Cotas raciais nas universidades brasileiras: Legalização da discriminação

Resumo: O sistema de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, implantado como políticas afirmativas para diminuir as diferenças sociais existentes entre brancos e negros, causadas pelo sistema escravagista dos séculos XVIII e XIX, foi adotado como política social de desenvolvimento, porém sua efetivação contraria os preceitos constitucionais. Este modelo de afirmação foi historicamente mal sucedido nos Estados que o adotaram e sua aplicação no Brasil poderá gerar diversos tipos de discriminações, assim como beneficiar uns em prejuízo de outros, utilizando critérios absolutamente injustos e inconstitucionais.


Palavras-chave: cotas raciais; discriminação; preconceitos; ações afirmativas; igualdade.   


Abstract: The system of racial quotas in Brazilian public universities, implemented as affirmative policies to reduce social differences between blacks and whites, caused by the slavery of the eighteenth and nineteenth centuries, was adopted as policy for social development, but its effectiveness against the constitutional precepts. This type of statement was historically unsuccessful in states that adopted in Brazil and their application can generate various types of discrimination, as well as some benefit to the detriment of others, using criteria absolutely unfair and unconstitutional.


Key words: racial quotas, discrimination, prejudice, affirmative action, equal.


Sumário: 1. Introdução. 2. Sistema de cotas. 3. Amparo normativo-juridico do sistema de cotas. 4. Proteção ao sistema jurídico de cotas e o sistema judiciário brasileiro. 5. Reflexão final.


1 INTRODUÇÃO


Este artigo versa sobre o sistema de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, defendida pelo projeto de Lei N.º 180/08, que utiliza o critério cor da pele para beneficiar pretos[1] e pardos ao ingresso no ensino superior, sob o argumento de proporcionar um resgate social àqueles que foram ao longo da história discriminados.


Com o intuito de demonstrar a falta de coerência na aplicabilidade desse modelo de ação afirmativa no Brasil, o trabalho quer indicar que a pigmentação da pele dos brasileiros não pode determinar quem está ou não apto a ingressar na universidade.


Embora o sistema escravagista, dos séculos XVIII e XIX, tenha causado danos de incalculáveis proporções a todos que dele foram vítimas, não se pode querer minimizar suas consequências, facilitando a entrada dos brasileiros que possuem uma tez mais escura na universidade.


O artigo está dividido em capítulos, cada um vinculado a uma questão pertinente sobre o tema abordado. Primeiro será abordado um estudo sobre o sistema de cotas raciais, a sua origem, os países que o adotaram, os resultados obtidos e a experiência dos estados brasileiros que implantaram o sistema.


Em seguida, será discutido o amparo normativo jurídico do sistema de cotas, desenvolvendo um estudo sobre o princípio da igualdade, previsto no sistema normativo constitucional brasileiro.


Por ultimo, o artigo desenvolve um panorama sobre a proteção jurídica do direito subjetivo de cotas, apresentando alguns julgados sobre o assunto, nos diversos tribunais do país, nos âmbitos estaduais e federais, onde ressalta que ainda não é pacífica qualquer decisão sobre a aprovação ou não do sistema.


A pesquisa desenvolvida para concepção do artigo, foi concebida através da metodologia nas esferas investigativa e do ordenamento jurídico, utilizando artigos, livros, monografias de diversos autores, assim como amparou-se na Constituição Federal Brasileira e nas legislações infraconstitucionais.


2 SISTEMA DE COTAS


2.1 ORIGEM


O sistema de cotas raciais surgiu nos Estados Unidos da América, no ano de 1961, sob a presidência de John Kennedy, como uma forma de ação afirmativa voltada para combater os danos causados pelas leis segregacionistas que vigoraram entre os anos de 1896 e 1954, as quais impediam que os negros frequentassem a mesma escola que os brancos americanos.[2]


As ações afirmativas são políticas públicas e mecanismos de inclusão, concebidas por entidades públicas ou privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicionais, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos tem direito.[3]


O novo sistema não foi pacificamente aceito pela Corte americana, pois o ideal pretendido com a implantação do sistema de cotas perdeu o cunho igualitário, conforme relata André Tavares: “Entretanto, mais tarde, as ações afirmativas tornaram-se verdadeiras concessões de preferências, de benefícios […].”[4]


O problema foi analisado na justiça americana, no case Regents of the University of California x Bakke [marco inicial para decretar-se inconstitucional o sistema de cotas raciais nos EUA], onde o candidato Allan Bakke não foi admitido na Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em razão das políticas de cotas raciais, mesmo alcançando notas superiores a maioria dos aprovados por meio das cotas.[5]


No final dos anos 70, a Suprema Corte Americana declarou inconstitucionais as cotas para negros e outras minorias. O Juiz Anthony Kennedy em seu voto sobre as ações afirmativas declarou: “Preferências raciais, quando corroboradas pelo Estado, podem ser a mais segregacionista das políticas, com o potencial de destruir a confiança na constituição e na idéia de igualdade”.[6]


Oferecer proteção jurídica especial às parcelas da sociedade que costumam, ao longo da história, figurar em situação de desvantagem, a exemplo dos trabalhadores, consumidores, população de baixa renda, menores e mulheres, dentre outros, não é considerada atentatória a igualdade, na jurisprudência americana, porém o critério raça é visto de forma cautelosa por àquela corte.[7]


Recentemente, no ano de 2003, a justiça norte americana, julgou duas ações propostas contra a Universidade de Michigan com relação às políticas afirmativas que usam o critério racial para ingresso na Universidade e a Corte decidiu: “para cultivar um grupo de líderes com legitimidade aos olhos da cidadania é necessário que o caminho à liderança seja visivelmente aberto aos indivíduos talentosos e qualificados, de todas as raças e etnias”. [8]


As decisões americanas foram fundamentadas no art. 601 do Civil Rights Act de 1964 que previa:[9]


“Nenhuma pessoa nos Estados Unidos deve, em razão da raça, cor ou origem nacional, ser excluída da participação, os benefícios de ser negado, ou ser submetido a discriminação sob qualquer programa ou atividade que recebem assistência financeira federal.”[10]


O conceito de cor da pele (branco, pardo ou preto) possui significados diferentes, dependendo do local em que se esteja e da pessoa que faz tal avaliação. Um indivíduo pardo pode ser considerado branco para alguns e preto para outros. Da mesma forma, um pardo brasileiro, pode ser classificado como preto nos Estados Unidos e como branco na África.


A classificação racial é buscada, desde a antiguidade, pelos homens, que procuram diferenciar-se dos demais seres de sua espécie. Neste sentido o antropólogo alemão Johan Friedrich Blumenbach, foi o primeiro a dar nome às diferenças encontradas entre os indivíduos, sendo essa classificação denominada de “raça” pelo cientista. Com base na origem geográfica e alguns parâmetros morfológicos, em 1795, Blumenbach categorizou cinco raças: caucasóide, mongolóide, etiópica, americana e malaia.[11]


Contrariando a classificação de Blumenbach, em 1987 cientistas do mundo inteiro – através do consórcio internacional de sequenciamento do genoma humano – uniram-se para desvendar o código genético humano, sendo esse estudo chamado de Projeto Genoma[12]. Dentre diversas descobertas, os cientistas detectaram que a diferença genética dentre os grupos das mais diversas etnias é insignificante, não podendo, dessa forma, classificar os indivíduos por raça.


Dez anos após o início do projeto, Alan Templeton, um dos cientistas responsáveis pela pesquisa, declarou em entrevista para a revista ISTOÉ:


“Para que o conceito de raça tivesse validade científica, “essas diferenças teriam de ser muito maiores”. Ou seja, não importa a cor da pele, as feições do rosto, a estatura ou mesmo a origem geográfica de qualquer ser humano (traços que distinguem culturalmente as etnias): geneticamente, somos todos muito semelhantes”.[13]


O povo brasileiro é formado pelo resultado de uma miscigenação de várias etnias, logo identificar se o indivíduo é branco, negro, mameluco, caboclo, amarelo, dentre tantas outras cores presentes no sangue dos brasileiros não é uma tarefa fácil.


Para o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) existem oficialmente cinco termos aceitos para classificar a cor da pele dos Brasileiros: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Na década de 90, o instituto realizou um estudo específico sobre o tema e registrou mais de cem tonalidades diferentes de cor e raça.[14]


Verifica-se, então, que limitar a classificação da cor da pele dos brasileiros, apenas por “brancos” ou “negros”, causará (como vem causando) um grande conflito de identidade.


