Crônica dos tempos modernos: A (in?) evolução do ser humano na história e seus reflexos no Direito

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Resumo: Os tempos mudam e o direito obrigatoriamente ele deve seguir suas tendências e as necessidades sociais da população, seguindo as características de seu tempo e lugar. Na célebre frase de Miguel Reale, o direito é fato, valor e norma de um determinado tempo e espaço. Mas todo direito que configure um bônus deve vir sempre acompanhado de um ônus, uma vez que o direito de um acaba assim que começar o direito de seu semelhante, e o grande problema do ser humano é reivindicar apenas os seus os direitos, esquecendo-se dos seus deveres. Hoje, com a estética se sobressaindo sobre a ética, o politicamente correto deve ter o devido cuidado de refletir para saber se ele está agindo de modo “hipocritamente correto”. E se há uma hipocrisia, aplica-se o direito, mas nunca a justiça. Fica em incógnita a clássica pergunta: Estamos evoluindo historicamente? Nosso direito está realmente evoluindo e atendendo nossas necessidades sociais?


Estava almoçando na lanchonete do meu trabalho quando ouvi uma garota, praticamente aos gritos, falando de sua vida pessoal com seus colegas, todos com visual muito “descolado”. Dizia que a mãe dela havia ameaçado de lhe “dar uma pisa” acaso ela, a garota, voltasse a gazetar aulas. E ela dizia indignada “quem ela pensa que é para falar assim comigo, aquela filha da….” (e eu pensei comigo mesma “ela é sua mãe, ora”), e ainda continuava seu discurso inflamado, com maior indignação mais ou menos nessas palavras: “Ela que tente me dar essa tal ‘pisa’, que vamos sair é no tapa eu e ela. Onde já se viu bater em filho já grande?”.


Aquela cena me foi bastante chocante, bem na hora do almoço atrapalhando a digestão. Eu, que não devo ser mais que dez anos mais velha que aquela menina, lembrei de todos os valores que me passaram, não apenas meus pais, como os meus avós, tios e professores em colégios. Lembrei do ainda tão mencionado ditame de se respeitar os mais velhos, respeitar aqueles que já tenham cabelos brancos, pois é sinal de vivência.


Temos ai um fato, e valores diferenciados. Mas… e a norma? Como era a norma jurídica na época em que eu recebi meus valores e como era a norma jurídica em que essa guria recebeu seus valores? Comecei a pensar, dirigindo de volta para casa, algo que por muitas vezes já pupulava em minha cabeça: Como a história (ou melhor, seus fatos históricos) de um povo muda seus valores e, com isso, a sua norma.


A história influencia o valor? A norma influencia o valor? Afinal, o que é esse famoso “axioma” que estudamos nas universidades? O que passamos como valores como professores de direito? Será que adianta ensinar esses “axiomas”, uma vez que nossos alunos já vem incutidos dos valores que receberam pelos pais (que as vezes negligenciam a educação por conta da rotina de trabalho: ou com a televisão, ou sendo permissivos como forma de compensação ou simplesmente na mão de estranhos), ou que foram erroneamente colocados por força de más influências nas escolas… não sei.


O certo é que cheguei a uma conclusão um tanto quanto empírica: A concessão de normas sem o devido regramento, na mão de corruptos, de adeptos da lei do “jeitinho”, da lei de “tirar vantagem em tudo”, não podia dar em outra: não dá certo. Teremos norma, mas não teremos direito, conquanto valor ético e humano.


Ora, se direito é fato, valor e norma, se há conflito de valores em um determinado fato aplicando-se uma norma, temos um conflito: um conflito de valores. E se há um ideal de justiça, e dever-se-ia perquerir qual o valor correto, ou o mais correto, ou o que preservasse a finalidade da norma, seja ela princípio ou regra (emprestando-se da doutrina de Ronald Dworkin).


Desta forma, pode-se concluir que a elaboração de normas concessivas de benesses, se não acompanhadas de regramentos e de conseqüências em seu descumprimento (sim, estou sendo um pouco kelseneana, mas não me refiro bem a uma sanção, mas sim a uma conseqüência que pode ser inclusive social), finda por sequer se tornar inócua: Acaba virando uma arma em mãos erradas. Vira um instrumento para além do bem e do mal.


