Ana Kelly de Lima Matos Natali, mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; advogada especialista em Direito do Trabalho e Direito Empresarial; e-mail: [email protected]
Resumo: Este trabalho visa estudar o aprofundamento dos estudos da equidade como regra de hermenêutica jurídica sob o enfoque de Norberto Bobbio, para que o operador do Direito possa entender o fenômeno do regramento jurídico como meio para a melhor compreensão e interpretação da norma jurídica no mundo. A finalidade da Hermenêutica, enquanto domínio teórico, é proporcionar bases racionais e criteriosas para que o operador do Direito possa ter uma interpretação segura dos enunciados normativos. Sob esse enfoque, pretende-se demonstrar que a hermenêutica jurídica se mostra como uma ciência filosófica importante para encontrar a decisão mais justa ao caso concreto, principalmente quando houver uma lacuna na lei, em que a equidade atua como um amálgama. Desse modo, a analogia, os costumes e princípios gerais de Direito são instrumentos fornecidos pelo próprio legislador ao magistrado para a solução de lacunas, assim como a decisão por equidade é meio hábil para integrar a norma, quando essa for omissa. Nesse sentido, o estudo da hermenêutica mostra-se útil ao permitir, auferir e definir como melhor interpretar a norma jurídica, a fim de se produzir a pacificação tão almejada nas relações sociais.
Palavras-chave: Hermenêutica Jurídica; integração da norma jurídica; omissão; equidade; pacificação social.
Abstract: This work aims to study the deepening of the studies of equity as a rule of legal hermeneutics under the focus of Norberto Bobbio, so that the operator of Law can understand the phenomenon of legal rule as a means for a better understanding and interpretation of the legal rule in the world. The purpose of Hermeneutics, as the theoretical domain, is to provide the hierarchical and judicious bases so that the legal operator can safely interpret normative statements. Under this approach, it is intended to demonstrate that legal hermeneutics shows itself as an important philosophical science to find the decision more to the case, especially when there is a gap in the law, in which equity acts as an amalgam. In this way, the analogy, customs and general principles of law are provided by the legislator himself to the magistrate for the solution of gaps, as well as equity is a means elaborated to integrate the norm, when it is omitted. In that regard. the study of hermeneutics proves to be useful to allow, obtain and define how best to interpret the legal norm, in order to produce a pacification so desired in social relations.
Keywords: Legal Hermeneutics; integration of the legal norm; omission; equity; social pacification.
Sumário: Introdução. 1. Hermenêutica Jurídica. 1.1. Regras de interpretação jurídica. 1.1.1 Método de interpretação gramatical. 1.1.2 Método de interpretação lógica. 1.1.3 Método de interpretação sistemática. 1.1.4 Método de interpretação teleológica. 1.1.5 Método de interpretação histórica/sociológica. 1.2 Boa-fé como função interpretativa. 2. Equidade como regra de hermenêutica. 2.1 Conceito de equidade. 2.2. Equidade e sua função integrativa. 2.3. A aplicação da Equidade como juízo de valor. 2.4. Equidade como critério de Justiça. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
“Interpretar é a busca pelo sentido cristalino de uma norma jurídica, em busca de um ideal a ser atingido, proveniente de uma concepção de língua como instrumento de comunicação, partindo de sua definição abstrata. Interpretar é descobrir o sentido e o alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos” (DINIZ, 2002, p. 145-146).
O exercício da interpretação da norma em busca de seu escopo, seja por aspectos semânticos e pragmáticos, com a adoção de critérios específicos objetiva reconhecer o sentido concreto voltado para o contexto da realidade. Desse modo, aquilo que não for claro e cristalino, pode ser entendido como sendo um defeito, o qual deve ser eliminado.
A obscuridade, para o jurista, implica dificultar o entendimento de uma norma jurídica, eis que por faltarem as palavras necessárias para que se complete o sentido legal não se pode chegar a uma conclusão clara de qual é o escopo real da norma.
