Coisa julgada inconstitucional

Resumo: O presente artigo pretende analisar a chamada coisa julgada inconstitucional bem como suas implicações no sistema jurídico, à luz dos princípios da segurança jurídica e da justiça da decisão.  A inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado pode decorrer de declaração posterior pelo Supremo Tribunal Federal de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de norma em que se baseou a demanda. Outrossim, existe na doutrina posições divergentes acerca da possibilidade ou não da flexibilização da coisa julgada material em alguns casos particulares. O conflito que se vislumbra entre a necessidade de manutenção e preservação da segurança jurídica versus a busca pela justiça da decisão será utilizado como base das argumentações, assim como o exame de posicionamentos doutrinários divergentes. Por fim, serão apresentados alguns julgamentos dos Tribunais Superiores acerca do tema.

Palavras-chave: Coisa Julgada. Relativização. Segurança Jurídica. Justiça da Decisão. Ação Rescisória.

Abstract: This article aims to analyze the thing called deemed unconstitutional and its implications in the legal system, in the light of the principles of legal certainty and justice of the decision. The unconstitutionality of the final judgment may result from subsequent declaration by the Supreme Court of the constitutionality or unconstitutionality of a rule that was based demand. Furthermore, there is the doctrine divergent positions concerning whether or not the relaxation of res judicata stuff in some particular cases. The conflict in sight between the need to maintain and preserve legal certainty versus the search for justice of the decision will be used as the basis of the arguments, as well as examination of divergent doctrinal positions. Finally, some judgments of the Superior Courts will be presented on the topic.

Keywords: Res Judicata. Relatizitation. Legal Certainty. Justice of decision. Rescissory Action.

Sumário: Introdução. 1. Coisa Julgada. 1.1 Conceito e Natureza Jurídica. 1.2. Relativização da Coisa Julgada. 2. Coisa Julgada Inconstitucional. Conclusão.

Introdução

A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 5º, XXXVI, garante que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Vê-se, dessa forma, que o constituinte originário nacional estabeleceu limites à retroatividade da lei, com o intuito de conferir estabilidade às relações jurídicas.

O dispositivo constitucional supracitado está intimamente ligado à ideia de segurança jurídica. Esta significa o mínimo de previsibilidade necessária que o Estado de Direito deve oferecer a todo cidadão, bem como quais são as normas de convivência que ele deve observar e com base nas quais pode travar relações jurídicas válidas e eficazes. 

É nesse contexto que se insere a garantia constitucional da coisa julgada, que, além de pressuposto lógico da segurança jurídica, é instrumento hábil a salvaguardar os direitos reconhecidos nas relações jurídicas travadas em juízo e a defender a manutenção do resultado da prestação jurisdicional.

E quando a decisão transitada em julgado ofende a Constituição Federal? Poderá ela permanecer produzindo efeitos no mundo jurídico? Tais questionamentos são objetos do presente trabalho, que abordará o tema da coisa julgada inconstitucional à luz dos princípios da segurança jurídica e da justiça da decisão.

1.  Coisa Julgada

1.1 Conceito e Natureza Jurídica

O Código de Processo Civil define coisa julgada material em seu artigo 467, in verbis: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.

Segundo Elpídio Donizetti, o conceito trazido pelo código é falho,

“porquanto, ao conceituar a coisa julgada material, o legislador leva em conta o aspecto da imutabilidade e indiscutibilidade da sentença, e não das relações jurídicas, cunho processual ou material. Adota uma visão clássica tradicional, do fenômeno, segundo  a qual o que caracteriza a coisa julgada é a imutabilidade  e a indiscutibilidade dos efeitos da sentença. Todavia, não são esses efeitos que se tornam imutáveis, mas o conteúdo da decisão proferida, ou seja a norma individual criada para aquele caso concreto.” (DONIZETTI, 2009, p. 398)

Para os romanos o instituto da res iudicata (coisa julgada) tinha um conteúdo prático de utilidade social haja vista que para eles a vida social se desenvolveria de modo mais seguro e pacífico a partir de quando se garantisse a segurança quanto ao resultado do processo.