Pode-se concluir ainda que o direito é um forte instrumento de poder, sendo inclusive, mencionado por Pierre Bourdieu como uma “força simbólica”, que pode provocar até mesmo uma “violência simbólica”. Lógico! Com o perdão do esquecimento do nome do palestrante, certa vez ouvi em uma palestra que “A Constituição é o espelho de seu povo”. Sim, concordo em gênero número e grau.


Não me perdôo por haver esquecido o nome deste palestrante, estava no primeiro ano de faculdade ainda. Mas as palavras dele nunca me saíram da cabeça. “A Constituição é o espelho de seu povo” – Como aquilo me soava engraçado. Mas ele explicou com maestria, mais ou menos com essas palavras: “Porque o povo brasileiro quer uma Constituição sintética tal qual os Estados Unidos? O povo brasileiro não é sintético, ele é prolixo. Veja bem, o americano passa e fala ‘how do you do?’ e o outro apenas responde ‘how do you do?’ e vai cada um para o seu canto. E o brasileiro? Um diz ‘como vai?’ e o outro ‘não muito bem sabe, aquela dor nas costas…’ e o outro ‘ih, sabe, minha tia também tem, deve ser o bico de papagaio…’”. Fiquei olhando pra ele como se ele tivesse me mostrado a roda pela primeira vez.


Como queremos que nosso ordenamento tenha legislações que não comportem nossa realidade, ou melhor, nossas necessidades? Como queremos uma legislação idêntica se nossa formação histórico-antropológica são diferentes? Até homens e mulheres, iguais perante a lei, tem necessidades diferentes, a começar biologicamente.


Temos legislação de primeiro mundo que nem o primeiro mundo possui! Um dos ordenamentos legislativos mais organizados e planejados do mundo! Que chique! A frança não precisa de legislação para comportar quem possua alguma deficiência para ter juízes cegos por exemplo. Precisamos de leis, por outro lado, até para ter a garantia de acesso deles nas universidades que em regra não dispõem de livras ou braile. Precisamos de leis (e que sequer são tão bem bem fiscalizadas) para empregar tais pessoas que tão uteis, tem potencial, possuem inteligência, precisam de uma chance. Tirando que até mesmo pessoas completamente saudáveis ou que tenham seu corpo funcionando totalmente enfrentam o clientelismo, as preferências, o critério da “boa aparência”, o critério da “influência”.


Ninguém melhor que Gilberto Freire para falar da formação histórico-antropológica do povo brasileiro, e as suas maiores mesclas culturais que culminaram em um caldeirão de misturas de etnias, origens sociais, religiões, e claro, valores que acabaram por formar toda a característica própria do povo brasileiro, que perpassou desde as raízes do patriarcalismo europeu até a mistura com sociedades indígenas, desde o império, perpassando pela república, períodos de coronelismo, paternalismo, ditadura até o ápice da liberação feminina – a mulher começa no mercado de trabalho e a influenciar nas mudanças sociais. A população, masculina e feminina, pega em armas e luta pelos seus ideais de liberdade, lutam contra a opressão e a tortura.


Começa a mudança mais visível na sociedade. A mulher conquistou seu espaço. Antes era submissa, como incapaz de tomar suas próprias decisões. Sempre se submetia a vontade do marido, trabalhava em casa e cuidava dos filhos e do marido. Por vezes, as que precisavam ajudar em casa, cozinhavam para fora, e as mais “chiques” davam aula de francês ou piano. O marido, “o chefe da casa”, quase sempre em tom ríspido com as crianças, as castigava com uma surra em caso de diabruras, ou com castigos de fazer virar o nariz de muitos hoje em dia: ajoelhar em milho, ficar sem jantar, ficar trancado no quarto (sem nada para fazer) até a hora do jantar etc. O homem tinha o direito de sair sozinho, ir a lugares não muito convencionais, por vezes possuía mulheres na rua. Era considerado um sinal de masculinidade tão forte beber e fumar que algumas crianças costumavam copiar os adultos em tais (péssimos) hábitos.