Interpretam-se normas claras e obscuras, com a clareza de uma linguagem jurídica, construída mediante critérios linguísticos, semânticos e pragmáticos, como ferramenta, produzida segundo balizadores jurídicos de uma teoria do direito, com enfoque ao intérprete.
Nesse viés, cita-se o critério da equidade, que consiste em um meio hábil e eficaz de interpretação, que transpassa toda a atividade abstrata da interpretação da lei, viabilizando o julgamento do caso concreto, com a produção de decisões mais justas ao mundo do Direito.
“Em nosso ordenamento jurídico esse tipo de autorização é muito raro, e mesmo naqueles ordenamentos em que o poder criativo do juiz é maior, o juízo de equidade é também sempre excepcional, pois se os limites materiais ao poder normativo do juiz não derivam da lei escrita, derivam de outras fontes, como o costume ou precedente” (BOBBIO, 1995, p. 56-57). Assim, haverá a necessidade de que haja uma completude, para que o ordenamento jurídico seja considerado eficaz (BOBBIO, 1995, P. 118-119).
Porquanto, as regras de interpretação, em especial a equidade, são os limites necessários postos à disposição do operador do direito, na qualidade de intérprete da norma jurídica, como meio de corrigir as distorções quando a norma abstrata é aplicada ao caso concreto.
1. HERMENÊUTICA JURÍDICA
1.1 Regras de interpretação jurídica
O primeiro dever do intérprete é analisar o dispositivo legal, pois a lei é a declaração da vontadade do legislador, de modo que na busca da interpretação da norma deve-se mater o mais fiel possível. Isto porque o texto de lei quase sempre é abstrato, assim faz-se mister um árduo trabalho de interpretação quando essa sai do plano das idéias e passa a regular situações concretas, para que o operador do Direito possa fixar os exatos termos de seu sentido e extensão.
“Determinar a intenção do legislador passou a ser um imperativo de ordem jurídica e política, visto como, em virtude de um rígido e desmedido apego ao princípio constitucional da divisão dos poderes, – que foi uma das vigas mestras do constitucionalismo liberal, – chegava-se ao extremo de afirmar: “se o intérprete substitituir a intenção do legislador pela sua, o Judiciário estará invadindo a esfera da competência do Legislativo” (REALE, 2009,p. 280).
Os estudiosos do Direito se valem de algumas técnicas de interpretação para resolver o problema da aplicação da norma jurídica no tempo, também chamados de métodos. Assim, para se analisar os efeitos da norma dentro do ordenamento jurídico, pode-se destacar a interpretação gramatical; lógica; sistemática; teleológica; histórica e sociológica. Além dos meios especiais de integração da norma, nos quais citamos o princípio da boa-fé objetiva e a equidade.
1.1.1 Método de interpretação gramatical
Este tipo de interpretação funda-se em critérios linguisticos, pois examina-se a literalidade do texto, a fim de buscar o sentido das palavras que o legislador se utilizou para comunicar seu pensamento. “O legislador dirige-se aos súditos do Estado, e por isso usa, normalmente, da linguagem habitual expressando os conceitos por forma vernácula, porém segundo a acepção correta que devem ter os vocábulos. No momento de interpretar a norma deve-se observar o uso comum” (PEREIRA, 2006, p. 192).
Nota-se que sua principal função é fornecer ao intérprete elementos para corrigir erros de redação encontrados nos textos de lei.
1.1.2 Método de interpretação lógica
Esta modalidade leva em consideração a orma inserida em um conjunto orgânico, ou seja, os instrumentos fornecidos pela lógica para ajudar no ato da intelecção. A lógica aparece por meio do raciocínio indutivo e dedutivo, institutos comumente estudados pela filosofia, que busca a perfeita harmonia e coerência no ato de interpretar.
