Resumo: O que é realidade na temática a envolver a “razoável duração do processo”? Pensando diferente: o que pode ser tido como razoável na lida com algo tão surreal como o tempo? A justiça pode adequar-se à modernidade, antes de ser tida como ultrapassada e ineficiente? Qual a verdade por trás da necessidade de se tratar esse assunto? Perguntas estas para as quais o artigo em voga pretende desenvolver e oferecer resposta.
Palavras-chave: Razoabilidade. Tempo. Justiça.
“O tempo libera o homem das inquietações”
Terêncio [1]
No romance “Contato”, o astrônomo Carl Sagan inaugura um dos capítulos com a célebre frase de John Keats, a qual diz que “doces são as melodias que se ouvem; mas as não ouvidas são ainda mais doces” (SAGAN, 1997). Do que não falamos é justo o que mais nos inquieta. A solidão contida na busca pelo conhecimento perturba. Somos conclamados a raciocinar. Carregamos, em nosso âmago, o gene da desconfiança. Para quem quer que seja, a descoberta tem sempre um sabor especial. E, não obstante a tamanha divagação, garantiremos que há determinados assuntos para os quais jamais nos dedicamos a pensar com a cautela requerida, com o precioso e necessário cuidado. Dentre estes, a problemática envolvendo a “razoável duração do processo” é das mais inquietantes.
O que é, ou deixa de ser, o “tempo”? Qual é a sua importância nas nossas vidas? O que pode ser tido como “razoável”, no “tempo” que nos é disponibilizado? Será que é possível que não exista uma resposta para isso? “Como algo tão básico à nossa experiência do mundo físico pode ter uma identidade tão difícil de definir? Ou será que o tempo tem alguma qualidade essencial que a ciência ainda não identificou?” (DAVIES, 2002, p.54). “O silêncio deles é uma eloquente afirmação”, retorquiria Cícero (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, p.417). E, desde quando, silenciar é a melhor resposta?
“Santo Agostinho, famoso teólogo que viveu no século V, observou que sabia muito bem o que era o tempo – até que alguém lhe perguntasse” (DAVIES, 2002, p.56). Acontece que existem concepções distintas. O “tempo” é uma invenção social, uma criação de ordem subjetiva. Para a filosofia, é uma coisa, para a física, é outra. A unidade entre teoria e pensamento reside tão somente na constatação de que um mistério cerca a influência que este detém sobre cada um de nós, no modo como afeta nossa experimentação do mundo. Logo, “tempo”, na completa acepção da palavra, e para os fins do nosso estudo, pode ser definido como o “período contínuo e indefinido no qual os eventos se sucedem e criam no homem a noção de presente, passado e futuro, traduzindo a oportunidade para a realização de algo” (INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS, 2004, p.713).
Contudo, reconhecida a vastidão conceitual, será que é possível ponderar o valor que esse “tempo”, indecifrável e onipotente, possui, em face de um procedimento de natureza jurídica? Qual o “tempo” que uma pessoa pode aguardar até a concretização de um direito? Como deve reagir o Estado diante do clamor social por um serviço público judicial eficiente e eficaz no “tempo”? Existirá uma fórmula capaz de quantificar o peso da expectativa que o “tempo” gera ao ser humano? A lei pode fazê-lo? Sobre isso, quase tudo já fora dito. É um contexto vasto e plural. Porém, das coisas sobre as quais muito se tratou, também muito se perdeu. A procura por algo, às vezes, depende apenas de um recomeço, de um retorno ao início de tudo. E são essas mínimas coisas que nos soam como sendo as mais belas… As melodias ainda não ouvidas tendem a ser mais doces.
Na busca pelo significado do “tempo” para a ciência do Direito, não podemos deixar de cogitar acerca da aula que Wilson de Souza Campos Batalha dá ao “Prólogo” de seu livro:
“O tempo da norma jurídica constitui a maximalização intelectualística da temporalidade estática. Opera mediante cortes no fluxo da temporalidade, que intuímos. Não é a temporalidade existencial, mas a temporalidade normativa, como se fora uma concepção espacializante do tempo, em que este viesse a ser seccionado em parcelas autônomas, ou dividido em lotes inconfundíveis. Mas, a norma, que provém da vida e procura fixá-la em moldes rígidos, à vida retorna e é revivida, a cada passo, através de uma realidade que flui, insta, perdura e se sucede. Os esquemas normativos, fixos e rígidos, caem sobre uma realidade fluida, flexível, num suceder de pessoas, de atos, de fatos, de relações e de situações. Da fixidez dos esquemas normativos e da fluidez e flexibilidade das situações ontológicas surgem os desajustes da temporalidade estática das normas jurídicas e a dinâmica da temporalidade, o “entretempo” jurídico” (BATALHA, 1980).