2.2 AS COTAS NO MUNDO


Ações afirmativas, como o sistema de cotas, foram implantadas em diversos países, como: Índia, Malásia, Sri Lanka, Nigéria, Estados Unidos, entre outros.[15]


Objetivando combater discriminações e eliminar desigualdades historicamente acumuladas, as ações afirmativas possuem um caráter temporário, uma vez que devem ser utilizadas apenas enquanto persistirem os desequilíbrios sociais do grupo beneficiado. Porém, nos países em que as ações afirmativas, do tipo sistema de cotas raciais, foram implantadas, os resultados não alcançaram seus objetivos.


Um economista americano, pesquisador de políticas públicas da Universidade de Stanford, chamado Thomas Sowell, escreveu o livro Ação Afirmativa ao Redor do Mundo, e em sua obra relatou que as políticas afirmativas fracassaram em todos os países onde foram adotadas.[16]


O sistema de cotas da Índia surgiu, no ano de 1950, para beneficiar os Dalits e outras pequenas tribos – considerados intocáveis ou impuros por não descenderem do Deus Brahma (divindade máxima do hinduísmo) e pertencerem a uma casta – que representavam 24% da população do país. Os intocáveis receberam o benefício como reparação da discriminação da qual eram vítimas por parte daqueles que pertenciam a uma Casta.[17]


As cotas atribuídas aos intocáveis e as tribos foram adotadas pela Constituição Federal da Índia [promulgada em 26 de janeiro de 1950] e concedendo-lhes, até os dias atuais, de 7,5% a 15% dos cargos na administração, nas assembléias parlamentares e na educação; tais medidas deveriam vigorar apenas pelo período de 10 anos, tempo considerado suficiente para haver o equilíbrio das oportunidades para todos, independente de Casta ou tribos.[18]


Após quase 60 anos de implantação do sistema, as cotas ainda estão em vigor na Índia, graças a algumas brechas encontradas na legislação indiana, sendo que mais de 52% da população é beneficiada por algum tipo de cota e 63% dos Dalits continuam analfabetos.[19]


O benefício concedido a um grupo específico gera grande desarmonia por parte daqueles que não foram ‘contemplados’, o que ocasiona o aparecimento de movimentos e pressões para que todos os excluídos do sistema possam ser ‘agraciados’.[20]


Suspender ou encerrar as ações [implantadas pelas políticas de cotas], mesmo que sua duração tenha sido previamente determinada, será sempre alvo de grandes críticas e nenhum político eleito ou em campanha, ousa retirar o benefício concedido e arriscar-se nos resultados eleitorais.


A falta de resultados efetivos na área da educação não foi o único prejuízo causado aos indianos: as discriminações odiosas e a falta de desenvolvimento social fizeram com que várias atrocidades, como assassinatos e apedrejamentos, fossem cometidas contra os intocáveis, crescendo mais de 50% entre as décadas de 1980 e 1990.[21]


Outro exemplo da frustrante adoção do sistema de cotas ocorreu no Sri Lanka, país que atingiu sua independência no ano de 1948 e deixou de ser uma colônia inglesa. A população é formada basicamente pelos cingaleses e tâmeis.


O país iniciou uma guerra civil após a promulgação de sua primeira constituição, pois a minoria tâmil formou um regime separatista para conseguir sua total independência dos cingaleses. A fim de apaziguar os conflitos, a Constituição do Sri Lanka foi reformada para eliminar os preceitos que garantiam direitos às minorias.[22]


Em 1972 foi introduzido o sistema distrital de cotas para permitir maiores oportunidades de ingresso nas universidades aos tâmeis. Porém, as consequências da guerra civil foram agravadas pelo novo sistema que inflamou as rixas entre cingaleses e tâmeis.


Em recente artigo, o economista Rodrigo Constantino declarou sobre as cotas raciais:


“O caso de Sri Lanka é sintomático, demonstrando o perigo de medidas racistas, como as cotas. O uso político das desigualdades, mesmo que oriundas de causas históricas diversas, acaba favorecendo alguns inescrupulosos oportunistas, pois o benefício é concentrado e os custos são mais dispersos. Mas com o tempo, os resultados catastróficos são inevitáveis. Sri Lanka é uma boa prova de que as cotas podem transformar paz em sangue!”[23]


As ações afirmativas, de uma forma geral, são criadas como medidas temporárias e compensatórias de certas injustiças sociais impostas por algum tipo de opressão racista, porém, historicamente, a prática não corresponde ao planejado, pois acabam por transformar-se em um instrumento de divisão da sociedade em classes e da concessão de privilégios – os quais, no lugar de remediar conflitos, somente servem para incitar preconceitos.


2.3 AS COTAS NO BRASIL


Na tentativa de superar as desigualdades socioeconômicas e alcançar uma maior equidade social, o Brasil adotou no ano de 2000, o sistema de cotas nas universidades.


O Estado do Rio de Janeiro, pioneiro no país em adoção do sistema, aprovou a Lei N.º 3.524/00, que garantia 50% das vagas nas universidades do estado para estudantes das redes públicas municipais e estaduais de ensino.


A citada lei passou a ser aplicada como uma ação afirmativa que visava recompensar determinados grupos sociais que foram prejudicados no decorrer da história, promovendo um processo de inclusão social.


Buscando medidas de combate à exclusão e a desigualdade sofridas pelas minorias étnicas, o Rio de Janeiro inovou mais uma vez ao aprovar a Lei Estadual N.º 3.708/01, que instituiu 40% das vagas disponíveis aos candidatos beneficiados pela Lei N.º 3.524/00 seriam para os estudantes autodeclarados negros ou pardos.


Em 2003 foi sancionada a Lei Estadual N.º 4.151, que revogou o disposto das leis anteriores e estabeleceu as seguintes cotas:


Art. 1º – Com vistas a redução das desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:


I – oriundos da rede pública de ensino;


II – negros;


III – pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas.”


Outros estados brasileiros também aderiram ao sistema iniciado pelo Rio de Janeiro e, segundo o Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, até o fim do ano de 2007, 51% das universidades estaduais e 42% das federais de todo o país adotaram a política de cotas[24], porém cada uma das instituições possui um sistema diferente.


A Universidade de Brasília – UNB foi a primeira instituição federal a aderir ao sistema de cotas, através do Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da própria Universidade.[25]


No ano de 2004, quando a UNB implantou o sistema de cotas em seu vestibular, utilizava uma comissão para avaliar o fenótipo [características observáveis ou caracteres de um organismo][26] do candidato através de uma fotografia, determinando assim quem era negro, pardo ou branco.[27]


A metodologia adotada pela UNB trouxe vários constrangimentos, principalmente aos candidatos que participavam do processo seletivo. Foi o que ocorreu quando a comissão julgadora, responsável por selecionar os que estavam aptos a participar do sistema de cotas, considerou que apenas um de dois irmãos gêmeos univitelinos possuía as características necessárias para ingressar como cotista no processo de vestibular.[28]


Atualmente a UNB disponibiliza 20% do total de suas vagas para cotistas e para ingressar na Universidade através do sistema de cotas o candidato precisa preencher os seguintes requisitos:


Para ingressar na universidade pelo Sistema de cotas para Negros, o candidato deverá ser negro, de cor preta ou parda (mestiço de negros) e optar pelo sistema. O interessado deve obter, no mínimo:


– Nota maior que zero na prova de língua estrangeira;


– 10% da nota na prova de Linguagens e Códigos e Ciências Sociais;


– 10% da nota na prova de Ciências da Natureza e Matemática;


– 20% da nota no conjunto de provas;


Cerca de 15 dias após a aplicação das provas, os candidatos serão chamados para entrevista pessoal, em quantidade de até duas vezes o número de vagas oferecidas por curso. É necessário apresentar documento original de identidade.