1.1.3 Método de interpretação sistemática
Esta regra impõe ao intérprete investigar o ordenamento jurídico e estabelecer as concatenações que a lei estabelece com as demais normas inseridas neste sistema. Evidencia-se, aqui, a subordinação da norma a um conjunto de disposições de maior generalização, do qual não pode ou não deve a norma em análise estar dissociada.
Na interpretação sistemática, o intérprete deve se atentar também aos comandos hirárquicos, à coerência das combinações entre as normas e à unidade enquanto conjunto normativo global. O fundamento desta regra explica-se pelo fato de que uma lei não existe isolada e por isto se deve extrair de um complexo legislativo as idéias norteadora, considerando a Constituição Federal como premissa maior.
1.1.4 Método de interpretação teleológica
Nesta modalidade o intérprete deve considerar o fim para que se destina a norma, que são amplos e genéricos. Este tipo de interpretação supera a lógica formal, pois direciona a atenção do intérprete ao bem jurídico maior que, via de regra, está tutelado pela norma, considerando ainda as conseqüências desta conclusão.
1.1.5 Método de interpretação histórica/sociológica
Nesta modalidade, o intérprete leva em consideração o conteúdo da norma no tempo e no espaço. No caso, esse método se confunde, uma vez que ao se buscar o sentido efetivo na circunstância atual ou no momento de criação da norma mostra que ambos se interpenetram, ou seja, “é preciso ver as condições específicas do tempo em que a norma incide, mas não podemos desconhecer as condições em que ocorreu sua gênese” (FERRAZ JR, 2001, p. 286).
1.2 Boa-fé como função interpretativa
A boa-fé como função interpretativa está prevista no Código Civil brasileiro, tanto no artigo 113[1], como no artigo 422[2]. A força da linguagem é claro indicativo da veemência com que se deseja da ideia, ficando explícito como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins primordiais da boa-fé e da probidade. Todavia, a boa-fé como postulado atua sobre a aplicação de outras normas, que estabelecem balizadores ao intérprete/aplicador do direito em relação à forma de interpretação ou aplicação de outras normas.
2. Equidade como regra de hermenêutica
2.1. Conceito de equidade
“Por isso o eqüitativo é justo e superior a uma espécie de justiça, embora não seja superior à justiça absoluta, e sim ao erro decorrente do caráter absoluto da disposição legal. Desse modo, a natureza do eqüitativo é uma correção da esta é deficiente em razão de sua universalidade. É por isso que nem todas as coisas são determinadas pela lei: é impossível estabelecer uma lei acerca de algumas delas, de tal modo que se faz necessário um decreto. Com efeito, quando uma situação é indefinida, a regra também é indefinida, tal qual ocorre com a régua de chumbo usada pelos construtores de Lesbos para ajustar as molduras; a régua adapta-se à forma da pedra, e não é rígida, da mesma forma como o decreto se adapta aos fatos” ARISTÓTELES, 2009, p. 125).
Destarte, ainda que na acepção aristotélica de equidade haja determinado espaço para a criatividade do juiz, ela é intrínseca à própria atividade de interpretação judiciária, e, longe de se dar ao livre-arbítrio do julgador.
Conforme critérios estabelecidos por Limongi França: “O juiz, diante da inexistência de um texto inflexível; encontrando omissão ou acentuado rigor ou generalidade na lei e, após apelar para as formas complementares de expressão do direito, elabore uma construção científica, em harmonia com o espírito que rege o sistema, e que venha a colmatar a lacuna ou complementar a generalidade da lei, fazendo o seu ajuste fino às particularidades do caso” (FRANÇA, 1969, p. 77-78).
Sob esse prisma, a equidade pode ser aplicada como substituta da lei, ou “juízo de equidade”, eis que na precisa definição de Bobbio a “autorização, ao juiz, de produzir direito fora de cada limite material imposto pelas normas superiores” (BOBBIO, 1995, p. 56). Nessa linha, sua aplicação é excepcional e vinculada a uma autorização legal.
