Contestação Como Meio Apto A Elidir A Estabilização Da Tutela Antecipada Antecedente

Amanda Karine Santana Dos Santos[1]

Resumo: A estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente é tema de grande importância e controvérsia no mundo jurídico, principalmente quando a análise se refere aos meios processuais aptos a impedir a realização desse instituto. Diante de tal celeuma, o objetivo do presente artigo é abordar a viabilidade e os benefícios de aceitar a contestação como meio processual capaz de elidir a estabilização da tutela antecipada antecedente. Para a verificação das questões essenciais ao tema, a metodologia utilizada foi a pesquisa em doutrina e jurisprudência. Como resultado, constatou-se a posição majoritária dos juristas, bem como de uma das turmas do Superior Tribunal de Justiça no sentido de reconhecer outros meios processuais de impugnação, além do recurso, com aptidão para evitar que uma decisão que concede tutela antecipada de forma antecedente estabilize seus efeitos. Ao final, concluiu-se que, através de uma interpretação sistemática e teleológica do art. 304 do Código de Processo Civil, que disciplina o mecanismo da estabilização, é possível aferir que a contestação se adequa aos fins propostos pela norma, bem como assegura o cumprimento das garantias processuais previstas constitucionalmente, além de trazer alguns benefícios ao modelo de processo contemporâneo.

Palavras-chave: Contestação. Estabilização. Impugnação. Tutela antecipada antecedente.

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Abstract: The stabilization of the anticipated guardianship previously required is a topic of great importance and controversy in the legal world, especially when an analysis refers to the procedural means able to prevent the realization of this institute. In the face of such a stir, the objective of this article is to address the feasibility and benefits of accepting a challenge as a procedural means capable of preventing the stabilization of early protection. To verify the essential questions on the theme, the methodology used was to search for doctrine and jurisprudence. As a result, it finds a majority position of the jurists, as well as one of the classes of the Superior Court of Justice with no sense of registration, other means of impugnation process, in addition to an appeal, in an attempt to prevent a decision that gives advance protection in advance stabilize its effects. In the end, it was concluded that, through a systematic and teleological interpretation of art. 304 of the Code of Civil Procedure, which discipline or stabilization mechanism, it is possible to verify that a contestation is adequate for purposes proposed by the rule, as well as guarantee or fulfillment of constitutionally processed procedural guarantees, in addition to presenting some benefits for the modern process model .

Keywords: Contestation. Stabilization. Impugnment. Advance tutelage antecedent.

 

Sumário: Introdução. 1 O devido processo legal e os princípios do contraditório e da ampla defesa. 1.1 Meios de defesa no Processo civil. 2 Tutela Antecipada. 2.1 Tutela antecipada requerida em caráter antecedente. 2.2 Caráter excepcional do provimento inaudita altera parte. 3 Estabilização da técnica antecipatória antecedente. 3.1 O modelo adotado na França e na Itália. 3.2 Legislação Brasileira. 3.2.1 Condições de cabimento. 3.2.2 Efeitos. 4 Meios de impugnação aptos a elidir a estabilização da tutela antecipada antecedente. 4.1 Interpretação sistemática e teleológica do art. 304 do CPC. 4.2 Contestação como meio processual apto a impedir a estabilização da tutela antecipada antecedente. 4.3 Benefícios da ampliação dos meios de impugnação. Conclusões. Referências.

 

INTRODUÇÃO

No Estado Democrático de Direito contemporâneo, o modelo processual civil pressupõe um processo justo e equitativo, no qual é assegurado às partes a observância do devido processo legal, direito fundamental consagrado no art. 5º, inciso LIV da Constituição Federal Brasileira.

Nesse cenário, os princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5°, LV, CF/1988) apresentam-se como verdadeiros corolários para a concretização da garantia fundamental a um processo devido.

Na dialética processual formada pelos princípios do contraditório e da ampla defesa, o diploma processual civil assegura ao réu, em processo de conhecimento, a oportunidade de defesa através da contestação e reconvenção.

Não obstante a sistemática garantidora, há casos excepcionais em que o contraditório será postecipado, como ocorre nas decisões que concedem tutela antecipada, fundadas em juízo de cognição sumária, em razão da urgência do direito pleiteado.

Desse modo, o processo deve ser estruturado de maneira a permitir a adequada relação entre a prestação dos direitos materiais, que não comportam a espera do tempo despendido para a cognição aprofundada do litígio, e as técnicas processuais de defesa.

Com o desígnio de antecipar os efeitos concretos de uma sentença de mérito, o novo Código de Processo Civil inovou no ordenamento jurídico ao prever a técnica da estabilização da tutela antecipada antecedente (art. 304 do CPC), inspirada em ordenamentos processuais estrangeiros, como o francês e o italiano.

Assim, alcançado o provimento provisório desejado pela parte, prescinde-se da própria decisão final típica da cognição exauriente.

Nesse sentido, a norma legal dispõe que a não interposição de recurso contra a tutela antecipada concedida em caráter antecedente terá como efeito a extinção do processo.

Nessa perspectiva, em homenagem aos princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, a leitura do art. 304 do diploma processual civil deve ser feita à luz da interpretação sistemática e teleológica, para um exercício democrático do processo.

É nesse contexto que nasce a importância de analisar meios de impugnação aptos a elidir a estabilização da tutela antecipada de caráter antecedente, entendendo que não só o recurso tem o condão de evitar a estabilização da decisão que concede a tutela antecipada antecedente.

Diante do exposto, o presente artigo tem como escopo trazer a lume subsídios colhidos na doutrina e jurisprudência acerca da contestação como meio processual apto a impedir a estabilização da tutela antecipada antecedente e os benefícios trazidos pela interpretação extensiva do art. 304 do CPC.

Em linhas gerais, a escolha do tema se deu em razão da decisão da 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça admitindo, por meio de uma interpretação sistemática e teleológica do art. 304 do Código de Processo Civil, que a tutela antecipada antecedente (art. 303 do CPC) somente se torna estável se não houver nenhum tipo de impugnação formulada pela parte contrária, de forma que a mera contestação tem força de impedir a estabilização.

Para a confecção desse estudo utilizou-se o método dedutivo, tendo como base as fontes primárias e secundárias, pertinentes ao assunto.

Com o intuito de compreender a problemática, a presente artigo estrutura-se em quatro capítulos, apresentando-se no primeiro o conceito do devido processo legal e dos princípios do contraditório e da ampla defesa, capazes de garantir instrumentos hábeis à efetivação dos direitos fundamentais esculpidos pela atual ordem constitucional, bem como estuda-se os meios de defesa no processo civil que garantem a realização de tais preceitos.

No segundo capítulo, examina-se a tutela antecipada, analisando, especificamente, a tutela antecipada requerida em caráter antecedente e explicando o caráter excepcional desse provimento inaudita altera parte.

No terceiro capítulo, é analisada a estabilização da técnica antecipatória antecedente, mencionando o modelo adotado na França e na Itália, bem como a legislação brasileira referente ao assunto, especificando as condições de cabimento do instituto da estabilização e os seus efeitos.

Por fim, no quarto capítulo, estuda-se os meios de impugnação aptos a elidir a estabilização da tutela antecipada antecedente, propondo uma interpretação sistemática e teleológica do art. 304 do CPC e a contestação como meio processual apto a impedir a estabilização da tutela antecipada antecedente, além de trazer à lume os benefícios da ampliação dos meios de impugnação.

 

1 O DEVIDO PROCESSO LEGAL E OS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA

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O sistema jurídico dos Estados Democráticos de Direito rege sociedades complexas, formadas por uma infinidade de culturas e religiões, de modo a ser impossível prever normativamente todas as situações jurídicas decorrentes das relações humanas.

Dessa forma, os princípios jurídicos servem para nortear a atividade interpretativa e a aplicação do direito positivo.

O conceito clássico de princípio é ensinado por Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual: “princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico.” (MELLO, 2010, p. 53).

Nessa toada, os princípios exprimem uma finalidade e delimitam um estado ideal a ser buscado pelo intérprete.

No Brasil, o modelo de processo civil contemporâneo, desenvolvido à luz de um Estado Democrático de Direito, constitui-se de princípios processuais previstos na Constituição Federal (CF).

É nesse sentido o art. 1º do novel Codex processual ao dispor que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado de acordo com os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República.

Nesse viés, Theodoro Júnior (2018, p. 85) assevera que tais princípios inspiram o processo moderno e “propiciam às partes a plena defesa de seus interesses, e ao juiz, os instrumentos necessários para a busca da verdade real, sem lesão dos direitos individuais dos litigantes”.

A base do próprio Estado de direito exige um processo pluralista, participativo, isonômico e justo.

A Constituição de 1988, em seu art. 5º, inciso LIV, consagra, como princípio-base do processo, o devido processo legal, ao prever que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Tal garantia constitucional remonta da Magna Carta de João Sem Terra, em 1215, em que pese a expressão “devido processo legal” só tenha surgido em Lei Inglesa no ano de 1354.

É certo que a concepção do termo foi modificada ao longo da história, notadamente em razão do contexto político e social então vigente.

Atualmente, a noção de devido processo legal deve ser entendida como garantia constitucional a um processo justo, equânime e efetivo, o que abrange tanto uma aplicação adequada do direito positivo como uma concretização a demais direitos e garantias processuais.

Deve-se atentar, ainda, que o devido processo legal também se aplica como fator limitador do Poder de legislar do Estado, além de garantir o respeito aos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares.

Cassio Scarpinella Bueno, ao comentar sobre o referido princípio, assim preleciona: “O processo deve ser devido porque, em um Estado Democrático de Direito, não basta que o Estado atue de qualquer forma, mas deve atuar de acordo com regras preestabelecidas e que assegurem, amplamente, que os interessados na solução da questão levada ao Judiciário exerçam todas as possibilidades de ataque e de defesa que lhe pareçam necessárias, isto é, de participação. O princípio do devido processo legal, nesse contexto, deve ser entendido como princípio regente da atuação do Estado-juiz, desde o momento em que ele é provocado até o instante em que o mesmo Estado-juiz, reconhecendo o direito lesionado ou ameaçado, crie condições concretas de sua reparação ou imunização correspondente.” (BUENO, 2018, p. 61).

Nessa linha de intelecção, o preceito constitucional em tela deve ser analisado sob dois aspectos, quais sejam: o procedimental e o substancial.

O devido processo legal procedimental ou formal consiste na obrigação de se seguir um processo previsto em lei, que respeite as garantias mínimas do jurisdicionado.

Sob essa ótica, o processo devido associa-se à ideia de um procedimento justo, que proporciona a ampla participação das partes e a adequada defesa de seus direitos.

Já o devido processo legal substancial é a busca da justiça e razoabilidade em uma decisão judicial. Identifica-se com o próprio princípio da proporcionalidade, de forma que não basta que seja seguido um procedimento previsto em lei, a decisão deve ser razoável e proporcional também.

Ainda, segundo lições de Daniel Amorim Assumpção Neves (2018, p. 174), sob a ótica substancial “o devido processo legal diz respeito ao campo de elaboração e interpretação das normas jurídicas, evitando-se a atividade legislativa abusiva e irrazoável e ditando uma interpretação razoável quando da aplicação concreta das normas jurídicas”.

Modernamente, o sentido substancial também está ligado a observância do devido processo nas relações jurídicas privadas, de modo que os particulares estão vinculados ao respeito aos direitos fundamentais.

Dessa forma, no plano procedimental o devido processo associa-se a ideia de processo justo, que respeite o que a legislação prevê, ao passo que, no plano substancial, o processo devido está relacionado ao ideal protetivo constitucional quando da elaboração, interpretação das normas e sua aplicação aos casos concretos.

Outrossim, a garantia do devido processo legal não se exaure nos conceitos supramencionados.

Cumpre mencionar que se trata de uma cláusula geral, pois é uma noção aberta que será definida a partir de outros princípios e do que está na lei.

Por tal razão, é considerado um sobreprincípio, do qual derivam todos os outros princípios processuais civis. Compreende outras garantias fundamentais, principalmente a ampla defesa e o contraditório (CF, art. 5º, LV), verdadeiros corolários da concretização da garantia fundamental a um processo devido.