Coisa julgada traduz-se no “bem da vida que o autor deduziu em juízo (res in iudicium deducta) com a afirmação de que uma vontade concreta de lei o garante ao seu favor ou nega ao réu depois que o juiz o reconheceu ou desconheceu com a sentença de recebimento ou de rejeição da demanda” (CHIOVENDA; 2002, p. 446).

Para Hugo Nigro Mazzili (1998, p.165) coisa julgada é a imutabilidade dos efeitos da sentença, obtida através do trânsito em julgado. Diz este mesmo autor que

“Toda sentença, independentemente de ter transitado em julgado, é apta a produzir efeitos jurídicos; coisa julgada é apenas a imutabilidade desses efeitos, ou seja, uma qualidade que esses efeitos adquirem com o trânsito em julgado da sentença, por meio da qual se impede que as partes discutam a mesma causa novamente” (1998, p. 165).

A doutrina é unânime em associar a coisa julgada material à inalterabilidade da decisão judicial de mérito que não pode ser mais modificada por recursos ou pelo reexame necessário, na específica hipótese do art. 475 do CPC. Contudo, existe divergência entre os processualistas a respeito do que precisamente se torna imutável em razão da coisa julgada material, podendo ser elencadas três correntes doutrinárias.

A primeira delas afirma que a coisa julgada é uma qualidade da sentença, que torna seus efeitos imutáveis e indiscutíveis. Registre-se que a maior parte da doutrina processual pátria[1] corrobora a ideia de que a coisa julgada é uma qualidade dos efeitos da decisão judicial, posto que, a autoridade da coisa julgada não deveria ser entendida como um efeito declaratório da sentença eis que a imutabilidade da sentença é que daria a qualidade a esse efeito declaratório do julgado. Ainda, segundo Liebman, “Identificar a declaração produzida pela sentença com a coisa julgada significa, portanto, confundir o efeito com um elemento novo que o qualifica[2]. Assim, os efeitos práticos emanados dessa decisão não poderão ser mais aventados em outro processo.

A crítica que se faz a essa primeira corrente é no sentido de que os efeitos da sentença de mérito transitada em julgado não se tornam imutáveis, bastando para chegar a tal conclusão a verificação empírica de que tais efeitos poderão ser transmudados por ato ou fato superveniente.

A segunda corrente, capitaneada por Barbosa Moreira (2001, p. 107), entende que é o conteúdo da decisão, contida em sua parte dispositiva, que se torna imutável e indiscutível em razão da coisa julgada material. Dessa forma, a coisa julgada não seria uma qualidade da sentença que opera sobre seus efeitos, mas uma situação jurídica, que torna uma sentença imutável e indiscutível. Consistiria, em síntese, na imutabilidade do conteúdo da decisão, do seu comando (dispositivo), que é composto pela norma jurídica concreta. Não haveria que se falar em imutabilidade dos seus efeitos, uma vez que estes podem ser disponíveis e, pois, alteráveis.

Outrossim, sustenta Didier Jr. que,

“A coisa julgada é um efeito jurídico (uma situação jurídica, portanto), que nasce a partir do advento de um fato jurídico composto consistente na prolação de uma decisão jurisdicional sobre o mérito (objeto litigioso), fundada em cognição exauriente, que se tornou inimpugnável no processo em que foi proferida. E este efeito jurídico (coisa julgada) é, exatamente, a imutabilidade do conteúdo do dispositivo da decisão, da norma jurídica individualizada ali contida”. (DIDIER JR, 2007. p.486)

Por fim, existe uma terceira corrente, cujos maiores expoentes são Marinoni e Arenhart (2008, p.628-633) que afirma que toda sentença tem um elemento declaratório, consubstanciado na aplicação da norma abstrata da lei ao caso concreto. Esse elemento declaratório tem como efeito a certeza jurídica de que, diante dos fatos alegados e considerados pelo juiz, o direito material conforme declarado pela sentença existe. Nesse sentido, reconhecendo que outros efeitos da sentença poderão ser modificados por ato e fato supervenientes, mormente pela vontade das partes (NEVES, 2010, p. 494), essa linha de pensamento limita os efeitos da declaração da norma abstrata ao caso concreto a imutabilidade própria da coisa julgada.