Para Bobbio, a equidade também pode ser entendida como sendo fonte do direito, pois “fontes do direito são aqueles fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas. O conhecimento de um ordenamento jurídico (e também de um setor particular desse ordenamento) começa sempre de suas fontes” (BOBBIO, 1995, p.45). Seria, portanto, uma fonte delegada do direito, principalmente quando o juiz pronuncia o juízo de equidade (BOBBIO, 1995, p. 171). Dessa forma, “a fonte forma do direito é o juiz, o qual explicita seu poder normativo, mediante sentenças dispositivas” (BOBBIO, 1995, p. 175).
Todavia, esse pensamento parece não encontrar ressonância em grande parte da doutrina e encontra um contraponto importante sob o enfoque de Vicente Ráo que sustenta que as decisões judiciais fundadas em equidade incorporam a jurisprudência e, logo não constituem fonte do direito (RÁO, 1997, p. 66).
Já Tércio Ferraz pondera que: “A expressão fonte do direito é uma metáfora cheia de ambiguidades. O uso da palavra está transposto e pretende significar origem, gênese. As discussões sobre o assunto, que mencionamos, revelam que muitas das disputas resultam daquela ambiguidade, porto que por fonte quer-se significar simultaneamente e às vezes confusamente a origem histórica, sociológica, psicológica, mas também a gênese analítica, os processos de elaboração e de dedução de regras obrigatórias, ou ainda a natureza filosófica do direito, seu fundamento e sua justificação. Por sua vez, a própria expressão direito, seu fundamento e sua justificação. Por sua vez, a própria expressão direito, igualmente vaga e ambígua, confere à teoria uma dose de imprecisão, pois ora estamos a pensar nas normas (direito objetivo) ora nas situações (direito subjetivo) e até na própria ciência jurídica e sua produção teórica (as fontes da ciência do Direito)” (FERRAZ JR., 2001, p. 224).
2. 2. Equidade e sua função integrativa
As lacunas jurídicas são um tema bastante interessante. Seu estudo gera grande dissenso na doutrina, por isto também, a importância desse breve comentário.
Geralmente, “as lacunas podem ser definidas como uma ausência de previsão legal para determinado assunto. Diante desta máxima, tal plexo é contrário, portanto, à parte da teoria do direito defensora da completude do direito, de modo que ambas não podem ser aceitas como verdadeiras devido a seu completo antagonismo” (LIMA, 2011, p. 53).
Vicente Ráo aponta quatro funções para a equidade: a) adaptação da lei a todos os casos que devam incidir em sua disposição; b) a aplicação da lei a todos esses casos, levando-se em conta todos os elementos, de fato, pessoais e reais, que particularizam o caso concreto; c) o suprimento de erros, lacunas ou omissões da lei; e d) a realização de tais funções com benignidade e humanidade (RÁO, 1997, p. 87-88). Assim, quando o operador do Direito se depara com uma lacuna na norma, deve a omissão ser suprida por meio de um processo de integração, que pode se dar pela utilização da equidade, quando a norma assim o permitir.
Norberto Bobbio ensina que “completude” é a “propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer uso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente “lacuna” (num dos sentidos do termo “lacuna”), “completude” significa “falta de lacunas” (BOBBIO, 1995, p. 115). E, conclui: “A completude é uma condição necessária para os ordenamentos em que valem estas duas regras:1) o Juiz é obrigado a jugar todas as controvérsias que se apresentem a seu exame; e 2) deve julgá-las com base em uma norma pertencente ao sistema” (BOBBIO, 1995, p. 118).