Como assevera Humberto Ávila, ao tratar sobre Teoria dos Princípios: “O sobreprincípio do devido processo legal permite o relacionamento entre os subprincípios da ampla defesa e do contraditório com as regras de citação, de intimação, do juiz natural e da apresentação de provas, de tal sorte que cada elemento, pela relação que passa a ter com os demais em razão do sobreprincípio, recebe um significado novo, diverso daquele que teria caso fosse interpretado isoladamente”. (ÁVILA, 2005, p. 80).

Nesse diapasão, a Carta Magna, no art. 5º, LV, garante que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O princípio do contraditório, de acordo com as lições de Fredie Didier Júnior (2017, p. 91), “é reflexo do princípio democrático na estruturação do processo. Democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório”.

É, assim, manifestação do modelo de Estado no âmbito processual que legitima e torna indispensável a participação e cooperação das partes na construção do provimento jurisdicional, efetivando os princípios democráticos da República Federativa do Brasil.

Nessa linha, a “participação a ser franqueada aos litigantes é uma expressão da ideia, plantada no mundo político, de que o exercício do poder só se legitima quando preparado por atos idôneos segundo a Constituição e a lei, com a participação dos sujeitos interessados”. (DINAMARCO; LOPES, 2016, p. 62).

Convém notar que o contraditório possui uma visão clássica, conhecida como concepção formal, que consiste na necessidade de cientificação às partes dos atos processuais e na possibilidade de reação em potencial, como garantia de participação na defesa de seus interesses em juízo.

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Vê-se, portanto, que, tradicionalmente, o conceito é formado pelo binômio informação e reação.

A informação compreende a necessidade que as partes têm de saber o que está ocorrendo no processo, a fim de que possam se posicionar, e se dá, no processo civil, através da citação e intimação.

A reação, por sua vez, consiste em ônus das partes, as quais têm o direito de reagir ou se omitir. Nesse caso, o contraditório estará garantido quando se verificar que a possibilidade de reação foi oportunizada aos litigantes.

Contudo, tanto a doutrina como o legislador perceberam que o conceito tradicional do contraditório passou a ser insuficiente. Isso porque, não basta informar e permitir a reação, é necessário que o juiz aprecie os argumentos para formar suas razões de decidir.

O art. 7º do Código de Processo Civil traz em seu bojo a ideia do poder de influência ao dispor que: “É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”.

Essa visão moderna do contraditório, também chamada de contraditório substancial, significa o poder real de influir na construção do provimento jurisdicional. Nesse sentido, as partes têm o direito de reagir e de terem seus argumentos efetivamente considerados pelo juiz e este terá o dever de efetivar a participação dos litigantes apreciando eficazmente suas alegações.

Por tal razão, a concepção substancial do contraditório impede a prolação de decisão surpresa (art. 10 do CPC[2]) e disciplina, como regra, que não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida (art. 9º, CPC[3]).

Como se depreende, o contraditório efetivo não se consubstancia apenas com a ouvida da parte, exige-se também a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar no conteúdo da decisão do órgão jurisdicional.

Quanto ao princípio da ampla defesa, também previsto no art. 5º, LV da Constituição Federal e, consequentemente, interligado ao princípio do contraditório, é o direito de defender-se produzindo provas, bem como todo e qualquer direito e/ou garantia que lhe possibilite uma defesa efetiva e adequada.

A garantia constitucional a ampla defesa visa à paridade de armas entre os litigantes e, como consequência, evitar o desequilíbrio processual, causador de possíveis desigualdades e injustiças.

Welder Queiroz dos Santos leciona que: “A Constituição garante a ampla defesa e os “recursos a ela inerentes”. O termo “recursos” não deve ser lido no sentido técnico processual. Quando a Constituição garante os recursos inerentes à ampla defesa deve-se compreender como meios inerentes para garanti-la, como técnicas processuais, para que ela seja satisfatoriamente exercida.” (SANTOS, 2018, p. 48).

Nesse contexto, o comando constitucional pressupõe a utilização de mecanismos e técnicas processuais capazes de viabilizar o exercício amplo da defesa.

A ampla defesa pressupõe, ademais, o dever judicial de avaliação de provas.

Desse modo, as provas pertinentes podem ser produzidas pelas partes em dissenso e o magistrado tem o dever de apreciá-las, não podendo, sem fundamento, julgar com base apenas na prova de uma das partes, ignorando a outra.

Portanto, o princípio em tela garante às partes a utilização de todos os meios adequados e necessários para o exercício do contraditório.

Da exegese da disposição constitucional e dos esclarecimentos acima talhados, tem-se que, o que a ordem jurídica objetivou, foi propor um modelo processual justo e equitativo, que garanta a tutela efetiva dos direitos do cidadão através do exercício da plena e irrestrita defesa em todos os momentos processuais e com todos os meios lícitos em direito admitidos.

Para tanto, devem ser assegurados os princípios do devido processo legal e seus corolários, o contraditório e a ampla defesa, os quais podem ser materializados através dos meios de defesa no processo civil, que serão estudados a seguir.

 

1.1 Meios de defesa no processo civil

O processo, no Estado Democrático de Direito, é essencialmente dialético e cooperativo, e a prestação jurisdicional, em regra, só deve ser concretizada após amplo e irrestrito debate das pretensões aduzidas em juízo.

O sistema processual brasileiro, portanto, é formado pelos princípios do contraditório e da ampla defesa e do devido processo legal, que garantem às partes o direito de serem ouvidas, nos autos, sobre todos os atos praticados, antes de qualquer provimento jurisdicional.

Gilmar Ferreira Mendes (2017, p. 396) ao tecer considerações sobre o assunto, ensina que “Há muito vem a doutrina constitucional enfatizando que o direito de defesa não se resume a um simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende assegurar – como bem anota Pontes de Miranda – é uma pretensão à tutela jurídica”.

De fato, a garantia constitucional ao contraditório e a ampla defesa enseja tanto a realização do direito de ação quanto o do direito de defesa.

Sendo assim, proposta a ação, o demandado será citado para integrar a relação jurídica processual e intimado a responder aos pedidos formulados pelo autor, à vista de garantir a paridade de condições de participação.

Nesse passo, a conjugação de citação e intimação representa a manifestação do contraditório formal (informação sobre a existência da lide e possibilidade de reação), ao passo que, a defesa do demandado traduz o fenômeno do contraditório substancial e da ampla defesa no processo civil (oportunidade de influenciar no conteúdo decisório, utilizando-se de mecanismos e técnicas processuais capazes de viabilizar o exercício amplo da defesa).

Cumpre assinalar que a garantia de resposta não impõe um dever ao réu, o qual terá a faculdade de defender-se ou não. Trata-se de ônus processual.

Assim, havendo opção do demandado pela resposta, esta deverá ser apresentada em petição escrita, no prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 335, I a III do Código de Processo Civil, in verbis: “Art. 335. O réu poderá oferecer contestação, por petição, no prazo de 15 (quinze) dias, cujo termo inicial será a data: I – da audiência de conciliação ou de mediação, ou da última sessão de conciliação, quando qualquer parte não comparecer ou, comparecendo, não houver autocomposição; II – do protocolo do pedido de cancelamento da audiência de conciliação ou de mediação apresentado pelo réu, quando ocorrer a hipótese do art. 334, § 4º, inciso I; III – prevista no art. 231, de acordo com o modo como foi feita a citação, nos demais casos.”

De outro turno, embora a lei não obrigue o réu a defender-se, estabelece consequência para a sua inércia, qual seja, a revelia, presumindo-se verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor (art. 344 do CPC).

Todavia, não incide referido efeito somente se: havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; o litígio versar sobre direitos indisponíveis; a petição inicial não estiver acompanhada de instrumento que a lei considere indispensável à prova do ato; as alegações de fato formuladas pelo autor forem inverossímeis ou estiverem em contradição com prova constante dos autos (art. 345 do CPC).

Isto posto, segundo o diploma processual civil em vigor, o réu poderá defender-se através de contestação e reconvenção.

Cada uma dessas respostas tem uma função, de modo que podem ser oferecidas em uma mesma peça processual ou separadas.

O art. 336 do Código de Processo Civil estipula que “Incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir”.

A contestação é, portanto, a mais importante modalidade de resposta do réu, pois é através dela que ele exercerá seu direito de defesa. É nesse momento processual que poderão ser alegadas todas as matérias de ordem processual e material, possíveis de convencer o juiz a não prestar a tutela jurisdicional pretendida pelo autor.

Além disso, a contestação, por ser o veículo de defesa do réu, consiste na própria exteriorização dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Demais disso, sendo a contestação o principal meio de defesa contra a pretensão do autor, a lei processual civil traz um rol, em seu art. 337[4], com as matérias (de direito processual) passíveis de alegação.

Outrossim, ao réu também é lícito alegar matérias de mérito, que dizem respeito ao direito material alegado pelo autor. É, portanto, a oportunidade de convencer o magistrado da inexistência do direito pleiteado.

Nessa perspectiva, a dialética processual formada pelos princípios do contraditório e da ampla defesa, permite ao réu, em processo de conhecimento, a oportunidade de alegar todas as matérias de defesa através da contestação, de modo a concretizar a garantia fundamental a um processo justo e isonômico.

Sobre outro prisma, paralelo, a reconvenção também é meio de defesa no âmbito do processo civil.

O diploma processual civil prevê, em seu art. 343 do CPC, que “Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa”.

Do mesmo modo que a contestação, a reconvenção é mera faculdade processual do réu, porém exige alguns requisitos para ser cabível, como a existência de causa pendente; observação do prazo de resposta; mesmo juízo competente; compatibilidade de procedimentos; conexão, além dos requisitos da petição inicial, condições da ação, legitimidade de parte e interesse de agir.

Assim, a reconvenção é espécie de resposta em que o réu assume uma postura ativa em face do autor, pleiteando tutela jurisdicional do direito, mediante o exercício da ação nos mesmos autos, tendo em vista a conexão com os pedidos objeto do litígio.

Pertinente, nesse contexto, a observação de que a reconvenção permite a um só tempo a economia processual e a garantia ao contraditório e à ampla defesa, na medida em que permite um “contra-ataque” da defesa, com a ampliação do objeto litigioso dentro de um mesmo processo.

Com base em tal assertiva, Humberto Theodoro Júnior (2018, p. 839), destaca que “Defesa e demanda são atos postulatórios que podem ter influência sobre a tutela jurisdicional visada pelo processo”.

Cumpre observar, ademais, que o réu pode propor reconvenção independentemente de oferecer contestação, nos exatos termos do § 6º do art. 343 supramencionado.

Nessa trilha, vê-se que a tutela efetiva dos direitos dos cidadãos é respeitada quando o processo oportuniza às partes a possibilidade de influir eficazmente na construção do provimento jurisdicional e, através da sistemática garantidora do contraditório e da ampla defesa, tal garantia é oportunizada ao réu mediante os meios de defesa processuais, quais sejam: contestação e reconvenção.

Cumpre assinalar, todavia, que, não obstante essa sistemática garantidora, há casos excepcionais em que o contraditório será diferido e, consequentemente, os meios de defesa no processo serão postergados para momento seguinte ao da concessão do provimento pleiteado.

Desse modo, sendo o diferimento do contraditório medida excepcional, somente será justificada sua implementação em razão da urgência do direito pleiteado, como ocorre nas decisões que concedem tutela antecipada, pois fundada em juízo de cognição sumária.

Diante do exposto, vê-se a importância dos meios de defesa no processo civil como instrumentos aptos a garantir a observância dos preceitos constitucionais do devido processo legal e do contraditório e da ampla defesa.

 

2 TUTELA ANTECIPADA

Na sistemática processual civil a regra é a de que a prestação jurisdicional ocorra por meio de uma cognição exauriente, ou seja, com amplo debate acerca da pretensão em juízo, garantindo-se o devido processo legal e a observância do contraditório e da ampla defesa.

No entanto, há situações em que o processo deve ser estruturado de maneira a permitir a adequada relação entre a prestação dos direitos materiais, que não comportam a espera do tempo despendido para a cognição aprofundada do litígio, e as técnicas processuais de defesa.

Diante disso, o Código de Processo Civil estruturou um sistema de tutelas provisórias, fundadas em juízo de probabilidade, para situações nas quais o tempo necessário para o cumprimento de todas as etapas do devido processo legal, resultam no risco de um dano econômico ou jurídico.

Em casos tais, a restrição da cognição conduz a decisões que derivam de uma convicção baseada em juízo de probabilidade, ou seja, quando, embora não exista certeza da existência do direito da parte, há uma aparência de que esse direito existe.