Depois da entrevista, o pedido de inscrição no sistema de cotas será analisado por uma banca composta de docentes, representantes de órgão de direitos humanos e de promoção da igualdade racial e militantes do movimento negro de Brasília.”[29]


A Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC incluiu a política de cotas em seu vestibular desde 2007 e no ano seguinte o sistema já demonstrava grandes desigualdades na concorrência e na avaliação entre os candidatos cotistas e não cotistas. Em 2008, o vestibular da UFSC teve a seguinte concorrência (n.º de candidatos/n.º de vagas):[30]

















































Candidatos sem sistema de cotas


Candidatos auto declarados Negros


Curso


Concorrência


Curso


Concorrência


Administração


6.19


Administração


1.00


Direito


14.74


Direito


2.13


Eng. Mecânica


11.19


Eng. Mecânica


0.60


Jornalismo


11.88


Jornalismo


1.50


Medicina


40.75


Medicina


6.30


Oceanografia


21.10


Oceanografia


3.33



Título: Vestibular 2008 – Relação Candidatos/Vagas

Fonte: Universidade Federal de Santa Catarina

No Pará, a Universidade Federal – UFPA a partir de seu processo seletivo seriado de 2006, destinou 50% de suas vagas para alunos egressos de escolas públicas, sendo 40% destas vagas destinadas àqueles candidatos autodeclarados negros ou pardos, através da Resolução N.º 3.361/2005 do Conselho Superior de Ensino e Pesquisa da Universidade Federal do Pará – CONSEP.


No Brasil não existe, ainda, uma lei federal que normatiza o sistema de cotas, porém tramitam no Congresso Nacional dois projetos que versam sobre o tema: o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Cotas.


O Estatuto da Igualdade Racial é o Projeto de Lei N.º 6.264/05, proposto pelo Senador Paulo Paim (PT-RS)[31], que visa orientar o governo federal à forma como deverão ser tratados os cidadãos negros brasileiros. No projeto, se aprovado, será obrigatória a identificação dos estudantes de acordo com a raça, a criação de cotas para negros nas universidades, no serviço público, em empresas privadas e partidos políticos, além de outras medidas que poderão alterar a vida sócio-econômica de todos os brasileiros.


Aguardando aprovação pela Câmara Federal, o Estatuto da Igualdade Racial, defende a valorização dos negros através de políticas específicas aos afrodescendentes, nas áreas de saúde, religião, educação, cultura, esporte, ciência, comunicação, política entre outras.


No mesmo sentido, a Deputada Federal Nice Lobão, propôs através do Projeto de Lei da Câmara N.º 180/08, política de cotas para o ingresso de negros e pardos nas universidades federais e estaduais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio.[32]  


O projeto da Lei de Cotas recebeu a aprovação da Câmara dos Deputados em novembro de 2008, ficando os negros, pardos e índios mais próximos de conquistar, dentro dos 50% das vagas reservadas para alunos egressos de escolas públicas, uma vaga nas universidades federais do país.


O percentual destinado aos negros será proporcional a quantidade de negros, pardos e índios existentes na unidade da federação onde estiver localizada a instituição de ensino, baseando-se nas projeções do IBGE, conforme prevê o art. 2º do projeto de lei:


“Art. 2º Em cada instituição de educação superior, as vagas de que trata o art. 1o serão preenchidas por uma proporção mínima de autodeclarados negros e indígenas igual à proporção de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.”


Ambos os projetos [estatuto da igualdade racial e lei de cotas raciais] requerem benefícios para os negros, pardos e afrodescentes nas políticas públicas, porém o Estatuto requer ações em todos os setores da sociedade, buscando não só a inclusão, como um diferencial no tratamento dos indivíduos intitulados afrodescendentes, como se observa nos seguintes artigos da PL N.º 6.264/05:


Art. 13. O Ministério da Saúde fica autorizado a produzir, sistematicamente, estatísticas vitais e análises epidemiológicas da morbimortalidade por doenças geneticamente determinadas ou agravadas pelas condições de vida dos afro-brasileiros. 


Art. 27. É facultado aos praticantes das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas ausentar-se do trabalho para a realização de obrigações litúrgicas próprias de suas religiões, podendo tais ausências ser compensadas posteriormente.”


A Lei de Cotas raciais, propõe ações específicas na área da educação, atendendo, inclusive, uma demanda do capítulo VIII do Estatuto que trata do Sistema de Cotas.


“Art. 70.  O Poder Público adotará, na forma de legislação específica e seus regulamentos, medidas destinadas à implementação de ações afirmativas, voltadas a assegurar o preenchimento por afro-brasileiros de quotas mínimas das vagas relativas: 


I – aos cursos de graduação em todas as instituições públicas federais de educação superior do território nacional; 


II – aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES).”


Embora o sistema de cotas raciais tenha conseguido a aprovação da Câmara Federal, o assunto é polêmico e, por isso, encontra diversos opositores: no âmbito do Judiciário, por exemplo, existe, em primeira instância, vasta jurisprudência a favor e, também, contra as cotas raciais e em alguns tribunais estaduais tramitam e são julgados alguns numerosos recursos.


No Estado do Pará, a Governadora Ana Julia Carepa, vetou parcialmente o projeto de Lei Estadual N.º 6.941/07 – especificamente os artigos 2°, I, a; II, a, b, c; IV, a, e 3º – que estabelece políticas públicas específicas à população negra do Estado do Pará, visando o combate às desigualdades sociais e à discriminação racial, por entender tratar-se de um texto inconstitucional e contrário aos interesses públicos. A Governadora explicou o veto:


“Conquanto reconheça a louvável iniciativa da proposição legislativa em causa, sou obrigada a vetar alguns de seus dispositivos, tendo em vista que os mesmos contrariam o interesse público e padecem de inconstitucionalidade.


Com efeito, submetido o projeto de lei à apreciação da Universidade do Estado do Pará – UEPA, esta se manifestou pelo veto ao artigo 2º, inciso I, alínea “a”, que institui reserva de vagas para negros nos processos seletivos daquela Universidade, tendo em vista a ausência de um processo de discussão prévio, como o que ocorreu em outras universidades brasileiras, como a Universidade de Brasília – UNB por exemplo.


Debate este que fosse capaz de apontar não apenas numericamente a implantação de cotas, mas que também indicasse claramente os mecanismos de sua implantação, e mesmo sua combinação com outros critérios de combate à exclusão social.”(…)[33]


Em âmbito federal, tramitam no Supremo Tribunal Federal – STF, duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADI 3.330[34] e ADI 3.197[35], ambas promovidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN).


A ADI Nº 3.330, cujo relator é o Ministro Carlos Ayres Britto, questiona a Medida Provisória nº 213, de 10 de setembro de 2004, sobre o Programa Universidade para Todos – PROUNI do governo federal que destina bolsas de estudos integrais ou parciais para estudantes de cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições de ensino superior, com ou sem fins lucrativos, em especial os artigos 2º, I, II e parágrafo único; 7º; 8º; 9º, II e § 1º; 10; 11 e 13. Atualmente a ADI aguarda decisão final, com data indefinida para julgamento. A CONFENEN entende que o PROUNI, estabelecido pela MP 213/2004, contraria os preceitos constitucionais, uma vez que estabelece discriminações para promover vagas no ensino superior, sendo a MP um ato legislativo provisório não possuindo tal prerrogativa.O Advogado Geral da União e o Procurador Geral da República manifestaram-se pela improcedência do pedido feito pela CONFENEN, assim como o Ministro Ayres Brito, que em seu voto argüiu sobre o princípio da igualdade:“O substantivo “igualdade”, mesmo significando qualidade das coisas iguais (e, portanto, qualidade das coisas idênticas, indiferenciadas, colocadas no mesmo plano ou situadas no mesmo nível de importância), é valor que tem no combate aos fatores de desigualdade o seu modo próprio de realização. Quero dizer: não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade. O desvalor da desigualdade a proceder e justificar a imposição do valor da igualdade.”

A segunda, a ADI N.º 3.197, versa-se contraria a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro, tendo como relator o Ministro Menezes Direito, que substituiu o Ministro Sepúlveda Pertence que aposentou-se em 2007. Dentre várias arguições, os requerentes alegam a inconstitucionalidade da Lei Estadual N.º 4.151/03, por substituir o mérito como requisito para o ingresso no ensino superior pela origem escolar ou etnia.


A CONFENEN reclama o direito dos alunos que alcançaram boas notas em razão de seu bom desempenho nas provas do vestibular, porém são preteridos por candidatos que alcançaram notas menores, com desempenho inferior, conseguindo uma vaga na universidade, não em razão do mérito e sim por força da cor de sua pele.


