Conversão de Tempo Especial em Comum: Tempo Ficto? Uma Análise do Artigo 25, § 2º, da Emenda Constitucional n. 103/2019

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Maria Clara Cezar de Andrade, advogada, inscrita na OAB/SP sob o n. 373.577, pós-graduada em Direito Previdenciário pela Faculdade Legale. Endereço eletrônico: [email protected]

Resumo: A Emenda Constitucional n. 103/2019, popularmente conhecida como Reforma da Previdência, trouxe mudanças profundas, sobretudo para a aposentadoria especial. O objetivo deste trabalho, tendo por base o estudo bibliográfico de autores renomados, é a análise do artigo 25, § 2º, desta emenda constitucional, que veda a conversão de tempo especial em comum após sua vigência. O legislador reformador partiu da premissa de que essa conversão se traduziria em tempo fictício de contribuição. No entanto, a conversão de tempo especial em comum decorre da própria aposentadoria especial, sendo que o tratamento diferenciado do trabalhador que exerce atividade especial está previsto no artigo 201, § 1º, da Constituição Federal de 1988. Assim, indaga-se: conversão de tempo especial em comum é tempo ficto?

Palavras-chave: Emenda Constitucional n. 103/2019. Reforma da Previdência. Aposentadoria especial. Conversão de tempo especial em comum. Tempo ficto.

 

Abstract: The Constitutional Amendment n. 103/2019, popularly known as Social Security Reform, brought profound changes, especially concerning the special retirement. The objective of this paper, based on the bibliographic study of renowned authors, is the analysis of article 25, § 2, of this constitutional amendment, which prohibits the conversion from special to common time after its validity. The reforming legislator started from the premise that this conversion would translate into fictitious contribution time. However, the conversion from special to common time results from the special retirement itself, and the differentiated treatment of the worker who performs special activity is provided by the article 201, § 1º, of the Federal Constitution of 1988. Thus, the question is: is the conversion from special to common time fictitious?

Keywords: Constitutional Amendment n. 103/2019. Social Security Reform. Special retirement. Conversion from special to common time. Fictitious time.

 

Sumário: Introdução. 1. A aposentadoria especial sob o prisma do princípio da igualdade. 2. A natureza jurídica da conversão de tempo. 3. Conversão de tempo especial em comum: tempo ficto? 4. O artigo 25, § 2º, da Emenda Constitucional n. 103/2019. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Já dizia o jurista Miguel Reale (1983, p. 113) que “o Direito autêntico não é apenas declarado mas reconhecido, é vivido pela sociedade, como algo que se incorpora e se integra na sua maneira de conduzir-se”, chegando à conclusão de que “a regra de direito deve, por conseguinte, ser formalmente válida e socialmente eficaz” (grifos nossos).

 

A Emenda Constitucional n. 103/2019 (EC n. 103/2019), conhecida como Reforma da Previdência, completou dois anos de vigência em 13 de novembro de 2021. Trouxe mudanças profundas nas regras para a concessão de benefícios previdenciários no Regime Geral de Previdência Social, além de dispor sobre o Regime Próprio de Previdência Social dos servidores públicos federais.

 

Um dos benefícios previdenciários que mais foram alterados com a reforma foi a aposentadoria especial, que, resumidamente, pode ser definida como a jubilação destinada ao segurado exposto em seu ambiente de trabalho a agentes prejudiciais à sua saúde ou integridade física.

 

A exigência de idade mínima, prevista no artigo 19, § 1º, da EC n. 103/2019 até que lei complementar verse sobre a matéria, foi a mudança mais divulgada nos meios de comunicação sobre a aposentadoria especial.

 

O objetivo deste trabalho é analisar o artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019, que veda a conversão de tempo especial em comum, observando-se que o dispositivo garante essa conversão até a data de publicação da EC n. 103/2019, desde que o segurado comprove o exercício de atividade sujeita a condições especiais que efetivamente prejudiquem sua saúde.

 

É de se destacar que o caput do referido artigo 25 da EC n. 103/2019 assegura a contagem de tempo ficto de contribuição no Regime Geral de Previdência Social até a data de entrada em vigor da reforma, visto que o § 14 do artigo 201 da Constituição Federal, também introduzido pela EC n. 103/2019, impossibilita a contagem de tempo fictício para a concessão de benefícios previdenciários.

 

Assim, evidente que o legislador reformador partiu do pressuposto de que a conversão de tempo especial em comum se traduz em tempo fictício de contribuição.

 

Neste artigo busca-se averiguar se a conversão de tempo especial em comum seria realmente tempo ficto, com base no estudo bibliográfico de autores renomados, sobretudo no campo da aposentadoria especial.

 

Essa pesquisa se justifica porque, como bem apontam João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 113):

 

“A experiência jurisdicional em matéria previdenciária mostra que grande número – senão a maioria – das demandas cujo objeto seja a concessão de aposentadorias voluntárias pelo Regime Geral de Previdência Social envolve, ao menos em parte, a análise e o reconhecimento de períodos de atividade considerada especial e, consequentemente, seu aproveitamento para fins de acréscimo do tempo de contribuição, do que resulta a evidente relevância da análise da validade da norma restritiva.”

 

Além disso, está em tramitação no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6309 (ADI n. 6309), ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (CNTI), em que se pleiteia a inconstitucionalidade do artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019, juntamente com outros pedidos.

 

O que se pode indagar de início é se a vedação da conversão de tempo especial em comum seria socialmente eficaz, uma vez que o segurado exposto a agentes prejudiciais à sua saúde ou integridade física por tempo inferior ao exigido (15, 20 ou 25 anos) verá esse período contabilizado como se comum fosse.