Kazuo Watanabe (2005, p. 131) fala com propriedade que o procedimento de cognição sumária ou superficial se justifica “em razão da urgência e do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, ou para antecipação do provimento final, nos casos permitidos em lei, ou ainda em virtude da particular disciplina da lei material, faz-se suficiente a cognição superficial para a concessão da tutela reclamada”.

Nesse entendimento, o principal escopo da tutela provisória é atenuar os efeitos do tempo e garantir a efetividade da prestação jurisdicional de modo antecipado e imediato, regulando provisoriamente o objeto do litígio para combater os riscos de injustiça ou de dano que derivam da longa espera do deslinde do processo.

A técnica de antecipar, mediante decisão interlocutória, os efeitos do pronunciamento judicial que seria prolatado ao final do processo, visa a conferir uma resposta eficaz aos anseios do jurisdicionado no que diz respeito a satisfação do direito subjetivo.

O diploma processual civil de 2015 sistematizou o regime das tutelas de urgência, de modo a unificar a antecipação da tutela com a tutela cautelar (antes prevista em livro próprio), sendo espécies que compõem o gênero tutela provisória de urgência.

Com a conjuntura estabelecida pelo atual Codex, se o provimento jurisdicional a ser deferido for uma antecipação do provimento esperado e requerido, se estará diante da tutela de urgência antecipada.

A tutela antecipada ou satisfativa consiste em um pedido autônomo que pode ser formulado pelo demandante em processo de conhecimento, na petição inicial ou em qualquer momento do processual, e inexiste preclusão para tal requerimento, basta estarem presentes os requisitos legais para a sua concessão.

Nesse diapasão, Teori Zavascki (1995, p.10) já apontava que: “Antecipa-se provisoriamente a tutela pretendida pelo autor como meio de evitar que, no curso do processo, ocorra o perecimento ou a danificação do direito afirmado. Em outras palavras, antecipa-se em caráter provisório para preservar a possibilidade de concessão definitiva, se for o caso.”.

A técnica antecipatória, então, nos moldes da atual codificação, será prestada em vista de uma situação de urgência, mediante cognição sumária, sempre que houver probabilidade do direito e o perigo de dano.

A legislação (art. 300, §3º do CPC) prevê, ainda, que não se concederá a tutela antecipada quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão. Isto quer dizer que é requisito para a antecipação da tutela que a situação fática possa retornar ao status quo ante acaso seja revogado o pleito antecipatório.

Como se pode notar, o instituto em tela prima não só pela efetiva e adequada solução dos litígios, com vistas a suavizar os males do tempo sobre a demanda, como também cuida de assegurar a segurança jurídica do réu e a ordem jurídica justa.

Cumpre ressaltar, ainda, que a tutela antecipada poderá ser requerida em caráter incidental (quando no processo em andamento) ou em caráter antecedente (deflagrando o processo em que se pretende pedir a tutela definitiva, com vistas a adiantar seus efeitos).

Confere-se, desse modo, eficácia imediata ao direito afirmado, com a satisfação do bem da vida pretendido sempre que a situação o exigir, independentemente de ser antes ou no curso de um processo.

Diante do exposto, a tutela antecipada é medida processual cabível, antes ou no curso da ação, para adiantar os efeitos de uma decisão final de mérito, nos casos em que, havendo probabilidade do direito e reversibilidade fática, a demora natural de uma cognição exauriente pode resultar em dano.

 

2.1 Tutela antecipada requerida em caráter antecedente

Como visto alhures, o sistema processual brasileiro criou técnicas processuais de proteção a direitos que exigem uma prestação mais célere por parte do Estado, detentor do monopólio da jurisdição.

Entretanto, com a dinâmica das relações sociais da sociedade moderna e o aumento da morosidade na prestação jurisdicional, surgem situações em que há uma necessidade de tutela quase que instantânea.

Barbosa Moreira (2003, p. 62) já advertia que “Não são raras as hipóteses em que a inevitável demora da prestação jurisdicional é capaz simplesmente de inviabilizar, pelo menos do ponto de vista prático, a proteção do direito postulado, por mais certo que se afigure”.

Nesse panorama, o Código de Processo Civil criou o mecanismo da tutela antecipada antecedente que se traduz na possibilidade de postular a antecipação dos efeitos do provimento final por meio de pedido simples, podendo a exordial ser complementada posteriormente.

Diz o art. 303, caput, do CPC: “Art. 303. Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, a petição inicial pode limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e à indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo”.

Nessa visão, a tutela antecipada requerida em caráter antecedente é justificada nos casos em que a situação de urgência é incompatível com a demora inerente ao levantamento de documentos necessários ao pedido de tutela final, bem como à elaboração dos argumentos da causa de pedir, reservando-se o autor a fazê-lo em momento posterior.

Nos termos do art. 299 do CPC, a tutela antecedente será requerida ao juízo competente para conhecer do pedido principal e, na ação de competência originária de tribunal e nos recursos, será requerida ao órgão jurisdicional competente para apreciar o mérito.

O diploma processual exige que o pleito antecipado, além de expor a lide, a probabilidade do direito e o perigo da demora, indique o valor da causa, que deve levar em consideração o pedido de tutela final, bem como que pretende valer-se do benefício da formulação do requerimento de tutela antecipada em caráter antecedente (art. 303, §§4º e 5º).

Concedida a tutela nos moldes na norma legal em comento, confere-se ao autor a oportunidade de aditar a peça de intróito, nos próprios autos e sem incidência de novas custas, com a complementação de sua argumentação, juntada de novos documentos e confirmação do pedido de tutela final, em quinze dias ou em outro prazo maior que o juiz fixar (art. 303, §1º).

Em seguida, o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação e, não havendo autocomposição, começará a contar o prazo para contestação.

Privilegia-se, primeiro, o resguardo ao direito ameaçado em detrimento dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Caso não haja o aditamento da inicial de forma tempestiva, a lei prevê uma punição ao demandante, ao dispor que o feito será extinto sem resolução do mérito (CPC, art. 303, § 2º).

Outrossim, se órgão jurisdicional entender que inexistem elementos para a concessão da tutela antecipada antecedente, determinará a emenda da inicial no prazo de 5 (cinco) dias, sob pena de indeferimento e extinção do processo sem resolução de mérito (art. 303, §6º, CPC).

No tocante ao procedimento sub examine, há previsão legal (art. 304 CPC) de que a tutela concedida se tornará estável caso não interposto o recurso da decisão que a concedeu.

Ante o exposto, é possível observar que, diante da realidade social e jurídica do Brasil, a lei processual civil trouxe o mecanismo da tutela antecipada requerida em caráter antecedente com o intuito de salvaguardar os direitos que exigem uma satisfação extremamente urgente, em que a parte não possui tempo sequer para instruir e formular o pedido de tutela definitiva.

 

2.2 Caráter excepcional do provimento inaudita altera parte

Como explicitado em linhas anteriores, o modelo processual civil brasileiro é estruturado através de preceitos constitucionais que garantem um devido processo legal, capaz de oportunizar às partes o poder de influir na construção do provimento jurisdicional, por meio do exercício do contraditório e da ampla defesa.

Assim, como regra, o processo é regido pela dialética, ou seja, o magistrado só decidirá após ouvir ambas as partes em litígio.

Entretanto, há casos em que a necessidade de satisfação do direito é tão urgente que a citação do réu e consequente prazo para defesa podem resultar em perigo de dano ou risco ao resultado útil de um processo. Isto é, a mera espera pode resultar em perecimento do direito, como também, a ciência do processo pode motivar o réu a adotar conduta que venha a frustrar futura antecipação de tutela.

Na esteira desse pensamento, o Código de Processo Civil prevê técnicas que antecipam os efeitos de um provimento final de mérito, por meio de um juízo de cognição sumária, pautado na probabilidade do direito alegado pelo requerente, a fim de garantir a efetividade da prestação jurisdicional.

Marinoni (2017, p. 67) alerta que “[…] o deferimento da tutela inaudita altera parte restringe o direito fundamental de defesa e que isto apenas tem legitimidade quando o direito fundamental de ação, sem a emissão da tutela, não pode encontrar efetividade no caso concreto”.

Nessa toada, enuncia o art. 9º do CPC: “Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 701”.

Nessa linha, o §2º do art. 300 da norma processual civil corrobora com o inciso I, parágrafo único, do dispositivo supratranscrito, ao facultar ao juiz a concessão da tutela de urgência in limine litis, antes de ouvir o requerido, tendo em vista elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

Observa-se, dessa maneira, que o diferimento do contraditório é medida excepcional, justificando-se apenas nas hipóteses previstas em lei, como é o caso da tutela provisória de urgência antecipada requerida em caráter antecedente.

Nesse ponto, ilustra-se a situação em que um indivíduo precisa de tratamento médico e está em risco iminente de vida, mas o plano de saúde recusa o procedimento. Sendo assim, pleiteia tutela antecipada antecedente com vistas a assegurar a intervenção médica. Nessa condição, se fosse necessário ouvir primeiro o réu, haveria risco de o demandante não sobreviver à espera do tratamento, que demanda urgência.

A título de elucidação, menciona-se decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe que confirmou sentença de primeiro grau que deferiu, por meio da antecipação da tutela, a realização imediata de cirurgia em criança que se encontrava em estado grave de saúde.[5]

Nessas circunstâncias, diz-se que a decisão é inaudita altera parte, ou seja, sem ouvir a parte contrária, pois não há tempo suficiente (quadro de extrema urgência) para a oitiva do réu.

Significa, portanto, que na ponderação entre os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF) e o princípio do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF[6]), o legislador utilizou-se do postulado da proporcionalidade e privilegiou o acesso à justiça, como meio de garantir a efetividade e tempestividade do direito objeto do processo.

Nesse ínterim é a doutrina de Dinamarco e Lopes (2016, p. 53): “É a proporcionalidade que autoriza e legitima a concessão de medidas urgentes antes da citação do réu (medidas liminares concedidas inaudita altera parte) e portanto sem a prévia efetivação da garantia constitucional do contraditório (infra, n. 33) – sendo essa aparente violação um culto a um valor também elevadíssimo e de igual modo amparado pela Constituição Federal, que é o do acesso à justiça mediante a efetividade e tempestividade da tutela jurisdicional […]”.

Deve-se atentar que, inobstante a possibilidade de mitigação do exercício do contraditório e ampla defesa, tal garantia constitucional só estará resguardada se for efetivamente oportunizada na etapa procedimental posterior.

Isto posto, verificado caso excepcional de concessão de medida inaudita altera parte, é possível deslocar o contraditório e a ampla defesa para momento posterior à concessão da providência provisória, notadamente quando se tratar de tutela antecipada antecedente, ante o perigo de dano contemporâneo à propositura da ação.

 

3 ESTABILIZAÇÃO DA TÉCNICA ANTECIPATÓRIA ANTECEDENTE

Em linhas iniciais, o Código de Processo Civil de 2015 admite, nos casos de extrema urgência, a postulação de uma tutela antecipada antecedente com o propósito de antecipar os efeitos práticos que seriam produzidos com a concessão definitiva da tutela pretendida.

A técnica antecipatória, pela sumariedade da cognição, apresenta natureza provisória, precária e é inapta a tornar-se indiscutível pela coisa julgada.

A par disso, concedida a medida, o processo terá andamento com o aditamento da petição inicial feita pelo autor, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito.

Outrossim, havendo inação do réu contra a concessão da tutela antecipada, haverá a estabilização da técnica antecipatória antecedente e o processo será extinto.

Sob esse prisma, alcançado o provimento provisório desejado pela parte e ausente a impugnação do demandado, outro será o destino da providência de urgência e do processo.

Como se vê, o processo principal apenas seguirá caso as partes evidenciem o interesse em obter provimento judicial definitivo, por meio de juízo de cognição exauriente, apto a produzir coisa julgada material.

Nessa senda, ao examinar o tema, Humberto Theodoro Júnior vaticina: “[…] a nova codificação admite que se estabilize e sobreviva a tutela de urgência satisfativa, postulada em caráter antecedente ao pedido principal, como decisão judicial hábil a regular a crise de direito material, mesmo após a extinção do processo antecedente e sem o sequenciamento para o processo principal ou de cognição plena.” (THEODORO JÚNIOR, 2018, p. 713).