Em Dezembro de 2008, o governo do Rio de Janeiro ingressou com o pedido para o cancelamento da ADI, em razão da revogação da lei o processo deveria ser julgado prejudicado. Aguardando julgamento do pedido pelo Ministro Menezes Direito, a ADI N.º 3.197, encontra-se na Procuradoria Geral da República – PGR para juntada do parecer do órgão.


A discussão entre a legalidade ou não do sistema de cotas, dividiu opiniões, gerando dois extremos de defesa. Cada grupo enviou ao congresso nacional um Manifesto defendendo sua opinião a cerca do assunto.


Assinado por 2.407 professores universitários, estudantes, militantes e trabalhadores foi enviado, em Julho de 2006, ao Congresso Nacional o “Manifesto em Favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial”[36], no qual seus defensores comparam a desigualdade racial brasileira ao apartheid na África do Sul, ressaltando que mesmo sob o sistema segregacionista a escolaridade média da África era maior do que a brasileira do ano de 2000.


Em abril de 2008, o STF recebeu uma carta intitulada de “Manifesto: Cento e Treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais”[37], onde diversos membros da sociedade civil e ativistas dos movimentos negros manifestaram-se contra as cotas raciais, alegando que dentre vários danos, as cotas ferem os princípios e garantias constitucionais, não sendo o remédio jurídico para combater o preconceito e a discriminação sofridos pelos negros, pardos e índios.


As tentativas de implantação de ações afirmativas utilizando o sistema de cotas raciais no Brasil iniciaram-se ainda no século passado, porém todas as leis, projetos ou decretos federais que visam a sua efetivação, continuam em tramitação no congresso, sem uma definitiva decisão acerca de sua legitimidade. 


3 AMPARO NORMATIVO-JURÍDICO DO SISTEMA DE COTAS


A Constituição Federal de 1988 instituindo um Estado Democrático de Direito, assegura a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País, desde o seu preâmbulo a igualdade e a justiça.


Para exemplificar os princípios fundamentais adotados pela Carta Magna, oportuno se faz citar os seguintes artigos:


Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil:


IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.


Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…).”


Os artigos demonstram que o constituinte brasileiro repeliu qualquer forma de discriminação e fundamentou suas diretrizes no princípio da igualdade.


José Afonso da Silva explica:[38]


“É que a igualdade constituiu o signo fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra. (…) Reforça o principio com muitas outras normas sobre a igualdade, ou buscando a igualização dos desiguais pela outorga dos direitos sociais substanciais.”


No mesmo sentido, Paulo Bonavides, diz:[39]


“O centro medular do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da igualdade. Com efeito, materializa ele a liberdade da herança clássica. Com esta compõe um eixo ao redor do qual gira toda a concepção estrutural do estado democrático contemporâneo. De todos os direitos fundamentais a igualdade é aquele  que mais tem subido de importância no Direito Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito chave, o direito guardião do Estado social.”


Antes de ater-se em explicar o princípio da isonomia, faz-se necessário a assertiva entre o princípio da igualdade e da isonomia, entendida como sinônimos pelos doutrinadores brasileiros, conforme é demonstrado pelo Professor João Hélio de Farias Moraes Coutinho:[40]


“Isonomia e igualdade jurídica são vocábulos semanticamente equivalentes. Etimologicamente, a palavra isonomia é composta do sufixo grego ísos, que significa igual, semelhante, e pelo elemento de composição, também grego, nómos (nomia) significando lei. Destarte, isonomia denota o estado das pessoas sujeitas às mesmas leis e, por extensão, sujeitas aos mesmos direitos e deveres.”


A igualdade, em um contexto histórico, passou por grande evolução no que diz respeito a sua concepção, ajustando-se em igualdade formal e material.[41]


No que diz respeito a igualdade material, trata-se de um princípio que visa proporcionar tanto a garantia individual quanto tolher favoritismo, por isso os poderes públicos, através de ações corretivas e do estabelecimento de direitos relativos à assistência social, educação, trabalho, lazer e o que mais seja necessário para a satisfação básica do cidadão, procurou promover uma igualdade material, ou seja, o tratamento equânime de todos os seres humanos, bem como a sua equiparação no que diz respeito às possibilidades de concessão de oportunidades.[42]


Por outro lado, a igualdade formal consiste naquela que é disciplinada pela lei, ou seja, é a igualdade perante a lei.


De acordo com José Afonso da Silva apud Perelman: “a justiça formal consiste em um princípio de ação segundo o qual os seres da mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”.[43]


Sem limitar-se a interpretação básica e restrita do princípio da igualdade, que determina o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, a Constituição Federal deve ser interpretada de forma ampla e abrangente.


Assim esclarece Carvalho apud Ferreira Filho:[44]


“Como limitação ao legislador, proíbe-o [constituição] de editar regras e privilégios, especialmente em razão da classe ou posição social, da raça, da religião, da fortuna ou do sexo do indivíduo. É também um princípio de interpretação. O juiz deverá dar sempre à lei o entendimento que não crie privilégios de espécie alguma. E, como juiz, assim deve proceder aquele que aplicar a lei.”


Estando definidos os dois tipos de igualdade, pode-se fazer a diferença entre a igualdade na lei e a igualdade diante da lei. A igualdade material proibe a discriminação entre pessoas que estão em situação idêntica e merecem o mesmo tratamento, tendo como destinatário o legislador, bem como a criação de privilégios, proibindo-o de tratar diferente quem a lei considerou como igual.[45]


Neste sentido, o Ministro Celso de Mello, manifestou-se em um acórdão pelo princípio da igualdade:


“MS – MANDADO DE INJUNÇÃO N.º 581/400. UF: DF.  Data da Decisão: 14/12/1990. D.J. 14/04/1991. Relator: Celso de Mello. Ementa: “Esse princípio – cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações do poder público – deve ser considerado, em sua função precípua de obstar discriminações e de extinguir privilégios, sob duplo aspecto: (a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei… constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão suborná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva da inconstitucionalidade.”


O jurista, Alexandre de Moraes, ressalta a importância de tratar o princípio da igualdade com cautela, analisando a situação com objetividade e razoabilidade:


“a desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não-discriminatórias, torna-se indispensável uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos.”[46]


O projeto de lei que determina cotas para ingresso nas universidades públicas do País, utilizando como critério de classificação a cor da pele é no mínimo absurda, uma vez que fere os preceitos fundamentais da Norma Constitucional Brasileira, ou seja, o pilar da justiça brasileira.


Celso Antonio ensina sobre o princípio da isonomia:[47]


“IGUALDADE E OS FATORES SEXO, RAÇA, CREDO RELIGIOSO: Supõe-se, habitualmente, que o agravo à isonomia radica-se na escolha, pela lei, de certos fatores diferenciais existentes nas pessoas, mas que não poderiam ter sido eleitos como matriz do discrímen. Isto é, acredita-se que determinados elementos ou traços característicos das pessoas ou situações são insuscetíveis de serem colhidos pela norma como raiz de alguma diferenciação, pena de se porem às testilhas com a regra da igualdade. Assim, imagina-se que as pessoas não podem ser legalmente desequiparadas em razão da raça, ou do sexo, ou da convicção religiosa (art. 153, §1º, da Carta Constitucional) ou em razão da cor dos olhos, da compleição corporal, etc.”


Os danos causados aos descendentes dos escravos africanos não podem ser compensados com uma vaga na universidade ou qualificar o capacidade sócio-intelectual de um indivíduo em decorrência da pigmentação que possui. Aprovar a Lei de Cotas é o mesmo que atribuir às universidades federais a função de reparar as injustiças históricas causadas aos negros e índios.


A Constituição Federal prevê em seu artigo 206, inciso I, que o ensino será ministrado com base no princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, bem como em seu artigo 208, inciso V, estabelece que o dever do Estado com a educação será efetivado por meio da garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um.


É incompreensível (e injustificável) a nova atribuição dada as Instituições Públicas de Ensino Superior, que já possuem a responsabilidade de fornecer uma boa qualificação profissional aos seus alunos – com base nos princípios constitucionais (e nem sempre conseguem cumpri-la) – e agora devem diminuir os danos causados aos negros brasileiros. E outros grupos, também, definidos como minorias e prejudicados pela falta de políticas públicas, devem ser incluídos? O que fazer pelos sertanejos (brancos e negros) vítimas das secas, carentes de quaisquer ações afirmativas ou, até mesmo, de condições mínimas de saneamento?