Roubando parcela da abertura do conto “Cidade de vidro”, do livro “A trilogia de Nova York”, de Paul Auster, nos atreveremos a repercutir o que escreveu esse autor, uma vez que “a questão é a história em si, e não cabe à história dizer se ela significa ou não alguma coisa” (AUSTER, 1999, p.9). E a narrativa histórica relata que a ideia alardeada e vendida pelo neoliberalismo deixava bastante claro que o universo social e econômico dos dias correntes é agressivo e veloz demais para que a burocracia e o maquinário de um Estado secularmente agigantado possam acompanhar. A Justiça trazia uma dificuldade para cada solução, de forma que “a legalidade e a legitimidade, características da modernidade, deram espaço à operatividade e à eficácia” (DUPAS, 2005, p.154). “A legitimação desse processo é tentada pelo ‘autoritarismo da eficácia’, uma espécie de autolegitimização que repousa na racionalidade dos especialistas e daqueles que controlam os instrumentos de poder, incluindo a mídia” (DUPAS, 2005, p.162). Para David Harvey (2006, p.210), “o efeito geral é, portanto, colocar no centro da modernidade capitalista a aceleração do ritmo dos processos econômicos e, em consequência, da vida social”. “Diante deste paradoxo somos obrigados a reconhecer que não é a realidade que está em crise e sim nosso modo de compreendê-la e de avaliá-la” (DE MASI, 2000, p.28).
Certo mesmo é que, ou nos adaptamos a essa realidade, marcada pela instantaneidade e pela volatilidade, ou, simplesmente, estaremos fora do novo “jogo” jurídico. Nas considerações de Alphonse de Lamartine, “o homem não tem porto, o tempo não tem margem; ele corre e nós passamos” (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, p.648). E esse “tempo”, imaterial, inconstante e indefinível, revelou-se como um dos ativos mais preciosos do universo profissional e pessoal de nossas vidas, de modo que “a ética exige ultrapassarmos o ‘eu’ e o ‘você’ para chegarmos à lei universal, ao juízo universalizável, ao ponto de vista do espectador imparcial ou observador ideal, ou como quer que o chamemos” (SINGER, 2002, p.34).
Zygmunt Bauman, citando Hans Jonas, acresce que: “Os momentos podem ser usados de forma sensível ou desperdiçados. Contamos os dias e os dias contam” (BAUMAN, 2008, p. 299). Vamos, então, esquecer que existe um “tempo” predeterminado para tudo? Que o “tempo” é a coisa mais preciosa que podemos “gastar”? Que as “badaladas” do relógio nunca cessam? “Para ser mais exato, a vida tem valor e os dias têm peso porque nós, humanos, somos conscientes de nossa mortalidade. Sabemos que iremos morrer e que nossa vida, para citar Martin Heidegger, significa viver em direção à morte” (BAUMAN, 2008, p.298).
Por isso é que o “tempo” do passado, perdido e ultrapassado que está, não pode mais ser considerado, ou sequer relembrado, nas experiências com o “tempo” do presente. Não há completude de um para com o outro, mas sim um inevitável choque. Tudo o que nos cerca tem a marca da efemeridade. Já disse Samuel Taylor Coleridge: “A paixão cega nossos olhos, e a luz que a experiência nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás” (GUARACY, 2001, p.171). O discurso foi preparado: o Judiciário é lento, não atende às reivindicações sociais, portanto merece ser renovado, e o Estado, por intermédio de sua atividade legiferante, tem o dever de reformar as leis, de inserir na ordem do dia das discussões parlamentares a questão do “tempo”. O motivo era bastante claro: o remodelado direito rejeita como sem valor tudo o que não se ajusta aos esquemas previamente determinados pelo “império” da pós-modernidade.