Dessa forma, com vistas otimizar a prestação jurídica, o legislador brasileiro, inspirado em ordenamentos processuais estrangeiros, como o francês e o italiano, criou, no novel diploma processual, a estabilização da técnica antecipatória antecedente, que viabiliza a conservação da eficácia da tutela antecipada, independentemente de ratificação posterior por decisão de mérito, resolvendo definitivamente a lide submetida ao Poder Judiciário.

 

3.1 O modelo adotado na França e na Itália

Consoante explicado acima, o legífero brasileiro inovou na ordem jurídica ao trazer, no Código de Processo Civil de 2015, a possibilidade de estabilização da tutela antecipada pleiteada em caráter antecedente.

A estabilização da técnica antecipatória antecedente prevista na legislação brasileira foi inspirada em institutos previstos no direito estrangeiro, notadamente o francês e o italiano.

Na França, há a référé provision que representa uma decisão provisória, de cognição sumária, decidida com base na verossimilhança das alegações, em situações nas quais há urgência ou evidência do direito.

As tutelas obtidas mediante esse instituto visam à proteção provisória do direito antes da solução permanente da contenda, tendo em vista o perigo do decurso do tempo para a efetividade do provimento jurisdicional.

A référé é alcançada através de um processo autônomo, ou seja, por meio de um procedimento que não se conecta com a demanda principal. Isso quer dizer que, concedido o provimento de caráter satisfativo, este permanece eficaz enquanto não for desfeito em razão de processo de cognição exauriente, a ser proposto por qualquer das partes em dissenso.

É de destacar-se que a legislação francesa não prevê nenhum prazo e nem a obrigatoriedade de propositura da ação principal.

Dessa forma, se nenhuma das partes resolver instaurar o processo de mérito, a référé provision poderá perdurar indefinidamente.

Cabe ressaltar a natureza independente da référé, de modo que, eventual insurgência do autor ou demandado contra a tutela concedida deve ser feita por meio do processo de mérito.

Nessa senda, segundo o artigo 488 do Código de Processo Civil francês, a liminar concedida não tem autoridade de coisa julgada e só poderá ser alterada no caso de novas circunstâncias[7].

Nada obstante seu caráter provisório e a ausência de formação da coisa julgada, a référé pode ser utilizada como substituto eficaz de uma sentença final, em vista do desinteresse das partes no processo de mérito.

Nos termos acima expostos, o modelo francês, com base na référé provision, viabilizou a estabilização dos provimentos concedidos de forma antecedente sempre que houver a inatividade processual dos que litigam em juízo.

Na Itália, por sua vez, há os provvedimenti d´urgenza, que são medidas de emergência (cautelares ou antecipatórias), solicitadas antes ou no curso de um procedimento preparatório, que visam a assegurar provisoriamente os efeitos da decisão sobre o mérito quando o tempo necessário para afirmar seu direito de maneira ordinária possa causar um prejuízo iminente e irreparável.

Nesse ínterim, o Código de Processo Civil italiano erigiu, em seu artigo 669-octies, 6[8], a inexigibilidade de instauração do processo principal nas hipóteses de medidas de emergência solicitadas de forma autônoma.

Com base na legislação italiana, qualquer dos litigantes poderá iniciar a ação de cognição plena. Todavia, se permanecerem inertes, o provimento satisfativo obtido em caráter antecedente não perderá a eficácia e perdurará indefinidamente.[9]

Ademais, decorre de imperativo legal que a autoridade da medida não poderá ser invocada em outro julgamento.[10]

Nesse prisma, o modelo italiano, inspirado na processualística francesa, admite a estabilização da tutela antecipada, de modo a resolver o conflito de direito material, em situações de urgência, por meio da própria decisão sumária, sem a necessidade do exaurimento da cognição, quando também houver a inércia dos litigantes.

Do mesmo modo que na référé francesa, nos provvedimenti d´urgenza, inobstante a cognição incompleta e não produção de coisa julgada material, a tutela adquire estabilidade pois eficaz para os jurisdicionados e para o sistema.

Em síntese, sobre a estabilização da tutela no direito estrangeiro Alvim, Granado e Ferreira (2019, p. 575) assim apontam: “[…]O direito francês possibilita que a parte obtenha decisão concessiva de tutela provisória, sem discussão do mérito. Na Itália, é possível a obtenção de provimento de urgência, sem a necessidade de posterior formulação de pedido de mérito.”

Em todas essas experiências, verifica-se o intuito de solucionar a celeuma jurídica com menos processo, tendo em vista o alcance do provimento desejado pela parte e a ausência de intenção de ambas em obter uma sentença definitiva, de modo que a decisão liminar se torna eficaz, porquanto a questão sub judice não gera mais controvérsia.

Depreende-se que o objetivo primordial da inserção da técnica de estabilização nos sistemas francês e italiano foi a redução da litigiosidade em seara de cognição plena, com vistas a desafogar o Judiciário e promover a celeridade na prestação jurídica.

Assim, com base nesses preceitos, a adoção de procedimento similar na novel legislação processual civil brasileira visou estabilizar os efeitos de uma tutela concedida antecipadamente, diante da inação do demandado e, via de consequência, extinguir o processo.

 

3.2 Legislação Brasileira

O atual Código de Processo Civil, criado pela lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, inaugurou, na legislação brasileira, o instituto da estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, semelhante ao previsto e experimentado nos ordenamentos jurídicos francês e italiano.

Importante destacar que, embora o mecanismo da estabilização da tutela só tenha sido introduzido no CPC de 2015, desde o ano de 2005, por meio do Projeto de Lei do Senado n° 186/2005, já vinha sendo debatida a proposta de estabilizar os efeitos da medida de urgência concedida.

À época, o PLS 186/2005, redigido pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, baseado na doutrina de Ada Pellegrini Grinover, propunha, dentre outras coisas, acrescentar os arts. 273-B e 273-C no então diploma processual civil de 1973 para estabelecer que a decisão que concede a tutela antecipada, pleiteada antes ou no curso do processo, adquire força de coisa julgada caso as partes não exerçam a faculdade de prosseguir com a demanda, a fim de obter uma sentença de mérito.

A posteriori, quando da elaboração do anteprojeto do Código de Processo Civil atual (PLS 166/2010 – PL 8.046/2010) a proposta de estabilização da tutela foi apresentada com a seguinte exposição de motivos: “Também visando a essa finalidade, o novo Código de Processo Civil criou, inspirado no sistema italiano e francês, a estabilização da tutela, a que já se referiu no item anterior, que permite a manutenção da eficácia da medida de urgência, ou antecipatória de tutela, até que seja eventualmente impugnada pela parte contrária.”

Nestes termos, a estabilização da técnica antecipatória antecedente é extraída do artigo 304 do Codex processual civil vigente. Vejamos: “Art. 304. A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”.

Observa-se que a técnica processual prevista no direito brasileiro difere da proposta em 2005, mas, do mesmo modo, importa dos ordenamentos estrangeiros, notadamente França e Itália, a ideia de tornar eventual e facultativo o resultado final sob o crivo da cognição exauriente quando obtido o provimento provisório desejável por quem o pleiteia, mediante juízo de probabilidade, pondo fim ao conflito submetido ao Estado-juiz.

Nesse raciocínio, a nova codificação admite que a tutela antecipada querida em caráter antecedente, concedida por meio de cognição sumária, se torne estável ante a não impugnação, via recursal, da parte contrária. Nessa hipótese, haverá a extinção do processo e a decisão provisória continuará produzindo seus efeitos.

A inovação no panorama nacional aponta a substituição de uma prestação jurisdicional definitiva pelo efeito prático que atende aos anseios do jurisdicionado e sobre o qual o não há oposição.

Vale salientar, inclusive, que no direito pátrio já existia técnica similar no procedimento monitório.

Consoante a exegese do art. 701, caput, CPC, nas ações monitórias, sendo evidente o direito do autor, o juiz ordenará, liminarmente, a expedição de mandado de cumprimento da obrigação pelo réu. Entretanto, não realizado o pagamento e não oferecidos embargos, nos termos do art. 702[11], a decisão liminar se reveste de força executiva e assume a condição de título executivo judicial (art. 701, §2º CPC).

Na ação monitória, embora a decisão que ordena o pagamento revista-se da característica de um provimento sumário satisfativo e autônomo, ela é capaz de encerrar o procedimento caso o réu não exerça o contraditório no prazo estabelecido.

Desse modo, ausente a defesa, torna-se dispensável a fase de cognição antecedente à execução, e, consequentemente, a prolação de sentença condenatória, em benefício à celeridade na prestação jurídica.

Assim sendo, a inércia do réu é fator preponderante para a viabilizar a obtenção do resultado prático pretendido na ação.

Por essa razão, alguns processualistas afirmam que a novel legislação ordinária “monitorizou” o processo. Nesse ponto de vista, Talamini (2012, p. 24/25): “E, na medida em que o âmbito de incidência das medidas urgentes preparatórias não é limitado a determinadas categorias de litígio ou modalidades de pretensão, a estabilização de tutela urgente apresenta-se como um mecanismo geral, que aparentemente seria apto a “monitorizar” o processo brasileiro como um todo”.

Oportuno se torna dizer que, em regra, as tutelas antecipatórias, deferidas inaudita altera parte, apresentam natureza provisória, precária e são inaptas a tornar-se indiscutíveis pela coisa julgada, pois restringem o direito fundamental do contraditório e ampla defesa, sendo legítimas apenas em situações de excepcional urgência.

Com o desígnio de antecipar os efeitos concretos de uma sentença de mérito, a técnica da estabilização da tutela antecipada antecedente é inserida no ordenamento pátrio, visto que permite estabilizar uma decisão, ainda que provisória, na qual as partes não têm mais pretensão de discutir.

Isto quer dizer que, quando a parte contrária não impugna a medida antecipatória concedida, esta decisão judicial se torna hábil a regular a crise de direito material e continuará produzindo efeitos, extinguindo-se a ação sem a instauração de um processo de cognição plena.

É explícito a esse respeito o magistério de Marinoni: “O objetivo da regra que prevê a estabilização da tutela antecipada é, por um lado, eliminar a necessidade de discussão de uma questão que, diante da conduta do réu, não gera mais controvérsia, e, de outro, outorgar capacidade de produzir efeitos a uma decisão interna a um processo que resulta extinto sem resolução do mérito. Portanto, se a estabilidade da tutela antecipada é o preço da inércia do demandado, esse somente é realmente pago porque se deixa claro que a tutela não impugnada produz efeitos para além do processo em que concedida.” (MARINONI, 2017, p. 120).

Do exposto, o Código de Processo Civil de 2015 implantou instituto semelhante ao francês e ao italiano, aliado a técnica monitória já existente no sistema processual, para permitir que medidas de urgência obtidas em caráter antecedente perdurem indefinidamente, sem necessitar da propositura de ação principal, na hipótese do demandado não recorrer da decisão liminar concedida inaudita altera parte.

Por derradeiro, para que seja possível a estabilização da tutela antecipada antecedente a novel legislação traz suas condições de cabimento, bem como os efeitos dessa técnica no processo.

 

3.2.1 Condições de cabimento

A leitura em conjunto dos artigos 303 e 304 da legislação processual civil enseja a identificação de quatro condições cumulativas para o cabimento da técnica de estabilização.

A primeira condição é a de que tenha sido deferido um pedido de tutela antecipada requerida em caráter antecedente (total ou parcialmente), com fulcro no já transcrito art. 303, caput. Isso porque, somente essa espécie de tutela tem aptidão para estabilizar-se, conforme o art. 304.

A segunda, que tem fundamento doutrinário, é que o autor tenha requisitado na petição inicial, expressamente, apenas a concessão de uma tutela provisória de urgência satisfativa antecedente, sem indicar a intenção de dar prosseguimento ao feito após eventual deferimento.

Com essa interpretação a parte requerida ficará, desde logo, sabendo se a sua inércia dará ensejo ou não a este fenômeno, o que já desestimula a interposição de eventual recurso de modo desnecessário.

Vale dizer, também, que a estabilização tem impacto favorável ao demandante, vez que, mesmo com o processo extinto a decisão que concedeu o provimento provisório satisfativo conserva seus efeitos. Apesar disso, pode haver o desejo de prolongamento do feito para atingir uma sentença de mérito definitiva e com força de coisa julgada.

Nesse caso, para Didier Júnior, Sarno Braga e Alexandria de Oliveira (2015, p. 607, grifo do autor) o requerente “precisa dizer isso expressamente já na sua petição inicial”.

