O tema dolo eventual x culpa consciente ganhou grande repercussão após o início do julgamento dos quatro réus envolvidos no processo da Boate Kiss. Passados mais de oito anos desde o trágico incêndio que ocorreu na cidade de Santa Maria – RS em 2013, o caso foi levado à apreciação pelo Tribunal do Júri do Fórum Central de Porto Alegre.
Em dezembro de 2021, os réus foram levados a júri popular e condenados a penas que variam de 18 a 22 anos pelos crimes de homicídio simples com dolo eventual de 242 pessoas e tentativa de homicídio de outras 636 pessoas.
No entanto, antes mesmo da abertura do julgamento, iniciou-se uma disputa doutrinária envolvendo as figuras do dolo eventual e da culpa consciente aplicadas ao caso da Boate Kiss. Muitos doutrinadores e estudiosos do direito já defendiam a tese de que a aplicação do dolo eventual se tratava de um erro.
Previamente à análise das sentenças aplicadas no caso da Boate Kiss, é preciso compreender todos os elementos que envolvem o dolo e a culpa, chegando assim ao ponto que difere o dolo eventual da culpa consciente.
O dolo é entendido como a vontade consciente de praticar uma conduta típica, isto é, uma ação ou omissão que a lei define como crime ou contravenção penal.
Para que se caracterize um crime doloso é preciso que o dolo envolva todos os elementos do tipo penal. No crime de homicídio, por exemplo, o agente precisa desejar matar e deve ter como objeto alguém, uma pessoa.
Além disso, o dolo deve existir no momento da ação, não existindo dolo anterior ou subsequente. Da mesma forma, a vontade do agente deve ser capaz de produzir o resultado, não basta o mero desejo passivo, deve existir uma atuação efetiva do agente em busca do seu objetivo.
De acordo com o artigo 18, inciso I do Código Penal, diz-se crime doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
Logo, para o direito penal brasileiro existem duas espécies de dolo, o dolo direto e o dolo indireto ou eventual. No dolo direto o agente quer atingir o resultado, enquanto no dolo indireto ou eventual o agente, apesar de não querer atingir diretamente o resultado, assume o risco de produzi-lo.
Entretanto, para fins de aplicação da pena não há distinção entre as espécies de dolo, significa dizer que o juiz poderá fixar pena igual para o agente que agiu com dolo direto e para o agente que agiu com dolo eventual.
A culpa, por sua vez, é entendida como o comportamento voluntário, proveniente de imperícia, imprudência ou negligência, voltado a um determinado objetivo que produz um resultado ilícito, que apesar de não desejado poderia ser evitado.
De acordo com o artigo 18, inciso II do Código Penal, diz-se crime culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
A imprudência é caracterizada por uma conduta ativa realizada sem cautela, com precipitação ou insensatez, a negligência é caracterizada pelo descuido ou desatenção quando se era esperado um comportamento contrário e a imperícia representa um agir imprudente no campo da tecnicidade.
Além disso, o parágrafo único do artigo 18 determina que, salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
Em outras palavras, o dolo é presumido, logo não precisa estar expresso no tipo penal, entretanto, para que um agente seja punido por crime culposo é preciso que a forma culposa esteja expressamente determinada no tipo penal.
Ainda, destaca-se o conceito de culpa extraído do Código Penal Militar, o qual estabelece em seu artigo 33 que, diz-se o crime culposo quando o agente, deixando de empregar a cautela, atenção, ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado em face das circunstâncias, não prevê o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evitá-lo.
Existem duas espécies de culpa, a culpa inconsciente e a culpa consciente. A culpa inconsciente ocorre quando o agente não tem previsão do resultado, existe apenas a possibilidade de prever, uma mera previsibilidade. A culpa consciente, por sua vez, ocorre quando o agente tem previsão do resultado, no entanto, acredita sinceramente que tal resultado não se realizará.
Tanto no dolo eventual quanto na culpa consciente o agente tem a previsão do resultado que sua conduta pode provocar. Do mesmo modo, em ambas as situações, o agente não quer o resultado, porém assume o risco de produzi-lo.
Para esclarecer, o agente está em busca de um resultado A e ao persegui-lo, de acordo com sua conduta, percebe ser também possível atingir um resultado B, o agente quer apenas o resultado A e não deseja diretamente o resultado B.
Entretanto, no dolo eventual o agente aceita o resultado, admite a possibilidade de que o mesmo se concretize, mas é indiferente em relação a isso, enquanto na culpa consciente o agente não aceita o resultado e espera sinceramente a sua não concretização.