E a percepção que temos, ou colocando de outra forma, tínhamos da realidade que nos cerca foi alterada para justificar a transformação em curso. “Aceitaremos que o direito evoluiu, que a solução de hoje não era a de ontem; mas invocaremos o ‘melhor fundamento’ da decisão nova; e contra este ‘progresso’ do direito, nenhuma razão, acreditamos, é capaz de resistir” (OST, 2005, p.182). Como meditava Steve Jobs, “você não pode conectar os pontos olhando para frente; você só pode conectar os pontos olhando para trás. Assim, você precisa acreditar que os pontos irão se conectar de alguma maneira no futuro” [2]. Mas e quando o passado não consegue explicar nem o presente? Quando não há mais exemplos a serem seguidos? Quando o dia seguinte é a maior das incógnitas? Esses pontos ainda podem vir a se encontrar em algum lugar? A montanha havia sido superada, e, mesmo assim, seguíamos sem a mínima visão de qualquer horizonte… Num átimo, percebemos que os problemas mudaram, e que os que surgiram, em substituição aos anteriores, eram ainda mais graves. Poder-se-ia dizer que é mais correto raciocinar o Judiciário dos dias de hoje como uma tentativa frustrada de pensar historicamente o presente em uma época em que já esquecemos como pensar dessa maneira.
Quem assiste a tamanha transformação é jogado de um lado para outro, numa disfarçada “nostalgia pelo presente”. As coisas são momentâneas, perdidas de vitalidade, fotográficas, e, mesmo assim, estamos apegados a elas. Um irreprimível impulso mais profundo nos diz que algo não é correto, todavia somos levados a um exercício de paciência com as descontinuidades, vestindo as máscaras de um “tempo” provisório, adicionado, não se sabe como, nem por que, à lista de prioridades essencialmente pertinentes do nosso cotidiano (JAMESON, 2007). “E como poderia ser diferente num tempo em que já não existe nenhuma ‘lógica mais profunda’ para se manifestar na superfície, num tempo em que o sintoma se transformou na própria doença (e, sem dúvida, vice-versa)?” (JAMESON, 2007, p.16). De toda forma, “as consequências culturais e éticas dessa grande transformação ainda não começaram a ser exploradas com seriedade, e, portanto, só podem ser sugeridas” (BAUMAN, 2008, p.147).
Para o escritor Victor Hugo, “o futuro é um fantasma de mãos vazias, que tudo promete e nada possui” (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, p.658). Reginaldo Souza Santos (2010) situa pensamento em torno de que se conhece pouco ou nada do passado, e que também nada se pode dizer do futuro. “Por essa razão, estamos falando muito pouco do futuro, um futuro que só tem qualquer sentido se o pensamento acerca dele tiver como conteúdo o bem-estar da humanidade” (SANTOS, 2010, p.157). Só se nega o que se conhece, e “como não o conhecemos – de fato ou propositalmente – então o futuro naquele sentido está comprometido” (SANTOS, 2010, p.157). “Arrastado para diante, sempre voltando seus olhares desesperados para o passado, parecemos entrar de fato no futuro” (OST, 2005, p. 307). E que futuro.
Primafacie, diremos que a crise existe e que está em curso. Abrange valores outrora enaltecidos como se inabaláveis o fossem. Não existem mais certezas, e a definitividade aderna ao sabor do vento. O farol da antiguidade clássica segue apagado. É esta uma nau perdida em meio à repentina tempestade neoliberal. Pilares caem, certezas vacilam, desabam os céus. Temos que seguir adiante, muito embora nos “falte o chão”. “Conversando com os nossos próprios botões”, poderíamos mesmo alegar que se trata de uma situação ímpar, nascida no interior de uma revolução que não sabemos quando começou, tampouco desconfiamos quando é que haverá de terminar. E é nessa era, em que a razão lúcida constata seus limites, que as peças principais de um jogo de damas adquirem, sem qualquer aviso prévio, a liberdade de movimentos permitida em um jogo de xadrez, utilizando caminhos inusitados, pulando outras peças e inventando elas mesmas seus novos papéis e recursos (DUPAS, 2005). O “jogo” do presente não é mais sequer o de damas ou o de xadrez, como se deu em algum lugar do passado, agora ele é outro, inteiramente novo e demasiadamente radical. Para este, especificamente, ninguém ainda leu o manual. Não se sabem quais as suas regras. E, na precisa colocação de François Ost (2005, p.337), em reprodução da máxima de Savatier, vê-se que “os juristas de hoje traçam suas linhas sobre a areia de instituições movediças”. Para surpresa de todos, eis que é declarado, em voz firme e autoritária: “xeque-mate”… O “tempo” venceu.