Aliás, não faz sentido algum o requerente ser penalizado por consequência de uma inação do réu.

Dessa maneira, para que haja a estabilização, é fundamental que na peça exordial não haja manifestação de prosseguimento do processo, ainda que na eventual hipótese de o réu não recorrer da liminar.

A terceira condição, extraída da inteligência do art. 303 em comento, é de que a concessão da tutela tenha sido proferida mediante decisão liminar, inaudita altera parte, ou seja, sem ouvir a outra parte.

A quarta, por fim, é que o réu, citado e intimado da decisão, não tenha interposto o respectivo recurso contra o provimento provisório.

Sobreleva mencionar que inexistirá a estabilização na hipótese de recurso interposto pelo assistente simples ou por litisconsorte, embora inerte o réu, vez que os fundamentos daqueles a este aproveita.

Ainda, é possível que o demandado se mantenha parcialmente inerte, ou seja, impugne apenas um dos capítulos decisórios. Nessa situação, deve-se considerar que somente serão alcançados pelo fenômeno da estabilização os capítulos não impugnados.

Há que se considerar que o comando normativo (art. 304, caput, CPC) fala expressamente em “recurso”, no entanto, a doutrina e a jurisprudência já vêm entendendo, com base na interpretação sistemática e teleológica da norma, que a estabilização da tutela ocorrerá somente se não houver qualquer meio de impugnação do réu (ex.: contestação, reconvenção, petição avulsa).

Convém notar, a este respeito, que, por tratar-se de questão relevante cuja discussão jurídica traz reflexões importantes, será examinada em capítulo próprio.

Diante do exposto, para que o fenômeno da estabilização seja cabível é necessário que tenha sido deferido um pedido de tutela antecipada requerida em caráter antecedente; que o autor tenha pleiteado apenas a concessão dessa espécie de tutela, bem como não tenha manifestado intenção em prosseguir com o feito; que a decisão tenha sido proferida inaudita altera parte e; o demandado mantenha-se inerte.

 

3.2.2 Efeitos

Como apontado, a Lei n° 13.105/2015, que instituiu o novo CPC, previu, desde que observadas as condições já citadas, um mecanismo de estabilização das decisões concessivas de tutela antecipada requerida de forma antecedente.

Nesse enfoque, é assaz importante mencionar os efeitos processuais que derivam da ocorrência dessa inovação legal.

Extrai-se do §1º do art. 304, da aludida legislação infraconstitucional, que o processo será extinto quando, deferida a medida antecipatória, não for interposto recurso contra essa decisão, conservando-se a eficácia do provimento provisório.

A primeira consequência da estabilização é, pois, a extinção da demanda com a manutenção da eficácia da ordem antecipatória, de sorte que a tutela em juízo não mais poderá ser discutida nos mesmos autos.

Não se pode afirmar, porém, que a decisão provisória estabilizada é apta a formar coisa julgada. Nesse sentido, é enfático o §6º do art. 304 ao enunciar que a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes.

Ademais, não se pode olvidar que se trata de decisão baseada em cognição sumária, sendo provisória e precária, a qual não poderia ter a mesma autoridade de um provimento de cognição exauriente.

À vista disso, disciplina o Enunciado n° 33 do FPPC que: “Não cabe ação rescisória nos casos estabilização da tutela antecipada de urgência”.

Portanto, a inaptidão de tornar-se indiscutível pela coisa julgada é o segundo efeito produzido pela estabilização da tutela.

Em outro norte, estatui o §2º do artigo em comento que qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada.

Nessa lógica, a tutela antecipada conservará seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invalidada por decisão de mérito proferida na ação a ser intentada por qualquer das partes (art. 304, §3º CPC).

Segundo o §5º do art. 304, esse direito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada extinguir-se-á após 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo.

Nos termos acima expostos, o terceiro efeito causado pela estabilização da tutela é a conservação da eficácia da liminar inaudita altera parte, enquanto não revista, reformada ou invalidade por decisão de mérito proferida em nova ação ou enquanto não extinto esse direito.

Por certo, o processamento tendente à estabilização produz uma série de efeitos processuais e, como visto no presente capítulo, surge no ordenamento brasileiro, inspirado no modelo francês e italiano, com vistas a otimizar a prestação jurídica e desafogar o Judiciário.

Cabe salientar, todavia, que o procedimento trazido pelo art. 304 do diploma processual civil deve ser lido à luz das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, com base em uma interpretação sistemática e teleológica, a fim de salvaguardar o exercício democrático no processo civil e o próprio escopo do instituto.

Diante disso, tendo em vista que a temática transborda os delineamentos acima apresentados, o capítulo seguinte apresentará uma análise acerca dos meios de impugnação aptos a elidir a estabilização da tutela antecipada antecedente.

 

4 MEIOS DE IMPUGNAÇÃO APTOS A ELIDIR A ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA ANTECEDENTE

Impõe observar preliminarmente que, quando da reforma do Código de Processo Civil, tanto o Projeto de Lei tramitado no Senado (PLS 166/2010[12]) quanto o prosseguido na Câmara (PL 8.046/2010[13]) previam que a medida concedida em caráter liminar conservaria a sua eficácia se não houvesse impugnação.

Nada obstante, conforme devidamente analisado, o legislador modificou a redação final da norma e passou a prever que a estabilização da antecipação está condicionada à falta de interposição do recurso, de acordo com o art. 304 da Lei n. 13.105/2015 sancionada.

Diante disso, a alteração do texto despertou interpretações jurídicas diversas.

Com efeito, há que se considerar que o termo “recurso” pode ser entendido de duas formas, como bem ensina Alexandre Câmara (2017, p. 149): “Deve-se afirmar, em primeiro lugar, que a referência a “recurso”, no caput do art. 304, pode ser compreendida de duas maneiras diferentes: como recurso stricto sensu (o que significaria, então, afirmar que só não haveria a estabilização da tutela antecipada se o réu interpusesse agravo contra a decisão concessiva da medida de urgência); ou, em um sentido mais amplo, como meio de impugnação (o que englobaria outros remédios sem natureza recursal, como a contestação)”.

Nesse panorama, a doutrina e a jurisprudência dividiram-se sobre a exegese da norma.

Aqueles que sustentam que o legislador limitou a estabilização a não interposição de recurso em sentido estrito, defendem que a posterior mudança no texto da lei expressa a real intenção legislativa.

Sob a égide desse fundamento, aponta Alvim, Granado e Ferreira (2019, p. 579/580): “[…] o legislador expressamente limitou o espectro de instrumentos a serem utilizados pelo réu para impedir a estabilização da tutela, o que parece decorrer do intuito de fazer da estabilização, instrumento para resolução prática dos litígios, sem a necessidade de cognição exauriente”.

Para essa corrente, a redação normativa deixou explícito que para obstar a estabilização da decisão liminar será necessária a interposição do respectivo recurso.

No que atine ao recurso stricto sensu cabível, do teor do art. 1.015, inciso I do CPC, consta que cabe o recurso de agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre tutelas provisórias.

Já se a competência for originária do tribunal, como cabe ao relator apreciar o pedido de tutela provisória (art. 932, II, CPC), caberá agravo interno, consoante art. 1.021 do estatuto processual civil[14].

Assim, para os que interpretam literalmente o art. 304, são aptos a impedir que a decisão concessiva de tutela antecipada antecedente se estabilize: apenas os recursos de agravo de instrumento e agravo interno, a depender de que instância o processo se encontre.

Todavia, grande parte da doutrina advoga que o termo “recurso” previsto no art. 304 do CPC possui um sentido mais amplo, de sorte que qualquer meio de impugnação do réu é hábil a impedir o instituto da estabilização.

Nessa diretriz, sustenta Marinoni (2017, p. 121/122) que “[…] caso o réu – intimado da efetivação da tutela – apresente petição ao juiz impugnando o cabimento da tutela antecipada e deixe de interpor o agravo, há reação ou inconformismo a justificar a não estabilização da tutela”.

Cabe sublinhar que o objetivo da técnica é estabilizar uma decisão sobre a qual não tenha havido impugnação da parte contrária. É, portanto, a inércia do réu, quer dizer, sua não manifestação no processo contra a tutela deferida, que será capaz de manter a decisão liminar produzindo efeitos indeterminadamente.

Em vista disso, a ausência de interposição do recurso deve ser compreendida como a absoluta inação da parte requerida em relação ao deferimento da tutela concedida em caráter antecedente, o que engloba a falta de qualquer meio de impugnação (como por exemplo contestação, reconvenção, petição, pedido de reconsideração).

Assumpção Neves (2018, p. 524) possui um entendimento ainda mais amplo, no sentido de que qualquer forma de manifestação de inconformismo do réu, ainda que não seja voltado à impugnação da decisão liminar, é suficiente para afastar a estabilização prevista no art. 304 do novel código.

Importa mencionar, à título de comparação, a aplicação desse instituto no processo do trabalho.

Na justiça trabalhista, em regra, é incabível recurso de imediato das decisões interlocutórias, sendo assim, a parte reclamada poderá evitar a estabilização mediante simples registro de protesto na primeira oportunidade que lhe caiba falar nos autos. Nesse sentido é o Enunciado n° 170 do Fórum Nacional de Processo do Trabalho (FNPT)[15].

Verifica-se, desse modo, que o propósito do art. 304 do CPC continua sendo prestigiado na hipótese de a insurgência ocorrer por meio de via alternativa que não a recursal.

No âmbito jurisprudencial, por sua vez, é possível observar a inclinação dos Tribunais no sentido de admitir qualquer tipo de impugnação pela parte contrária como via processual apta a inibir que o decisum que concedeu a tutela antecipada antecedente se estabilize.

Nesses termos, destaca-se o seguinte trecho de ementa do acórdão proferido pela 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.760.966-SP, veiculado através do Informativo de Jurisprudência n° 639:“[…] A ideia central do instituto é que, após a concessão da tutela antecipada em caráter antecedente, nem o autor nem o réu tenham interesse no prosseguimento do feito, isto é, não queiram uma decisão com cognição exauriente do Poder Judiciário, apta a produzir coisa julgada material. Por essa razão, é que, apesar de o caput do art. 304 do CPC/2015 falar em “recurso”, a leitura que deve ser feita do dispositivo legal, tomando como base uma interpretação sistemática e teleológica do instituto, é que a estabilização somente ocorrerá se não houver qualquer tipo de impugnação pela parte contrária. (STJ – REsp 1.760.966 SP 2018/0145271-6, Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze, Data de Julgamento: 04/12/2018, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/12/2018)”.

Pelo exposto, avista-se que parte da doutrina e da jurisprudência vêm reconhecendo a possibilidade de afastamento da estabilização da tutela antecipada por meio de vias alternativas de impugnação, além dos recursos de agravo.

 

4.1 Interpretação sistemática e teleológica do art. 304 do CPC

Como já demonstrado, o art. 304 do atual Código de Processo Civil estatui que a tutela antecipada, requerida em caráter antecedente, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso.

É sobremodo importante assinalar que a leitura do mencionado artigo deve ser feita à luz da Constituição, em respeito aos princípios nela instituídos, para um funcionamento democrático do processo civil.

A estabilização da tutela antecipada antecedente não deve ser vista como técnica processual que tem por objetivo criar maiores obstáculos ao demandado, nem mesmo que seja capaz de dificultar a garantia constitucional do devido processo legal e os corolários do contraditório e da ampla defesa.

Além do mais, a prática forense tem demonstrado que a interpretação literal do comando legislativo não tem sido a melhor opção jurídica.

Diante disso, a leitura do predito dispositivo legal exige uma interpretação sistemática e teleológica, a fim de garantir que o processo se realize como meio que concretiza, dialética e racionalmente, os princípios constitucionais.

Segundo Cintra, Dinamarco e Grinover (2015, p. 130), “Interpretar a lei consiste em determinar seu significado e fixar seu alcance”.

Neste passo, o método hermenêutico clássico de interpretação de normas jurídicas formado, dentre outros, pelos elementos de interpretação sistemática e teleológica, constitui mecanismo adequado para desvendar, além do conteúdo material, o significado profundo do texto legal.

O elemento sistemático, proposto por Savigny, como ensina Daniel Sarmento e Souza Neto (2012, p. 317) “é aquele que preconiza que cada norma jurídica deve ser interpretada com consideração de todas as demais, e não de forma isolada. Os preceitos devem ser considerados em sua unidade orgânica, não como normas que se bastam e vigoram isoladas dos demais. […]”.