 

  1. A APOSENTADORIA ESPECIAL SOB O PRISMA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A conversão de tempo especial em comum é decorrência da aposentadoria especial, destinada ao segurado exposto a agentes prejudiciais à saúde ou integridade física em seu ambiente de trabalho. Logo, é essencial estudar o objetivo desse benefício previdenciário, que em princípio visa dar tratamento isonômico ao segurado exposto a riscos.

 

No tocante à natureza jurídica da aposentadoria especial, há doutrinadores que defendem que esse benefício é uma espécie de aposentadoria por tempo de contribuição, ou mesmo uma forma de aposentadoria por invalidez.

 

A professora Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 31) não concorda que a aposentadoria especial seja uma espécie de aposentadoria por tempo de contribuição, pois possui requisitos e características próprias, que a diferenciam dos demais benefícios previdenciários.

 

Ainda segundo Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 32-33), também não há que se entender a aposentadoria especial como uma forma de aposentadoria por invalidez, pois o que se busca é a proteção do trabalhador:

 

“Também não há que se falar que a natureza jurídica da aposentadoria especial seja modalidade de aposentadoria por invalidez. Apesar de a Lei 8.213/1991, art. 57, § 8º, exigir a saída do segurado do ambiente pernicioso, sob pena de cancelamento do benefício (art. 46 da Lei 8.213/1991), não há impedimento algum para que exerça outra atividade que não o exponha a agentes agressivos prejudiciais à saúde. O benefício deve ser suspenso durante o período em que se continua exercendo atividade exposta à nocividade, devendo, no entanto, ser restabelecido imediatamente após cessar seu labor nesse ambiente que o levou à obtenção do benefício especial.

Ressalta-se que a pretensão do legislador ordinário, quando instituiu a aposentadoria especial em 1960, foi a proteção do trabalhador. Por essa razão, retirava-o da exposição ao agente agressivo pela aposentadoria antes que padecesse de alguma doença, protegendo-o. (…) Entretanto, a saída do empregado não presume sua invalidez.” (grifos nossos)

 

Sobre essa proteção do trabalhador, o professor Carlos “Cacá” Domingos (2020, p. 23) traz a ideia de que a finalidade da aposentadoria especial é a de fornecer uma indenização social ao segurado, o que também não se confunde com aposentadoria por invalidez:

 

(…) apesar de inserir a jubilação especial no gênero aposentadoria por tempo, MARTINEZ afirma que `a doutrina tem como assente tratar-se de indenização social pela exposição aos agentes nocivos ou possibilidade de prejuízos à saúde ou integridade física do trabalhador, distinguindo-a da aposentadoria por tempo de contribuição e da aposentadoria por invalidez.´”

 

Carlos “Cacá” Domingos (2020, p. 23) também elenca o entendimento do jurista Sergio Pinto Martins no sentido do benefício ter como objetivo “compensar o trabalho do segurado que presta serviços em condições adversas à sua saúde ou desempenha atividade com riscos superiores aos normais.”

 

Já Diego Henrique Schuster (2021, p. 83) vai além da compensação e defende que a aposentadoria especial visa a prevenção ou precaução de danos à saúde ou integridade física:

 

“(…) a doutrina rompeu com a ideia de `compensação´, que, inevitavelmente, faz referência ao dano – como aceitável – para defender que a aposentadoria especial tem como finalidade oferecer possibilidade de prevenção/precaução contra danos à saúde e/ou integridade física/mental do trabalhador (…). Isso nada mais é – e, por isso, é muito – do que deixar ingressar no cenário jurídico (Direito Previdenciário) uma nova concepção de Previdência Social, comprometida com a gestão dos riscos no meio ambiente de trabalho.” (grifos nossos)

 

Assim, é de se entender que a aposentadoria especial possui natureza preventiva. Ainda em relação à proteção do trabalhador, Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 34-35) destaca que:

 

“A incapacidade para o trabalho ainda não tinha ocorrido de fato ou poderia nem vir a ocorrer. O segurado trabalhava durante um determinado tempo limite (15, 20 ou 25 anos), exposto a agentes agressivos e, depois de completado esse tempo, a lei permitia que se aposentasse. O escopo da lei era protegê-lo e não permitir a ocorrência efetiva da incapacidade. O evento protegido não era a incapacidade, mas a exposição a agentes agressivos. A lei estabelecia apenas um limite temporal como base para a prevenção da saúde do trabalhador. A aposentadoria especial, portanto, tinha natureza preventiva, pois exigia o afastamento do segurado do ambiente pernicioso após aposentar-se pela especial.”  (grifos nossos)

 

Isso é o que também defende Carlos “Cacá” Domingos (2020, p. 24):

 

“É um benefício de natureza preventiva, que permite ao segurado exposto a agentes nocivos físicos, químicos, biológicos, ou à associação destes agentes, `retirar-se aos seus aposentos´ mais cedo, com o fito de preservar o que ainda lhe resta de saúde, minada justamente devido à exposição insalutífera ao longo de 15, 20 ou 25 anos”.

 

Partindo dessa natureza preventiva da aposentadoria especial, destaca-se que a Emenda Constitucional n. 20/1998 (EC n. 20/1998) conferiu nova redação ao § 1º do artigo 201 da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), dando status constitucional à possibilidade de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria ao segurado que exerça atividades especiais prejudiciais à sua saúde ou integridade física. Nas palavras de Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 36), “(…) o Texto Constitucional determinou que os segurados expostos a agentes agressivos tivessem tratamento diferenciado, não sendo possível considerar igualmente os períodos de atividades especiais como os períodos de atividades comuns.”