No entanto, diante de uma situação dessas, o que é ou deixa de ser “Justiça”? Não sabemos. E haverá quem o saiba? Costumava salientar Diderot que, “se você lembrar que um problema existe, certamente será encarregado de resolvê-lo” (GUARACY, 2001, p.159). Aceitamos o encargo… E que encargo. Para tanto, afirmar-se-á, sem receio, que é uma palavra de muitas acepções. Trata-se da mais importante e complexa página do grande livro da ciência jurídica. Segundo o raciocínio de Terêncio, “tantas cabeças, quantas sentenças: cada um tem o seu modo de ver” (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, 435). E esse é um conceito aberto, em permanente construção. Dependendo da pessoa, do lugar, do momento, do caso concreto, pode vir a assumir as mais variadas conjeturas. É uma definição a se traduzir na mais bela expressão do que venha a ser igualdade e liberdade. É um determinante social único, à medida que envolve bens, sentimentos, pessoas. É a oportunidade de se realizar algo construtivo e de estima em prol da existência humana. É um dever sagrado. É a ocasião, face aos perseguidores e opressores do dia a dia, de dizer que existe um escudo protetor, de avisar que a lei é maior, de demonstrar que a verdade sempre prevalece, de recordar que ninguém pode ir de encontro a esse primado da coletividade. Enfim, é um modo de repetir, com determinação e orgulho, quantas vezes forem necessárias, bem como para quem quiser ouvir, que há sim esperança em um destino melhor. “Justiça” é tudo isso, e um pouco mais. Não há quem possa atribuir-lhe uma significação absoluta e universal. Não há quem possa resumi-la a um punhado de palavras.
Pouco se fala a respeito de que “Justiça” é, também, e acima de tudo, uma experiência. Quando um capitão, na época das grandes expansões marítimas, necessitava de um rumo, ele se voltava para as estrelas. E isso não se dava a toa. O referencial, a partir do navio e do mar não resolvia o problema, pois poderia conduzir a imprecisões. Faltava sopesar outra variável, tão importante quanto, qual fosse o ponto de vista do observador. Não havia margem para erros. De maneira que as estrelas, imóveis, passivas, enigmáticas, belas, influíam diretamente no trajeto da viagem, funcionando como a mais perfeita “bússola” daquele momento histórico. Eram elas espectadores e, ao mesmo tempo, dirigentes do caminho a ser trilhado.
Tomando o exemplo acima como analogia, o formato de nossa vida na atualidade é afetado pela aceleração dos ritmos, pela tecnologia, pela prevalência do mercado, pela individualização, o que condicionou a reescrita do que venha a simbolizar dignidade e razoável duração do processo, com esses aspectos galgando a patamar de “paisagens” de um cotidiano em que impera a mudança, a incerteza, a dinamicidade. Não se acham precedentes válidos a nos fornecer qualquer informação do que pode ser a Justiça de daqui a uma década, um ano ou um mês. E essa permanentemente e estigmatizada particularização da vida, joga, e pesado, com os valores construídos em séculos de lenta estratificação jurídica, conduzindo-nos a uma realidade sem referenciais, roubando-nos a oportunidade de “buscar nas estrelas” a passagem para o amanhã.
Logo, instaura-se um inacreditável paradigma. “Justiça” é, ou não é, a que presenciamos? É, ou não é, a que se realiza nos tribunais? É, ou não é, aquela que leva anos a fio para ser efetivada? Talvez não mais, uma vez que é o próprio Judiciário que se vê às voltas com um paradoxo impossível de ser apaziguado. Abalado em sua estrutura, mitigado nas suas funções, agigantado por seu plexo de atribuições e questionado quanto aos seus resultados, foi ele atingido de morte pela “flecha” do caráter mutacional e fluido da pós-modernidade. Cambaleia por não mais conseguir atender plenamente à sua missão jurisdicional, dissolvendo-se em meio a ritos e prazos que não condizem com a realidade. E “a interrogação fustiga o direito com todo o chicote: é sua capacidade de instituir o laço que é questionada mais ainda que sua aptidão para garantir a segurança jurídica” (OST, 2005, p. 307-308).