No campo da interpretação de normas processuais, a interpretação sistemática ganha ainda maior relevância, tendo em vista os princípios gerais do processo, notadamente os ditados em nível constitucional. Por isso, todas as disposições processuais devem ser interpretadas à luz dessa sistemática geral.

O sistema brasileiro de processo civil contemporâneo, desenvolvido à luz de um Estado Democrático de Direito, tem na Constituição o seu fundamento de validade, na medida em que se constitui de princípios jurídicos previstos da Carta Magna, os quais norteiam a atividade interpretativa e a aplicação do direito positivo.

Como já estudado nos capítulos anteriores, o Estado de direito exige um processo pluralista, participativo, isonômico e justo, o qual é garantido através do direito fundamental ao devido processo legal, consagrado no art. 5º, LIV da Lex Mater, e que compreende outros princípios constitucionais, como o do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV), verdadeiros corolários da concretização da garantia fundamental a um processo devido.

À propósito, as normas constitucionais sobre processo civil projetam uma eficácia irradiante sobre o sistema jurídico infraconstitucional.

No âmbito da codificação processual, a exteriorização dos princípios do contraditório e da ampla defesa decorre dos meios de defesa do réu, previstos nos arts. 335 e 343, quais sejam: contestação e reconvenção, respectivamente.

Sob essa ótica, por meio da interpretação sistemática, deve-se examinar a norma através da sua relação com os demais dispositivos normativos que integram o ordenamento jurídico, notadamente os constitucionais, que possuem hierarquia superior.

Somente a compreensão hermenêutica de que cada instituto tem conexão com o todo é capaz de harmonizar o ordenamento jurídico e trazer o melhor sentido da lei em vigor.

Posta a questão nesses termos, esse escopo será alcançado mediante a interpretação que extraia do termo “interposto o respectivo recurso”, previsto no art. 304 do CPC, o significado de “apresentada impugnação”.

A palavra “impugnação”, fixa-se como termo mais amplo, que abrange não só recurso, mas também qualquer outra medida impugnativa da concessão da tutela de urgência antecipada.

Nessa visão, deve-se interpretar que a estabilização da tutela antecipada antecedente somente ocorrerá se não for apresentado qualquer tipo de impugnação pela parte contrária, em especial a contestação, que deve ser privilegiada como meio de defesa capaz de garantir os preceitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa, em nome da garantia fundamental a um devido processo legal.

Sob outro enfoque, mas em conjunto com o elemento sistemático, é possível extrair esse mesmo sentido.

A interpretação teleológica, criada por Ihering, busca os objetivos da norma, ou seja, a finalidade para a qual foi editada, identificando seu sentido e alcance.

Em concordância com o já explanado no presente trabalho, a principal finalidade do instituto da estabilização da técnica antecipatória antecedente é possibilitar ao requerente a satisfação da sua pretensão, sem a instauração de um processo de cognição exauriente, quando o réu não se opõe à medida deferida.

Dessa forma, se o adversário não recorre da decisão liminar, mas apresenta peça na qual requer expressamente a revogação da tutela antecipada, há inegável oposição e discordância, capaz, portanto, de impedir que a medida se torne estável e o processo seja extinto.

A aplicação do instituto, com fundamento em uma interpretação meramente literal, restringiria significativamente os direitos ao contraditório e a ampla defesa.

Neste passo, deve-se adotar a interpretação teleológica, pois melhor extrai o sentido e o alcance que a disposição legal pretende.

Traz-se à baila, na mesma senda, jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais que corrobora com a necessidade de adoção dos argumentos ora apresentados: “[…] É necessário realizar uma interpretação teleológica do dispositivo legal, até para que sobre ele não repouse a pecha de inconstitucionalidade, pois é evidente que qualquer tipo de manifestação da parte contrária é apta a evitar que a decisão liminar “sobreviva” independente de confirmação por meio de processo de conhecimento, a dita estabilização.  (TJMG – Apelação Cível 1.0372.17.000801-8/001, Relator(a): Des.(a) Dárcio Lopardi Mendes, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 25/10/0018, publicação da súmula em 30/10/2018)”.

Ante o exposto, verifica-se que a práxis jurídica tem exigido que a interpretação do art. 304 do diploma processual civil seja feita por meio dos elementos sistemático e teleológico da hermenêutica clássica, ou seja, buscando a sua integração com todo o ordenamento jurídico e extraindo de seu conteúdo as finalidades precípuas a que se presta.

Logo, à luz das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa e atento à finalidade do dispositivo normativo, deve-se entender que qualquer meio de impugnação é apto a elidir a estabilização da tutela antecipada antecedente.

 

4.2 Contestação como meio processual apto a impedir a estabilização da tutela antecipada antecedente

Já foi analisado neste artigo que a inovação legislativa do CPC de 2015, acerca da estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, gerou diversas discussões, tanto no âmbito acadêmico quanto no jurisprudencial, notadamente quando efetivamente começou a ser aplicada.

Em vista disso, a melhor interpretação que se deve fazer do art. 304 da legislação processual civil é aquela que leve em consideração sua relação com as demais normas que integram o sistema jurídico, bem como a finalidade para qual a norma foi editada.

O modelo de processo civil brasileiro tem como alicerce direitos fundamentais reconhecidos constitucionalmente, os quais devem ser observados pelo Estado no seu poder-dever de aplicar o ordenamento jurídico ao caso concreto por meio do processo judicial.

A Constituição de 1988 consagra, como princípio-base do processo, o devido processo legal, que tem como pressuposto não só a efetividade dos direitos substanciais, mas também o provimento jurisdicional compatível com os preceitos constitucionais.

O processo devido será garantido através dos princípios do contraditório e da ampla defesa, igualmente consagrados pela Carta Magna, vez que propiciam às partes a plena defesa de seus interesses e ao magistrado o aperfeiçoamento da obra normativa do legislador.

Com vistas a garantir a realização da dialética na construção do provimento jurisdicional, o diploma processual civil erigiu a contestação como meio de defesa do réu capaz de viabilizar o exercício do contraditório e da ampla defesa.

Como já afirmado, a contestação é a mais importante modalidade de resposta do réu, pois é através dela que ele exercerá seu direito de defesa. É nesse momento processual que poderão ser alegadas todas as matérias de ordem processual e material, possíveis de convencer o juiz a não prestar a tutela jurisdicional pretendida pelo autor.

Em que pese a segurança de um debate prévio e pleno para a construção de uma decisão processual, nos casos de tutela antecipada antecedente o julgamento do pedido antecipatório será feito inaudita altera parte, postergando a ouvida do réu para momento posterior à concessão da medida, o que se justifica em função da urgência e perigo de dano.

Nesse caso, concedida a tutela antecipada requerida de modo antecedente, o demandado será citado e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação. Em não havendo autocomposição, iniciar-se-á o prazo para apresentar a principal peça de defesa processual.

Nessa oportunidade, se o demandado se antecipa e, não recorrendo da liminar, apresenta contestação na qual impugna o provimento provisório, é nítido o seu intento no prosseguimento do feito, devendo, portanto, ser aceita como meio apto a afastar a possibilidade de a tutela antecipada antecedente tornar-se estável.

Evidentemente, tal hipótese não possui o condão de infirmar a tutela antecipada concedida em caráter antecedente, mas se mostra como meio processual adequado para impedir a estabilização da medida deferida.

A contestação é a modalidade de resposta prevista em lei apropriada para a parte adversária convencer o juiz de primeiro grau que a tutela pretendida pelo demandante não deve ou é impossível de ser prestada.

Ademais, é meio de defesa no processo civil que permitirá o amplo debate acerca da pretensão em juízo com vistas à prolação de sentença de mérito, fundada em cognição exauriente, passível de formar coisa julgada.

É preciso observar a participação que deve ser franqueada aos litigantes, em nome do contraditório e ampla defesa, de maneira que não se deve admitir que haja a extinção da lide ignorando a ouvida do demandado.

Em reforço a tais argumentos, colaciona-se o escólio de Daniel Mitidiero: “É claro que pode ocorrer de o réu não interpor o agravo de instrumento, mas desde logo oferecer contestação no mesmo prazo – ou, ainda, manifestar-se dentro desse mesmo prazo pela realização da audiência de conciliação ou de mediação. Nessa situação, tem-se que entender que a manifestação do réu no primeiro grau de jurisdição serve tanto quanto a interposição do recurso para evitar a estabilização dos efeitos da tutela. Essa solução tem a vantagem de economizar o recurso de agravo e de emprestar a devida relevância à manifestação de vontade constante da contestação ou do intento de comparecimento à audiência. Em ambas as manifestações, a vontade do réu é inequívoca no sentido de exaurir o debate com o prosseguimento do procedimento”. (MITIDIERO, 2015, p. 17).

Entender de modo diverso representa verdadeira afronta à garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa, inscrita no inciso LV no art. 5º da Constituição Federal.

Seja porque, sob a ótica da interpretação sistemática, a leitura do art. 304 do CPC deva ser feita à luz das normas constitucionais sobre processo civil; ou, ainda, porque o magistrado deve franquear aos litigantes os meios para participação no conteúdo decisório.

A parte demandada, assim como a parte autora, possui o direito de ver a questão resolvida de forma definitiva pelo juízo, mormente levando-se em conta as suas alegações.

É certo que, postergar a defesa do réu para momento posterior não fere o princípio do contraditório, porém, impedir que nesta oportunidade ele impugne a decisão concessória de tutela antecipada antecedente e, assim, ela não se estabilize, certamente ferirá tal garantia constitucional.

Noutro giro, deve-se levar em conta que a finalidade do instituto da estabilização no Brasil – do mesmo modo que é na França com a référé e na Itália com o provvedimenti d´urgenza – é eliminar a necessidade de um processo de cognição plena quando não há mais manifesto interesse em discutir a questão dos autos.

Logo, resta incontroverso que se o réu não interpõe recurso, mas se insurge contra a decisão provisória na peça de contestação, ele objetiva a continuidade da demanda.

Da inteligência do artigo 304, extrai-se que basta a mera interposição do recurso para que não seja possível a manutenção atemporal dos efeitos da tutela.

Esse entendimento é corroborado pelo Enunciado 28 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), segundo o qual: “admitido o recurso interposto na forma do art. 304 do CPC/2015, converte-se o rito antecedente em principal para apreciação definitiva do mérito da causa, independentemente do provimento ou não do referido recurso”.

Isso quer dizer que o escopo do recurso é precipuamente demonstrar a irresignação do réu e o seu objetivo em seguir com a demanda.

A partir dessa ordem de ideias, apreende-se que a existência do instituto depende da inércia da parte contrária. E, por inércia, deve-se entender a ausência de manifestação.

Dito isso, não faz sentido que a interpretação que se tenha do artigo 304 seja a de que a objeção do demandado deva ocorrer apenas através de recurso em sentido estrito (agravo de instrumento ou agravo interno).

Por oportuno, é importante já deixar claro que essa leitura não defende a possibilidade das decisões interlocutórias serem revogadas via contestação, até porque não se exclui a chance de agravar da medida deferida, mas sim que a defesa seja aceita como meio eficaz para obstar a manutenção dos efeitos da tutela e a extinção da ação, independentemente da revogação ou não da liminar.

A reação ou o inconformismo, ainda que feita mediante contestação, deve ser aceita como justificativa a não estabilização da tutela.

É notória a inclinação da doutrina nesse mesmo raciocínio: “[…] Não tem sentido a legislação obrigar o réu a recorrer quando na realidade ele pretende somente se insurgir no próprio grau de jurisdicional onde foi proferida a decisão. É a própria lógica do sistema que aponta nessa direção porque a própria razão de ser da estabilização é o réu deixar de se insurgir contra a tutela provisória concedida. […]” (NEVES, 2018, p. 524).

Dessa forma, é notável que ao interpretar a norma de forma teleológica, levando em conta a finalidade para a qual foi editada, identifica-se que a contestação é apta a impedir a estabilização da tutela antecipada antecedente, pois demonstra o intento do demandado.

Essa hipótese já foi aceita pela 3ª turma do Superior Tribunal de Justiça, consoante se demonstra do excerto abaixo: “[…] No caso concreto analisado pelo STJ, a empresa ré não interpôs agravo de instrumento contra a decisão que deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela requerida em caráter antecedente, mas apresentou contestação, na qual pleiteou, inclusive, a revogação da tutela provisória concedida. Diante disso, o Tribunal considerou que não houve a estabilização da tutela antecipada, devendo, por isso, o feito prosseguir normalmente até a prolação da sentença. (STJ – REsp 1.760.966 SP 2018/0145271-6, Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze, Data de Julgamento: 04/12/2018, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/12/2018)”.