 

Dessa forma, o princípio da igualdade, insculpido no caput do artigo 5º da CF/1988, é a base que sustenta a aposentadoria especial. Para os constitucionalistas Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2010, p. 156):

 

“Na disciplina do princípio da igualdade, o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereciam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições.”  (grifos nossos)

 

Para Diego Henrique Schuster (2021, p. 69), a aposentadoria especial parte da presunção de um dano futuro, o que justifica a aplicação dos princípios da igualdade e da prevenção:

 

“A aposentadoria especial tem como fundamento a presunção de um dano futuro, devendo o risco ser percebido pelo binômio probabilidade/magnitude. Isso justifica a aplicação, ao trabalhador segurado, dos princípios da igualdade, no sentido de lhe conferir um tratamento diferenciado, e da prevenção (em sentido lato), no sentido de antecipar-se ao dano e internalizar o risco, com vistas à sua proteção.”

 

A EC n. 103/2019 manteve a redação do § 1º do artigo 201 da CF/1988 no tocante à adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria ao segurado exposto a condições prejudiciais à saúde ou integridade física, acrescentando a possibilidade de definição de idade e tempo de contribuição distintos da regra geral, mediante lei complementar.

 

Assim, em resumo, verifica-se que a aposentadoria especial é benefício previdenciário de natureza preventiva, calcado no princípio da isonomia, pois visa dar tratamento diferenciado ao segurado sujeito a riscos em seu ambiente de trabalho, não podendo a atividade especial ser contabilizada da mesma maneira que a atividade comum.

 

Dessa forma, a conversão de tempo especial em comum é decorrência da aposentadoria especial, objetivando dar proteção ao segurado que exerceu atividade especial mas não cumpriu o tempo mínimo de 15, 20 ou 25 anos, cabendo questionar se o legislador reformador teria acertado ao excluí-la do ordenamento jurídico pátrio, partindo do pressuposto de se tratar de tempo ficto.

 

  1. A NATUREZA JURÍDICA DA CONVERSÃO DE TEMPO

A aposentadoria especial é inaugurada na legislação brasileira com a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), em 1960. Anos depois, vem a conversão de tempo após a publicação da Lei n. 6.887/1980.

 

O professor Carlos “Cacá” Domingos (2020, p. 370-371) resgata a exposição de motivos referente ao anteprojeto da Lei n. 6.887/1980, mostrando ser clara a intenção do legislador de aperfeiçoar a proteção social do segurado, estabelecendo a diferença entre atividades especiais e atividades comuns por meio de fórmulas e percentuais:

 

“(…) estabelecer que os trabalhos exercidos em atividades insalubres, perigosas ou penosas quando não implementados os prazos previstos para aposentação especial, sejam computados a maior que os períodos de atividades comuns, sob fórmulas e percentuais a serem estabelecidos por esta Secretaria de Estado. Com tal medida, busca-se o aperfeiçoamento da proteção social ao segurado previdenciário, ao tempo em que se objetiva um critério justo para a conversão do período insalubre, penoso ou perigoso, em atividade comum, para fins de aposentadoria (…)”

 

Apesar da conversão de tempo só ter adquirido status legal em 1980, Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 207) relembra que o instituto já estava inserido nas regras internas do antigo INPS, concluindo que os decretos anteriores que regulamentavam a aposentadoria especial “já traziam a tabela de conversão por se tratar de um critério de equivalência e não de uma regra previdenciária” (grifos nossos):

 

“O referido direito de conversão já fazia parte das regras internas do INSS (antigo INPS), conforme previa a Norma de Serviço DNPS/PAPS 55, de 27.01.1967:

6.8 – Sempre que o segurado tenha exercido atividades distintas, para as quais sejam previstas, no Quadro referido no item 2.1, c, períodos mínimos diferentes para a concessão da aposentadoria, não tendo completado, em nenhuma delas, o prazo correspondente, serão somados os períodos de trabalho, depois de operada a homogeneização do grau de desgaste físico próprio de cada uma das atividades, de acordo com as relações apontadas na seguinte tabela (…)”

 

Posteriormente, destaca-se que a redação original do artigo 57, § 3º, da Lei n. 8.213/1991, nas palavras de João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 112) “(…) permitia a ampla conversão dos períodos de atividades especiais em comuns, e vice-versa, para fins de concessão de benefícios de aposentadoria por tempo de contribuição ou de aposentadoria especial”. Assim, eram possíveis as seguintes conversões: tempo especial em tempo comum; tempo comum em tempo especial; e tempo especial em tempo especial.

 

Ainda sobre o dispositivo supracitado, Carlos “Cacá” Domingos (2020, p. 142) destaca a previsão de ser a conversão de tempo um critério de equivalência. Veja-se:

 

“Art. 57, § 3º, Lei n. 8.213/1991 (redação original). O tempo de serviço exercido alternadamente em atividade comum e em atividade profissional sob condições especiais que sejam ou venham a ser consideradas prejudiciais à saúde ou à integridade física será somado, após a respectiva conversão, segundo critérios de equivalência estabelecidos pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, para efeito de qualquer benefício.” (grifos nossos)

 

Com a Lei n. 9.032/1995 deixou de ser possível a conversão de tempo comum em especial, mantendo-se as conversões de tempo especial em comum e tempo especial em tempo especial. Em seguida também foi intentada a retirada da conversão de tempo especial em comum no Regime Geral de Previdência Social, mas a situação foi superada anos antes da publicação da EC n. 103/2019.

