Para provar desvio de função no ambiente de trabalho, o trabalhador deve reunir documentos, testemunhas e registros que demonstrem que está exercendo atribuições diferentes e mais complexas ou com maior responsabilidade do que aquelas previstas no seu contrato ou na sua função original registrada na carteira. Essa prova é fundamental para pleitear na Justiça do Trabalho o reconhecimento do desvio e o pagamento das diferenças salariais correspondentes. A comprovação pode ser feita por meio de e-mails, ordens de serviço, organogramas, testemunhas, folhas de ponto e até mesmo descrição oficial das funções previstas para o cargo ocupado e para o cargo realmente exercido.
O que é desvio de função
Desvio de função ocorre quando o empregado, contratado para desempenhar uma determinada função, passa a executar atividades próprias de outro cargo, geralmente de maior complexidade ou responsabilidade, sem receber a remuneração correspondente a essa nova atribuição.
Esse desvio pode acontecer de forma gradual ou abrupta, com o empregador atribuindo ao trabalhador novas tarefas que, por lei ou por convenção coletiva, são características de outro cargo, de nível hierárquico mais alto. Em geral, o desvio acontece sem que haja alteração formal no contrato de trabalho ou na carteira de trabalho.
Diferente do acúmulo de função, no qual o trabalhador passa a executar funções adicionais sem deixar de exercer as originais, no desvio de função o trabalhador deixa de executar suas tarefas originais e passa a cumprir outras, de um cargo diferente.
Fundamento jurídico do desvio de função
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não trata diretamente do desvio de função, mas o tema é amplamente abordado na jurisprudência da Justiça do Trabalho. O fundamento central está no princípio da isonomia, consagrado no artigo 5º da Constituição Federal, que garante que trabalhadores que executam as mesmas funções devem receber salários equivalentes.
Além disso, o artigo 460 da CLT dispõe que, na ausência de cláusula expressa sobre remuneração, presume-se que o salário deva corresponder ao da mesma função no local de trabalho. Isso reforça o direito do trabalhador a receber salário compatível com as funções efetivamente exercidas.
O desvio de função também contraria o princípio da boa-fé objetiva e pode configurar enriquecimento ilícito por parte do empregador, caso ele se beneficie da mão de obra do empregado sem a devida contraprestação.
Diferença entre desvio de função, acúmulo e equiparação salarial
É essencial diferenciar o desvio de função de outros institutos semelhantes no Direito do Trabalho:
Desvio de função: o trabalhador é contratado para um cargo, mas passa a exercer atividades de outro, geralmente com maiores responsabilidades, sem o correspondente aumento salarial. Exemplo: um auxiliar administrativo que passa a atuar como analista de RH, sem alteração na carteira e sem aumento de salário.
Acúmulo de função: o empregado acumula funções além das que já exercia, sem deixar de executar as tarefas originais. Exemplo: uma recepcionista que passa a fazer também o trabalho de telefonista e assistente administrativo.
Equiparação salarial: quando dois empregados executam a mesma função, com igual produtividade e perfeição técnica, mas um recebe salário inferior ao outro. Nesse caso, o prejudicado pode pleitear equiparação, desde que preenchidos os requisitos do artigo 461 da CLT.
Como reunir provas para comprovar o desvio de função
A prova do desvio de função deve ser robusta e precisa demonstrar a realidade do trabalho exercido, e não apenas o que está registrado nos documentos formais. Os principais meios de prova incluem:
1. Testemunhas
Colegas de trabalho, subordinados ou superiores que tenham presenciado a execução de tarefas diferentes daquelas previstas para o cargo contratado são fundamentais. A Justiça do Trabalho valoriza muito a prova testemunhal.
2. E-mails, mensagens e ordens de serviço
Registros escritos que demonstrem que o empregado recebeu ordens para executar tarefas típicas de outro cargo podem servir como prova clara de desvio funcional.
3. Organogramas e hierarquias internas
Documentos que evidenciem a estrutura da empresa e as atribuições de cada cargo podem ser comparados com as atividades desempenhadas pelo trabalhador.
4. Descrição de cargos
Normas internas da empresa, contratos coletivos e classificações sindicais com a descrição das atribuições de cada função ajudam a evidenciar a discrepância entre o cargo ocupado e o que está sendo exercido.