Daniel Amorim Assumpção Neves constata a existência de pontos de convergência entre as três visões doutrinárias citadas, apontando que

“todos reconhecem que toda sentença tem um elemento declaratório, consubstanciado na subsunção da norma abstrata ao caso concreto, e considerado pelo aspecto de elemento que compõe o conteúdo da decisão ou que gera efeitos práticos para fora do processo, torna-se imutável e indiscutível. Parecem também concordar que eventos futuros, refrentes à vontade das partes modificar outros efeitos gerados pela sentença, como ocorre no efeito condenatório no caso do pagamento da dívida ou do novo casamento no caso do divórcio” (NEVES, 2010, p. 494-495).

É sabido que toda decisão produz uma norma jurídica individualizada, cria a norma que vai regular uma situação concreta. Essa norma, quando se torna irrefutável, adquire a força de coisa julgada. Assim, podemos concluir que a coisa julgada é a indiscutibilidade da norma individualizada contida numa decisão judicial.

Além disso, a coisa julgada pode se manifestar formalmente ou materialmente.

Quando a indiscutibilidade da decisão limita-se ao processo onde foi proferida, verifica-se a coisa julgada formal. A coisa julgada formal é a imutabilidade da decisão judicial dentro do processo em que foi proferida, porquanto não possa mais ser impugnada por recurso – seja pelo esgotamento das vias recursais, seja pelo decurso do prazo do recurso cabível. Trata-se de fenômeno endoprocessual, decorrente da irrecorribilidade da decisão judicial. Revela-se, em verdade, como uma espécie de preclusão. Conforme acentua Didier (2007, p. 479) seria a preclusão máxima dentro de um processo jurisdicional.

Todavia, quando a indiscutibilidade da decisão opera-se no processo em que ela foi proferida e em qualquer outro, está-se diante da chamada coisa julgada material. É sobretudo essa manifestação da coisa julgada que se presta a trazer segurança jurídica aos litigantes, aos quais não basta apenas que o processo se encerre, mas que a questão litigiosa  se já definitivamente dirimida, não podendo ser discutida em nenhum outro processo.

Ressalte-se que a coisa julgada material pressupõe que tenha havido sentença de mérito, que o juiz tenha decidido a pretensão posta em juízo, favorável ou desfavoravelmente ao autor.

1.2 Relativização da Coisa Julgada

A coisa julgada integra o conteúdo do direito fundamental à segurança jurídica, assegurado em todo Estado Democrático de Direito, encontrando consagração expressa, em nosso ordenamento, no art. 5º, XXXVI, CF. Conforme pontuou Fredie Didier Jr. (2007), ela “garante ao jurisdicionado que a decisão final dada à sua demanda será definitiva, não podendo ser rediscutida, alterada ou desrespeitada – seja pelas partes, seja pelo próprio Poder Judiciário”. Desse modo, percebe-se que a coisa julgada não é instrumento de retidão, não assegura a justiça das decisões, estando intimamente ligada à garantia da segurança jurídica na estabilização das relações jurídicas.

Não obstante a constatação acima realizada, existem na doutrina pátria posições que defendem a relativização da coisa julgada, e, por consequência, a flexibilização da segurança jurídica, devendo a res judicata ser contrastada com os princípios jurídicos. Nesse sentido, preleciona Dinamarco (apud MONTENEGRO FILHO, 2006, p. 565) que “os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual”.

O argumento preponderante dos que defendem a relativização da coisa julgada é o nobre princípio da justiça da decisão. Para essa corrente, o valor da segurança jurídica não teria caráter absoluto no ordenamento jurídico, sujeitando-se ao princípio supracitado. A legitimidade do sistema jurisdicional residiria na correção de suas deliberações.