 

Em 13 de novembro de 2019, com a publicação da EC n. 103/2019, se materializa a vedação à conversão de tempo especial em comum após a sua vigência, no artigo 25, § 2º. A conversão de tempo especial em tempo especial continua sendo possível, destacando Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 215) que “tanto é assim, que o Projeto de Lei Complementar 245/19, prevê sua regulamentação, tanto para a regra transitória, como na regra de transição” em seu artigo 6º, caput e § 1º.

 

No entender de João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 113), é evidente que na conversão de tempo, especialmente a de tempo especial em comum,

 

“Adotava-se a intuitiva premissa de que, exposto o segurado em seu trabalho a atividades nocivas à sua saúde ou à sua integridade física, fazia jus à alguma espécie de compensação (redução do tempo de contribuição) para fins de aposentadoria, seja esta aposentadoria comum por tempo de contribuição ou aposentadoria especial.”

 

Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 212) frisa a característica da conversão de tempo ser um critério de equivalência matemática, e não regra previdenciária, concluindo que:

 

“(…)  a conversão de tempo é o meio pelo qual os períodos de atividades com graus de nocividade distintos ou alternados entre comum e especial, possam ser convertidos, desde que haja dois ou mais períodos, aplicando-lhes os fatores de equivalência correspondentes, de modo a torná-los iguais e permitir que sejam somados.”

 

É também nesse sentido o entendimento de Carlos “Cacá” Domingos (2020, p. 140):

 

“Pode então a conversão de tempo de serviço ser entendida como uma operação matemática, mediante aplicação de índices previamente estabelecidos, hábeis a transformar o tempo de serviço/contribuição prestado em determinada condição (comum ou especial), naquele exigido para a espécie de aposentadoria que se almeja (comum ou especial), visando garantir o cômputo diferenciado do labor exercido em condições prejudiciais à saúde (ou à integridade física) do trabalhador.”

 

Tanto é assim que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Tema Repetitivo 423, correspondente ao Recurso Especial n. 1.151.363/MG, de relatoria do Ministro Jorge Mussi, firmou a seguinte tese:

 

CONVERSÃO DE TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL EM COMUM. OBSERVÂNCIA DA LEI EM VIGOR POR OCASIÃO DO EXERCÍCIO DA ATIVIDADE. DECRETO N. 3.048/1999, ARTIGO 70, §§ 1º E 2º. FATOR DE CONVERSÃO. EXTENSÃO DA REGRA AO TRABALHO DESEMPENHADO EM QUALQUER ÉPOCA.

  1. A teor do § 1º do art. 70 do Decreto n. 3.048/99, a legislação em vigor na ocasião da prestação do serviço regula a caracterização e a comprovação do tempo de atividade sob condições especiais. Ou seja, observa-se o regramento da época do trabalho para a prova da exposição aos agentes agressivos à saúde: se pelo mero enquadramento da atividade nos anexos dos Regulamentos da Previdência, se mediante as anotações de formulários do INSS ou, ainda, pela existência de laudo assinado por médico do trabalho.
  2. O Decreto n. 4.827/2003, ao incluir o § 2º no art. 70 do Decreto n. 3.048/99, estendeu ao trabalho desempenhado em qualquer período a mesma regra de conversão. Assim, no tocante aos efeitos da prestação laboral vinculada ao Sistema Previdenciário, a obtenção de benefício fica submetida às regras da legislação em vigor na data do requerimento.
  3. A adoção deste ou daquele fator de conversão depende, tão somente, do tempo de contribuição total exigido em lei para a aposentadoria integral, ou seja, deve corresponder ao valor tomado como parâmetro, numa relação de proporcionalidade, o que corresponde a um mero cálculo matemático e não de regra previdenciária.
  4. Com a alteração dada pelo Decreto n. 4.827/2003 ao Decreto n. 3.048/1999, a Previdência Social, na via administrativa, passou a converter os períodos de tempo especial desenvolvidos em qualquer época pela regra da tabela definida no artigo 70 (art. 173 da Instrução Normativa n. 20/2007).
  5. Descabe à autarquia utilizar da via judicial para impugnar orientação determinada em seu próprio regulamento, ao qual está vinculada. Nesse compasso, a Terceira Seção desta Corte já decidiu no sentido de dar tratamento isonômico às situações análogas, como na espécie (EREsp n. 412.351/RS).
  6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido. (Recurso Especial n. 1.151.363/MG. Terceira Seção do STJ. Relator: Ministro Jorge Mussi. Data do julgamento: 23/03/2011. grifos nossos)

 

Muito embora o STJ tenha definido a conversão de tempo como regra de equivalência matemática, Diego Henrique Schuster (2021, p. 90) alerta para o fato de que o princípio do tempus regit actum e a garantia do direito adquirido foram ignorados pela Corte ao se estabelecer que a lei vigente à época do requerimento da aposentadoria é a aplicável para a conversão de tempo.

 

Essa observação também é feita por Carlos “Cacá” Domingos (2020, p. 155):

 

Ao firmar o entendimento que somente a caracterização e a comprovação do labor especial devem obedecer a legislação vigente quando da prestação do serviço, e excluir a conversão da abrangência do princípio do tempus regit actum, determinando que na transformação de tempo são aplicadas as normas vigentes quando do requerimento administrativo, o STJ abriu temerário precedente, que culminou em outro posicionamento inadequado, o de não admitir a conversão de tempo comum em especial de períodos laborados antes de 28.4.1995, quando o regramento assim possibilitava, ferindo ato jurídico perfeito e o direito adquirido (…).