Mas por trás de todo o sistema do patriarcado, nessa lógica que para muitos é simplesmente colocada como meramente “machista” (particularmente, qualquer “ismo” pra mim é coisa ruim), havia outros costumes a ele atado: a regra de obediência dos filhos, não apenas ao pai, como a Deus. Sim, a Deus, o costume das orações antes das refeições (ainda que com a reprimenda do pai) e as idas dominicais à igreja (ou aos judeus ou algumas religiões protestantes, a ida às sinagogas dias de sábado e aos templos) pregavam valores familiares.


Quase sempre a figura do bandido tinha por característica a maldade, mas não normalmente a truculência que se vê atualmente. Pensava-se no pai de família e no desamparo em que deixaria sua família, na figura da mãe desesperada pela perda de um filho. Dentre outros fatores, ainda que sobre drogas ilícitas e crime, a família e os valores religiosos influenciavam na criminalidade.


Hoje, a mulher é livre, pode votar, pode trabalhar, pode escolher parceiros, pode ter mais de um parceiro, pode mudar de parceiro, escolher seu casamento e se divorciar, pode agir como age a figura masculinizada de um ícone idealizado de um padrão para um homem (digo isso pois não gosto de generalizações).


O trabalho de casa e de cuidar dos filhos é dividido com o marido (ou ao menos deveria sê-lo, pois sabemos que ainda vivemos em uma comunidade altamente patriarcalizada). O problema como eu disse, e acho que tenho liberdade de expressão para tal, é o exagero. No afã de igualar, pela luta e pelos direitos, muitos entenderam algumas atitudes como provocação, como uma desvalorização. E o pior: o “machismo” tão criticado e combatido a ferro e fogo continua velado, continua ínsito na sociedade. Homens não apenas com o ideal de beleza da mulher na cabeça, como também com a larga exigência de companheiras virgens, comportadas, inteligentes. Idealizadas.


Tal período coincidiu com um desmoronamento da estrutura familiar em um grande círculo vicioso. Alguns homens entenderam que já que não poderiam ter uma mulher só sua poderiam ter quantas quisesse uma por uma noite. E assim os filhos não planejados advieram, criados sem a figura paterna, em meio da amargura de uma mãe abandonada, que criou filhos acostumados sem uma família ao lado, com a figura da mãe-heroína (a que lutava bravamente para criar seus filhos, ou a que largava seus filhos para usar heroína).


Sem uma figura familiar, como pensar a cabeça de uma criança largada no mundo? Estou falando de criança mesmo, quando ainda tem inocência na cabeça de um ser humano! Sem rédea, sem parâmetro de bem e mal – apenas apreendido pelo que vê na televisão – muitas vezes sem carinho, sem religião, sem valores. A malícia vem devagar, com a naturalidade com que vêem coisas na televisão e na rua. A criança hoje vive uma interação fora da realidade dentro de um mundo virtual: a internet e a televisão.


Antes havia toda uma preocupação em não se falar palavrões na frente de crianças. Hoje parece que muitos acham bonito ver a criança tão boca suja quanto o pai, ou a mãe, ou quem lhe crie! E já vi pais a moda antiga, repreendendo seus filhos por chamarem palavrão e outras pessoas criticarem os pais porque seus filhos tem liberdade de expressão e tem que conhecer as maldades do mundo “para se defender”.


E aonde vamos parar? Certa vez fui debater sobre o problema da sexualização precoce de crianças e adolescentes por conta da mídia, dizendo sobre os dados preocupantes de meninas entre onze e treze anos que, por conta própria, tomam a atitude de “avançar o sinal” com os meninos, às vezes seus namorados, “      ficantes” ou “peguetes” na linguagem deles, com toda a coragem que por vezes acho faltar em uma mulher, e ainda dizer que se o mesmo não fizer, “o chamará de gay para o colégio”, ou o difamando etc.


