sirva para que haja cortes hermenêuticos desencorajadores da livre manifestação de ideias e de propagação de notícias, ambas (liberdade e informação) indispensáveis no Estado Democrático. O que se exige é que também se aprenda sobre responsabilidade para com cada outro e para com o coletivo, isso é o que demanda uma Democracia viva e verdadeiramente plural.

Deste debate público, devem fazer parte os Poderes Legislativo e Executivo a fim de que regulações aos direitos de liberdade de expressão sejam conformados ao mais aproximado sentido proposto constitucionalmente; que nem se tolha a liberdade, fazendo das restrições uma mordaça inibidora, mas que também não deixe de se pensar nos constantes abusos na vivência deste direito, que não tem outro nome a não ser violação a direitos alheios.

Urge que um debate amplo aconteça no País.

Agora retornando ao principal propósito do presente trabalho – a atuação da Jurisdição Constitucional quando diante de casos em que se aplica o princípio da liberdade de expressão – tem-se de reforçar o papel fundamental do Supremo Tribunal Federal para efeito de definir seu âmbito de proteção – inclusive evidenciando também o significado dos limites constitucionalmente previstos –, e também interpretando, em casos concretos, as restrições ao mesmo direito a partir da colisão com outros direitos fundamentais do ofendido (notadamente a honra e os direitos personalíssimos), procurando checá-los também frente a outros princípios fundamentais e estruturantes do Estado de Direito, como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Evidentemente que situações conflituosas como as descritas devem pairar sobre os ombros do Poder Judiciário através de sua jurisdição constitucional, desde um pequeno e longínquo juízo de uma comarca interiorana até a mais alta Corte de Justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal, o qual, enquanto soberano intérprete e guardião dos direitos fundamentais descritos na Carta Magna nacional, deve minudentemente procurar resolver todos estes pontos em controle de caráter erga omnes.

A coerência da sistematização para a solução destes conflitos normativos é a chave para a segurança jurídica tão almejada no país, e que se traduz em tratamento isonômico perante Tribunais quando casos similares se apresentam, oportunizando que a operação relativa à construção do resultado normativo para cada caso se dê através da forma mais racional possível, com respeito à jurisprudência e a história do instituto sem, contudo, engessar para eternidade um sentido interpretativo que vier a se tornar vetusto e obsoleto.

O que não se pode admitir é que Direito seja interpretado como se através de uma bola de cristal ou de uma cartola mágica, de onde não se sabe o que vai sair como resultado. A construção e o histórico jurisprudencial – inclusive através do direito comparado – é de merecer a devida atenção do intérprete constitucional.

O que se requer e se espera do Supremo Tribunal Federal é uma lógica da corrente de seu entendimento quanto ao tema hate speech e sobre o direito à liberdade de expressão em geral, cuja jurisprudência é flutuante ao longo da história jurisprudencial daquele sodalício.

Não se pode pedir subsunção – já que é de princípio que se trata –, o que se exige é coerência na linha de construção das decisões; ou seja que a constância da ratio decidendi seja conhecida, tornando previsível à sociedade saber aproximadamente qual o limite da liberdade de expressão e quando uma manifestação está fora do âmbito de proteção deste direito fundamental.

Como bem salientou Dworkin, (2006, p. 342), “nenhum esquema legal pode proporcionar a solução ideal para o conflito inevitável entre a liberdade de expressão e a proteção da reputação dos indivíduos. (…) Porém, um sistema unificado que trate da mesma maneira todos os queixosos e todos os réus parece atender mais aos interesses de todos – da imprensa, do público e dos cidadãos particulares”.

De se concluir, quanto à interpretação do tema hate speech, crucial que o Supremo Tribunal Federal manifeste uma linha decisória senão definida, ao menos previsível do ponto de vista da metodologia aplicada para decisões que tratem do direito à liberdade de expressão em colisão com outros direitos fundamentais, notadamente as normas que comandam proibições frente ao racismo, à discriminação de gênero, à origem e à crença.

Mesma coerência é o que se pede também quando o assunto for liberdade de imprensa e compromisso verdadeiro com a verdade dos fatos publicados. O que deve ser exigido do jornalista para que este possa exercer com liberdade sem temor de exercer o seu mister de informar? Esta é a tarefa de uma Corte Constitucional comprometida com a coerência de seus julgados, a ensejar segurança jurídica, já que todos os interessados saberão que comportamento é abrangido e quais comportamentos não o são pela liberdade de imprensa.

Devendo a Corte Constitucional brasileira passar a se manifestar a respeito da aplicabilidade dos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade, enquanto princípios de cunho instrumental interpretativo, quando trata do tema discurso de ódio. Em outras palavras, deve o Excesso Tribunal manifestar para que lado pende estes princípios quando a tratar do hate speech: se para o lado da liberdade ou para o lado das restrições.

Deve a Suprema Corte nacional dizer, publicamente, se o princípio da igualdade faz ou não com que mesmo expressões grotescas e desrespeitosas (o discurso de ódio) sejam protegidas pela liberdade de expressão, como tem defendido Dworkin (vertente liberal – EUA). Também dizer se a dignidade da pessoa humana assiste ou não, com prioridade, ao lado da honorabilidade e proteção de não discriminação de grupos ou de indivíduos considerados minorias indefesas ou vulneráveis (vertente comunitarista – União Europeia).