Cândido Rangel Dinamarco (2001) ressalta que não está “a postular a sistemática desvalorização da auctoritas rei judicate mas apenas o cuidado para situações extraordinárias e raras, a serem tratadas mediante critérios extraordinários”.  Além disso, caberia aos juízes de todos os graus jurisdicionais a tarefa de descoberta das extraordinariedades que devem conduzir a flexibilização da garantia da coisa julgada, recusando-se a suavizá-la sempre que o caso não seja portador de absurdos, injustiças graves ou de infrações constitucionais. Desse modo, não haveria uma garantia sequer, nem mesmo à coisa julgada, que conduza invariavelmente e de modo absoluto à renegação dos valores que elas representam, devendo ser afastada a imutabilidade da coisa julgada, ainda que ultrapassada o prazo da ação rescisória.

De outro lado, parcela da doutrina defende a impossibilidade da relativização da coisa julgada.

Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery possuem entendimento em sentido contrário ao defendido por Dinamarco, uma vez que consideram a garantia da coisa julgada elemento formador do Estado Democrático de Direito, in litteris:

“28. Coisa julgada material e Estado Democrático de Direito. A doutrina mundial reconhece o instituto da coisa julgada material como ‘elemento de existência’ do Estado Democrático de Direito (…). A ‘supremacia da Constituição’ está na própria coisa julgada, enquanto manifestação do Estado Democrático de Direito, fundamento da República (CF 1.º ‘caput’), não sendo princípio que possa opor-se à coisa julgada como se esta estivesse abaixo de qualquer outro instituto constitucional. Quando se fala na intangibilidade da coisa julgada, não se deve dar ao instituto tratamento jurídico inferior, de mera figura do processo civil, regulada por lei ordinária, mas, ao contrário, impõe-se o reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria, ou seja, de elemento formador do Estado Democrático de Direito, que não pode ser apequenado por conta de algumas situações, velhas conhecidas da doutrina e jurisprudência, como é o caso da sentença injusta, repelida como irrelevante (…) ou da sentença proferida contra a Constituição ou a lei, igualmente considerada pela doutrina (…), sendo que, nesta última hipótese, pode ser desconstituída pela ação rescisória (CPC 485 V). (…) O risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização (‘rectius’: desconsideração) da coisa julgada”. (grifo nosso) (NERY JR e NERY, 2010, p.715-716)

Vale a pena registrar o entendimento do Professor Leonardo Greco que, fazendo citação à jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, que reconheceu a coisa julgada como necessária à tutela jurisdicional efetiva, assim se manifestou:

“Àquele a quem a Justiça reconheceu a existência de um direito, por decisão não mais sujeita a qualquer recurso no processo em que foi proferida, o Estado deve assegurar a sua plena e definitiva fruição, sem mais poder ser molestado pelo adversário. Se o Estado não oferecer essa garantia, a jurisdição nunca assegurará em definitivo a eficácia concreta dos direitos dos cidadãos”. (GRECO, 2004, p. 05)

Todavia, o Supremo Tribunal Federal em alguns casos vem relativizando a coisa julgada, especialmente nas ações de investigação de paternidade onde não foi possível a realização de exame de DNA, in verbis:

“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO PROVIDENCIADO A SUA REALIZAÇÃO. REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE. 1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova. 2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável. 4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação à pessoa identificada. 5. Recursos extraordinários conhecidos e providos.[3]

O Egrégio Supremo Tribunal Federal, em juízo de ponderação de princípios, entendeu que a dignidade da pessoa humana, em seu aspecto relacionado à busca da identidade genética, deveria prevalecer em relação à segurança jurídica. Percebe-se, desse modo, que a mitigação da força da res judicata poderá ocorrer em casos específicos.

Ainda, deve-se registrar que o Estado Democrático de Direito tem como um dos seus pilares máximos a ideia de segurança e garantia aos cidadãos. A coisa julgada, assim, revelar-se-ia verdadeira garantia constitucional, e como tal um direito fundamental, como instrumento necessário à eficácia concreta do direito à segurança, insculpido no artigo 5º da Carta da República de 1988.

