O vigente Código de Processo Civil de 1973 adotou a chamada teoria estática de distribuição do ônus da prova, ou seja, o ônus da prova é de quem alega. E a insuficiência do acervo probatório carreado pelo demandante conduz à extinção do processo com resolução de seu mérito, importando na rejeição de seu pedido (Art. 269, I, do CPC). Assim, não basta ao autor da ação deduzir todas as alegações que poderia opor ao acolhimento do seu pedido (Art. 474). Deverá o mesmo, outrossim, indicar na sua petição inicial as provas com que pretende demonstrar a verdade desses fatos alegados (Art. 282, VI). Tal dever processual de proceder pode ser traduzido na máxima latina iudex debet iudicare secundum allegata et probata (“O juiz deve decidir de acordo com as alegações e as provas”).
Tal sistemática clássica adotada pelo Código Buzaid acerca da distribuição do encargo probatório às partes, após a entrada em vigor deste Codex, e quando inserida principalmente na contemporaneidade e essência de nossa sociedade brasileira dos dias atuais, revela-se inoperante, senão, crudelíssima aos anseios de acesso à jurisdição dentro de uma óptica de igualdade substancial no processo entre os contendores. O arquétipo da “paridade de armas” erguido pelo vetusto Diploma Adjetivo, claudicante, não disfarça sua parca vocação – ou quase nenhuma – para atendimento dos anseios constitucionais de transformação da atividade jurisdicional como instrumento sublime de promoção e efetivação dos direitos humanos e erradicação da pobreza e marginalização.
Timidamente, tentou o CPC vigente alardear uma igualdade substancial no processo, inserindo dentro de suas disposições relativas aos poderes e deveres do juiz que, este protagonista presidirá o processo, competindo-lhe, ainda, assegurar às partes igualdade de tratamento (Art. 125, I, do CPC). Tal disposição não obteve nenhuma ou quase nenhuma ressonância dentro da sistemática do ônus da prova, repercutindo mais no poder-dever do magistrado em prontamente assegurar à parte o direito de contraditar e arrazoar tudo que levantado pelo adversário, antes de decidir qualquer coisa no processo. O que, a toda evidência, não mitiga e nem altera a dificuldade do litigante hipossuficiente na obtenção das provas imprescindíveis ao êxito de seu pleito.
Para solucionar esses entraves ao acesso à jurisdição e efetiva entrega da prestação jurisdicional, driblando a sistemática ultrapassada do vigente CPC, doutrina e jurisprudência fizeram surgir a denominada teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, pela qual tal ônus será carreado a aquele que puder suportá-lo mais comodamente, seja pelo aspecto técnico ou econômico de sua produção, verificado em cada caso concreto. Tal teoria, encampada pelo Código do Consumidor (Art. 6º, VII), mais se afeiçoa ao esforço processual de se aniquilar com a prova diabólica, aquela dita impossível de produção pela parte que dela necessita, do que efetivamente desenvolver um pensamento jurídico-filosófico da imprescindibilidade da difusão da igualdade substancial a ser sistematicamente adotada em todas aquelas causas de jurisdicionados vulneráveis, sem exceção. E a aplicação dessa teoria resta desconhecida aos casos alheios à relação consumerista na jurisprudência.
Procurando remediar o vacilo do legislador de 1973, o Anteprojeto do Novo CPC, capitaneado pela maestria do Ministro Luiz Fux do STJ, resolve a questão de milhões de jurisdicionados brasileiros necessitados com tino, expressamente positivando no novo Diploma em gestação – não dentre os poderes ou deveres do magistrado, mas, com muita propriedade e exatidão, dentro das disposições gerais da prova – regra explícita de real promoção da igualdade substancial entre as partes na distribuição do ônus da prova no processo civil brasileiro.
Com maestria, preconiza o Código Fux:
“TÍTULO VII
DAS PROVAS
CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 261. O ônus da prova, ressalvados os poderes do juiz, incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Art. 262. Considerando as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, o juiz poderá, em decisão fundamentada, observado o contraditório, distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o à parte que estiver em melhores condições de produzi-la”.
Como se vê, após repetir no Art. 261 a sistemática estática atual, incontinenti o Diploma Fux, logo em seu artigo seguinte, abranda essa regra, autorizando ao julgador o seu completo abandono, para impor à parte que estiver em melhores condições de produzir a prova o dever de carreá-la aos autos do processo, suportando inclusive os encargos econômicos dessa produção.
O emprego da expressão “ressalvado os poderes do juiz” utilizado no caput do Art. 261 impressiona. É estrategicamente vocacionado para o desiderato da igualdade substancial no processo, mas a exigir um juiz ativo, sensível às dificuldades e anseios da população alijada das conquistas políticas, sociais e culturais. Repete o Anteprojeto uma teoria estática mitigada pela participação e interesse do juiz na solução da causa, o mais próximo possível de um ideal de justiça social, de verdade real, concluindo pela dispersão diversa do ônus da prova diante das peculiaridades do caso.
Bom seria, e é assaz conveniente, se a Notabilíssima Comissão do Anteprojeto do Novo CPC repetisse na Seção que trata da Defensoria Pública aquela fórmula expressa na Lei Orgânica Nacional desta instituição para dizer expressamente da prerrogativa do Defensor Público de requisitar diretamente das autoridades públicas ou de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições, à exceção, naturalmente, daquelas informações protegidas pela cláusula de reserva de jurisdição (Art. 5º, X, da CF/88).
Tal aditamento às disposições referentes à Defensoria Pública na novel legislação processual, certamente, em muito contribuiria para o pronto atendimento do desejo da razoável duração do processo, poupando demasiadamente magistrados e serventuários de atividade cartorária e ordinatória simples, de somenos importância, mas que em muito contribui para a morosidade dos processos, que só reverte em desprestígio do Poder Judiciário. Não se trata, no ponto, de despropositado empoderamento da figura do Defensor Público, mas, sim, de se exigir menos sacrifício e desgaste do já sacrificado juiz, reservando a exclusividade do poder judicial requisitório deste apenas àquelas hipóteses em que necessária a quebra do sigilo da intimidade e vida privada do cidadão, como exige a Constituição Federal. Aliás, já é o que acontece há muito tempo com o Ministério Público, não havendo razão para não se outorgar à Defensoria Pública, patrocinadora de milhões de ações no País, o mesmo tratamento.
Informações Sobre o Autor
Carlos Eduardo Rios do Amaral
Defensor Público do Estado do Espírito Santo