Sempre sendo prudente recordar que censurar a liberdade de expressão foi, constantemente, ao logo da história, o primeiro (e decisivo) passo para a instalação de sanguinárias ditaduras. (CAVALCANTE FILHO, 2018, p. 185).

Por sua vez, de se lembrar ainda a lição do ilustre Ministro Luis Roberto Barroso a respeito do princípio da dignidade na sua feição de valor comunitário, definido como interferência social e legítima na determinação dos limites da autonomia pessoal (BARROSO, 2020, p. 112), a qual – na compreensão deste articulista – poderia em um caso concreto servir como limite ao discurso de ódio visando-se a preservar a dignidade do agredido.

Esta dimensão da dignidade como valor comunitário, em razão dos riscos que o moralismo e o paternalismo podem afetar a livre autonomia de escolhas pessoais legítimas, requer, no entanto, que se dê, à sua interpretação, a mais ampla transparência e controlabilidade social (accontability) no momento da argumentação e do discurso jurídico. (BARROSO, 2020, p. 112).

Que a posição de preferência (preferred position) em favor da liberdade no constitucionalismo da nação brasileira possa encontrar – à luz de uma interpretação holística do arcabouço constitucional, e a partir de sua integridade ou unidade constitucional – um resultado normativo que harmonize o sentido de liberdade a partir de uma inteligência extraída do seu confronto com demais normas de direitos fundamentais, a se traduzir em um fiel e real comprometimento do cidadão brasileiro com os valores mais caros finalisticamente voltados à própria existência de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.

Este que tem como um dos fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e como objetivo “a promoção de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV, CF), este a significar nada mais nada menos do que igualdade, a qual guarda a mesma cooriginalidade em relação ao direito de liberdade, ambos inclusive figurantes do mesmo art. 5º da Constituição Federal Brasileira, artigo que é pedra angular, fundamento primeiro, norma onde estão assentadas as primícias dos direitos e liberdades fundamentais no Brasil.

Por fim (e antes de mais nada): que a Suprema Corte brasileira prime pela coerência quanto ao modo de julgar casos similares cujo tema for discursos de ódio, proporcionando controlabilidade não apenas jurídica, mas também social para as decisões prolatadas por aquele Tribunal. Propiciando, assim, a anseada segurança jurídica para que todo cidadão brasileiro seja ciente de como o seu direito à liberdade de expressão é considerado no Brasil e sobre as consequências jurídicas de seu abuso.

Para tanto, primordial estabelecimento de uma linha de raciocínio jurídico que permita seu controle racional; em outras palavras, querendo-se dizer que o grande ideal seria encontrar uma fórmula de construção hermenêutica tão perfeita em que, tendo-se os mesmos fatos e os mesmos textos, pudesse-se alcançar um mesmo sentido. É o que se extrai da lição de Jorge Neto (2019. p 216).

E a compreensão final que ora se faz destacar: liberdade de expressão requer ser analisada à luz destes dois princípios fundamentais de vetor interpretativo: o principio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade; compreendendo-se que o princípio da proporcionalidade terá estes dois como aliados para definição de quem preponderará em casos concretos de colisão, notadamente aqueles em que há o embate entre a liberdade de expressão vs. honra e demais direitos personalíssimos.

Ora, ao se refletir sobre o princípio da igualdade por exemplo, no sentido material de fazer iguais os desiguais, nota-se uma evidente necessidade de que a tolerância a discursos de ódio deva ser muito maior quando a manifestação mais exasperada advém de grupos minoritários ou vulneráveis. Há de se distinguir “o grito contido no escuro” dos berros de maiorias supremacistas, que usam e abusam da liberdade de expressão para diminuir quem já está na lixeira da história. O primeiros anseiam a igualdade; os outros a prevalência, a supremacia, desafiando a própria ideia de igualdade.

Compreender e respeitar quão árdua a tarefa daqueles que buscam por uma dignidade negada no plano social, ainda que a Constituição lhe assegure, diante da inércia do Estado.

Que se tolere e se dê mais abrangência ao direito de liberdade de expressão aos filhos da opressão, e que haja mais contenção ao discurso de ódio daqueles que pretendem diminuir ainda mais a condição de quem já se encontra na sarjeta deste tempo. Esta, sim, é uma luz interpretativa que entendemos que deva nortear o significado do discurso de ódio em uma sociedade socialmente tão desigual. Este sim é um papel-chave de um juiz comprometido com uma democracia verdadeiramente viva.

Que se permita “mais megafone aos amordaçados”, mais tolerância, mais compreensão, pois o que se busca é dignidade, o que se busca é igualdade; ou para o jurista: o que se busca é viver o que a Constituição sonhou!

 

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[1] A efetivação do Direito à Liberdade de Expressão para grupos minoritários ou vulneráveis, embora seja da mais alta relevância, foge ao tema central do presente ensaio, o qual tem como núcleo de debate a Liberdade de Expressão no contexto referente a manifestações majoritárias através do chamado “discurso de ódio”. Remete-se a outra publicação deste autor, que trata de estudo direcionado ao tema do direito de a sociedade (inclusive as minorias) se expressar e de ter sua opinião levada em consideração previamente a tomadas de decisões relevantes dos Poderes Públicos.

[2] Compreensão de: SANCHÍS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y Ponderacion Judicial. AFDUAM, N. 5, 2001. p. 216-217.

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