No caso apreciado pela Corte Superior, a parte autora ajuizou um pedido de tutela antecipada antecedente para condenar as rés a excluir o nome da requerente como proprietária de determinado veículo nos cadastros do DETRAN/SP e da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, como também a declaração da cessação da responsabilidade da demandante sobre os débitos do veículo, além da condenação das requeridas em danos materiais e morais.

O juízo a quo, ao analisar o pedido entendeu pela sua incompetência e concedeu prazo para o aditamento da petição inicial. Sobreveio a exordial pleiteando a condenação de uma das reclamadas a efetuar nos registros do Detran/SP a transferência, para o seu nome, de veículo, sob pena de multa, bem como a pagar danos materiais alusivos aos valores ocasionalmente pagos a título de IPVA e multas, a serem apurados em sede de liquidação de sentença e a condenação de ambas as rés a pagar danos materiais.

Deferido o pedido de tutela para transferir o automóvel da titularidade da autora, sob pena de multa, foi determinada a citação e intimação das requeridas.

Embora o prazo ainda não tivesse sido iniciado, uma das demandadas se antecipou e apresentou contestação, ocasião em que pugnou expressamente a revogação da tutela deferida, sob o argumento de impossibilidade de seu cumprimento, além da improcedência do pedido.

Diante disso, o magistrado de 1º grau revogou a tutela antecipada concedida, tendo em vista a inviabilidade de ser cumprida.

O referido decisum foi impugnado pela autora através de agravo de instrumento, negado pelo Tribunal de origem, razão pela qual interpôs recurso especial no STJ sob a alegação de contrariedade do acórdão ao art. 304, caput, §§2º, 3º, 5º, 6º do Código de Processo Civil.

Por sua vez, o colegiado, por unanimidade, negou provimento ao recurso por entender que não há que se falar em estabilização da tutela antecipada, pois, a despeito de não ter havido recurso contra a decisão que a concedeu, foi apresentada contestação, inclusive com pedido expresso de revogação do respectivo decisum.

Para o relator do recurso, ministro Marco Aurélio Bellizze, a noção central do instituto é que, depois da tutela antecipada antecedente ter sido concedida, não haja mais interesse dos litigantes no prosseguimento do feito, ou seja, ambas as partes não desejem uma decisão com cognição exauriente do Poder Judiciário, apta a produzir coisa julgada material.

Segundo a relatoria, tomando como base uma interpretação sistemática e teleológica do instituto, o dispositivo legal deve ser lido no sentido de que a estabilização somente ocorrerá se não houver qualquer tipo de impugnação pela parte contrária.

Nos termos dos fundamentos declinados, o ministro aduziu que não se revela razoável entender que, mesmo o requerido tendo oferecido contestação ou algum outro tipo de manifestação pleiteando o prosseguimento do feito, apesar de não ter recorrido da decisão concessiva da tutela, a estabilização ocorreria de qualquer forma.

No voto, asseverou, ainda, que o art. 304, caput, da legislação processual civil disse menos do que pretendia dizer, razão pela qual a interpretação extensiva mostra-se mais adequada ao instituto, especialmente em atenção a finalidade buscada com a estabilização da tutela antecipada.

Em arremate, argumentou que interpretar de modo diverso estimularia a interposição de agravos de instrumento, sobrecarregando desnecessariamente os Tribunais, bem como acarretaria um estímulo ao ajuizamento de ação autônoma para rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada, prevista no art. 304, §2º do CPC/15, sem necessidade alguma.

Forçoso concluir que a apresentação da contestação demonstra de forma clara a vontade da parte ré de se opor à tutela concedida e seguir com o feito, de maneira que seria um contrassenso limitar a interposição de recurso de agravo de instrumento (ou interno, se a competência for originária do Tribunal) como meio exclusivo de evitar a estabilização da tutela antecipada antecedente.

Indispensável destacar, ainda, que exigir um recurso financeiramente oneroso para evitar que o processo se extinga é impedir o exercício de defesa. Não há interpretação literal da norma que se harmonize com o devido processo legal, notadamente garantido pela fruição do contraditório e da ampla defesa.

Portanto, o estudo do modelo constitucional de processo civil permite concluir que a contestação é meio processual apto a impedir a estabilização da tutela antecipada antecedente, em homenagem aos princípios do contraditório e da ampla defesa e à finalidade para a qual se presta o artigo 304 do CPC.

A interpretação nesse sentido equaciona os problemas que podem surgir do exame literal do dispositivo legal. Por essa razão, cabe, a seguir, tecer considerações sobre os benefícios da ampliação dos meios de impugnação da tutela antecipada antecedente.

 

4.3 Benefícios da ampliação dos meios de impugnação

Conforme devidamente analisado, a interpretação literal do art. 304 do Código de Processo Civil vai de encontro a garantia constitucional do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, bem como aos próprios objetivos do instituto da estabilização.

Destarte, a melhor interpretação que se pode fazer é levando-se em consideração os elementos sistemático e teleológico, com vistas a admitir não só o recurso de agravo, mas também a contestação como meio de impugnação apto a inibir que a decisão antecipatória se torne estável e o processo seja extinto.

A doutrina e a jurisprudência têm sustentado e admitido essa interpretação.

Sob a égide desse raciocínio, é interessante destacar que a ampliação dos meios de irresignação do requerido contra a tutela concedida antecipadamente trará benefícios, dentre os quais: o desestímulo à interposição de recursos e ao ajuizamento de ação autônoma pelo réu.

A admissão de recurso stricto sensu, como único meio processual com aptidão para evitar a estabilização da tutela, estimulará a interposição de agravos descompromissados, já que o intuito da norma é fazer com que o demandado demonstre a sua discordância com a medida deferida e o seu intento em prosseguir com o processo.

Ao obrigar a parte adversa a interpor um recurso, que nem mesmo precisa ser provido, com o único objetivo de impedir que os efeitos da decisão liminar se prolonguem pelo tempo e o processo seja desde logo extinto, o legislador estará indo de encontro a um dos propósitos do sistema processual civil contemporâneo, que é a diminuição na taxa de congestionamento dos Tribunais.

Se, no Brasil, a intenção legiferante foi a de desafogar o Poder Judiciário e promover a celeridade na prestação jurídica, como ocorreu na França e Itália, é imperioso perceber que a aplicação literal e restritiva do artigo 304 conduz a resultados contrários a esses.

Hoje, o Judiciário brasileiro assume um papel de notável relevância frente a sociedade como concretizador de garantias fundamentais asseguradas pela Carta Magna, por meio da resolução de conflitos submetidos a sua análise.

Diante disso, é crucial observar o alcance do dispositivo legal no contexto fático e social do Brasil, onde um dos principais problemas que dificulta a prestação jurisdicional é a morosidade, decorrente do volume, cada vez maior, de demandas levadas a juízo.

À título de comparação de institutos semelhantes, tem-se como exemplo o verificado no procedimento de ação monitória.

O procedimento monitório exige o oferecimento de embargos para que a decisão liminar não seja revestida de força executiva e forme título executivo judicial, visando, portanto, a celeridade do feito. Contudo, não tem sido esse o resultado esperado, uma vez que o devedor, na maioria das vezes, opõe-se ao provimento in limine litis por meio de embargos, apenas com o fito de suspender a eficácia do mandado monitório.

Por esse ângulo adverte Gonçalves (2018, p. 354): “Teme-se apenas que, tal como aconteceu com a ação monitória, que acabou não tendo a utilidade esperada, porque o devedor quase sempre opõe-se ao mandado por meio de embargos, ocorra o mesmo com a tutela satisfativa antecedente, e que a estabilidade, em vez de desestimular o ajuizamento de ações, incentive a interposição de recursos de agravo de instrumento, com a finalidade de evitá-la”.

Decerto, conferir a interpretação de que somente a interposição de recurso evita a estabilização, desnatura a respectiva finalidade recursal.

Segundo Dinamarco e Lopes (2016, p. 204) “Recurso é um ato de inconformismo mediante o qual a parte pede nova decisão diferente daquela que lhe desagrada ou prejudica”.

O recurso, no caso do art. 304 do CPC, não se emprega apenas para revisar ou revogar a decisão liminar, mas sim para persistir com a demanda e possibilitar ao recorrente a oportunidade de discutir sobre seus interesses em jogo.

A via recursal apresenta-se como mero instrumento para um objetivo distinto ao que se dedica.

Não convém aceitar que a própria lei estimule a propositura de recursos infundados, com pouca ou nenhuma chance de ser provido, uma vez que o mero ato de interposição, por si só, obsta a estabilização.

A ampliação dos meios processuais idôneos a evitar os efeitos do art. 304, do Codex em vigor, é pertinente para solucionar as inconveniências que a aplicação literal da norma ocasiona.

Eventual apresentação de contestação, portanto, requerendo o prosseguimento do feito, impugnando a medida concedida e resistindo à pretensão do autor, possui a mesma função de afastar a inércia do réu e, com isso, a estabilização. Além do mais, diminui o consequente aumento na taxa de congestionamento dos tribunais, provocado pela interposição de agravos sem compromisso com o resultado.

Constata-se que uma análise ampla do instituto, que permita outros meios de impugnação, desestimulará a interposição de recursos que só abarrotarão de modo desnecessário a segunda instância.

Aliás, entender dessa maneira também desestimulará o ajuizamento de ação autônoma por parte do réu.

Como visto, a legislação permite que qualquer um dos litigantes no processo ajuíze demanda para rever, reformar ou invalidar a tutela estabilizada.

Embora o processo ainda possa ser discutido dentro do prazo de 2 anos, após extinto em decorrência da estabilização, conforme prevê a lei, permitir que isso só aconteça se o demandado não agravar da liminar é estimular o ajuizamento da nova ação.

Isso porque, pode o requerido antecipar o protocolo de sua defesa e contestar a demanda e a decisão proferida, demonstrando seu intento em prosseguir com o processo e influir eficazmente no provimento decisório final. Logo, esse direito de obter uma prestação jurisdicional de mérito definitiva deve ser prestigiado para prevenir que seja intentada nova causa para debater o que não foi debatido no momento oportuno.

Não coaduna com a ideia de diminuir a carga de demandas no Poder Judiciário, nem com o princípio da celeridade, exigir que a cognição exauriente só seja possível por meio de um novo processo.

Dessa forma, a interpretação que amplia a possibilidade de não estabilizar a tutela provisória, através de outros meios, em especial a contestação, é benéfica para desestimular a propositura de novas demandas.

Deve-se atentar, ainda, que obrigar meios onerosos para a concretização do contraditório e da ampla defesa colide com a garantia a um processo devido, regulada na Constituição da República Federativa do Brasil.

Para deixar claro, aceitar a interpretação extensiva do art. 304 do Código de Processo Civil em benefício à necessidade de descongestionamento do Judiciário, à celeridade, bem como ao contraditório e à ampla defesa, não inviabiliza nem impede a aplicabilidade do instituto previsto na norma.

Note-se que é possível que o réu também não queira o prosseguimento do feito. Há razões para que ele prefira a extinção antecipada do processo, como por exemplo, a diminuição dos custos com a sucumbência e honorários advocatícios. Interpretação analógica que se faz do art. 701, caput e §1º do CPC[16].

Diante desses fatos, é preciso acolher as manifestações processuais feitas pelo requerido que contenham a finalidade objetivada pela norma.

Em síntese, não ignorando as diversas interpretações acerca do texto legal, a mais adequada é a que admite a ampliação dos meios de impugnação aptos a elidir a estabilização da tutela antecipada antecedente – admitindo, em especial, a contestação – tendo em vista o benefício de desestimular a interposição de recursos e o ajuizamento de ação autônoma pelo réu, o que contribui para o descongestionamento do Poder Judiciário.

 

CONCLUSÕES

O presente artigo teve por objeto o estudo da contestação como instrumento apto a afastar a estabilização da tutela antecipada antecedente.

A principal questão enfrentada neste trabalho fundamenta-se na defesa de uma interpretação extensiva da legislação processual. Isso porque, deve-se levar em conta toda a estrutura constitucional pela qual o processo civil é formado, bem como as finalidades precípuas de um instituto que foi inserido recentemente no ordenamento jurídico brasileiro.

Atualmente, o Poder Judiciário assume um papel de grande relevância frente a sociedade como concretizador de direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal Brasileira.

Nesse contexto, o modelo de processo civil contemporâneo é ordenado, disciplinado e interpretado de acordo com os valores e as normas fundamentais estabelecidos no texto constitucional.

Em Estados Democráticos de Direito, como o Brasil, o processo é pautado pela pluralidade, participação, isonomia e justiça.

Para isso, a Constituição de 1988, em seu art. 5º, inciso LIV, consagra, como princípio-base do processo, o devido processo legal, o qual será concretizado pelo contraditório e ampla defesa, princípios igualmente assegurados pela Lex Mater.

Nestes termos, o contraditório consubstancia o poder da parte de influenciar no conteúdo decisório do órgão jurisdicional, e a ampla defesa viabiliza esse direito mediante mecanismos e técnicas processuais.

Como visto, a observância desses preceitos é garantida através da utilização dos meios de defesa no processo civil, especialmente pela contestação.

Todavia, existem casos em que a urgência do direito pretendido pelo autor admite decisões liminares sem ouvir a parte contrária, ou seja, transferindo a realização do contraditório e da ampla defesa para momento posterior.

A tutela antecipada antecedente é, nessa hipótese, instrumento à disposição do autor para pleitear a satisfação antecipada de um direito que não suporta o lapso temporal comum de uma sentença de cognição exauriente, tendo em vista o perigo de dano contemporâneo à propositura da ação.

Em casos tais, a decisão que defere mencionada tutela, embora provisória, antecipa os efeitos práticos que seriam produzidos com a concessão definitiva da tutela pretendida, o que pode ser suficiente aos anseios do autor.

À vista disso, a legislação processual civil, no art. 304, sujeita o prosseguimento do feito à interposição de recurso pelo réu contra a medida concedida.

Trata-se de inovação legislativa promovida pelo Código de Processo Civil de 2015, inspirada em institutos semelhantes, como a référé provision na França e provvedimenti d´urgenza da Itália, com a finalidade de tornar eventual e facultativo o prosseguimento do processo para obter sentença de mérito, formada por cognição exauriente e amparada pela coisa julgada, quando as partes não manifestam mais interesse em discutir o conflito submetido ao Estado-juiz.

O legislador nacional ao trazer esse fenômeno para o ordenamento jurídico brasileiro visou à celeridade na prestação jurisdicional e a consequente diminuição da sobrecarga do Judiciário.

Sob esse prisma, alcançado o provimento provisório desejado pela parte e havendo inércia do demandado, a decisão concessiva de tutela antecipada antecedente, ainda que provisória, precária e inapta a tornar-se indiscutível pela coisa julgada, estabilizará seus efeitos e o processo será extinto, podendo ser revisto, reformado ou invalidado por meio de ação autônoma, dentro do prazo de 2 anos.

Questiona-se se referida consequência processual pode ser inviabilizada somente por meio da interposição de um recurso stricto sensu, no caso, o agravo de instrumento ou agravo interno.

Isto porque, a irresignação do réu contra a tutela deferida e o seu desejo de que a marcha processual siga normalmente pode ocorrer através de outros meios processuais, em especial a contestação, que é a principal peça de defesa de quem figura no polo passivo de uma lide.

Além do mais, a norma exige apenas a mera interposição e não necessariamente o provimento em vias recursais, o que revela, de forma inteligível, que o recurso tem por fim demonstrar a irresignação do requerido e o seu objetivo em seguir com a demanda.

Daí o entendimento, amparado pela doutrina e jurisprudência, de que a análise do dispositivo legal, que disciplina o assunto, deve considerar tanto as outras normas que integram o sistema jurídico, sobretudo as constitucionais (interpretação sistemática), como também o objetivo da lei, levando em conta o seu sentido e alcance (interpretação teleológica).

Com isso, depreende-se que a contestação também é instrumento processual que o réu pode se valer para mostrar sua não concordância com a decisão antecipatória deferida e o seu intento de que o processo não seja extinto, com vistas à obtenção de decisão com cognição mais profunda, passível de produzir coisa julgada material.

Essa compreensão é possível porque assegura a harmonização do instituto com o cumprimento da garantia constitucional ao devido processo legal, mediante os princípios do contraditório e da ampla defesa, tendo em vista que na contestação o réu pode alegar todas as matérias de ordem processual e material, possíveis de influir eficazmente na decisão da demanda, o que permite a concretização da dialética processual privilegiada pelo Estado Democrático de Direito.

Ademais, verifica-se que, se o réu não interpõe recurso, mas se insurge contra a decisão provisória na peça de contestação, ele objetiva a continuidade da demanda. Assim, a contestação terá a mesma função do recurso, que será demonstrar a irresignação da parte adversa e impedir que a tutela antecipada concedida em caráter antecedente se estabilize.

Tal raciocínio é concebível pois a finalidade da norma – que é a desnecessidade de exaurimento da cognição quando a parte requerida permanecer inerte face a decisão liminar concedida – será igualmente respeitada.

Infere-se que exigir um recurso financeiramente oneroso, ou, ainda, uma nova ação autônoma, igualmente onerosa, para que o réu possa exercer plenamente seu direito ao contraditório e a ampla defesa, com a possibilidade de poder influir na decisão final, é impedir o exercício ao direito de defesa.

A interpretação nesse sentido também equaciona os problemas que podem advir do exame literal do dispositivo legal.

A admissão de recurso stricto sensu como único meio processual com aptidão para evitar a estabilização da tutela estimulará a interposição de agravos descompromissados com o seu provimento, uma vez que a mera interposição já é o suficiente para impedir que o processo seja extinto.

De outro lado, impor que o processo só siga adiante se o demandado agravar da medida liminar é estimular o ajuizamento de uma nova ação autônoma, a fim de debater o que não foi debatido no momento oportuno.

Certamente, a contestação da lide e da decisão proferida demonstra o intento da defesa em prosseguir com o processo e influir eficazmente no provimento decisório final.

Não coaduna com a ideia de diminuir a carga de demandas no Poder Judiciário, nem com o princípio da celeridade, influenciar a interposição de um recurso, que nem mesmo precisa ser provido, bem como exigir que a cognição exauriente só seja possível por meio de um novo processo, quando o réu já tenha demonstrado o interesse em discutir a questão sub judice.

Dessa forma, é benéfico ampliar os meios de impugnação contra a tutela concedida antecipadamente, pois desestimulará a interposição de recursos e o ajuizamento de ação autônoma pelo réu.

A principal peça de defesa processual, nesses casos, demonstra a um só tempo o desejo de amplo debate acerca da pretensão em juízo com vistas à prolação de sentença de mérito e a irresignação em face da decisão concessiva de tutela antecipada antecedente.

Deve-se privilegiar a interpretação sistemática e teleológica do art. 304 do Código de Processo Civil em benefício à necessidade de descongestionamento do Judiciário; à celeridade, notadamente quando um dos maiores obstáculos à celeridade e efetividade da prestação jurisdicional é o excesso de demandas que sobrecarregam o Judiciário; bem como ao contraditório e à ampla defesa, o que não inviabiliza nem impede a aplicabilidade do instituto previsto na norma, pois estará cumprindo com a sua própria finalidade.

Conclui-se, portanto, que a contestação se apresenta como meio processual eficaz para impedir a produção do instituto da estabilização da técnica antecipatória antecedente, pois além de garantir o cumprimento dos preceitos constitucionais, cumpre com a finalidade da norma e ainda evita a interposição de ações autônomas e recursos sem compromisso, beneficiando a celeridade e a diminuição na taxa de congestionamento do Poder Judiciário.

 

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[1]Advogada inscrita na OAB/SE. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Judicial do Estado de Sergipe. E-mail: [email protected]

[2] Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

[3] Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.

Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I – à tutela provisória de urgência; II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III – à decisão prevista no art. 701.

[4] Art. 337. Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar: I – inexistência ou nulidade da citação; II – incompetência absoluta e relativa; III – incorreção do valor da causa; IV – inépcia da petição inicial; V – perempção; VI – litispendência; VII – coisa julgada; VIII – conexão; IX – incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização; X – convenção de arbitragem; XI – ausência de legitimidade ou de interesse processual; XII – falta de caução ou de outra prestação que a lei exige como preliminar; XIII – indevida concessão do benefício de gratuidade de justiça.

[5] Agravo de Instrumento nº 201800807766 nº único 0002402-57.2018.8.25.0000 – 2ª CÂMARA CÍVEL, Tribunal de Justiça de Sergipe – Relator(a): Alberto Romeu Gouveia Leite – Julgado em 22/05/2018.

[6] Art. 5º (…)

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

[7] Article 488 L’ordonnance de référé n’a pas, au principal, l’autorité de la chose jugée. Elle ne peut être modifiée ou rapportée en référé qu’en cas de circonstances nouvelles.

[8] Art. 669-octies. (agg.6) (Provvedimento di accoglimento) do Codice Di Procedura Civile: “L’ordinanza di accoglimento, ove la domanda sia stata proposta prima dell’inizio della causa di merito, deve fissare un termine perentorio non superiore a sessanta giorni per l’inizio del giudizio di merito, salva l’applicazione dell’ultimo comma dell’articolo 669 novies. (…) Le disposizioni di cui al presente articolo e al primo comma dell’articolo 669-novies non si applicano ai provvedimenti di urgenza emessi ai sensi dell’articolo 700 e agli altri provvedimenti cautelari idonei ad anticipare gli effetti della sentenza di merito, previsti dal codice civile o da leggi speciali, nonche’ ai provvedimenti emessi a seguito di denunzia di nuova opera o di danno temuto ai sensi dell’articolo 688, ma ciascuna parte puo’ iniziare il giudizio di merito.”

[9] Art. 669-octies. (agg.6) (Provvedimento di accoglimento) do Codice Di Procedura Civile: “(…) L’estinzione del giudizio di merito non determina l’inefficacia dei provvedimenti di cui al ((sesto comma)), anche quando la relativa domanda e’ stata proposta in corso di causa.”

[10] Art. 669-octies. (agg.6) (Provvedimento di accoglimento) do Codice Di Procedura Civile: “(…) L’autorita’ del provvedimento cautelare non e’ invocabile in un diverso processo.”

[11] Art. 702. Independentemente de prévia segurança do juízo, o réu poderá opor, nos próprios autos, no prazo previsto no art. 701 , embargos à ação monitória.

[12] Art. 288. Não sendo contestado o pedido, os fatos alegados pelo requerente presumir-se-ão aceitos pelo requerido como verdadeiros, caso em que o juiz decidirá dentro de cinco dias.

(…)

  • 2º. Concedida a medida em caráter liminar e não havendo impugnação, após sua efetivação integral, o juiz extinguirá o processo, conservando a sua eficácia.

[13] Art. 281. Não sendo contestado o pedido, os fatos alegados pelo requerente presumir-se-ão aceitos pelo requerido como verdadeiros, caso em que o juiz decidirá dentro de cinco dias.

(…)

  • 2º. Concedida a medida em caráter liminar e não havendo impugnação, após sua efetivação integral, o juiz extinguirá o processo, conservando a sua eficácia.

[14] Art. 1.021. Contra decisão proferida pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado, observadas, quanto ao processamento, as regras do regimento interno do tribunal.

[15] TUTELA PROVISÓRIA. TUTELA ANTECIPADA ANTECEDENTE. ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. ADAPTAÇÃO AO PROCESSO DO TRABALHO. ARTIGO 304 DO CPC. ARTIGOS 795 E 893, § 1º, DA CLT. Não sendo possível recorrer contra decisões interlocutórias de imediato, na Justiça do Trabalho, e considerando que a estabilização da demanda em que seja concedida tutela antecipada antecedente não exige o provimento, mas a mera interposição de agravo de instrumento, a parte reclamada poderá evitar a estabilização mediante simples registro de protesto na primeira oportunidade que lhe caiba falar nos autos.

[16] Art. 701. Sendo evidente o direito do autor, o juiz deferirá a expedição de mandado de pagamento, de entrega de coisa ou para execução de obrigação de fazer ou de não fazer, concedendo ao réu prazo de 15 (quinze) dias para o cumprimento e o pagamento de honorários advocatícios de cinco por cento do valor atribuído à causa.

  • 1º O réu será isento do pagamento de custas processuais se cumprir o mandado no prazo.
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