A teoria do espaço jurídico vazio faz referência ao positivismo jurídico, que identifica as noções do ordenamento jurídico. A seu respeito, Norberto Bobbio tece alguma críticas no sentido, a saber: “acerca da teoria da norma geral exclusiva, devemos concluir que um ordenamento jurídico, apesar da norma geral exclusiva, pode ser incompleto. E pode ser incompleto porque entre a norma particular inclusiva e a geral exclusiva introduz-se norma geral inclusiva, que estabelelece uma zona intermediária entre o regulamentado e não-regulamentado, em direção à qual tene a penetrar o ordenamento jurídico, de forma quase sempre indeterminada e indeterminável. Mas, normalmente, esta penetração fica imprecisa no âmbito do sistema. Se, no caso de comportamento não-regulamentado, não tivéssemos outra noram para aplicar a ser exclusiva, a solução seria óbvia. Mas agora sabemos que e muitos casos podemos aplicar tanto a norma que quer os comportamentos diferentes regulamentados, quanto a norma que quer os comportamentos semelhantes regulamentadosde maneira idêntica ao regulamentado. E não estamos em condições de decidir diferente. E, então a solução não é mais óbvia. O fato de a solução nãor ser mais óbvia, isto é, não se poder tirar do sistema nem uma solução nem a solução oposta, revela a lacuna, isto é, revela a incompletude do ordenamento jurídico” (BOBBIO, 1995, p. 139).
Destarte, estando o intérprete diante de uma lacuna, se essa se aplicar a norma geral inclusiva, o caso não regulado será resolvido de maneira semelhante à hipótese prevista na norma. Por outro lado, se o operador do Direito recorrer à norma geral exclusiva, o caso não regulado será solucionado de forma diferente, ou seja, a ele não será garantido o mesmo tratamento jurídico previsto para a hipótese legal semelhante.
É o que se extrai da afirmação de Norberto Bobbio: “Todos os comportamentos não-compreendidos na norma particular são regulados por uma norma geral exclsiva, isto é, pela regra de exclui (por isso excluiva) todos os comportamentos (por isso é geral) que não sejam aqueles previstos pela norma particular. Pode-se-ia dizer, também, que as normas nunca nascem sozinhas, mas aos pares: cada norma particular, que poderemos chamar de inclusiva, está acompanhada, como se fosse por sua própria sombra, pela norma geral exclusiva. Segundo essa teoria, nunca acontece que haja além das normas particulares, um espaço jurídico vazio, mas acontece, sim, que além daquelas normas haja toda uma esfera de ações reguladas pelas normas gerais exclusivas. Enquanto para a primeira teoria a atividade humana é regulada por normas jurídicas, porque aquela que não cai sob as normas particulares cai sob as gerais exclusivas” (BOBBIO, 1995, p. 135).
Isso se deve porque o Direito varia no tempo e no espaço, de modo que sofre reflexos de fatos históricos, de modo que, com a institucionalização do Direito também viriam os conceitos afins, a exemplo do conceito de justiça. Segundo Norberto Bobbio: “Para que o direito natural perca terreno é necessário um outro passo, é preciso que a filosofia jusnaturalista seja criticada a fundo e que as concepções ou, ainda, os “mitos” jusnaturalistas (estado de natureza, lei natural, contrato social…) desapareçam da consciência dos doutos. Esses mitos estavam ligados a uma concepção filosófica racionalista (filosofia iluminista,cuja matriz se encontrava no pensamento cartesiano). Ora, foi precisamente no quadro geral da polêmica anti-racionalista, conduzida na primeira metade do século XIX pelo historicismo (movimento filosófico-cultural de que falaremos no próximo parágrafo), que acontece a “dessacralizaçã” do direito natural” (BOBBIO, 1995, p. 45). E, prossegue: “No campo filosófico-jurídico, o historicismo teve, de fato, sua origem com a escola histórica do direito, que surgiu e se difundiu particularmente na Alemanha entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, sendo o seu maior expoente Savigny. Note-se bem que a “escola histórica” e “positivismo jurídico” não são a mesma coisa. Contudo, a primeira preparou o segundo através de sua crítica radical do direito natural” (BOBBIO, 1995, p. 45).