Não só a caracterização e a comprovação da labuta deletéria devem respeitar a legislação vigente quando do fato gerador (prestação do serviço especial), mas a conversão de tempo também, vez que, como dito à exaustão, se trata de simples regra matemática, não de direito.” (grifos nossos)

 

Assim, verifica-se que a conversão de tempo possui natureza jurídica de simples regra de equivalência matemática, visando igualar períodos comuns e especiais de trabalho, para que possam ser somados. Esse inclusive é o entendimento firmado pelo STJ, no entanto, é temerária a disposição no sentido de que aplica-se para a conversão de tempo a regra vigente quando do requerimento do benefício, ainda mais no atual cenário, com a publicação da EC n. 103/2019.

 

  1. CONVERSÃO DE TEMPO ESPECIAL EM COMUM: TEMPO FICTO?

A proibição de contagem de tempo fictício de contribuição foi instituída aos servidores públicos no artigo 40, § 10, da CF/1988 pela EC n. 20/1998. Em relação aos segurados do Regime Geral de Previdência Social, a EC n. 103/2019 acrescentou o § 14 ao artigo 201 da CF/1988, no sentido de que “é vedada a contagem de tempo de contribuição fictício para efeito de concessão dos benefícios previdenciários e de contagem recíproca”. Nota-se que o legislador reformador partiu do pressuposto de que a conversão de tempo especial em comum seria classificada como tempo ficto, visto que o caput do artigo 25 da EC n. 103/2019 garante a contagem de tempo fictício até a entrada em vigor da emenda, e o § 2º especifica a conversão de tempo especial em comum. Assim, indaga-se: a conversão de tempo especial em comum é tempo ficto de contribuição?

 

Para João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 117), a finalidade da vedação à contagem de tempo ficto é de impedir a inclusão de períodos sem a correspondente contribuição no cálculo das aposentadorias, reforçando o caráter contributivo dos regimes previdenciários, no entanto, “o legislador reformador foi além e pretendeu dar-lhe um alcance substancialmente maior”.

 

Retomando a vedação à contagem de tempo fictício aos servidores públicos vinculados ao Regime Próprio de Previdência Social (art. 40, § 10, CF/1988), recentemente o Supremo Tribunal Federal julgou o Tema 942, correspondente ao Recurso Extraordinário n. 1.014.286/SP, tendo o Ministro Edson Fachin como redator do acórdão, fixando entendimento de que a conversão de tempo não se traduz em tempo ficto de contribuição:

 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. APOSENTADORIA ESPECIAL DE SERVIDOR PÚBLICO. ARTIGO 40, § 4º, III, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PEDIDO DE AVERBAÇÃO DE TEMPO DE SERVIÇO PRESTADO EM ATIVIDADES EXERCIDAS SOB CONDIÇÕES ESPECIAIS QUE PREJUDIQUEM A SAÚDE OU A INTEGRIDADE FÍSICA DO SERVIDOR, COM CONVERSÃO DO TEMPO ESPECIAL EM COMUM, MEDIANTE CONTAGEM DIFERENCIADA, PARA OBTENÇÃO DE OUTROS BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS. POSSIBILIDADE ATÉ A EDIÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 103/2019. DIREITO INTERTEMPORAL. APÓS A EDIÇÃO DA EC 103/2019, O DIREITO À CONVERSÃO OBEDECERÁ À LEGISLAÇÃO COMPLEMENTAR DOS ENTES FEDERADOS. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONFERIDA PELO ART. 40, § 4º-C DA CRFB.

  1. A Constituição impõe a construção de critérios diferenciados para o cômputo do tempo de serviço em condições de prejuízo à saúde ou à integridade física, conforme permite verificar a interpretação sistemática e teleológica do art. 40, § 4°, CRFB.
  2. Desde a edição das Emendas Constitucionais 20/1998 e 47/2005, não há mais dúvida acerca da efetiva existência do direito constitucional daqueles que laboraram em condições especiais à submissão a requisitos e critérios diferenciados para alcançar a aposentadoria. Nesse sentido é a orientação desta Suprema Corte, cristalizada no verbete de n.º 33 da Súmula da Jurisprudência Vinculante: “Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras do regime geral da previdência social sobre aposentadoria especial de que trata o artigo 40, § 4º, inciso III da Constituição Federal, até a edição de lei complementar específica.”
  3. Ao permitir a norma constitucional a aposentadoria especial com tempo reduzido de contribuição, verifica-se que reconhece os danos impostos a quem laborou em parte ou na integralidade de sua vida contributiva sob condições nocivas, de modo que nesse contexto o fator de conversão do tempo especial em comum opera como preceito de isonomia, equilibrando a compensação pelos riscos impostos. A conversão surge, destarte, como consectário lógico da isonomia na proteção dos trabalhadores expostos a agentes nocivos.
  4. Após a EC 103/2019, o § 4º-C do art. 40 da Constituição, passou a dispor que o ente federado poderá estabelecer por lei complementar idade e tempo de contribuição diferenciados para aposentadoria de servidores cujas atividades sejam exercidas com efetiva exposição a agentes químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação desses agentes, vedada a caracterização por categoria profissional ou ocupação. Não há vedação expressa ao direito à conversão do tempo comum em especial, que poderá ser disposta em normativa local pelos entes federados, tal como operou a legislação federal em relação aos filiados ao RGPS, nos termos do art. 57, da Lei 8213/91.
  5. Recurso extraordinário desprovido, com fixação da seguinte tese: “Até a edição da Emenda Constitucional nº 103/2019, o direito à conversão, em tempo comum, do prestado sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física de servidor público decorre da previsão de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a jubilação daquele enquadrado na hipótese prevista no então vigente inciso III do § 4º do art. 40 da Constituição da República, devendo ser aplicadas as normas do regime geral de previdência social relativas à aposentadoria especial contidas na Lei 8.213/1991 para viabilizar sua concretização enquanto não sobrevier lei complementar disciplinadora da matéria. Após a vigência da EC n.º 103/2019, o direito à conversão em tempo comum, do prestado sob condições especiais pelos servidores obedecerá à legislação complementar dos entes federados, nos termos da competência conferida pelo art. 40, § 4º-C, da Constituição da República”. (Recurso Extraordinário n. 1.014.286/SP. Tribunal Pleno. Redator do acórdão: Ministro Edson Fachin. Julgado em: 31/08/2020. grifos nossos)

 

Segundo João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 128), o referido precedente escancara “a indissociável relação existente entre o direito à aposentadoria especial propriamente dita e à contagem diferenciada do tempo de atividade especial, como facetas de um mesmo fenômeno”. Os autores também destacam trecho do voto do Ministro Marco Aurélio, nessa mesma linha:

 

“(…) Não se trata de contagem alcançada pelo artigo 40, § 10, da Carta da República, no que preceitua não poder a lei estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício. Em primeiro lugar, o tempo de contribuição existe, no caso, estando ligado ao período trabalhado em condições nocivas à saúde. Em segundo, a vedação constitucional abarca a consideração de períodos em que não haja trabalho propriamente dito. Na espécie, há apenas a observância do trato diferenciado previsto, em termos de aposentadoria, quando o ambiente onde são desempenhadas as funções se mostra prejudicial à saúde. Em síntese, não é o fato de o prestador não completar o tempo mínimo para a aposentadoria especial que implicará a perda da contagem do período de forma própria, mitigando-se os efeitos danosos a que esteve submetido. (…)” (grifos nossos)

 

Diego Henrique Schuster (2021, p. 85), ao tratar do julgamento do Tema 942, extrai parte do voto do Ministro Edson Fachin, em que o julgador afirma que a conversão não seria contagem de tempo ficto, mas sim um ajuste da relação de trabalho:

 

“(…) não procede o argumento de que o fator de conversão seria uma forma de contagem de tempo ficto. Trata-se, tão somente, de um ajuste da relação de trabalho, submetida a condições especiais, calcado, como aponta a. d. PGR, ´na mediação da premente necessidade da coletividade de certos serviços, ainda que danosos à saúde e segurança, com a proteção àquele que os exerce. Reflete, ademais, os imperativos constitucionais da valorização social do trabalho, como fundamento da República, e da redução dos riscos inerentes ao trabalho, como direito.” (grifos nossos)

 

Ainda no tocante a esse precedente, João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 130) concluem que a importância dele está no reconhecimento de que a contagem diferenciada de períodos de atividade especial, seja para servidores públicos ou segurados do Regime Geral de Previdência Social, é consequência da adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria ao trabalhador que exerça atividades em condições prejudiciais à sua saúde ou integridade física.

 

De fato, para Diego Henrique Schuster (2021, p. 85), o período resultante da operação de conversão de tempo especial em comum  não é ficto, tendo o condão de estabelecer relação de proporcionalidade com o tempo necessário para a aposentadoria por tempo de contribuição:

 

“(…) resta claro que o tempo resultante da conversão do tempo especial não é ficto. Segundo Marcelo Barroso Lima Brito de Campos: “Não se trata de tempo ficto, mas de tempo real convertido para outra modalidade de aposentadoria.” A finalidade da conversão é, simplesmente, estabelecer uma relação de proporcionalidade com o tempo necessário para a concessão de uma aposentadoria por tempo de contribuição. Assim, sendo possível o reconhecimento de qualquer período como tempo de serviço especial, é devida a sua conversão em comum, nas regras de transição da aposentadoria por tempo de contribuição e para fins do aumento de coeficiente de cálculo na nova aposentadoria por idade.” (grifos nossos)

 

Tanto a conversão de tempo se caracteriza como mero ajuste de períodos trabalhados, que continua sendo possível na aposentadoria por tempo de contribuição da pessoa com deficiência, e na própria conversão de tempo especial em tempo especial, como destaca Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 131).

 

Assim, é de se concluir que a conversão de tempo especial em comum não acrescenta tempo ficto de contribuição à contagem do segurado, visto que de fato houve trabalho realizado, além da conversão se traduzir em mero critério de equivalência para períodos de labor em condições distintas, o que ainda é possível na aposentadoria por tempo de contribuição da pessoa com deficiência e na conversão de tempo especial em tempo especial.

 

  1. O ARTIGO 25, § 2º, DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 103/2019

No tocante à interpretação da lei, mais uma vez Miguel Reale (1983, p. 285) aponta que em princípio é importante “(…) compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondam àqueles objetivos.”

 

O artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019 reconhece até a entrada em vigor da emenda a conversão de tempo especial em comum do segurado vinculado ao Regime Geral de Previdência Social, desde que comprove o exercício de atividade especial que efetivamente prejudique sua saúde. Atualmente tramita no Supremo Tribunal Federal a ADI n. 6309, em que se pleiteia a inconstitucionalidade do referido dispositivo da EC n. 103/2019, além de outros pedidos.

 

Em primeiro lugar, destaca-se que quando o legislador reformador condiciona a conversão de tempo especial em comum ao exercício de atividade especial que efetivamente prejudique a saúde do segurado, está inserindo critério novo para situação pretérita já consolidada, visto que efetiva exposição é diferente de efetivo prejuízo à saúde, não podendo a EC n. 103/2019 retroagir seus efeitos (art. 1º, § 2º, LINDB), segundo Adriane Bramante de Castro Ladenthin (2020, p. 231). A autora ainda salienta que o dispositivo é omisso em relação à exposição de agentes prejudiciais à integridade física.