Ademais, consoante assevera Misabel de Abreu Machado Derzi, “[…] as modificações da jurisprudência não podem configurar surpreendentes ‘reviravoltas’ judiciais, sem que o juiz atenue os efeitos da mudança, protegendo a confiança e a boa-fé daqueles que tinham pautado seu comportamento de acordo com os comandos judiciais (jurisprudência) superados”[4].

Vê-se, dessa forma, que a proteção à confiança leva em conta a boa-fé do cidadão, que acredita e espera que os atos praticados pelo Poder Público sejam lícitos e, nessa qualidade, serão mantidos e respeitados pela própria Administração e por terceiros.  Na prática, esse princípio assegura às pessoas o direito de usufruir benefícios patrimoniais, mesmo quando derivado de atos ilegais ou leis inconstitucionais, exatamente em virtude da consolidação de expectativas derivadas do decurso do tempo.

Consoante sustenta Valter Shuenqueiner de Araújo, em sua obra sobre o Princípio da Proteção da Confiança:

“devemos ser os principais responsáveis pelas vantagens e desvantagens que surgirem como conseqüências de nossas opções, o que obriga o Estado a respeitar nossas preferências, mormente se elas estiverem dentro de uma moldura normativa autorizada pela ordem jurídica. O princípio da proteção da confiança deve, por exemplo, impedir intervenções estatais que façam desabar projetos de vida já iniciados. (…) A sociedade não pode apenas olhar para o presente e criar, através do Estado, normas que esvaziem por completo os planos individuais planejados no passado. As aspirações de mudança surgidas no seio popular e materializadas por atos estatais também merecem ser contidas na exata extensão em que vierem a ofender expectativas legítimas de particulares. (…) O princípio da proteção da confiança precisa consagrar a possibilidade de defesa de determinadas posições jurídicas do cidadão diante de mudanças de curso inesperadas promovidas pelo Legislativo, Judiciário e pelo Executivo. Ele tem como propósitos específicos preservar a posição jurídica alcançada pelo particular e, ainda, assegurar uma continuidade das normas do ordenamento. Trata-se de um instituto que impõe freios contra um excessivo dinamismo do Estado que seja capaz de descortejar a confiança dos administrados. Serve como uma justa medida para confinar o poder das autoridades estatais e prevenir violações dos interesses de particulares que atuaram com esteio na confiança.” (ARAUJO, 2009) grifei

Logo, pode-se concluir que os postulados da segurança jurídica e da proteção à confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, inclusive as de direito público, sempre que se registre alteração substancial de diretrizes hermenêuticas, impondo-se à observância de qualquer dos Poderes do Estado e, desse modo, permitindo preservar situações já consolidadas no passado e anteriores aos marcos temporais definidos pelo próprio tribunal.

Assim, a suavização da coisa julgada deve ser aceita apenas em casos excepcionais, onde outros princípios constitucionais sejam gravemente ofendidos. É sabido que a indiscutibilidade da res judicata pode tornar permanente, em alguns casos, situações indesejadas, como por exemplo: decisões injustas, ilegais, ou destoantes com a realidade fática. Busca-se, desse modo, harmonizar a garantia da segurança jurídica e estabilidade das situações jurídicas com a legalidade, justiça e coerência das decisões, nesse sentido entende Fredie Didier Jr. (2007, 506).

2. Coisa Julgada Inconstitucional

Há coisa julgada inconstitucional quando uma decisão judicial transitada em julgado se mostrar contrária a princípio ou norma constitucional. A inconstitucionalidade da sentença transitada em julgado pode decorrer de declaração posterior pelo Supremo Tribunal Federal, de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de norma em que se baseou a demanda ou, até mesmo, da violação de princípio ou norma constitucional pelo magistrado ao prolatar o julgado.

Teoricamente, a coisa julgada inconstitucional somente poderia ocorrer quando a declaração do STF acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma se desse após seu trânsito em julgado. Isso porque, caso a declaração já fosse conhecida com o processo em trâmite, as partes ainda teriam a oportunidade de argüi-la, e o magistrado teria a obrigação de fazê-lo ex officio. Tal fato se deve tendo em vista que as decisões do Supremo (seja em controle abstrato, seja através de controle incidental) possuem efeito vinculante.