Nesse cenário, a teoria do ordenamento jurídico para Norberto Bobbio pode ser compreendida sob três aspectos, a saber: unidade, a coerência e a completude (BOBBIO, 1995, p. 78).
O Código Civil brasileiro de 2002 traçou a opção de legislar por meio de cláusulas abertas, fez várias referências à equidade quando do cálculo do valor de penas, indenizações, prejuízos e método de se evitar a resolução contratual, cujos exemplos estão previstos nos arts. 413[3], 479[4], 738[5], parágrafo único[6], art. 928[7], parágrafo único[8], 944[9], parágrafo único[10], e 953[11], parágrafo único[12].
Maria Helena Diniz afirma que: “Equidade ponderam-se, compreendem-se e estimam-se os resultados práticos que a aplicação da norma produziria em determinadas situações fáticas. Se o resultado prático concorda com as valorações que inspiram a norma, em que se funda, tal norma deverá ser aplicada. Se, ao contrário, a norma aplicável a um caso singular produzir efeitos que viriam a contradizer as valorações, conforme as quais se modela a ordem jurídica, então, indubitavelmente, tal norma não deve ser aplicada a esse caso concreto. A equidade seria uma válvula de segurança que possibilita aliviar a tensão e antinomia entre a norma e a realidade, a revolta dos fatos contra os códigos” (DINIZ, 1995, p. 428).
O principal problema encontrado da aplicação da equidade como forma integrativa é porque o Brasil faz parte do sistema normativo do tipo Civil law, o que pode levar o instituto a uma forma mais valorativa do conceito.
Silvio Venosa, sintetiza a ideia: “Tratamos aqui da equidade na aplicação do Direito e em sua interpretação, se bem que o legislador não pode olvidar seus princípios, em que a equidade necessariamente deve ser utilizada para que a lei surja no sentido da justiça”. “A equidade não é só o abrandamento da norma em um caso concreto, como também sentimento que brota no âmago do julgador. Como seu conceito é filosófico, dá margem a várias concepções. (…). Entendamos, porém, que a equidade é antes de mais nada uma posição filosófica; que cada aplicador do direito dará uma valoração própria, mas com a mesma finalidade de abrandamento da norma. Indubitavelmente, há muito de subjetivismo do intérprete em sua utilização” (VENOSA, 2001, p. 47).
Tércio Sampaio Ferraz Júnior, em visão analítica do Direito atribui à equidade duas funções dogmáticas, a saber: “entre fontes negociais e a razão jurídica e, na interpretação e integração do direito. Quanto à primeira função, afirma que a solução de litígios por equidade é a que se obtém pela consideração harmônica das circunstâncias concretas, do que pode resultar um ajuste da norma à especificidade da situação, a fim de que a solução seja justa” (FERRAZ JR., 2001, p. 248).
Na falta de norma positiva, o juízo de equidade é um recurso salutar, pois promove a justiça em sentido aristotélico de igualdade proporcional, exigindo do operador um juízo empírico e de valor.
2.3. A aplicação da Equidade como juízo de valor
A abordagem do Direito pelos positivistas é do tipo valorativa. Para compreender o que significa a abordagem valorativa, cabe esclarecer a diferença entre juízo de fato e juízos de valor.
O juízo de fato se traduz em teoria, porquanto não existe, nesta espécie de juízo, nenhum questionamento de ordem valorativa, mas tão somente, uma descrição fidedigna da realidade sobre a qual se é feito um juízo de fato ou teórico. Enquanto o juízo de valor, se tem um exercício subjetivo de seu intérprete, que produz uma valoração do caso concreto, a partir de experiências de guardam ao longo do tempo.
Nessa linha, percebe-se que o nosso sistema permite a aplicação irrestrita da equidade como valor, embora não admita a aplicação de forma irrestrita da equidade integrativa. Eis, que sem perder de vista o paradigma moral, constata-se que a aplicação da norma jurídica ao caso concreto, em sua forma abstrata, pura e simples, pode levar à injustiça.