Em regra me criticam quando abordo sobre o assunto do campo penal dizendo que eu pareço colocar o crime tão recentemente colocado sob a cota marginal de “estupro de vulnerável”, em que menores de 14 anos, independentemente de seu consentimento (ou mesmo pedidos) tenham mantido relações sexuais, parecendo que eu quero enquadrar como “crime precipitado pela vítima”, quando na verdade quando falo de tal situação, é justamente o que eu me preocupo: que menores de 14 não mantenham relações sexuais porque justamente são crianças e adolescentes, e devem viver essa fase.


Pois bem, quando falei do problema, uma colega, de outra área de conhecimento, me criticou me chamando de “conservadora” e “sexista” (eu nem sei que isso realmente quer dizer, sinto pela minha ignorância), e contou que, na escola em que trabalhava, uma menina de 5 anos estava mexendo em suas partes íntimas porque um outro colega, também de uns 5 anos, havia pedido (se é que a pobre da garotinha sabia o que estava fazendo). A professora repreendeu a garotinha, que não fizesse aquilo, porque era errado, e minha colega, contando, foi brigar com a professora porque a garotinha tinha que descobrir sua sexualidade, afinal criança e adolescente tem o direito de descobrir sua sexualidade, e que a professora era tão sexista quanto eu. Bom… sexualidade com 5 anos? Curiosidade para saber a diferença entre meninos e meninas tudo bem… mas sexualidade?


Venho lendo uma série de revistas em quadrinhos que é uma edição histórica: Traz a versão da primeira capa da revista e a nova versão. Na primeira versão havia apenas meninos em uma lagoa, com um cachorro roubando as roupas e os meninos, dentro da água, ficavam com o semblante aborrecido. Na nova versão, um “remake” da capa, há duas meninas na lagoa junto com os meninos, sem roupa, cobrindo a parte de cima. Isso porque no desenho são crianças, sequer são adolescentes! E o que me aborrece é que nessa edição histórica tem uma série de justificativas do por que dos quadrinhos antigos serem “politicamente incorretos” e alguns detalhes terem sido suprimidos para se adequar “às novas tendências”.


Exemplo disso é a questão das armas. Desde que se falou em redemocratização, da saída de um período ditatorial no Brasil, se fala no abandono de armas dos civis. Ou seja, arma, em tese, apenas para polícia e forças armadas para combate a criminalidade.


Após a concessão dos direitos fundamentais, tão necessários onde se deseja implantar sentimentos de humanização, o Brasil passa ultimamente para uma transição de politicamente corretos, ou hipocritamente corretos. Vamos analisar: A palavra hipocrisia vem do teatro grego, que significava atuação, fingimento em sentido artístico.


Hoje o cidadão brasileiro não pode mais pegar em armas. O ordenamento jurídico, extremamente pródigo em humanidade não é condizente com cidadão armado. Mas o traficante, o assaltante, os consumidores de drogas estão soltos, armados, agora eles são a nova ditadura paralela: eles agora ditam as leis, perseguem, torturam, confiscam, matam.


Sinceramente, compreendo a lógica dos direitos humanos… mas cadê a essência de proteção da humanidade? Se não há humanidade para todos, não há direitos humanos. E o que muitos dizem na multidão (e a voz do povo é a voz de Deus) é a sensação de que só há direitos humanos para quem infrinja a lei.


A imprensa, antes amordaçada, ganhou espaço para a mídia marrom, sensacionalista, que transforma em um show a grande política do “pão e circo” em que nos encontramos nesses tempos modernos (mas ela não era romana? Como estou mencionando-a no século XXI?).


Assim, certa vez assisti a uma reportagem em que o policial havia prendido um assaltante de seqüestro relâmpago, após árdua negociação para soltar o refém, e o assaltante, parecendo não estar em seu juízo perfeito se debatia, até que o policial o empurrou e o ofendeu. Nossa! A repórter fez um escândalo e começou a expor o policial, chamando-o de arbitrário, truculento, que iria pessoalmente na corregedoria de polícia prestar depoimento contra aquele policial, etc.