Somente agora é que entendemos que, do ponto de vista da experiência, a nossa opinião sobre o que é ou deixa de ser “Justiça” foi corrompida. Karl Marx, em sua genialidade, refletia que, “há pessoas que não levam em conta a realidade, mas em compensação a realidade também não as leva em conta” (GUARACY, 2001, p.171). “Quem nunca caiu, não tem ideia exata do esforço que tem de ser feito para se manter de pé” (Multatuli. SHOR, 2000, p.26). E o Direito teve que se adaptar. O pós-modernismo se deu abruptamente. A vida não parou para que as mudanças pudessem ser efetivadas.
“A pós-modernidade chega para se instalar definitivamente, mas a modernidade ainda não deixou de estar presente entre nós, e isto é fato. Suas verdades, seus preceitos, seus princípios, suas instituições, seus valores (impregnados do ideário burguês, capitalista e liberal), ainda permeiam grande parte das práticas institucionais e sociais, de modo que a simples superação imediata da modernidade é ilusão. Obviamente, nenhum processo histórico instaura uma nova ordem, ou uma nova fonte de inspiração de valores sociais, do dia para a noite, e o viver transitivo é exatamente um viver intertemporal, ou seja, entre dois tempos, entre dois universos de valores – enfim, entre passado erodido e presente multifário. A pós-modernidade, não sendo apenas um movimento intelectual ou, muito menos, um conjunto de ideias críticas quanto à modernidade, vem sendo esculpida na realidade a partir da própria mudança dos valores, dos costumes, dos hábitos sociais, das instituições, sendo que algumas conquistas e desestruturações sociais atestam o estado em que se vive em meio a uma transição. […]. Em poucas palavras, quer-se dizer que se sabe menos sobre a pós-modernidade do que efetivamente acerca dela se especula. O enevoado diáfano domina o cenário a ponto de tornar-se turva a visão para contemplar o horizonte.” (BITTAR, 2008, p. 133-134).
O Estado falhou ao construir um sistema intrincado, frio, hermético e pesado como o é a Justiça que testemunhamos. Todo equívoco, por que menor que pareça, tem seu preço. Arcamos com as consequências. Descobriu-se que não existe escolha e que nada mais tenderia a ser como antes. E a luz ao final do túnel foi ficando cada vez mais exígua, distante e difícil de ser alcançada… Repensar a Jurisdição, reinventar o direito, ponderar sobre o aspecto temporal, sopesar o estigma da efetividade das decisões e incluir a variável humana nessa intrincada equação não são “castelos no ar”, nem encerram discursos vazios, tampouco representam uma mera saída para o colapso estrutural vivenciado, mas estes constituem os próprios requisitos de sobrevivência do Poder Judiciário na época vigente. Até porque o espectador, o cidadão comum, o ser humano que sofre e padece no extremo dessa relação deteriorada, perdeu a paciência e começa a se insurgir contra a cena mal redigida, da qual também é ator, não comungando com a prestação jurisdicional demorada e ineficiente, que lesa a todos e que se perde em meio ao rarefeito “tempo” da vida.
Segundo John Maynard Keynes, “a verdadeira dificuldade não está em aceitar ideias novas, mas em escapar às ideias antigas” (GUARACY, 2001, p.97). De maneira que o grande desafio envolvendo o futuro da ciência jurídica será o teste último da nossa capacidade para prever as mudanças e guinadas da sociedade, enquanto se fazem as tentativas de edificar formas de resolver as contendas e de apaziguar discórdias a um custo menor e a uma velocidade maior, havendo de germinar, no seio dos operadores do direito, uma inédita visão sobre o que não mais atende às expectativas do usuário final do Judiciário. “Se o Direito pressupõe certa estabilização de valores majoritários ou consensuais para que a norma exerça seu poder de escolha de conteúdos normativos, a pergunta, num momento transitivo, acaba sendo: quais os consensos possíveis num mundo em transformação?” (BITTAR, 2008, p. 135).