5. Documentos de avaliação de desempenho ou promoções recusadas
Podem servir como indícios de que o empregador reconhece que o trabalhador exerce funções superiores, mas não formaliza essa mudança.
6. Provas técnicas
Em certos casos, pode-se solicitar perícia técnica sobre as atividades exercidas pelo trabalhador, especialmente quando o conteúdo técnico da função é complexo ou envolve área regulada por conselho profissional.
Como ingressar com ação trabalhista por desvio de função
O trabalhador que comprovar que exerce função diversa daquela prevista em contrato pode ingressar com reclamação trabalhista, pleiteando as diferenças salariais, reflexos em verbas como FGTS, férias, 13º salário, horas extras e até mesmo reconhecimento do cargo exercido.
O processo pode ser ajuizado:
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Com a assistência de advogado particular
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Por meio da Defensoria Pública, quando houver núcleo especializado
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Com a assistência sindical, em alguns casos
O prazo para ingressar com a ação é de até 2 anos após o encerramento do contrato de trabalho, com possibilidade de reivindicar valores dos últimos 5 anos do contrato, conforme previsto no artigo 11 da CLT.
O que pode ser pedido na ação por desvio de função
Ao comprovar o desvio, o trabalhador pode solicitar:
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Diferenças salariais entre o cargo original e o cargo de fato exercido
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Reflexos dessas diferenças no FGTS, 13º salário, férias, horas extras e demais verbas
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Atualização da carteira de trabalho, em alguns casos
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Danos morais, se comprovado constrangimento ou prejuízo relevante à dignidade do trabalhador
Por exemplo, um auxiliar de escritório que passou a exercer tarefas típicas de um analista administrativo poderá pleitear a diferença salarial entre os dois cargos, incluindo reflexos no 13º, FGTS e demais verbas por até cinco anos retroativos à data do ajuizamento da ação.
Papel do sindicato na caracterização do desvio
Os sindicatos têm papel importante na análise e caracterização do desvio de função, já que muitas convenções coletivas trazem a descrição das atividades de cada cargo, bem como os pisos salariais correspondentes.
Além disso, o sindicato pode:
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Fornecer documentos que descrevam os cargos
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Emitir parecer sobre as atribuições exercidas
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Ajudar na mediação do conflito com o empregador
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Oferecer apoio jurídico para a ação trabalhista
O trabalhador deve consultar o sindicato da categoria para obter essas informações e eventualmente instruir melhor sua reclamação.
Quando o desvio de função não gera direito à indenização
Nem todo desvio de função dá direito a diferenças salariais ou indenizações. Há situações em que a jurisprudência não reconhece o desvio com efeitos financeiros:
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Tarefas temporárias, emergenciais ou esporádicas, sem habitualidade
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Desempenho voluntário de atividades superiores sem ordem do empregador
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Atividades diferentes, mas dentro do mesmo nível de complexidade e responsabilidade
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Promoção de fato, com aumento salarial proporcional, ainda que sem alteração formal de cargo
Por isso, é essencial que o trabalhador comprove a habitualidade das tarefas exercidas e a existência de prejuízo ou desigualdade remuneratória clara.
Jurisprudência e entendimentos consolidados
A jurisprudência dos tribunais regionais e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) é firme no sentido de que o desvio de função enseja o pagamento das diferenças salariais. Destacam-se decisões como:
TST – RR 1040-14.2012.5.02.0063
Reconhecimento de desvio de função de trabalhador que exerceu atividades de técnico em eletrônica enquanto estava registrado como auxiliar de manutenção.
TST – RR 2163-35.2010.5.02.0464
Trabalhador contratado como auxiliar administrativo exercia funções típicas de analista, tendo reconhecido o direito às diferenças salariais.
Esses casos mostram que o Judiciário está atento às práticas abusivas que buscam economizar custos à custa dos direitos do trabalhador.
Como o empregador deve proceder para evitar desvio de função
Empregadores devem se atentar à correta descrição de cargos e à fiel execução das tarefas atribuídas a cada trabalhador. Algumas boas práticas para evitar ações judiciais por desvio de função incluem:
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Elaborar e manter atualizadas descrições detalhadas dos cargos
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Promover formalmente o trabalhador que passa a exercer novas funções, com alteração de salário e registro na CTPS
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Reavaliar periodicamente as funções de cada funcionário
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Treinar gestores para respeitar os limites de atribuição de cada cargo
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Negociar mudanças contratuais com o empregado, sempre por escrito
Essas condutas não apenas previnem passivos trabalhistas, como também valorizam o trabalhador e fortalecem a cultura organizacional.