Fiquei pensando “será que esse escândalo todo dá audiência? Será que ela começou a estudar direito agora? Mandaram ela fazer isso?”. Mas o que certamente passou pela minha cabeça (afinal, já sofri seqüestro relâmpago, fora ter sido assaltada oito vezes na vida – até agora) é “será que ela falaria isso para esse cidadão que quando assalta (claro que em regra mulheres), nos chama de filha da…, senão a própria, de vaga…, chama os piores nomes, machuca, bate na gente, ameaça bater, matar, engatilha a arma carregada na cabeça (como ocorreu comigo), ameaça voltar e matar a todos…?” ou simplesmente ela diria “não, com o assaltante não, porque ele não faz isso porque quer, mas sim porque é vítima da sociedade”.


Concordo que a fome e a miséria transformam povos. Não é a toa que países como a Rússia as pessoas sejam frias, distantes, arredias, vendo-se comumente crianças capinando a grama, adolescentes trabalhando no verão (tal qual Estados Unidos, que apesar de não ter passado tantas dificuldades, possui tal hábito e é um país tido como primeiro mundo), vê-se pessoas pintando uma parede pelo equivalente a nós, brasileiros, a aproximadamente trinta reais.


E o que vemos aqui? Pessoas (maiores ou menores de idade) ociosas, apontando armas para bebês, ameaçando “estourar os miolos” de crianças, ameaçando estuprar mulheres e até crianças, por apenas dez reais ou um celular! Isso quando o bandido não olha o celular do trabalhador, que não é o da moda, não é o smartphone que ele não pretende trabalhar para ter um, pois não lhe é ensinado isso (trabalhar é errado! Para que, se posso ter fácil?), e ainda humilha a vítima de assalto?


Gilberto Freire em sua obra “Casa Grande Senzala” diz que o Brasil é a “Rússia das Américas”, mas sinceramente, estamos mais para Índia americana, ou mesmo África da América do Sul. Sim, mais para a África, que possui riquezas concentradas, corrupção, poderes paralelos (com direito a tráfico, estupros e guerras civis), e um racismo velado e mascarado mesmo em tempos passados de Apartheid.


Mudam-se os hábitos, mas infelizmente não a mente das pessoas. A mente delas muda pelo que elas vivem, pelo meio. Mas as atitudes mudam pelas necessidades, pela adequação a realidade. Muitas vezes nos vemos forçados a agir hipocritamente corretos. Devemos falar um termo correto, adequado, como por exemplo, “melhor idade” no lugar de “velhice”. Não queremos ser vilipendiados por usar um termo errado.


Mas pense comigo: eu posso falar um termo tido como politicamente incorreto sem a intenção de ofender, e um termo politicamente correto com ironia. Como dito por Jesus na Bíblia “o problema não está no que entra pela boca do homem, mas sim o que sai dela”, de como sai dela.


Hoje há quem diga que no período da ditadura era melhor. Mas pense bem: Foi neste período que foi gestado tudo o que está hoje. Se naquele momento a censura proibia inclusive o ensino da disciplina de história sem um devido olhar crítico, o ensino vilipendiado e alienado criou o que hoje temos como os analfabetos funcionais, sem o mínimo de capacidade de crítica.


Parafraseando Paulo Freire, apenas consegue ler um livro quem tem leitura de mundo, portanto, quem não tem leitura de mundo, quem não compreende a realidade, jamais irá ler um livro. Como um alienado poderá ler e compreender o que lhe derem para criticar?


E o que vemos com os jovens (e mesmo adultos) de hoje? Presos eternamente a uma televisão, jogos eletrônicos, novelas, programas acerca da vida de artistas, vida alheia em sites de relacionamentos. Muitas vezes todas essas relações causando exposição, ridicularizações, desentendimentos, processos, os famosos “danos morais”.


A criança não sai de casa, a violência nas ruas não permite mais que seus pais as deixem brincar na rua. Pedofilia, seqüestros, tráfico de pessoas, tráfico de drogas, tudo isso hoje aterroriza os pais dos pequenos! E acabam fazendo com que se vilipendie algo extremamente importante: uma infância tranqüila e feliz.