O discurso mudou – teve que ser mudado e, quer gostemos ou não, continuará mudando -, passando a registrar que o “tempo” é importante e que deve sim ser pensando e devidamente ponderado no trato dos assuntos judiciais. Tal lição, herdada de um instante cada vez mais acelerado e ausente de sentido, determinou o “manifesto” da transformação. E, como a lei reflete a sociedade, é daí que advêm as reformas constitucionais e processuais destinadas a tentar infligir caráter mais dinâmico, mutacional e célere ao funcionamento do sistema Judiciário. José Saramago dizia que “não devemos ter pressa, mas não podemos perder tempo” (GUARACY, 2001, p.192, adaptado). E, sob essa óptica, a “razoável duração do processo” assumiu o “centro das atenções”.
Duína Porto Belo (2010a) reconhece quatro feições diferentes à redefinição do conceito de acesso ao Judiciário, a saber: a) a do “leigo”, a qual se prende à mera possibilidade de ingressar em juízo, de estar diante de um magistrado, havendo notória confusão entre essa oportunidade de se fazer presente a uma instituição do Judiciário, como se efetiva realização da almejada justiça o fosse; b) “técnico-jurídica”, que sob uma óptica solene, remete à formalização do processo, à ritualização procedimental; c) “sociológica”, a traduzir a missão, ou, melhor dizendo, esperança da coletividade na resolução da pendência ou conflito, ensejando a promoção da paz social; e d) “filosófica”, que aponta a existência de uma atribuição metafísica ao Poder julgador, onde a justiça, enquanto sentimento, não dependeria apenas de juízes estatais, mas sim de plausibilidade, da devolução à sociedade, em consequência dos investimentos estatais realizados, de um meio apto a não permitir a perpetuação das desigualdades e das iniquidades.
A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, foi a responsável pela inserção, no artigo 5º, da nossa Lei Maior, o inciso LXXVIII, que disciplina: “a todos, no Âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Destarte, o “tempo” passou a representar o preceito e a diretriz do Poder Público, quando do atendimento das demandas da sociedade, e da solução de suas controvérsias. “É um reforço normativo resultante da busca pelo rompimento das barreiras que travam o efetivo acesso à justiça, dentre as quais a morosidade processual se sobressai” (BELO, 2010b, p.109). Pode-se, em conseguinte, pontuar que “sua elevação ao posto de garantia constitucional e, mais ainda, de direito fundamental com aplicabilidade imediata, irradia-se por todo o sistema legislativo, doutrinário e jurisprudencial, no sentido de vedar a elaboração de leis que tragam lentidão na solução dos processos e interpretações que afrontem o princípio da razoável duração do processo” (BELO, 2010b, p.109).
Não foi por menos que o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, enquanto Presidente da Comissão de Juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, dentre as justificativas para a possível mudança, escreveu o seguinte:
“William Shakespeare, dramaturgo inglês, legou-nos a lição de que o tempo é muito lento para os que esperam e muito rápido para os que têm medo. Os antigos juristas romanos, por sua vez, porfiavam a impossibilidade de o direito isolar-se do ambiente em que vigora, proclamando, por todos, Rudoolf Jhering no seu “L.espirit Du droit romain”, que o método imobilizador do direito desaparecera nas trevas do passado. Essas lições antigas, tão atuais, inspiraram a criação de uma Comissão de Juristas para que, 37 anos depois do Código de 1973, se incumbisse de erigir um novel ordenamento, compatível com as necessidades e as exigências da vida hodierna. É que, aqui e alhures, não se calam as vozes contra a morosidade da justiça. O vaticínio tornou-se imediato: “justiça retardada é justiça denegada” e com esse estigma arrastou-se o Poder Judiciário, conduzindo o seu desprestígio a índices alarmantes de insatisfação aos olhos do povo. Esse o desafio da comissão: resgatar a crença no judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere” (BRASIL, 2010b, p.7, grifos nossos).
Alexandre de Moraes (2007) enxerga certa imprecisão no conceito de “razoável duração do processo”, principalmente por reconhecer que este já estava contemplado no texto constitucional, seja dentro da perspectiva do devido processo legal, seja na anterior previsão do princípio da eficiência, enquanto direcionada às ações e atividades da Administração Pública. De certa forma, soa mais como uma simplória satisfação ao reclame social por mudanças, algo preso tão somente ao plano teórico, como se as palavras pudessem se fazer valer na realidade, haja vista que, difusamente, na própria Carta Magna e em várias legislações esparsas, sempre existiram mecanismos legais devotados a acelerar a percepção que se tenha da prestação jurisdicional.