Provas adicionais e estratégias no processo
Além da documentação e testemunhas, o trabalhador pode adotar outras estratégias no processo para fortalecer sua tese:
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Anexar holerites de colegas com cargos similares ao exercido de fato
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Demonstrar que foi impedido de registrar a mudança na CTPS, caso tenha solicitado
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Provar que participou de reuniões, eventos ou treinamentos voltados para o novo cargo
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Solicitar produção antecipada de provas, como perícia ou oitiva de testemunhas-chave
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Pedir ao juiz que intime a empresa a apresentar organogramas ou descrição de cargos oficiais
Quanto mais consistentes e coerentes forem os elementos de prova, maiores as chances de êxito na ação.
Consequências da omissão da empresa
A prática reiterada de desvio de função pode acarretar sérias consequências para o empregador, tais como:
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Condenação ao pagamento de altas somas por diferenças salariais acumuladas
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Imposição de multa por descumprimento de normas coletivas
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Risco de ajuizamento de ações coletivas por parte do sindicato
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Imagem negativa da empresa perante o mercado e os trabalhadores
Além disso, o desvio de função pode ser considerado indicativo de fraude ou má-fé contratual, gerando inclusive repercussões em fiscalizações do Ministério do Trabalho.
Desvio de função e servidores públicos
No serviço público, a prática do desvio de função é vedada de forma ainda mais rígida. De acordo com o entendimento dos tribunais superiores, não é possível o reconhecimento do novo cargo com repercussões salariais se não houver a devida aprovação em concurso público para a função exercida.
Contudo, o servidor pode pleitear indenização pelas funções superiores exercidas, com base na súmula 378 do STJ, que reconhece o direito à retribuição pecuniária correspondente, mesmo sem a alteração formal de cargo.
Perguntas e respostas
Como posso provar que estou em desvio de função?
Com testemunhas, e-mails, ordens de serviço, comparações entre cargos e registros internos que mostrem que você executa tarefas diferentes daquelas previstas no seu contrato.
Desvio de função dá direito a aumento retroativo?
Sim, é possível pedir diferenças salariais dos últimos cinco anos, com reflexos em outras verbas.
Se eu aceitei exercer outra função, ainda posso reclamar?
Sim. Mesmo com aceitação tácita, se houve prejuízo e ausência de remuneração compatível, é possível pleitear judicialmente.
Trabalhador comissionado pode sofrer desvio de função?
Sim. O desvio de função pode ocorrer em qualquer tipo de contrato, desde que haja desequilíbrio entre função registrada e função exercida.
Preciso sair da empresa para entrar com a ação?
Não. A ação pode ser proposta mesmo durante o contrato de trabalho, embora muitas pessoas optem por aguardar a rescisão.
Desvio de função é crime?
Não configura crime, mas é uma infração trabalhista grave, com consequências judiciais e financeiras para o empregador.
Qual a diferença entre desvio e acúmulo de função?
No desvio, o trabalhador muda de função. No acúmulo, ele exerce mais de uma função ao mesmo tempo.
A empresa pode me mandar embora se eu entrar com ação por desvio de função?
A dispensa em retaliação pode configurar dispensa discriminatória. O ideal é consultar um advogado antes de tomar qualquer medida.
Conclusão
O desvio de função é uma prática que, embora comum em diversas empresas, fere princípios básicos do Direito do Trabalho, como a isonomia salarial, a boa-fé contratual e o respeito ao cargo contratado. O trabalhador que percebe estar desempenhando atividades diferentes, e especialmente superiores àquelas previstas em sua função formal, deve reunir provas e buscar orientação jurídica.
A ação trabalhista por desvio de função pode assegurar não apenas o pagamento das diferenças salariais, mas também reflexos em todas as verbas trabalhistas e o reconhecimento do direito ao enquadramento correto. Por outro lado, empresas que valorizam a transparência e a correção na gestão de pessoas evitam litígios e mantêm uma força de trabalho mais motivada e protegida.
Conhecer os seus direitos é o primeiro passo para evitar injustiças no ambiente de trabalho. E quando o reconhecimento espontâneo do empregador não acontece, cabe ao Judiciário restabelecer o equilíbrio e a justiça nas relações laborais.