 

Ainda, a exigência de efetivo dano à saúde é temerária, pois retira a proteção intentada ao segurado, de acordo com Diego Henrique Schuster (2021, p. 89):

 

“Admitir a exigência de efetivo dano significa não proteger os trabalhadores contra doenças com longo período de latência, que tem como causa a contínua absorção ou contato com agentes químicos, cujo intervalo de tempo entre a causa e manifestação de qualquer efeito prejudicial é grande (e.g. benzeno, hidrocarbonetos aromáticos, para citar apenas essas substâncias cancerígenas). Difícil, portanto, é calcular os riscos e prejuízos para os indivíduos que serão afetados e que ainda não nasceram.”

 

A base da aposentadoria especial é o princípio da isonomia, conforme constatou-se em tópico anterior, reforçando “um tratamento diferenciado para os segurados que colocam em risco sua saúde e/ou integridade física”, para Diego Henrique Schuster (2021, p. 76). Assim, quando a EC n. 103/2019 veda a conversão de tempo especial em comum após sua vigência, João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 121) defendem que há violação à isonomia material, “na medida em que estabelece tratamento claramente distinto a segurados em situação absolutamente análoga”. É que o exercício de atividade especial continua sendo realizado, mesmo que inferior a 15, 20 ou 25 anos.

 

Aliás, essa distinção aplicada aos segurados que não cumpriram os prazos de 15, 20 ou 25 anos de atividade especial, ainda de acordo com João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 123), “mostra-se flagrantemente arbitrária e, além de conferir um tratamento indigno ao trabalhador, desconsidera o valor social do seu trabalho, malferindo assim dois fundamentos da própria República (CF, art. 1º, III e IV)”.

 

De fato, verifica-se a contradição entre o artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019 e o artigo 201, § 1º, da CF/1988, uma vez que o primeiro impossibilita a conversão de tempo e o segundo determina o tratamento diferenciado a todo segurado que exerce atividade especial, nas palavras de Diego Henrique Schuster (2021, p. 86):

 

“Numa perspectiva sistêmica, poder-se-ia falar num `conflito intra-sistêmico´ ou, do ponto de vista da dogmática jurídica, em uma verdadeira `antinomia constitucional´, já que é flagrante a contradição entre o artigo 201, § 1º, da CF e o dispositivo que veda a conversão do tempo de serviço especial em comum, posto que um artigo determina o tratamento diferenciado para quem trabalha sob condições especiais e o outro restringe sua utilização na prática.”

 

Esse entendimento é corroborado por Adriane Bramante de Castro Ladenthin em sua tese de doutorado (2020, p. 169):

 

“Há flagrante conflito de normas entre os artigos 201, § 1º e 25 da EC 103/19, cuja dissonância acerca da vedação da conversão, fere o mecanismo matemático que torna iguais os períodos laborados em condições diferentes, em cumprimento ao ditame constitucional da equivalência.”

 

Sobre o estudo constitucional da matéria, João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 124) frisam que a EC n. 103/2019 está sujeita ao controle judicial, “especialmente em face dos princípios que compõem o denominado núcleo duro da Carta Constitucional (direitos e garantias fundamentais), consubstanciando verdadeiras cláusulas pétreas, nos termos do seu art. 60, § 4º, IV”.

 

Aliás, os constitucionalistas Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2010, p. 31) destacam que além das cláusulas pétreas indicadas no artigo 60, § 4º, da CF/1988, são intocáveis por via de emenda os “(…) princípios constitucionais (objetivos e fundamentos do Estado brasileiro, constantes, respectivamente, do art. 3º e dos incisos do art. 1º da CF)”, figurando o valor social do trabalho como um dos fundamentos da República, conforme já exposto.

 

Em relação ao estudo da lei em si, veja-se que o princípio da proporcionalidade, que tem o escopo de ponderar os meios utilizados e os fins perseguidos, deve ser utilizado pelo intérprete em sua análise. Para Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2010, p. 110-111), “o princípio da proporcionalidade importa a aplicação razoável da norma, adequando-se, como dito, os meios aos fins perseguidos”. Por isso, afigura-se que o princípio em pauta confunde-se com o da razoabilidade, podendo as expressões serem utilizadas em sinonímia.”

 

É justamente a “incompatibilidade em relação aos subprincípios da adequação (relação entre o meio adotado e a finalidade almejada) e da proporcionalidade em sentido estrito (ponderação de interesses)” que é apontada por João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 125) em relação ao artigo 25, § 2º da EC n. 103/2019:

 

“Falta adequação à norma restritiva do art. 25, § 2º da EC 103/19, ao impedir todo e qualquer aproveitamento de períodos parciais de atividade especial, principalmente quando verificado que este mesmo critério distintivo – efeito nocivo de determinadas atividades sobre a saúde do segurado – serve de principal fundamento à própria existência da aposentadoria especial.”

 

No tocante à ponderação de interesses, João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 125-126) ainda demonstram que a restrição imposta pelo dispositivo em análise

 

“acaba por suprimir substancialmente a tutela previdenciária incidente nos casos de exercício de atividade especial por tempo insuficiente à concessão da aposentadoria especial, equiparando-a àquela assegurada aos segurados em geral, não submetidos aos mesmos agentes nocivos.”