Conforme esse autor: “os processos administrativos e judiciais devem garantir todos os direitos às partes, sem, contudo, esquecer a necessidade de desburocratização de seus procedimentos e na busca de qualidade e máxima eficácia de suas decisões” (MORAES, 2007, p.96). “O sistema processual judiciário necessita de alterações infraconstitucionais que privilegiem a solução dos conflitos, a distribuição de Justiça e maior segurança jurídica, afastando-se tecnicismos exagerados” (MORAES, 2007, p.96-97).
Sintetizando, “a melhor tradução para o significado da razoável duração é a que assevera o direito ao processo sem dilações indevidas, justo, em tempo hábil, considerados alguns critérios como a complexidade da causa e o comportamento das partes e das autoridades” (BELO, 2010a, p.66). “É claro que não se pode confundir duração razoável com celeridade a todo custo, sob pena de que ao argumento de uma rapidez exacerbada ponha-se em risco a segurança jurídica” (SANTANA, 2009, p.80). “O razoável seria assim o que não discrepasse da média, do tempo ordinário de tramitação” (ARRUDA, 2006, p.294). “Portanto, o direito à efetividade da jurisdição nada mais é do que o direito de exigir do estado a prolação de justa decisão, em prazo adequado de forma a atuar eficazmente no plano dos fatos” (RODRIGUES, 2010, p.90). E, é com isso em mente, que o “tempo” deve sim integrar quaisquer tentativas de aperfeiçoamento do Judiciário, haja vista que “o Estado-legislador, enquanto destinatário do comando constitucional, tem o dever de estipular um sistema normativo processual compatível com a preservação desse direito fundamental, abstendo-se de instituir ritos procedimentais muito complexos e prazos demasiadamente longos” (BELO, 2010b, p.110).
Reproduziremos o que certa vez considerou Sêneca no tocante ao “tempo”: “A maior parte de nossa vida passa enquanto estamos fazendo as coisas erradas, uma parte enquanto não estamos fazendo nada, e a vida toda enquanto não estamos perdendo tempo” (SHOR, 2000, p.65). A Justiça, por causa de seus próprios dilemas institucionais, e, porque também não dizer, existenciais, não pode inviabilizar a realização das mais altas aspirações da cidadania. Não pode contrapor-se aos sonhos de quem quer que seja. Não pode e não deve, de maneira alguma, levar as pessoas a se desesperarem e a perderem seu precioso “tempo”, “arremessando-as ao calabouço angustiante do aguardo quase sem fim, que transforma esperança em subserviência” (AYOUB, 2005, p.4, adaptado). “Esperar” e “frustrar” constituem verbos que não integram o vocabulário de qualquer sistema jurídico que possa vir a ser tido como digno ou respeitável. E a mera existência de episódios a serem traduzidos em assertivas do tipo “ganhar e não levar” e “ter um direito e dele não poder usufruir” muito bem expressa a falência desse projeto, onde a lentidão prestacional leva o Estado a conspirar contra a própria sociedade a que deveria servir. Redigir leis que assegurem a “razoabilidade” da persistência de um conflito de interesses de nada adianta se a palavra, embora bonita, surja apenas como ficcional, como pouco efetiva, como morta de valor. Enfim, teoria que refoge à prática não interessa a ninguém, sobretudo quando atrapalha, prejudica e desafia a manutenção da ordem e da paz. E o grande medo a nos flagelar é que não se tenha mais “tempo” suficiente, que a eternidade tenha vencido e que o combate tenha sido derradeiramente perdido. Como na poesia de Rossetti: “Olha-me no rosto; meu nome é Poderia-ter-sido. Também sou chamado de Não-mais, Tarde-demais, Adeus” (BARELLI; PENNACCHIETTI, 2001, p.636). E isso, por si só, já é motivo suficiente para revolta. Um forte ensejo para que se inicie a profunda reflexão.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Thiago Nóbrega Tavares
Advogado Especialista em Direito Tributário e Mestre em Ciências Jurídicas