Será que facilitar, especificamente, a entrada dos negros brasileiros, vítimas do sistema escravagista nos séculos XVIII e XIX, é justo? E os trabalhadores presos em propriedades rurais nos interiores do Pará? Aqueles reduzidos a condição análoga de escravo[48], índios, pardos, negros ou brancos, também devem ser incluídos como beneficiados pelas cotas?


Homossexuais, evangélicos, bruxos, comunistas, aidéticos, hansenianos, mulheres. A lista de indivíduos que sofrem ou sofreram discriminação no decorrer da história do Brasil é longa e todos possuem argumentos consistentes sobre a necessidade de receber “ações afirmativas” para sentir-se reconhecido em sociedade.


José Roberto Militão, militante histórico do movimento negro, advogado, membro da Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios – Conad-OAB/SP e ex secretário geral do Conselho da Comunidade Negra do governo do Estado de São Paulo (1987-1995) – tem desenvolvido uma grande discussão contrária as cotas raciais, por entendê-la discriminatória e inconstitucional.


Em um discurso feito no Senado Federal Brasileiro, quando se discutia o Projeto de Lei N.º 180/08 (Sistema de Cotas Raciais nas Universidades Federais Brasileiras), Militão declarou:


“Nós, negros brasileiros, não desejamos ter um tratamento separado, nós não desejamos ter um status jurídico separado, distinto, nem para ser excluído, como lembrou o Frei David em outros Estados, mas também para ser incluído. E para fazer uma inclusão através de legislação do Estado é necessário excluir alguém, dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Nós aprendemos em física. Não se faz uma inclusão pelo aspecto racial sem fazer uma exclusão pelo aspecto racial. Daí está o problema que merece reflexão e que merece o debate.”[49]


E no recente artigo, chamado “Afro-brasileiros contra as leis raciais”, escreveu:[50]


“As ações afirmativas não fazem reparações do passado, não fazem cotas estatais, mas atuam com eficácia para que as discriminações históricas não persistam no presente. Portanto, os afro-brasileiros precisam de políticas públicas de inclusão, indutoras e garantidoras da promoção da igualdade, e não das cotas de humilhação.”


Os argumentos dos “pro-cotas” pode ser contradito pelo histórico dos orientais (amarelos) e italianos, que vieram para o Brasil para substituírem os escravos nas lavouras paulistas, no início do século XX e, embora muitas vezes trabalhassem em condições degradantes (ou análogas às de escravos), conseguiram desenvolver-se e atingir uma posição confortável na pirâmide social do país, sem receberem qualquer benefício de cotas.


A igualdade de oportunidades, buscada pelos cotistas, da forma como está previsto no Projeto de Lei 180/08, constitui uma insensata forma de discriminação. Carvalho pondera sobre as prováveis consequências:


“De se levar ainda em conta que, no Brasil, país majoritariamente pobre, a imensa parcela de brancos também se encontra em situação aflitiva, muitos em piores condições do que pessoas negras, circunstância que leva o questionamento da utilização da quota de ação afirmativa para classes menos favorecidas.”[51]


No livro, Não Somos Racistas, o jornalista Ali Kamel desenvolve uma pertinente conclusão sobre o tema, entendendo que “se o racismo na sociedade brasileira é de fato um entrave substantivo à mobilidade dos negros, educação somente não basta”.[52]


A função de uma universidade é produzir conhecimento, de qualidade. Em matéria sobre o assunto, a revista VEJA[53] divulgou que para serem preenchidas todas as vagas reservadas, as universidades terão que aprovar candidatos com notas abaixo da média.


Recentemente, o PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) divulgou estudos sobre a participação de negros e pardos no ensino superior,[54] os resultados mostram que a política de cotas nas universidades públicas assim como o ProUni (Programa Universidade para Todos) aplicado nas instituições particulares não surtiram o efeito esperado, mostrando-se ineficientes e incapazes de resolver o problema dos negros que estão fora das universidades.


É fato que também a parcela da população negra que entra nas universidades por meio das cotas ou do ProUni, em razão do baixo poder aquisitivo, não consegue se manter nos estudos devido aos altos custos com livros, transportes e despesas geradas pelo curso.


A Constituição Brasileira desenvolvida pelo sistema do bem estar social defende a justiça e a igualdade, logo para garantir estes princípios, deve desenvolver formas de erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais, beneficiando a todos os seus cidadãos, sejam eles negros, pardos, brancos ou índios; homens ou mulheres; crianças, adultos ou idosos; homo, hetero, bi ou transexuais.


No livro Teoria Pura do Direito, Kelsen, sintetiza:


“Se se raciocina sobre igualdade na lei, isto significará que as leis não podem – sob pena de anulação por inconstitucionalidade – fundar uma diferença de tratamento sobre certas distinções muito determinadas, tais como as que respeitam à raça, à religião, à classe social ou à fortuna.”[55]


E, ainda, citando Pimenta Bueno:


“A lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania.”[56]


4 PROTEÇÃO AO DIREITO SUBJETIVO DE COTAS E O SISTEMA JUDICIÁRIO BRASILEIRO


A adoção do sistema de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, além de polêmica, tem gerado diversas ações nos tribunais do país, discutindo-se sua constitucionalidade, sua justiça e até mesmo a sua eficácia.


No Estado de Santa Catarina, o tribunal de justiça, decretou a inconstitucionalidade do art. 5º, parágrafo único da lei completar N.º 032/2004 do município de Criciúma – SC que prevê a reserva de vagas para afro-descendentes.


“Art. 5º. Ficam reservadas aos afro-brasileiros vinte por cento das vagas oferecidas nos concursos públicos realizados pelo Poder Público Municipal para provimento de cargos efetivos.


Parágrafo único. Para efeitos do disposto no ‘caput’, considera-se afro-brasileiro aquele identificado como de cor negra ou parda no respectivo registro de nascimento.”


A ação foi movida por uma candidata, inscrita em concurso público municipal, que, embora tivesse sido aprovada e classificada para o cargo de técnico administrativo e ocupacional, perdeu a vaga para cotista afrodescendente que obtivera nota inferior a sua.


A inconformidade da candidata gerou a seguinte decisão do TJSC:


“Apelação Cível n. 2008.014214-4, de Criciúma. Relator: Vanderlei Romer. Órgão Julgador: Primeira Câmara de Direito Público. Data: 08/01/2009. Ementa: “ADMINISTRATIVO – CONCURSO PÚBLICO – RESERVA DE VAGAS PARA AFRO-BRASILEIROS – INDÍCIO DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL – VEDAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL – INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. “‘É este o sentido que tem a isonomia no mundo moderno. É vedar que a lei enlace uma conseqüência a um fato que não justifica tal ligação. É o caso do racismo em que a ordem jurídica passa a perseguir determinada raça minoritária, unicamente por preconceito das classes majoritárias. Na mesma linha das raças, encontram-se o sexo, as crenças religiosas, ideológicas ou políticas, enfim, uma série de fatores que os próprios textos constitucionais se incumbem de tornar proibidos de diferenciação. É dizer, não pode haver uma lei que discrimine em função desses critérios'” (BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20 ed. São Paulo: Atual, 1999, 0. 181/182)” (Argüição de Inconstitucionalidade em Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2005.021645-7, rel. Des. Luiz Cézar Medeiros).


Assim como o ocorrido em Santa Catarina, em 2008 o STF concedeu a Thiago Lugão, engenheiro de produção, o direito de matricular-se na Universidade do Norte Fluminense – UENF no curso de engenharia de exploração e prospecção de petróleo, que foi classificado em 14º lugar no vestibular de 2002, porém perdeu a vaga para cotistas autodeclarados negros, mesmo que sua nota tenha sido bastante superior.


Embora tenha conseguido o reconhecimento da injustiça que fora cometida, Thiago Lugão não poderá aproveitar-se do mérito, pois está formado e pós-graduado por outra universidade e recebendo 1/3 do que poderia receber de salário se tivesse sido diplomado no curso da UENF.[57]


Em 2007, a Justiça Federal de Santa Catarina, concedeu a um estudante que pleiteava uma vaga no curso de Geografia, na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, o direito de concorrer a todas as vagas em disputa no processo seletivo, por entender que a reserva de vagas viola o princípio constitucional da igualdade. O juiz do caso, Dr. Carlos Alberto da Costa Dias, ao fundamentar sua sentença alegou: A supressão de vagas ao ‘não-negro’ viola o princípio constitucional da igualdade, sem que haja real fator para privilegiar o denominado ‘negro’, em detrimento do denominado ‘não-negro’.”