 

Assim, tendo em vista que não há princípio que justifique a vedação contida no artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019, Diego Henrique Schuster (2021, p. 86-87) considera que a interpretação literal do texto fica prejudicada enquanto único fundamento válido, concluindo ser necessária

 

“(…) uma interpretação conjunta e simultânea dos arts. 7º, XXIII; 170; 193; 200, VIII; 201, § 1º; e 225, caput e V, para citar apenas esses. A norma que solucionará o conflito será fruto da interpretação desses artigos, sendo que o sentido atribuído aos seus textos deve ser construído sob a interpretação dos princípios que os fundamentam.

A Constituição de 1988 (…) conferiu ao cidadão o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, nele compreendido o meio ambiente laboral (art. 225); e determinou, como direito fundamental social dos trabalhadores, a `redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança´ (art. 7º, inc. XXII), com vistas a conservar a `existência digna´ do trabalhador (art. 170, caput), bem assim a condição da dignidade humana e a justiça social (art. 193), devendo, até mesmo o SUS, `colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido do trabalho´ (art. 200, inc. VIII). Isso tudo deságua no art. 201, § 1º, da CF.”

 

Por fim, em relação à constitucionalidade do artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI) entrou com a ADI n. 6309, juntamente com outros pedidos, referentes sobretudo à imposição de idade mínima para a aposentadoria especial. Recentemente o Supremo Tribunal Federal julgou o Tema 942, conforme já demonstrado, fixando a tese de que a conversão de tempo não é tempo ficto de contribuição. Assim, espera-se que neste caso a Suprema Corte considere inconstitucional a vedação à conversão de tempo especial em comum após a vigência da EC n. 103/2019. Na prática, para João Batista Lazzari e Fábio Nobre Bueno Brandão (2020, p. 130-131):

 

“Reconhecida a inconstitucionalidade do disposto no art. 25, §2º da EC n. 103/2019, deve ser aplicada a regra do art. 57, §5º da Lei n. 8213/1991 que foi recepcionada com força de lei complementar pela EC n. 20/1998 (art. 15). Deve-se, ainda, como consequência tornar-se sem efeito o art. 35, II, da EC n. 103/2019 quanto à revogação do art. 15 da EC n. 20/1998, para que não ocorra um vácuo legislativo quanto à regulação da conversão do tempo especial em comum.”

 

CONCLUSÃO

Este trabalho buscou analisar o artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019, partindo do pressuposto de que o legislador reformador vedou a conversão de tempo especial em comum daquele momento em diante por considerá-la tempo fictício de contribuição, já que a EC n. 103/2019 também incluiu o § 14 ao artigo 201 da CF/1988, proibindo a contagem de tempo ficto para a concessão de benefícios previdenciários.

A conversão de tempo especial em comum decorre da própria aposentadoria especial, benefício previdenciário de natureza preventiva que tem como alicerce o princípio da isonomia, pois visa dar tratamento diferenciado ao segurado exposto a riscos em seu ambiente de trabalho, não podendo a atividade especial ser contabilizada como se comum fosse. Isso, inclusive, é o que está previsto no artigo 201, § 1º, da CF/1988.

É de se destacar que a conversão de tempo especial em comum possui natureza jurídica de simples regra de equivalência matemática, objetivando igualar períodos comuns e especiais de trabalho, para que possam ser somados. Não se trata de regra previdenciária, portanto.

Aliás, justamente por ser mero critério de equivalência entre períodos comuns e especiais de trabalho, entende-se ser incompatível considerar a conversão de tempo especial em comum como tempo ficto de contribuição. Veja-se que de fato houve trabalho exercido pelo segurado, além das conversões continuarem sendo possíveis na aposentadoria por tempo de contribuição da pessoa com deficiência e na conversão de tempo especial em tempo especial.

Há contradição entre o artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019 e o artigo 201, § 1º, da CF/1988, visto que o primeiro impossibilita a conversão de tempo e o segundo determina o tratamento diferenciado a todo segurado que exerce atividade especial, destacando-se que o texto constitucional não reduz a benesse à atividade especial exercida por 15, 20 ou 25 anos.

Assim, quando o legislador reformador veda a conversão de tempo especial em comum, entende-se que está afrontando o princípio da isonomia material, conferindo tratamento diverso a segurados na mesma situação.

Dessa forma, conclui-se que a regra prevista no artigo 25, § 2º, da EC n. 103/2019 não é socialmente eficaz, esperando-se que seja considerada inconstitucional pela Suprema Corte quando do julgamento da ADI 6309.

 

REFERÊNCIAS

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LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria especial: teoria e prática. 5. ed. – Curitiba: Juruá, 2020.

 

LADENTHIN, Adriane Bramante de Castro. Aposentadoria especial após a EC 103/2019. 2020, 197 f. Tese (Doutorado em Direito Previdenciário) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/23484/2/Adriane%20Bramante%20de%20Castro%20Ladenthin.pdf. Acesso em: 9 set. 2021.

 

LAZZARI, João Batista; BRANDÃO, Fábio Nobre Bueno. Reforma da Previdência (EC nº 103/2019): inconstitucionalidade da vedação à conversão do tempo de atividade especial em comum. Juris / Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio Grande. – Vol. 30, n. 2 (Jul./Dez. 2020) – Rio Grande: Ed. da FURG, 1982-. Disponível em: https://periodicos.furg.br/juris/article/view/12231/8652. Acesso em: 3 set. 2021.

 

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 10. ed. rev. – São Paulo: Saraiva, 1983.

 

SCHUSTER, Diego Henrique. Aposentadoria especial e a nova previdência: os caminhos do direito previdenciário. 1. ed. – Curitiba: Alteridade, 2021.