Nessas hipóteses, parece razoável que se aceite o ajuizamento de ação rescisória, nos termos do art. 485, V, do CPC[5].

Outrossim, o Supremo Tribunal Federal tem entendimento de longa data no sentido de que sentenças transitadas em julgado, ainda que inconstitucionais, somente poderão ser invalidadas mediante utilização de meio instrumental adequado, como sucede com a ação rescisória no domínio processual civil, conforme apontou o Ministro Celso de Melo em seu voto no Recurso Extraordinário RE 649154/MG[6], vejamos:

Com efeito, esta Suprema Corte, em 1968, quando do julgamento do RMS 17.976/SP, Rel. Min. AMARAL SANTOS (RTJ 55/744), proferiu decisão na qual reconheceu a impossibilidade jurídico-processual de válida desconstituição da autoridade da coisa julgada, mesmo na hipótese de a sentença transitada em julgado haver resolvido o litígio com fundamento em lei declarada inconstitucional:

“A suspensão da vigência da lei por inconstitucionalidade torna sem efeito todos os atos praticados sob o império da lei inconstitucional.

Contudo, a nulidade da decisão judicial transitada em julgado pode ser declarada por via de ação rescisória, sendo impróprio o mandado de segurança (…).” (grifei)

Posteriormente, em 1977, o Supremo Tribunal Federal, reafirmando essa corretíssima orientação jurisprudencial, fez consignar a inadmissibilidade de embargos à execução naqueles casos em que a sentença passada em julgado apoiou-se, para compor a lide, em lei declarada inconstitucional por esta Corte Suprema:

“Recurso Extraordinário. Embargos à execução de sentença porque baseada, a decisão trânsita em julgado, em lei posteriormente declarada inconstitucional. A declaração da nulidade da sentença somente é possível via da ação rescisória. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. (…).” (RE 86.056/SP, Rel. Min. RODRIGUES ALCKMIN – grifei)

Ademais, vale registrar posição do Ilustre doutrinador Gilmar Ferreira Mendes (2005, p.405-406) no sentido de que coisa julgada inconstitucional encontraria guarida no princípio da segurança jurídica, por tratar-se de proteção a ato singular, “em homenagem ao princípio da segurança jurídica, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo (Normebene) e no plano do ato singular (Einzelaktebene) mediante a utilização das fórmulas de preclusão”. Além disso, conclui o ilustre doutrinador (2005, p. 526) que “somente serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade com eficiência geral os ainda suscetíveis de revisão ou impugnação.”.

Dessa forma, é plenamente cabível o uso da ação rescisória para a desconstituição da sentença inconstitucional transitada em julgado[7]. Apesar do Supremo Tribunal Federal não ter se pronunciado acerca do termo inicial do prazo decadencial para o ajuizamento da ação rescisória, o Professor Pedro Lenza (2010, p. 291) entende que o prazo decadencial de 02 anos “deverá ser contado do trânsito em julgado da sentença individual, e não a partir da nova posição do STF”. Caso contrário, estar-se-ia caracterizada a violação aos princípios constitucionais da segurança jurídica e autoridade das decisões do Poder Judiciário.

Igualmente, havendo ato singular individual anterior, além do prazo decadencial de 2 anos, com a ressalva da matéria penal (revisão criminal), a coisa julgada individual deverá ser respeitada e o sistema terá de conviver com as sentenças contraditórias.

Além da hipótese acima descrita, a desconstituição da coisa julgada só encontraria respaldo caso houvesse uma colisão com outros valores constitucionais, situação essa verificada em razão do princípio da razoabilidade e proporcionalidade, e tendo o magistrado considerado que o princípio da segurança jurídica deva ser afastado. Ademais, esta possibilidade de flexibilização da coisa julgada deve ocorrer em situações excepcionalíssimas, uma vez que o Estado de Direito pressupõe o respeito à autoridade da res judicata.