Utilizando o mesmo princípio, outro julgado merece destaque:


“AG – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Processo: 2008.04.00.007056-6. UF: RS.  Data da Decisão: 25/03/2008. Orgão Julgador: QUARTA TURMA. D.E. 04/04/2008. Juiz: MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA. Decisão Monocrática: Trata-se de agravo de instrumento contra decisão que deferiu o pedido liminar e determinou à autoridade impetrada que garanta à impetrante a vaga no curso de Geologia e conceda-lhe o direito de matrícula e de freqüência às aulas, sem o óbice da preferência fundada na Decisão nº 134/2007 do CONSUN e efetivada no Edital do Concurso Vestibular 2008 (fls. 150/151). (…) Passo a decidir. Segundo a interpretação que tenho da Constituição Federal, não é possível firmar distinção entre os cidadãos, para acesso a serviços públicos, notadamente a educação, baseando-se em critérios genéticos, tal como em razão da cor, raça ou etnia, nos exatos termos do seu artigo 5º “caput”. Embora não se ignore a necessidade de ampliação da participação de determinados grupos sociais na educação superior, a forma de se introduzir essa participação deve atender a encaminhamento diverso, ditado pela própria Constituição. Aceito como pano de fundo dessas medidas, a eliminação das desigualdades sociais, há que se ter em mente que tal preocupação também foi idealizada pelo constituinte, sem descurar, no entanto, dos princípios igualitários e da proibição de preceitos baseados em cor ou raça. A tanto, o artigo 3º é claro, impondo intensa coordenação entre os objetivos fundamentais da República, para que andem unidas as metas de eliminação das desigualdades sociais e proibição de preconceitos de origem, raça, sexo, cor, etc. (incisos II e IV). Da interpretação harmônica de tais objetivos republicanos insurge a conclusão de que se deve sim buscar ações afirmativas, para eliminação das desigualdades sociais, não, no entanto, se baseando em critérios raciais. O ponto de orientação é, e pode ser, unicamente, a distinção entre classes sociais, distinção tomada tão-só para buscar atendimento do objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de, exatamente, eliminação dessas desigualdades. Portanto, as ações afirmativas devem dirigir-se às classes desfavorecidas, e não a determinadas pessoas, em função de sua cor, origem, etc. No aspecto, desnecessário lembrar que nem todo cidadão de determinada cor ou origem é hipossuficiente, ou precisa de proteção. Portanto, quanto ao acesso ao ensino superior, razoável unicamente a distinção que vise privilegiar o acesso das classes menos favorecidas, aí compreendidos, com razoabilidade, os cidadãos que freqüentaram escolas públicas. Aqui a medida ganha inúmeros argumentos em defesa, notadamente pelo fato de ser esse o ensino disponibilizado pelo Estado a todo cidadão, independentemente de classe, cor, origem, etc., ensino que, por sua insuficiência, tem eliminado essa mesma população, quanto ao acesso a universidades , quando confrontada com alunos egressos de escolas particulares, indisponíveis a enorme maioria da população. Diante do exposto, defiro parcialmente o pedido de efeito suspensivo nos termos da fundamentação. Comunique-se ao Juízo de origem. Intime-se a agravada na forma do art. 527, V, do CPC. Após, voltem conclusos.” (grifo nosso).


O Rio de Janeiro, estado pioneiro na implantação do sistema de cotas raciais, desde o início, debate sua constitucionalidade, como é possível perceber nos seguintes julgados:


“Constitucional – Presentes veementes e fundamentados indícios de inconstitucionalidade de leis estaduais dispondo sobre reserva de cotas para negros e pardos na universidade do Estado do Rio de Janeiro, suscita-se o incidente de inconstitucionalidade, submetendo o julgamento ao Egrégio Órgão Especial do Tribunal, detentor da reserva do plenário inscrita no art. 97 da Carta Magna.” (TJRJ – Apelação Cível nº 2004.001.03512 – Des. Mario dos Santos Paulo – Julgamento: 19/07/2005 – 4ª Câmara Cível).


“Ensino universitário – sistema de cotas instituído na cidade do Rio de Janeiro – minorias – autodeclaração de raça – Lei Estadual nº 3.708/02 – inconstitucionalidade – direito líquido e certo de candidato aprovado em concurso público de ingresso na faculdade de medicina mantida pela entidade de ensino com nota suficiente ao seguimento do curso – apelo provido – decisão reformada para com base no reconhecimento de direito líquido e certo garantir ao aluno a matrícula perseguida – A Lei Estadual nº 3.708/02 é inconstitucional na medida em que afronta o princípio da razoabilidade ao criar a reserva de 40% de vagas na Universidade Estadual para pardos e negros e 50% para egressos de Escolas Públicas, restando apenas 10% para brancos oriundos de escolas particulares. Enquadrando-se o impetrante entre estes últimos e que obteve no certame público nota superior aos demais é de lhe ser reconhecido direito líquido e certo a obtenção da devida matrícula de molde a de lhe assegurar garantia constitucional da igualdade, inclusive racial advertindo-se da violação ao princípio da ‘sumum jus, summa injuria’.” (Apelação Cível nº 2004.001.06281, TJRJ, Des. Marcus Tullius Alves – julgamento 15.02.2005 – 9ª Câmara Cível).


O Tribunal de Justiça da Bahia, também, julga ações sobre o sistema:


“Remessa necessária – Mandado de Segurança – Exame vestibular de ingresso em curso superior – candidata aprovada não pode ter vaga preterida sob argumento de reserva de vagas em cotas para afrodescendentes – resolução nº 192/2092 da Universidade Pública Estadual não pode sobrepujar-se ao princípio da isonomia Constitucional -art. 5º Constituição Federal – incensurável a sentença concedendo segurança, merecendo confirmação integra a sentença.” (TJBA – Acórdão nº13422, processo nº 40631-5/2004 – Remessa necessária – Integração de Sentença – Relator: João Augusto Alves de Oliveira Pinto – Comarca de Barreiras – 4ª Câmara Cível).


“Processo: EIAC 2005.33.00.018352-3/BA; EMBARGOS INFRINGENTES NA APELAÇÃO CIVEL. Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA ISABEL GALLOTTI RODRIGUES. Órgão Julgador: TERCEIRA SEÇÃO. Publicação: 09/03/2009 e-DJF1 p.41. Data da Decisão: 09/12/2008. Decisão: A Seção, por maioria, suscitou incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial.  Ementa: ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. VESTIBULAR. COTAS. CRITÉRIOS. RESOLUÇÃO. 1. É relevante a alegação de que a seleção de candidatos ao ensino superior com base em qualquer critério que não seja a capacidade de cada um ofende o art. 208, V, da CF. 2. Argüição de inconstitucionalidade da Resolução CONSEPE 1/2004, instituidora do sistema de cotas no vestibular da Universidade Federal da Bahia, perante a Corte Especial.”


Embora exista farta jurisprudência acerca da inconstitucionalidade das leis estaduais que implantaram o sistema de cotas raciais, não é pacífica esta opinião nos tribunais e entre os juristas que a julgam.


Decisões favoráveis as cotas, também, são constantemente proferidas.


“Origem: TRF – PRIMEIRA REGIÃO. Classe: AMS – APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA – 200633000084249. Processo: 200633000084249 UF: BA Órgão Julgador: QUINTA TURMA. Data da decisão: 11/04/2007. Documento: TRF10247986. DIREITO CONSTITUCIONAL. ENSINO.  UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. INSTITUIÇÃO, POR RESOLUÇÃO, DE COTAS PARA NEGROS E ÍNDIOS, EGRESSOS DE ESCOLAS PÚBLICAS. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Na medida em que a Administração está, pela própria Constituição, vinculada diretamente a outros princípios que não só o da legalidade, transparece não ser pela ausência de lei formal, salvo reserva constitucional específica (não bastando a reserva genérica do art. 5º, II), que deixará de realizar as competências que lhe são próprias. 2. Se a Constituição dá os fins, implicitamente oferece os meios, segundo o princípio dos poderes implícitos, concebido por Marshall. Os preceitos constitucionais fundamentais, incluídos os relativos aos direitos fundamentais sociais, têm eficácia direta e imediata. A constitucionalização da Administração “fornece fundamento de validade para a prática de atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independentemente da interposição do legislador ordinário” (Luís Roberto Barroso). 3. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III, da Constituição). Nesse rumo, os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (art. 5º, § 2º). A Constituição, ao proteger os direitos decorrentes do regime e dos princípios, “evidentemente consagrou a existência de direitos fundamentais não-escritos, que podem ser deduzidos, por via de ato interpretativo, com base nos direitos fundamentais do ‘catálogo’, bem como no regime e nos princípios fundamentais da nossa Lei Suprema” (Ingo Wolfgang Sarlet). 4. É o caso da necessidade de discriminação positiva dos negros e índios, cuja desigualdade histórica é óbvia, dispensando até os dados estatísticos, além de reconhecida expressamente pela Constituição ao dedicar-lhes capítulos específicos. Não se trata de discriminar com base na raça. A raça é apenas um índice, assim como a circunstância de ter estudado em escola pública. O verdadeiro fator de discriminação é a situação social que se esconde (melhor seria dizer “que se estampa”) atrás da raça e da matrícula em escola pública. Há um critério imediato – a raça – que é apenas meio para alcançar o fator realmente considerado – a inferioridade social. 5. Nas ações afirmativas não é possível ater-se a critérios matemáticos, próprios do Estado liberal, que tem como valores o individualismo e a igualdade formal. Uma ou outra “injustiça” do ponto de vista individual é inevitável, devendo ser tolerada em função da finalidade social (e muitas vezes experimental) da política pública. 6. Apelação a que se nega provimento.” “AGTR 61937-AL (20050500012442-4). AGTE: HEVERTON DE LIMA VITORINO. ADV/PROC: RICARDO ANTÔNIO DE BARROS WANDERLEY E OUTROS. AGDO: UFAL – UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS. RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL PETRUCIO FERREIRA. EMENTA: ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ENSINO SUPERIOR. SISTEMA DE COTAS. RESOLUÇÃO Nº 9/2004 – CEPE. RESERVA DE 20% (VINTE POR CENTO) DAS VAGAS PARA ALUNOS NEGROS E PARDOS. AUTONOMIA DAS UNIVERSIDADES. – Hipótese em que o agravante busca reformar decisão singular que lhe indeferira tutela antecipada por meio da qual pretendia obter matrícula em Curso de Direito da Universidade Federal de Alagoas, ora agravante; – Implantação do  sistema de cotas através da Resolução nº 9/2004 – CEPE por meio da qual dá-se a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nas universidade públicas a alunos negros e pardos; – Medida que visa a oferecer oportunidade de acesso aos bancos universitários públicos àqueles historicamente economicamente hipossuficientes; – Por outro lado, considerando o enfoque administrativo, observa-se que as normas internas que regem a vida acadêmica são inerentes à autonomia das universidades, assegurada pela Constituição, não se aferindo, por conseguinte, qualquer ilegitimidade no agir da agravada que, fazendo uso de sua autonomia universitária, definiu através da Resolução nº 9/2004 – CEPE o sistema de cotas para negros e pardos; – Ausência de motivos a ensejar a reforma pretendida; – Agravo de instrumento improvido.”Em seu voto, o Desembargador Petrucio Ferreira, defendeu o sistema de cotas como uma forma de minimizar os danos causados aos negros no Brasil, que sofrerem historicamente com a exclusão social, preconceitos e falta de oportunidade. E completou afirmando: “Daí não terem acesso ao ensino fundamental de qualidade o que dificulta ou até inviabiliza o ingresso na vida universitária. É tratar os desiguais na medida de sua desigualdade o que, ao contrário do alegado pelo agravante, coaduna-se plenamente com o próprio princípio da isonomia”. [58]  

5 REFLEXÃO FINAL


A igualdade como concretização da justiça social é perseguida por todos os povos desde a antiguidade, uma vez que a desigualdade existe e está presente nos mais remotos setores de uma sociedade.


A discriminação e o preconceito são realidades enfrentadas por todos os brasileiros, independente de cor, raça, credo, religião, sexo ou idade. A Constituição de 1988, proclamada Constituição cidadã pelos constituintes da época, trouxe em seu corpo normativo, várias ferramentas para que os cidadãos combatam esses males que os tem perseguido por toda a história.


Embora a efetividade de vários direitos e deveres previstos na Constituição dependam de políticas públicas concretas e patrocinadas pelo Estado, a Carta Magna Brasileira determina claramente os limites que devem ser mantidos para proteger a justiça, ou seja, projetou a instalação de uma sociedade estruturada segundo o modelo do Welfare State, que visa a consolidação da democracia.[59]


Os princípios do Estado do Bem Estar Social ou Welfare State, adotado pela Constituição, preveem a garantia da proteção social, conforme pode ser observado em sua definição:


“Pelos princípios do Estado de bem-estar social, todo o indivíduo teria o direito, desde seu nascimento até sua morte, a um conjunto de bens e serviços que deveriam ter seu fornecimento garantido seja diretamente através do Estado ou indiretamente, mediante seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil. Esses direitos incluiriam a educação em todos os níveis, a assistência médica gratuita, o auxílio ao desempregado, a garantia de uma renda mínima, recursos adicionais para a criação dos filhos etc”.[60]


No núcleo do Estado Democrático de Direito está o princípio da igualdade, conforme foi aqui amplamente exposto, que deve ser não só buscado, como protegido, a fim de impedir que as desigualdades e injustiças por todos suportadas alardeei-se, fazendo com que todo o desenvolvimento conquistado seja perdido, por políticas e políticos mal intencionados.


Aprovar a PL 180/08 – Sistema de Cotas Raciais nas Universidades Públicas Federais – é o mesmo que retroagir ao século XVIII e adotar a Constituição Formal do liberalismo. Beneficiar ou conceder benefícios a uns em detrimento ao prejuízo de outros, utilizando a cor da pele como critério, é inconstitucional, fere a legislação maior do país.


O Brasil é composto por uma miscigenação tão grandiosa que é inseparável, é indivisível. A lei de cotas raciais quer separar, sob um argumento falacioso de “compensação por danos causados”, uma hegemonia tipicamente brasileira. Não é a cor da pele que determina o merecimento do cidadão.


Celso Antonio Bandeira de Mello apresenta as indagações necessárias para que se possa entender a igualdade:


“Em suma: qual o critério legitimamente manipulável – sem agravos a isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicos diversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra a agressão aos objetivos transfundidos no princípio constitucional da isonomia? Só respondendo a estas indagações poder-se-á lograr adensamento do preceito (…).”[61]


Será que, quando falamos em falta de oportunidades no sistema educacional, só os pretos e pardos preenchem esse requisitos?


Os brasileiros precisam sim de ações afirmativas que compensem o atraso sofrido, a falta de oportunidades, o não reconhecimento pela luta diária da sobrevivência. Porém, isso não se conquista com um “atalho” à universidade. As ações afirmativas devem ser desenvolvidas para todos os que não tem casa, não tem comida, não tem hospital, não tem acesso aos seus direitos.


Quantos brasileiros não têm certidão de nascimento? Não tem luz elétrica em casa? Nunca tomou banho de chuveiro? Morrem na fila de espera por atendimento nos pronto-socorros? Esses sim precisam urgentemente de ações positivas, oportunidades de empregos, moradia digna e educação. Esses brasileiros são negros, são brancos, são amarelos, são índios e, principalmente, são pobres.


Investir em uma separação de raças, como quer o sistema de cotas raciais e o estatuto da igualdade racial, é violar os preceitos da Constituição, os princípios da igualdade, da justiça e, também, da legalidade.


Os países que aderiram tal sistema foram mal sucedidos e enfrentam suas conseqüências de forma pesarosa.


O racismo está presente no Brasil, assim como em todo o mundo. Discrimina-se negro, mas também se discriminam homossexuais, deficientes físicos, deficientes mentais, idosos, doentes, dependentes químicos. Assim como os negros merecem receber oportunidades, outros grupos, também segregados, merecem.


Este é o pano de fundo do artigo 1º da Constituição do Brasil, ao afirmar que a República Brasileira constitui-se em Estado Democrático de Direito, cujos fundamentos repousam na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político. O art. 3º, também da Constituição, traça as diretrizes da sociedade inclusiva brasileira. Visando implementar os fundamentos da República, determina que cabe ao Estado construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.


Os brasileiros precisam e merecem fazer parte dessa sociedade ‘livre e justa’ e ter acesso a educação é um bom começo, porém essa educação tem que fazer o caminho inverso ao pleiteado pelas cotas. O brasileiro precisa ter um ensino fundamental consistente, digno e de qualidade, com professores bem preparados, bem remunerados. Não precisam (e nem devem) entrar na faculdade com uma pontuação medíocre, precisam sim: aprender a ler, a escrever, fazer cálculos, conhecer a sua história, aprender sobre a economia do mundo.


As leis devem ser para todos os cidadãos brasileiros, pois só assim todos terão oportunidades iguais e a Constituição efetivará o Estado Democrático de Direito.


 


Referências

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

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Notas:

[1] Neste estudo, as palavras: negros, pretos, afrodescendentes e afrobrasileiros serão usadas como sinônimos, uma vez que estas terminologias estão presentes na literatura especializada e nos documentos oficiais. 

[2] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 570-571.

[3] SANTOS, Élvio Gusmão. Igualdade e raça. O erro da política de cotas raciais. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2041, 1 fev. 2009. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12281 Acesso em: 16 abr. 2009.

[4] TAVARES, op. cit., p. 572.

[5] ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de; SIMON, Henrique Smidt. Sobre a política de cota de negros no sistema de acesso ao ensino superior. Jus Navigandi, Teresina, ano 08, n. 467, 17 out. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5810>. Acesso em: 09 jun. 2009.

[6] PEREIRA, C. Uma Segunda Opinião. Veja. São Paulo, edição n.º 2102 – ano 42 – n.º 08, 04 mar. 2009.

[7] TAVARES, op. cit., p. 575.

[8] ALMEIDA; SIMON, op. cit., Acesso em:  09 jun. 2009

[9] TAVARES, op. cit., p. 574.

[10] No original: No person in the United State shall, on the grounds of race, color, or national origin, be excluded from participation in, be denied the benefits of, or be subject to discrimination under any program or activity receiving Federal financial assistance.

[11] PENA, S.; BORTOLINI, M. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Revista Estudos Avançados, v. 18, n.º 50, São Paulo, 17 fev. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em: 14 abr. 2009.

[12]  Projeto genoma. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Projeto_Genoma Acesso em: 10 mai. 2009.

[13] GODOY, Norton. Somos todos um só. Istoé, São Paulo, n.º 1520, 18 nov. 1998. Disponível em: http://www.terra.com.br/istoe/ciencia. Acesso em: 09 abr. 2009.

[14] BRASIL. Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão – IBGE. Metodologia do Censo Demográfico 2000. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: http://www.ibge.gov.br. Acesso em: 20 abr. 2009.

[15] KAMEL, Ali. Não Somos Racistas – Uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 89.

[16] SOWELL, Thomas. Ação Afirmativa ao Redor do Mundo – Estudo Empírico. Editora UniverCidade: Rio de Janeiro,2004.

[17] KAMEL, op. cit., p. 90.

[18] Ibid. Id., p. 89.

[19] SOWELL, op. cit., p. 36.

[20] KAMEL, op. cit., p. 89.

[21] Ibid. Id., p. 39.

[22] SRI LANKA. Disponível em: http://pt.wikipedia.org. Acesso em: 18 mai. 2009.

[23] CONSTANTINO, Rodrigo. Sri Lanka e os perigos das políticas de cotas. O Globo. 19 mai. 2009. Disponível em: http://oglobo.globo.com/opiniao. Acesso em: 21 mai. 2009.

[24] SCHNEIDER, Anderson. Sistema de Cotas. Veja.com. jun 2008. Disponível em:  http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/perguntas_respostas/cotas. Acesso em: 02 abr. 2009.

[25] UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Sistema de Cotas. Disponível em: http://www.unb.br/estude_na_unb/sistema_de_cotas. Acesso em: 12 mai. 2009.

[26] FENÓTIPO. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki. Acesso em: 12 mai. 2009.

[27] DUFAUR, Luis. Cotas nas Universidades: achatamento e luta de classes. Disponível em: http://www.catolicismo.com.br/materia. Acesso em: 12 mai. 2009.

[28] PEREIRA, op.cit.

[29] UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Sistema de Cotas. Disponível em: http://www.unb.br/estude_na_unb/sistema_de_cotas. Acesso em: 12 mai. 2009.

[30] UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA. Vestibular 2008 – Relação candidatos/vagas. Disponível em: http://www.vestibular2008.ufsc.br Acesso em: 20 abr. 2009.

[31] BRASIL. PL N.º 6264 de 25 de novembro de 2005. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=307731  Acesso em: 20 mai. 2009.

[32] BRASIL. PLC N.º 180 de 25 de novembro de 2008. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e estaduais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: http://www.senado.gov.br. Acesso em: 20 mai. 2009.

[33] PARÁ. LEI nº 6.941, de 17 de janeiro de 2007. Estabelece políticas públicas específicas a população negra do Estado do Pará, visando o combate às desigualdades sociais e à discriminação racial e dá outras providências. Diário Oficial do Estado, Belém, PA, 18 jan. 2007.

[34] Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino. Ação Direta de Inconstitucionalidade N.º 3.330. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 12 mai. 2009.

[35] Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino. Ação Direta de Inconstitucionalidade N.º 3.197. Disponível em: http://www.stf.jus.br.  Acesso em: 12 mai. 2009.

[36] MANIFESTO em favor da Lei de Cotas e Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: lpp-uerj.net/olped/documentos/1745.pdf Acesso em 20 abr. 2009.

[37] MANIFESTO Cento e Treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u401519.shtml Acesso em 20 abr. 2009.

[38] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 70.

[39] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003.

[40] COUTINHO, João Hélio de Farias Moraes. Uma abordagem da neutralidade axiológica do conceito de isonomia a partir do jusnaturalismo e do juspositivismo enquanto tipos ideais. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_85/Artigos/PDF/JoaoMoraes_Rev85.pdf Acesso em: 01 jun 2009.

[41] SILVA, José Afonso da.  Comentário Contextual à Constituição. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.p. 212.

[42] Ibid. Id., p. 213-214.

[43] Ibid. Id., p. 212.

[44] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional. 14ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 733.

[45] MELLO, Celso Antonio Bandeira. O Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 24-25.

[46] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24ª Ed. São Paulo: Atlas, 2009. Pág.: 19.

[47] MELLO, op. cit., p. 15.

[48] Art. 149 do Código Penal Brasileiro: Reduzir alguém a condição análoga de escravo, quer submetendo a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, que sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.”

[49] As Cotas Raciais. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/jose-roberto-militao-as-cotas-raciais/ Acesso em: 01 jun. 2009.

[50] MILITÃO, José Roberto F. Afro-brasileiros contra as leis raciais. Estado de São Paulo, São Paulo, 25 mar. 2009. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/noticias/962281/artigo-jose-roberto-f-militao-afro-brasileiros-contra-leis-raciais Acesso em: 01 jun. 2009.

[51] CARVALHO, op. cit., p. 735.

[52] KAMEL, op. cit., p. 34.

[53] PEREIRA, op. cit.

[54] BRASIL. Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão – IBGE Síntese de Indicadores Sociais 2006. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/ sinteseindicsociais2006/default.shtm Acesso: em 12 mai. 2009.

[55] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[56] MELLO, op. cit., p. 18.

[57] LOYOLA, L. et. al. Cotas para quê? Época, São Paulo, n.º 568, 06 abr. 2009. Pág.83. 

[58] RECIFE. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo N.º 20050500012442-4. Desembargador Petrucio Ferreira. Recife 03 out. 2006. Disponível em:  http://www.trf5.jus.br/archive/2006/11/200505000124424_20061127.pdf Acesso em: 01 jun. 2009.

[59] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003.

[60] WELFARE STATE. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Estado_de_bem-estar_social Acesso em: 14 Jun. 2009.

[61] MELLO, op. cit., p. 11.


Informações Sobre o Autor

Márcia Andréa Durão de Macêdo

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Pará – CESUPA


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