Como explicam Cláudio Pereira Souza e Daniel Sarmento: “A equidade pode ser empregada para auxiliar na interpretação das normas legais e para corrigir a lei, quando a aplicação dessa se revelar profundamente injusta ou inadequada às singularidades do caso concreto. Mas a equidade pode também ser utilizada para preencher as lacunas da lei, integrando o ordenamento. As lacunas que a equidade é convocada a colmatar são quase sempre lacunas ocultas, são aquelas que nem sempre decorrem propriamente da ausência de norma legal disciplinando uma hipótese, mas da percepção pelo intérprete de que a norma incidente deixou de contemplar um aspecto essencial do caso. Diferentemente da analogia e dos costumes, a equidade não está prevista no art. 4º da LINDB como meio de integração de lacunas” (SOUZA; SARMENTO, 2013, p. 542).
Nos sistemas Anglo-americanos, em que as decisões têm a força de precedente obrigatórios, vinculantes, portanto, para casos futuros, as decisões fundadas em equidade têm eficácia de norma jurídica (PALERMO, 1998, p. 37).
2.4. Equidade como critério de Justiça
Buscar o conceito de Justiça sempre foi um grande desafio ao operador do Direito, eis que o verbete sofre amplas variações, de modo que até a Filosofia do Direito não encontra um conceito único do que seja justiça, sempre recaindo para a seara do Direito Natural.
O sentimento de justiça se encontra imbricado na própria essência humana, que se projeta para as relações sociais. Logo, quando o Direito Positivo não reflete esses ideais, faz surgir uma sensação de injustiça social, clamando, por conseguinte, pelo restabelecimento da ordem.
Nesse cenário, é que se justifica a preocupação de que o direito positivo reflita os ideais de justiça e, por conseguinte, seja concebido como direito justo. “A decisão por equidade é a justiça do caso concreto, independentemente de norma anterior. É uma regra de julgamento que não se confunde com critério de interpretação de norma, como já exposto ao tratarmos da equidade e a correção da lei” (PALERMO, 1995, p. 48).
Aristóteles entende que justiça e equidade não são conceitos sinônimos. Vejamos:
“Com efeito, a justiça e a eqüidade não parecem ser absolutamente idênticas, nem ser especificamente diferentes. Às vezes louvamos o que é equitativo e o homem eqüitativo (e até aplicamos esse termo à guisa de louvor, mesmo em relação a outras virtudes, querendo significar com “mais eqüitativo” que uma coisa é melhor); e às vezes, pensando bem, nos parece estranho que o eqüitativo, apesar de não se identificar com o justo, seja ainda assim digno de louvor; de fato, se o justo e o eqüitativo são diferentes, um deles não é bom, mas se são ambos bons, hão de ser a mesma coisa” (ARISTÓTELES, 2009, p. 109).
De acordo com a visão aristotélica o “justo é por conseguinte, uma espécie de termo proporcional” em que a “proporção não é uma propriedade apenas da espécie de número que consiste um unidades abstratas, mas do número em geral” (ARISTÓTELES, 209, p. 109).
O filósofo acreditava que “a justiça é uma espécie de meio-termo, mas não no mesmo sentido que as outras virtudes e, sim porque ela se relaciona com uma quantia ou quantidade intermediária, ao passo que a injustiça se relaciona com os extremos” (ARISTÓTELES, 2009, p. 115).
Partindo dessas premissas o juiz decidirá por equidade sempre que ficar sob seu arbítrio o julgamento da categoria essencial que predominará na aplicação da justiça.
A interpretação corretiva pode ser uma interpretação equânime, mas isto não se confunde com equidade como critério de decisão (PALERMO, 1995, p. 47).
Na verdade, a igualdade e a equidade constituem valores essenciais para a construção de políticas públicas voltadas para a promoção da justiça social e de uma sociedade mais solidariedade.