A criança já cresce na neurose, no medo, no pânico. Ao mesmo tempo, cresce na frente de vídeo-games que as deixam obesas e com programas (hoje não mais censurados, mas que estimulam a sexualidade precoce, a mentira aos pais), que ser jogador de futebol ou modelo (ou pior… até mesmo traficante!) é mais vantajoso do que estudar. A figura do nerd ridicularizado demonstra claramente isso – O bullying, além de ser estimulado em filmes e séries, uma vez que o bonito e popular é o que agride os colegas, estimula ao não estudo, a desconsideração pelo ser humano.


Vemos hoje nas brincadeiras de criança, que antes chamávamos “polícia e ladrão”, todos gostariam de ser o policial, e hoje vemos crianças fazendo questão de ser o ladrão e que direitinho imitam os trejeitos de armas e linguajar que aprendem na televisão. Ai se vê nos jornais uma professora apavorada porque um aluno do ensino fundamental a alertou “olha, se me reprovar meu pai é bandido, ele vai matar a senhora”, escutam-se as notícias de que um menino que sofria violência nas escolas cometeu uma atrocidade em Realengo, que um aluno de oito anos tirou uma arma da mochila, atirou contra a professora e se suicidou. Aí vemos nas faculdades, alunos falsificando documentos (sim, crime de falsidade documental) para abonar faltas, requerer antecipações de provas ou transferências, e até mesmo ameaçando professores de morte se não os passarem.


Pensamos que quando lemos ou ouvimos uma notícia dessas, não é muito difícil acreditar que armas são facilmente obtidas de maneira ilícita no Brasil. O povo foi desarmado, mas e as armas ilegais? E o controle? E o “jeitinho brasileiro” que permite a chamada “vista grossa”?


Pensei que depois de oito assaltos e um seqüestro relâmpago eu conhecia o que era violência. É tanta violência que semana passada assaltaram uma moça com um bebê na rua da minha casa, e de acordo com o depoimento da mesma, que chorava copiosamente, o assaltante simples e friamente encostou nela, tirou a arma, apontou para a cabeça da criança e apenas disse “Me passa o celular senão eu atiro agora na cabeça do teu filho, e é bom a senhora ter alguma coisa pra mim, senão já sabe”.


O professor, seja ele o de ensino fundamental, médio (tantos nomes que mudam, a política educacional é a mesma, e eu nem sei se estou correta nessa nomenclatura), e o de ensino superior. Figura que já foi tão respeitada, muito mais que temida, em épocas que professores ganhavam dignamente, época em que se um aluno tirasse nota abaixo da média, os pais criticavam seus filhos que deveriam se esforçar mais, estudar mais.


Hoje, o professor, nas palavras de muitos alunos (não estou inventando, já vi até comentários de desconhecidos, em passagens de vídeos na internet e na televisão) virou o “otário”, o “estúpido”, o “filho da…”, objetos ate mesmo de “macumbas virtuais” para acabar com a vida dele, etc. Quanto ódio! E os pais? Alguns se revoltam contra o professor! Não vou dizer que todo mundo é santo, anjo ou beato, mas a primeira pessoa que se volta é para o professor, que fica rotulado de “incompetente”, “ditador” e até mesmo “recalcado”.


Quantas vezes já ouvi aluno perguntar “professora, a senhora também trabalha ou é só professora?”. Nossa, aquilo doeu. Sem orgulho besta ou soberbas, pois acho que a profissão de professor deveria ser uma profissão de humildade, inclusive para admitir erros e novos aprendizados, mas aquilo doeu. Parece que o professor não trabalha. Então o que faz ele? Brinca? E quando o professor é comprometido com o aprendizado e não apenas com o seu minguado dinheiro mensal, não é trabalho?


Às vezes penso se o aluno não pára para refletir pelo menos sobre o que faz um professor: Um ser humano, de carne e osso, que não apenas deve estudar todo dia (quando se tem tempo, pois para se pagar contas deve-se estudar o dia todo, ministrando as matérias que derem pela frente), que elabora plano de aula e ensino, os trabalhos que serão ministrados, elaboração de provas, correção de trabalhos, correção de provas, preocupação se o tempo estabelecido é suficiente para o cumprimento do conteúdo programático… Se isso não é trabalho, o que é trabalho então?