Na culpa consciente o agente acredita que o resultado B não vai acontecer, confiando nas suas próprias habilidades ou contando com a sorte e no dolo eventual o agente vê o resultado B de modo indiferente.
Para fixar com maior facilidade a diferença entre essas duas figuras, diz-se que no dolo eventual o pensamento do agente anteriormente ao resultado é “dane-se” e na culpa consciente o pensamento do agente posteriormente ao resultado é “danou-se”.
O juiz irá decidir se o agente agiu com dolo eventual ou culpa consciente durante a fase de dosimetria da pena, todavia, nem sempre as provas conduzem a uma definição precisa quando o caso julgado é passível de acolher ambos os institutos. Nesse caso, muitas vezes o juiz opta pelo dolo eventual, para garantir uma punição mais rigorosa.
Apesar de ser difícil ou até mesmo impossível verificar o que se passou na mente do agente para decidir se o mesmo agiu com indiferença em relação ao resultado ou acreditou sinceramente na sua não concretização, é possível verificar uma atitude ou outra através das circunstâncias do fato.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal afirmou que: “a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as situações, ocorre a representação do resultado pelo agente” (HC 101.698-RJ, 1.ª T., rel. Luiz Fux, 18.10.2011).
Quanto ao caso da Boate Kiss, decidiu-se por classificar a conduta dos envolvidos como dolo eventual e posteriormente condená-los por homicídio simples com dolo eventual e tentativa de homicídio.
Elissandro Spohr, sócio da boate, foi condenado a 22 anos e seis meses de prisão, Mauro Hoffmann, sócio da boate, foi condenado a 19 anos e seis meses de prisão, Marcelo de Jesus, vocalista da banda, foi condenado a 18 anos de prisão e Luciano Bonilha, auxiliar da banda, foi condenado a 18 anos de prisão.
O homicídio doloso está previsto no artigo 121 do Código Penal, o qual estabelece pena de reclusão de seis a vinte anos para aquele que matar alguém. Já o homicídio culposo, previsto no parágrafo terceiro do mesmo artigo, estabelece pena de detenção de um a três anos.
No que tange a tentativa de homicídio, salvo disposição em contrário, pune-se com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços, conforme disposto no artigo 14, parágrafo único, do Código Penal.
Entretanto, em regra, a tentativa é aplicável apenas aos crimes dolosos, a única exceção apontada por alguns doutrinadores reside na hipótese de ocorrência da denominada culpa imprópria, quando o agente prevê e deseja o resultado, mas atua em erro vencível.
Além disso, o homicídio doloso é julgado no Tribunal do Júri, composto de um juiz que irá presidir o julgamento e de vinte e um jurados leigos que irão decidir entre a condenação ou absolvição dos acusados. O homicídio culposo, por sua vez, é julgado pelo juiz em uma vara criminal.
Levando-se em conta as diferenças elementares entre o homicídio doloso e o homicídio culposo, em especial no que se refere ao tratamento do agente que comete um ou outro ilícito, muitos estudiosos do direito penal consideraram errônea a condenação dos réus por homicídio simples com dolo eventual e tentativa de homicídio.
Nesse sentido, grande parte da doutrina acredita que, através das sentenças aplicadas, buscou-se apenas alcançar o sentimento de vingança social, optando pela figura que oferecesse uma pena mais severa, e não a correta aplicação do direito penal brasileiro.
Ainda, defende-se a tese de que os condenados não teriam como consentir com a morte de centenas de pessoas, inclusive com a morte de alguns de seus familiares e amigos que estavam presentes no momento da tragédia, e tampouco poderiam consentir com a morte deles próprios.
Em posição contrária, para sustentar o emprego do dolo eventual, em entrevista publicada pela Folha de S.Paulo, o juiz Orlando Faccini Neto, responsável por presidir o julgamento no Tribunal do Júri, assim declarou:
“A plausibilidade do dolo eventual foi afirmada pelo juiz de Santa Maria, que pronunciou os réus. Isso foi confirmado por dois desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; um votou vencido, o que levou a uma nova apreciação ainda no TJ-RS, quando a votação ficou 4 a 4. Houve recurso para o STJ, em que cinco ministros afirmaram a plausibilidade do dolo eventual. Essa plausibilidade foi incrementada por um juízo de certeza dos jurados, que votaram pelo dolo eventual”.