Desse modo, pode-se concluir que o sistema processual terá que conviver com sentenças inconstitucionais, ante a necessidade de preservação da estabilidade das relações jurídicas.

Conclusão

Percebe-se que a Constituição da República observando o princípio da segurança jurídica respeita a coisa julgada desde que essa própria coisa julgada também esteja de acordo com os preceitos contidos na Constituição. Assim, pode-se concluir que a desconstituição da coisa julgada inconstitucional, em tese, não revelaria ofensa ao princípio da segurança jurídica, posto que existem outros princípios no ordenamento jurídico brasileiro, tais como o princípio da constitucionalidade, o qual estabelece que todos os atos proferidos por todos os entes federativos devem observar aos preceitos dispostos na Lei Maior. Todavia, a desconsideração da res judicata deverá ser feita através de ação rescisória (art. 485, V do CPC), observando o prazo decadencial de 02 anos, que deve ter seu termo inicial a partir da decisão judicial inconstitucional transitada em julgado.

Em se tratando de hipótese de inconstitucionalidade que, além de não trazer em seu bojo transgressão a relevante direito fundamental, não mais seja passível de desconstituição através de ação rescisória, estar-se-á diante da situação em que se mostra muito mais razoável a preservação da segurança jurídica como forma de garantia da tutela jurisdicional efetiva, a qual é dever de qualquer Estado que se diga Democrático de Direito.

Desse modo, ante a ultrapassagem do prazo de 02 anos, o sistema jurídico deverá conviver com sentenças inconstitucionais, tendo em vista à garantia da segurança jurídica e à proteção à confiança.

 

Referências
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BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSO CIVIL. RE 328.812-AgR; Relator (a):  Min. GILMAR MENDES; Órgão Julgador: Segunda  Turma; Data do Julgamento: 10/12/2002, Data da Publicação:  DJ de 11.04.2003. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE+328%2E812-AgR%29&base=baseInformativo >. Acesso em 01 ago. 2012.
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Notas:
[1] Ada Pellegrini Grinover, Candido Rangel Dinamarco, Tereza Arruda Alvim Wambier, Garcia Medina, dente outros, seguem o entendimento de Enrico Tulio Liebman.

[2] LIEBMAN, Enrico Túlio apud DIDER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil, volume II, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.

[3] RE 363889 / DF – DISTRITO FEDERAL; Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI; Órgão Julgador: Tribunal Pleno; Julgamento:  02/06/2011; Publicação: DJe-238 – DIVULG 15-12-2011 – PUBLIC 16-12-2011.

[4] Modificação da jurisprudência no direito tributário, p. XXVI.

[5]Art. 485 – A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: V – violar literal disposição de lei”. Barbosa Moreira defende que “lei” deve ser interpretada em sentido amplo, compreendendo, portanto, além das espécies normativas do art. 59 da CF, a própria Constituição (c.f. J.C. Barbosa Moreira, Comentários ao Código de Processo Civil: Lei n. 5860, de 11 de janeiro de 1973, 12. Ed.,p. 130-131).

[7] Recurso Extraordinário. Agravo Regimental. 2. Ação Rescisória. Matéria constitucional. Inaplicabilidade da Súmula 343. 3. A manutenção de decisões das instâncias ordinárias divergentes da interpretação constitucional revela-se afrontosa à força normativa da Constituição e ao princípio da máxima efetividade da norma constitucional. 4. Ação Rescisória fundamentada no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. A indicação expressa do dispositivo constitucional é de todo dispensável, diante da clara invocação do princípio constitucional do direito adquirido. 5. Agravo regimental provido. Recurso extraordinário conhecido e provido para que o Tribunal a quo aprecie a ação rescisória. (RE 328.812-AgR, rel. Min. Gilmar Mendes, unânime, 2ª Turma, DJ de 11.04.2003)


Informações Sobre o Autor

Breno Felipe Rocha Freire

Assistente Jurídico do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba lotado no Gabinete do Procurador de Contas Marcilio Toscano da Franca Filho Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cidade de São Paulo


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