Ele está cada vez mais acostumado com as comodidades da vida moderna, com a possibilidade de “não gostar do que está passando e mudar de canal com um simples toque de botão no controle remoto”. Tudo é na base do “ah, professora, eu trabalho, estudo, tenho filho e marido, dê um desconto, abone minhas vinte faltas na sua disciplina”. Vi minha mãe, assim como muitas outras mulheres, trabalhadoras, dando conta do recado, no desespero. Hoje… só vejo pedido de descontos como se eu fosse uma loja em liquidação!


Alunas grávidas, antes acostumadas a pegar ônibus, subir escadas, ficar no sufoco para acompanhar trabalho, estudos… Hoje parece que os médicos transformaram a gravidez para elas como uma doença. Não podem fazer nada, parecendo que se voltou para a época medievalesca em que a grávida ficava deitada nove meses prostrada, comendo e dormindo, engordando uns trinta quilos. Parto normal? Nem pensar! Agora qualquer posição estranha no terceiro mês de gravidez os médicos já indicam uma cesária, apavorando a paciente!


Voltando ao assunto, ah, o professor sofre… fora os problemas naturais da competitividade de colegas, cada vez mais acirradas com o mundo capitalista em que vivemos, esse darwinismo social fica cada vez mais cruel. Como professora de Direito posso afirmar: A vaidade é o pior pecado de um professor de Direito. É um próprio veneno uma vez que se ela for maior do que a competência pode fazer a pessoa estacionar no tempo e no espaço; e ao mesmo tempo ela pode ser terrível para fazer intrigas e fofocas, capazes de aniquilar qualquer ambiente saudável de trabalho em educação.


Isso porque os alunos estão cada vez mais acostumados com permissões. O Estatuto da Criança e do Adolescente com todos os seus direitos aclamados, mas com um sistema de disciplina ressocializadora extremamente carente de efetividade acaba conduzindo a uma série de crianças e adolescentes que simplesmente acham que podem fazer tudo: matar, roubar, estuprar. Aqueles que tem uma formação religiosa (ou ao menos estão com o terço toda vez que tem o Círio de Nazaré em minha cidade – eu moro em Belém do Pará), pelo menos só acham que devem prejudicar o colega, praticar uma discriminação de vez em quando, praticar bullying, tentar prejudicar o professor que lhe deu uma nota baixa inventando condutas do mesmo, etc. Ainda bem que alguns tem essa formação “ética”, senão os professores deveriam pedir logo adicional de periculosidade em seus salários!


Minha conclusão? Já se pegou em armas para mudar um país sob uma ditadura. Já se fala em flores para parar uma ditadura paralela, um total abandono da ética, do desmoronamento da instituição familiar, do afastamento da religião ou demais valores de socialização. Perdeu-se a noção do certo e do errado e simplesmente pega-se a lei, e se encontra brechas, vantagens, apenas vantagens, a atenção.


Zigmund Bauman tem razão: na modernidade líquida tudo se mistura, de passado e presente, tudo é muito rápido e intenso, tudo é líquido, e fica descartável. As pessoas se vêem como descartáveis. Como pedir humanidade assim? Só pedindo condutas completamente fora de conteúdo de valor, a norma fica imposta sob um fato. Há direito?


O bordão “antes um covarde vivo do que um herói morto” está caindo por terra, pois sob o pálio da lei do silêncio, covardes coniventes com tal situação, podem acabar nas mãos ou mesmo morrendo por conta daqueles que se utilizam da lei apenas para tirar vantagem. Viverão uma vida neurótica, vazia, sempre na procura do mais, descartando pessoas (e não apenas objetos), competindo, se deprimindo, procurando meios de escape. Há solução? Somos o resultado de nossa história de vida, o resultado do que fizeram conosco. O resultado do que deixamos fazer conosco, o resultado do que nós fizemos e pensamos.



Informações Sobre o Autor

Agatha Gonçalves Santana

Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPa. Professora de Direito Processual Civil na Universidade da Amazônia – Unama. Advogada