A equidade consagra, portanto, o abrandamento da norma ao caso concreto, em que o operador do Direito está autorizado a encontrar um equilíbrio entre o rigor da norma abstrata e a valoração do fato, de tal sorte que o bom senso e razoabilidade do julgador, acaba sendo muito demandado. Sob esse prisma, ante a situação concreta, o intérprete deve encontrar a forma mais justa e equânime para resolver a situação, a fim de promover a pacificação social, por meio do que se espera do Direito, a realização da Justiça.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, conclui-se que os significados considerados juridicamente adequados, obtidos por meio dos parâmetros fornecidos pelo hermenêutica jurídica, são imprescindíveis para viabilizar a tarefa interpretativa na mediação dos processos de aplicação impositiva das normas jurídico-estatais, em especial na solução dos conflitos sociais levados pelo caso concreto ao crivo decisório do Poder Judiciário.
A equidade é um instituto de grande importância tanto na integração quanto na interpretação das normas jurídicas, na medida em que permite a entrega plena da prestação jurisdicional, quando houver omissão da norma. Como regra geral de hermenêutica, a acepção utilizada em nossa legislação permite que o juiz rompa com a estrita legalidade e decida com razoabilidade segundo o seu prudente arbítrio, apenas nas hipóteses em que a legislação permitir.
Nesse aspecto, cabe ao magistrado o dever de adaptar a letra fria da lei às peculiaridades do caso concreto, preenchendo, assim as lacunas legislativas e corrigindo distorções frente situação que lhe foi posta.
Nota-se que a equidade não é somente um simples método ou técnica de hermenêutica, mas sim um pressuposto lógico da atividade interpretativa do operador do Direito.
A sua finalidade é a realização concreta da Justiça, toda interpretação das normas deve respeitar esse fundamento teleológico. Em outras palavras, ser equitativa é tender para o justo, minimizando, assim, as distorções abstratas do conteúdo da norma jurídica.
Em breve síntese, podemos afirmar que o sistema jurídico brasileiro admite a equidade como valor, pois a conformação do sistema normativo não é absolutamente fechada às valorações e interpretações necessárias à melhor adequação da justiça ao caso concreto.
Contudo, a equidade integrativa, como regra de hermenêutica e que complementa o sentido da norma abstrata, só pode ser aplicada nas hipóteses em que o legislador previu expressamente a sua aplicação, em abstrato.
Caso contrário, estar-se-ia diante de um ato arbitrário, circunstância que deve ser repelida pelos operadores do Direito. O julgamento por equidade corrige as deficiências da lei, porque uma peça de tecido não pode vestir todas as pessoas igualmente, de tal sorte que a dialética entre o legislador e o nobre Julgador, pode se constituir um elemento determinante da certeza do Direito e da pacificação social.
Portanto, pode e deve o magistrado amoldar a letra fria da norma às circunstâncias concretas, para atingir o sentido real e verdadeiro de Justiça, tomando, sempre, o cuidado de não extrapolar os limites balizadores de sua decisão, sob pena do ato se tornar arbitrário e nulo dentro da sistemática do civil law, que rege o ordenamento jurídico brasileiro.
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[1] Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
[2] Art. 422 – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé.
[3]Art. 413. A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
[4]Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
[5]Art. 738. A pessoa transportada deve sujeitar-se às normas estabelecidas pelo transportador, constantes no bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abstendo-se de quaisquer atos que causem incômodo ou prejuízo aos passageiros, danifiquem o veículo, ou dificultem ou impeçam a execução normal do serviço.
[6]Parágrafo único. Se o prejuízo sofrido pela pessoa transportada for atribuível à transgressão de normas e instruções regulamentares, o juiz reduzirá equitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.
[7] Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.
[8] Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.
[9] Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.
[10] Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.
[11] Art. 953. A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido.
[12] Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz