Resumo: O presente trabalho tem por objetivo reconhecer a possibilidade de dupla condenação ao ressarcimento do Erário no âmbito do Tribunal de Contas e da ação de improbidade administrativa, além de demonstrar a efetividade desta medida, sob o prisma da proteção constitucional à integridade do patrimônio público. Para tanto, são analisadas, inicialmente, as condenações ao ressarcimento do Erário na órbita da Corte de Contas e da ação de improbidade, pretendendo-se cotejar os procedimentos que as precedem, as decisões que as determinam e as formas de executá-las. Em seguida, são apresentados os fundamentos jurídicos que viabilizam a condenação dúplice e afastados os argumentos contrários a essa tese, esclarecendo, ainda, a impossibilidade de se proceder a um duplo ressarcimento, ante a vedação do bis in idem. Ao final, estuda-se o grau de efetividade de cada uma das decisões – administrativa e judicial –, demonstrando-se a potencialidade da dupla imputação do débito, à luz de uma concreta reparação do Erário.
Palavras-chave: Improbidade Administrativa. Tribunal de Contas. Ressarcimento ao Erário. Dupla Condenação. Efetividade.
Abstract: The aim of this work is to recognize the double condemnation possibility to the repayment of the exchequer at the Audit Office scope and of the administrative improbity proceeding, besides demonstrating the effectiveness of this measure, under the view of constitutional protection to the public patrimony integrity. Therefore, initially, are analyzed the condemnations of the exchequer repayment at the Audit Office scope and the improbity proceeding, intending the comparing of the preceded procedures, the determinant decisions and the ways to execute them. Following this step, it’s shown the legal foundations that enable the double condemnation and avoided the contraries arguments of this thesis, clarifying, yet, the impossibility of a double repayment, due to ne bis in idem. At the end, it’s studied the effectiveness rate of each decision – judicial and administrative –, proving the potential of the double debit imputation, in light of a factual exchequer repair.
Keywords: Administrative Improbity. Audit Office. Exchequer repayment. Double Condemnation. Effectiveness.
Sumário: Introdução. 1. O ressarcimento do Erário no âmbito do Tribunal de Contas. 2. Do ressarcimento ao Erário no âmbito da ação de improbidade administrativa. 3. A viabilidade jurídica da dupla condenação. 4. Da impossibilidade do duplo ressarcimento. 5. A potencialidade da dupla condenação. Conclusão.
Introdução
O cenário brasileiro atual, máxime no tocante aos detentores de poder político e econômico, revela um verdadeiro quadro de desídia, malbaratamento e menosprezo quanto ao patrimônio público, encarado, muitas vezes, como fonte de satisfação de interesses particulares, em detrimento absoluto da finalidade pública a que, em tese, se destina.
É possível afirmar, inclusive, que a corrupção é um elemento de permanência na história brasileira. Diante desse quadro, a Constituição Federal de 1988 reforçou os mecanismos de proteção do Erário, sendo o maior exemplo a previsão, contida no art. 37, § 5º, de imprescritibilidade das ações que veiculam a pretensão de ressarcimento dos danos a ele causados. Não se pode olvidar também da imposição do dever de prestar contas àqueles que manuseiam, direta ou indiretamente, verbas de natureza pública, nos termos do art. 70, parágrafo único. Essas normas protecionistas traduzem a elevação da integridade do Erário à condição de bem jurídico constitucionalmente tutelado, o que tem justificativa na sua essencialidade à execução das finalidades públicas.
Na mesma esteira de zelo pela boa administração dos recursos públicos, há a consolidação, na órbita constitucional, do Tribunal de Contas como órgão técnico destinado a fiscalizar a utilização dessas verbas e exarar decisões condenando ao ressarcimento dos prejuízos causados ao Erário.
Ao lado disso, outra medida inserta na Carta Magna visando ao combate à corrupção e a proteção do bem público é a previsão de atos de improbidade, no artigo 37, § 4º, que imputa severas penalidades à prática da conduta ímproba, tais como suspensão dos direitos políticos e perda da função pública, além da necessidade de ressarcimento ao Erário.
A lesão ao Erário, dada a sua gravidade, reclama do ordenamento jurídico respostas eficazes, sobretudo com vistas a reparar o desfalque sofrido no já escasso patrimônio econômico do Estado. A proteção à integridade do Erário adquire maior destaque quando se concebe que somente por meio da utilização dos recursos e bens públicos é possível a consecução dos fins primários à comunidade. Vale dizer, sem recursos não há Estado.
Nessa lógica, conclui-se que, havendo lesão ao Erário, a medida mais favorável ao interesse coletivo seria o ressarcimento dos prejuízos causados, uma vez que, malgrado as sanções penais e administrativas cominadas cumpram uma função preventiva e atendam aos anseios sociais de punir aqueles que malfiram o patrimônio público, é a reparação do dano que proporcionará o correto direcionamento dos recursos públicos. Destarte, soluções aptas a proporcionar a efetiva e integral reparação do Erário são de existência obrigatória, sob pena de deixar nas mãos dos infratores a opção pela conveniência ou não de restituí-lo.
Assim é que, sob a ótica da relevância do Erário para a sociedade, e com vistas a assegurar o efetivo ressarcimento dos prejuízos, este estudo avaliará a eficácia da decisão exarada pelo Tribunal de Contas e daquela proferida no bojo da ação de improbidade administrativa. O que se pretende sustentar é que a condenação na Corte de Contas não configura um óbice à posterior condenação no âmbito judicial; ou seja, que mesmo após a formação do título executivo extrajudicial, consistente no decisum do órgão de contas que imputa o débito ao responsável pela lesão ao Erário, é possível não somente o ajuizamento da ação de improbidade administrativa com pleito reparatório, como também, e principalmente, a condenação judicial neste sentido.
Na prática, existem magistrados que, quando há prévia condenação no Tribunal de Contas, sequer conhecem do pedido de ressarcimento ventilado na ação de improbidade administrativa[1]. Em paralelo, há um histórico de baixo índice de concreta reparação do Erário em sede de execução das decisões da Corte de Contas[2], o que ratifica a necessidade de outro meio hábil a promover a efetiva recomposição do patrimônio público.
Com o fito de alcançar o objetivo proposto, inicialmente proceder-se-á a um breve exame acerca das condenações ao ressarcimento do Erário no âmbito do Pretório de Contas e da ação de improbidade administrativa.
Em sequência, são apresentados os fundamentos jurídicos que alicerçam a possibilidade da dupla condenação ao ressarcimento do Erário, refutando-se os argumentos adversos. Ato contínuo de estudo, esclarece-se a impossibilidade de uma reparação duplicada, em atenção ao princípio que veda o bis in idem. Por fim, a partir da análise comparada das decisões administrativa e judicial, demonstra-se o potencial de efetividade da dupla imputação de débito.
1. O ressarcimento do Erário no âmbito do Tribunal de Contas
O Tribunal de Contas, enquanto guardião da coisa pública, exprime um relevante papel na defesa do Erário, bem como para o seu ressarcimento em sendo verificado algum dano.
A Corte de Contas tem previsão no art. 71 da Constituição Federal como órgão técnico, auxiliar do Congresso Nacional no desenvolvimento da fiscalização contábil, financeira e orçamentária, sendo incumbida do exercício do controle externo, mediante apuração da gestão dos recursos públicos.
No desempenho de suas funções, compete ao Tribunal de Contas, na hipótese de serem verificados desfalques no Erário, condenar o agente causador do dano à sua reparação, bem como aplicar as sanções pecuniárias pertinentes e, se necessário, decretar a indisponibilidade de bens do responsável, por até um ano. Trata-se de poder constitucional de fundamental importância à concretização das atividades do órgão de controle, sem o qual restaria a fiscalização financeira relegada à insignificância, haja vista que suas conclusões não passariam de meras constatações, sem qualquer efetividade.
Para a consecução de suas atividades, o Tribunal de Contas dispõe dos processos de contas e de tomada de contas especial[3], que são hábeis a viabilizar o controle do uso regular das verbas públicas e, se for o caso, por meio deles, após assegurado o exercício do contraditório e da ampla defesa, é possível determinar a responsabilização do gestor pelos danos causados ao Erário e impor-lhe o ressarcimento.
Dos processos em que são constatadas lesões ao Erário, decorre, pois, uma decisão condenatória. O estudo da natureza jurídica deste decisum é de fundamental importância a este trabalho, e coincide com a análise da natureza jurídica do próprio Tribunal de Contas e de suas funções, que será procedida a seguir.
A controvérsia, neste ponto, reside, essencialmente, no tocante ao caráter jurisdicional ou não do órgão de controle. Para José Cretella Júnior (2002, p. 96), a questão fulcral diz respeito ao verbo “julgar”, presente no texto constitucional, que pode induzir a um entendimento equivocado. Esclarecendo a celeuma, o renomado jurista (CRETELLA JÚNIOR, 2002, p. 96) explica que “Julgar as contas é examiná-las, conferir-lhes a exatidão, ver se estão certas ou erradas, traduzindo o resultado num parecer da mais alta valia, mas que nada tem de sentença judiciária. É função matemática, contabilística, nada mais”. Desse modo, verifica-se uma atecnia legislativa, o que também ocorre no uso de outras expressões como “jurisdição”, que, em verdade, designa competência administrativa (CRETELLA JÚNIOR, 1987, p. 198); e “tribunal”, que, por si só, não tem o condão de modificar a natureza do órgão, tratando-se de um mero rótulo.
Existem, ainda, outros fatores que alicerçam a tese da natureza administrativa do Tribunal de Contas. De logo, insta considerar que, caso fosse intenção do legislador constituinte atribuir ao órgão de controle externo função jurisdicional, tê-lo-ia incluído no rol de órgãos do Poder Judiciário, o que não ocorreu.
No mais, no ordenamento jurídico pátrio, o exercício da jurisdição é exclusividade do Poder Judiciário. A jurisdição consiste em dizer o direito aplicável ao caso concreto. Reconhecer a jurisdição a um órgão administrativo equivaleria a admitir a existência de um sistema de contencioso administrativo, o que é inconciliável com o modelo vigente no ordenamento jurídico pátrio.
Outro aspecto que merece destaque na tarefa de apartar o Tribunal de Contas da função jurisdicional atine à origem do impulso inicial que deflagra a atuação do órgão. É que ao Poder Judiciário é defeso agir de ofício, isto é, a jurisdição é realizada, em regra, mediante provocação dos interessados diretamente relacionados com a causa. Por outro lado, a atuação das Cortes de Contas prescinde de provocação, permitindo, portanto, o agir de ofício. Outrossim, existe a possibilidade da iniciativa advir de agentes estranhos ao Tribunal, incluindo terceiros sem qualquer relação com o fato delatado.
Assim é que se pode concluir que a atividade realizada pelo Tribunal de Contas e o próprio órgão de controle têm natureza administrativa. Nesse mesmo sentido, José Cretella Júnior (2002, p. 95-98), José Afonso da Silva (2007, p. 759), Odete Medauar (1993, p. 141-143), Alfredo Buzaid (1967, p. 119), Pedro Roberto Decomain (2006, p. 162), Emerson Garcia (GARCIA; ALVES, 2010, p. 178) e José dos Santos Carvalho Filho (2010, p. 1094), bem como a jurisprudência dominante dos Tribunais Superiores[4].
Como não poderia ser diferente, considerando a natureza da Corte de Contas, as decisões exaradas são, igualmente, de caráter administrativo. Nesse diapasão, imperioso trazer a lume as palavras de José Cretella Júnior (1987, p. 183): “Somente quem confunde ‘administração’ com ‘jurisdição’ e ‘função administrativa’ com ‘função jurisdicional’ poderá sustentar que as decisões dos Tribunais de Contas do Brasil são de natureza judicante. Na realidade, nem uma das muitas e relevantes atribuições da Corte de Contas entre nós é de natureza jurisdicional. A Corte de Contas não julga, não tem funções judicantes, não é órgão integrante do Poder Judiciário, pois todas as suas funções, sem exceção, são de natureza administrativa”.
Na mesma esteira, é possível concluir que as decisões do Tribunal de Contas que imputam débitos decorrentes de dano ao Erário, depois de esgotadas as oportunidades de interposição de recursos internos[5], constituem coisa julgada administrativa, que é definida por José dos Santos Carvalho Filho (2010, p. 1050) como “a situação jurídica pela qual determinada decisão firmada pela Administração não mais pode ser modificada na via administrativa”. Saliente-se que a irretratabilidade se restringe às instâncias administrativas, sendo, pois, suscetível de alteração na via judicial.
A coisa julgada administrativa se distingue daquela que comumente acoberta as decisões judiciais por sua relatividade. É que a imutabilidade da deliberação judicial é absoluta, porquanto inexistem meios de modificá-la[6]; ao passo que as decisões administrativas apenas são definitivas na mesma via.
Ademais, a decisão que condena o gestor ao ressarcimento ao Erário, por disposição expressa da Constituição Federal, tem eficácia de título executivo[7]. Pedro Roberto Decomain (2006, p. 219) observa que “Para que a decisão do Tribunal ou Conselho de Contas revista o caráter de título executivo […], é necessário que apresente as características que deve ter todo título executivo […], ou seja, é preciso que venha marcada pela certeza, pela liquidez, e pela exigibilidade. […] Quando a decisão do Tribunal ou Conselho de Contas imputar débito ao gestor de dinheiro público, […] existirá certeza, a partir do instante em que referida decisão já não comporte mais qualquer recurso, na órbita do próprio Tribunal ou Conselho. A liquidez estará presente quando a decisão afirmar a quantia a ser restituída aos cofres públicos pelo gestor condenado […]. Finalmente, a exigibilidade surgirá também, juntamente com a certeza, no momento em que não houver mais a possibilidade do manejo de qualquer recurso na órbita do próprio Tribunal ou Conselho de Contas, em face da decisão que imputou o débito […] ao agente público faltoso […]”.
Não obstante a omissão constitucional quanto à qualificação do título executivo, considerando a natureza administrativa das decisões e das atribuições do órgão de controle externo, é cediço que se trata de título executivo extrajudicial, inserto, destarte, na categoria do inciso VII, do art. 585 do Código de Processo Civil.
Em sequência à decisão administrativa definitiva, na hipótese do não adimplemento voluntário da dívida, será providenciada a cobrança judicial, por meio da execução do acórdão condenatório.
À ação de execução, tendo em vista que a decisão a ser efetivada ventila um crédito da Fazenda Pública, aplica-se o procedimento previsto na Lei de Execução Fiscal – Lei n. 6.830/80. Neste ponto, uma observação se faz imperiosa. É que, a rigor, o título executivo que permite a instauração da execução fiscal é a certidão de dívida ativa. Todavia, a Constituição Federal solenemente confere ao decisum exarado pela Corte de Contas a qualidade de título executivo extrajudicial, sendo prescindível que seja efetuada a inscrição do valor em dívida ativa para fins de execução fiscal.
A legitimidade ativa ordinária para ajuizar a ação de execução é conferida à pessoa jurídica lesada, bem como ao Ministério Público[8]. É cediço que ao próprio Tribunal de Contas não incumbe tal ônus, tendo em vista ser desprovido de personalidade jurídica – das quais são detentores a União, os Estados, o Distrito Federal e o Município – carecendo, em regra, de capacidade de ser parte[9] para demandar judicialmente, em nome próprio. Outra não é a orientação do Supremo Tribunal Federal, que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 233.037-1[10], consolidou o seu posicionamento afastando, definitivamente, a competência para figurar no polo ativo da ação executória do órgão de controle externo e do Ministério Público correspondente.
Impende, ainda, destacar a possibilidade de ampla discussão acerca do título extrajudicial no bojo do procedimento executório. Isto é viabilizado pelo artigo 16, § 2º, da Lei de Execução Fiscal, que admite o oferecimento de embargos à execução.
O procedimento de embargos à execução comporta alegação de qualquer matéria que possa ser licitamente deduzida em defesa (art. 745, V do Código de Processo Civil), abrangendo desde questionamentos acerca do valor cobrado até a impugnação do débito, do título executivo ou mesmo do feito executório.
Por fim, importante questão a ser enfrentada diz respeito à possibilidade ou não de haver um controle judicial sobre as decisões do Pretório de Contas. Existem, em resumo, três vertentes sobre a matéria.
Uma linha de entendimento afirma ser impossível o controle judicial sobre as atividades de julgamento de contas. É perfilhada, sobretudo, por aqueles que defendem exercer, o órgão de controle financeiro, atividade jurisdicional, em razão do que suas decisões configurariam coisa julgada e, por conseguinte, não se admitiria qualquer ingerência do Poder Judiciário. Cuida-se de posicionamento já ultrapassado, porquanto insustentável, sobretudo em face do princípio veiculado no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, qual seja, o da inafastabilidade da jurisdição.
A segunda vertente, mais flexível, admite o controle judicial, limitado, contudo, a uma revisão sob o aspecto da legalidade. Nesse sentido, Pedro Roberto Decomain (2006, p. 170): “Os Tribunais judiciais, todavia, somente podem rever as decisões dos Tribunais ou Conselhos de Contas, na órbita de sua legalidade. Não no que tange ao seu mérito. Tendo a decisão do Tribunal ou Conselho de Contas obedecido às regras de procedimento previstas para a sua edição e havendo particularmente assegurado direito de defesa aos que pudessem eventualmente vir a ser (e talvez mesmo sido) atingidos por ela, não cabe ao Judiciário rever o acerto ou desacerto da decisão”.
Cumpre, ademais, transcrever as palavras de Julio Cesar Manhães de Araújo (2010, p. 310): “Aqui, há que se ressaltar que o Judiciário somente pode emitir pronunciamento sobre a regularidade procedimental da manifestação do Tribunal de Contas sobre a valoração que este fez acerca das contas, bem como se o devido processo de apreciação e julgamento das contas fora cumprido. Vale dizer: o Poder Judiciário pode aferir se o julgamento das contas dos responsáveis se ateve aos referenciais de mensuração da regularidade ou da irregularidade das contas (que leve em conta as regras e normas atinentes à execução orçamentária). Não pode, em hipótese alguma, alterar a decisão proferida pelo Tribunal de Contas, substituindo-a, considerando regulares, contas julgadas irregulares, ou vice-versa”.
Na sequência, arrazoa o doutrinador que o Poder Judiciário carece de competência para exarar decisão substitutiva da deliberação da Corte de Contas, isto significa que incumbe ao Judiciário, tão somente, emitir um pronunciamento de natureza declaratória que invalida a deliberação sobre as contas, mas nunca poderá modificar o mérito da questão (ARAÚJO, 2010, p. 311).
A última corrente, mais consentânea com o ordenamento jurídico atual, é aquela que preceitua o vasto controle judicial sobre as decisões do Tribunal de Contas, inclusive de mérito. Perfilhando esta linha de entendimento, Odete Medauar (1993, p. 142-143), Emerson Garcia (GARCIA; ALVES, 2010, p. 178-179), Têmis Limberger (1999, p. 110-111) e Alfredo Buzaid (1967, p. 123).
Os fundamentos que alicerçam essa tese, com foco no princípio da inafastabilidade da jurisdição, atinem ao fato de a Corte de Contas ser um órgão administrativo, cujas decisões não são acobertadas pela coisa julgada propriamente dita. Além disso, as atividades por ele desempenhadas, no que diz respeito ao controle de contas, são vinculadas, “consistindo, em essência, na análise de sua adequação aos princípios regentes da atividade estatal, em especial aos princípios da legalidade e da eficiência” (GARCIA; ALVES, 2010, p. 178). Sustenta-se, ainda, que a competência para o julgamento técnico das contas não é privativa do órgão de controle externo (BUZAID, 1967, p. 123).
Destarte, sendo a aferição de contas uma atividade vinculada, a ingerência judicial sobre a atividade de controle financeiro não seria pautada em critérios discricionários, de conveniência e oportunidade, mas, sim, lastreada nos parâmetros objetivos consignados na legislação.
A jurisprudência sobre a matéria, até o momento, não está consolidada quanto à delimitação do controle judicial sobre o órgão de contas. Atualmente, julgados que legitimam a ampla atuação do Judiciário, na revisão das decisões do Tribunal de Contas, já podem ser encontrados. Exemplo disso é o Recurso Especial n. 1032732/CE[11], que mantém a decisão que recebeu a inicial da ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público Federal, apesar de as contas dos réus terem sido aprovadas pelo órgão de controle externo da União, ao fundamento, em suma, de que o órgão de controle, bem como suas decisões têm natureza administrativa, razão pela qual não fazem coisa julgada e tampouco vinculam a atuação do Poder Judiciário, que pode revisá-las, sobretudo em face do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.
É possível concluir, pois, pela total admissibilidade de amplo controle pelo Poder Judiciário, admitindo-se, inclusive, por todo o exposto, a substituição da decisão prolatada pela Corte de Contas. Esse é o posicionamento do presente trabalho.
Considerando tudo quanto o exposto, é possível afirmar que o ressarcimento do Erário no âmbito do Tribunal de Contas, para ser efetivado, perpassa, em síntese, por um processo administrativo, que culmina na decisão condenatória; após os recursos internos, forma-se a coisa julgada administrativa e, por conseguinte, o título executivo extrajudicial; não havendo adimplemento voluntário, instaura-se procedimento executório, que admite ampla discussão das mais diversas matérias nos embargos à execução; e, ao lado disso, existe, ainda, a possibilidade de impugnação judicial do decisum do órgão de controle por meio de ação de conhecimento. Ultrapassadas todas essas etapas, finalmente, proceder-se-á à concreta reparação do patrimônio público.
2. Do ressarcimento ao Erário no âmbito da ação de improbidade administrativa
A conduta que provoca lesão ao Erário pode também configurar ato de improbidade administrativa, quando o ressarcimento será promovido nos termos da Lei n. 8.429/92, que disciplina a matéria no âmbito infraconstitucional.
O diploma de regência firmou uma classificação de atos de improbidade administrativa em razão dos efeitos produzidos, dividindo-os em três categorias: aqueles que violam princípios, aqueles que provocam lesão ao Erário e aqueles que importam enriquecimento ilícito do agente. Observa-se, da sistemática utilizada pela lei em comento, em especial, no seu art. 12, que uma consequência comum a todos os atos de ímprobos é a obrigação de ressarcimento integral do dano, quando houver. Vale dizer, o ato ímprobo pode ter como consequência a reparação independentemente da sua classificação legal, exigindo-se apenas a demonstração de efetivo prejuízo.
Neste ponto, uma observação acerca da natureza jurídica do dever de restituir o Erário faz-se imperiosa. É que, malgrado seja, o ressarcimento, elencado pela lei no rol das sanções, a sua essência não se mostra compatível com esse rótulo, porquanto tem feições de responsabilidade civil.
As sanções, nos termos de Emerson Garcia (GARCIA; ALVES, 2010, p. 524), basicamente, “visam a recompor, coibir ou prevenir um padrão de conduta violado, cuja observância apresenta-se necessária à manutenção do elo de encadeamento das relações sociais”. De sua vez, o ressarcimento tem a função simplesmente de reparar o dano causado. É uma derivação natural do ato lesivo.
Nesse sentido, Fábio Medina Osório (2011, p. 107), especialista em Direito Sancionador: “O ressarcimento ao Erário se aproxima mais da teoria da responsabilidade civil do que penal ou das sanções administrativas, pelo que não se submete ao conceito de sanção administrativa nos mesmos termos em que ocorre com outras medidas, até porque a obrigação de ressarcir é uma restituição ao estado anterior. Fora de dúvida, não se trata de uma sanção administrativa, mesmo que assim venha denominada na legislação pertinente”. [12]
Um meio de se buscar o ressarcimento do Erário, quando configurado o ato de improbidade administrativa, é pelo ajuizamento de ação pelo rito próprio da Lei n. 8.429/92, com pedido de reparação integral dos danos, em desfavor do sujeito ativo da conduta ímproba. A legitimidade ativa para o manejo de ações de improbidade administrativa é atribuída à pessoa jurídica interessada e ao Ministério Público, nos termos do art. 17 da legislação multicitada.
Com vistas a garantir o efetivo ressarcimento e evitar que o infrator providencie a evasão do seu patrimônio, o sistema jurídico permite a decretação da indisponibilidade de bens para constringir o patrimônio suficiente ao adimplemento da quantia devida. A medida cautelar pode ser postulada antes ou no curso da propositura da ação de improbidade administrativa, bem como no decorrer de eventual procedimento administrativo (FAZZIO JÚNIOR, 2008, p. 271), desde que presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora. A “fumaça do bom direito” denota a existência da plausibilidade do pleito, aferida a partir dos elementos probatórios já colhidos. O “perigo na demora” diz respeito à utilidade da medida, sem a qual a futura condenação ao ressarcimento restará fadada ao insucesso.
Considerando a gravidade dos atos praticados e sua repercussão na sociedade, Rogério Pacheco Alves (GARCIA; ALVES, 2010, p. 964-966) defende que haveria um periculum in mora implícito, sendo despicienda a demonstração do intuito de dissipar o patrimônio. Deveras, o interesse público na reparação integral do Erário sobrepõe-se ao interesse particular no domínio integral sobre a propriedade. Assim, constatada a plausibilidade do direito, a medida de indisponibilidade de bens deve ser acatada.
Ao final da ação, reconhecida a existência do dano ao Erário, será proferida decisão condenatória, julgando procedente a ação de improbidade administrativa e impondo, em definitivo, o ressarcimento do prejuízo provocado. Trata-se de decisão sobre o mérito do processo, em cognição exauriente, que consolida o exercício típico do Poder Judiciário, tendo, por isso mesmo, natureza jurisdicional. Após o decurso dos prazos ou o esgotamento dos recursos possíveis, o decisum torna-se imutável, porquanto acobertado pelo manto da coisa julgada material[13].
A decisão que condena ao ressarcimento do prejuízo causado ao Erário, em virtude de constituir um título executivo judicial (hipótese do inciso I do art. 475-N, Código de Processo Civil), se submete ao procedimento executório previsto no Código Processual Civil. Em se tratando de processo sincrético, a execução constitui apenas uma fase do feito – comumente denominada de fase de cumprimento de sentença –, dispensando, assim, a instauração de procedimento autônomo de execução.
A defesa, nesta fase do processo, ocorre mediante a impugnação, com previsão no art. 475-J, § 1º, do Código de Processo Civil, em que a cognição é restrita, ou seja, o executado somente está autorizado a abordar, basicamente[14], as matérias arroladas no art. 475-L do diploma processual, o que tende a reduzir os óbices à efetivação da tutela executiva, que consiste, no particular, exatamente na reparação do Erário.
Assim, a concretização do ressarcimento do Erário no âmbito da ação de improbidade administrativa enfrenta um processo de conhecimento, que dará origem a uma decisão estável e definitiva, acobertada pela coisa julgada material, bem como um procedimento executório, com cognição limitada às matérias elencadas na lei.
3. A viabilidade jurídica da dupla condenação
Ultrapassado o exame das condenações ao ressarcimento do Erário no âmbito do Tribunal de Contas e da ação de improbidade administrativa, passa-se à demonstração da possibilidade jurídica de uma responsabilização judicial posterior à administrativa.
A viabilidade da condenação dúplice tem por alicerce fundamental o princípio da independência das instâncias, que admite a coexistência de procedimentos e/ou de diversas responsabilizações sobre o mesmo fato em instâncias distintas – administrativa e judicial.
O ato lesivo ao Erário praticado por agentes públicos enseja consequências nas searas administrativa e judicial. A repercussão administrativa será apurada internamente, no âmbito da própria estrutura orgânica a que pertence o sujeito, e externamente, a partir do controle financeiro externo realizado pelo Tribunal de Contas. O mesmo ato que dilapida o Erário configura ato de improbidade administrativa – reflexo civil da conduta – a ser processado judicialmente, culminando, se for o caso, na condenação ao ressarcimento.
Neste ponto, impende reforçar que, no que concerne à natureza jurídica do Tribunal de Contas e de suas atividades, o posicionamento que se mostra mais apropriado ao sistema jurídico atual é aquele segundo o qual o órgão de controle externo e suas funções são revestidos de caráter administrativo.
Portanto, cuida-se de duas esferas de apuração distintas, totalmente independentes entre si, de forma que não há qualquer vinculação entre elas, possibilitando, inclusive, que haja julgamentos contraditórios – a exemplo da condenação ao ressarcimento no âmbito do Tribunal de Contas e a conclusão, na ação de improbidade, de que sequer houve o dano. Por outro lado, a independência das instâncias também pode proporcionar a coincidência de desfechos, havendo, na hipótese, dupla condenação ao ressarcimento.
Não se pode descurar, outrossim, que o sistema jurídico prescreveu os controles administrativo e judicial da gestão dos recursos públicos, que são formas de fiscalização distintas e independentes. Assim, eliminar o controle judicial, porque já exercido o controle administrativo, não se mostra uma medida razoável, considerando que o objetivo do legislador foi conferir um maior monitoramento do Erário.
Ao lado do pressuposto da independência das instâncias, figura o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que também viabiliza a possibilidade da condenação ao ressarcimento no judiciário posterior àquela proferida pelo Tribunal de Contas. Tal princípio tem expressa previsão constitucional, no art. 5º, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Ora, a pretensão ressarcitória nada mais é do que um pleito que tem como fundamento uma lesão patrimonial. Em razão disso, revela-se inconstitucional o entendimento de privar o Poder Judiciário do processamento e julgamento do pleito reparatório, pelo fato de haver prévia decisão da Corte de Contas – órgão administrativo, ressalte-se.
Poder-se-ia contra-argumentar que o reexame judicial das contas configuraria uma usurpação de atribuições da Corte de Contas pelo Poder Judiciário. Cumpre salientar que a atividade de controle de contas é objetiva, realizada a partir de critérios definidos – legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação de verbas e subvenções e renúncia de receitas. Nesta senda, nada impediria que o Poder Judiciário procedesse a uma reanálise das contas com base nos mesmos critérios, com fulcro, sobretudo, na possibilidade de controle judicial da atividade do Tribunal de Contas já antes demonstrada.
É desprovida de procedência a alegação de ingerência indevida do Poder Judiciário, uma vez que este, ao condenar ao ressarcimento, está desempenhando sua típica função de resolução de conflitos de interesses. Afinal, a pretensão ressarcitória nada mais é do que o interesse do Estado de ver seu patrimônio recomposto; interesse este que encontra resistência no agente infrator, que, no mais das vezes, se recusa a adimplir voluntariamente o débito.
Outra resistência oposta à tese da possibilidade de dupla condenação pode ser observada na prática forense, em que é comum, em sede de ação de improbidade administrativa, o não conhecimento, pelos juízos de primeiro grau, do pleito reparatório com fulcro na ausência de interesse de agir, ao fundamento da existência de um título executivo extrajudicial que seria – alega-se – idôneo à concretização da pretensão ressarcitória.[15]
Cumpre esclarecer que o interesse de agir é uma das condições da ação, entendido, de acordo com Fredie Didier Jr. (2010, p. 212), sob um triplo viés, do interesse-adequação, do interesse-utilidade e do interesse-necessidade. O interesse-adequação é atendido quando o autor opta pelo procedimento adequado à tutela pretendida; o interesse-utilidade, quando o processo for apto a tutelar a situação jurídica do requerente; e interesse-necessidade se satisfaz pela indispensabilidade da provocação do judiciário para a resolução do conflito.
No particular, o óbice que comumente se pretende sustentar diz respeito à ausência do interesse-necessidade na obtenção do provimento jurisdicional. Tal entrave é facilmente afastado a partir da constatação de que, de fato, existe uma pretensão reparatória do Erário que não foi satisfeita voluntariamente, ainda que imposta por decisão administrativa. Ou seja, a única forma de contentá-la é mediante provocação da tutela judicial, o que pode ocorrer mediante instauração de procedimento executório do título executivo extrajudicial ou por meio de ação de conhecimento reconhecendo-se o débito (ação de ressarcimento ou, no que interessa, ação de improbidade administrativa).
Não é demais advertir que a existência de procedimento executório do acórdão do Tribunal de Contas carece de força para obstruir o ajuizamento de uma ação de conhecimento, tal como é a ação de improbidade administrativa, porquanto distintos os pedidos, rechaçando a hipótese de litispendência, que pressupõe, simultaneamente, a identidade de partes, de pedido e de causa de pedir.
Destarte, forçoso reconhecer que a dupla condenação ao ressarcimento do Erário é plenamente admissível, não havendo qualquer óbice concreto à sua ocorrência.
4. Da impossibilidade do duplo ressarcimento
À primeira vista da tese que se tem envidado esforços para defender, poderia ser extraída a conclusão – equivocada – de que se pugna, no presente estudo, pelo ressarcimento duplicado. Contudo, tal ilação é absolutamente incompatível com ordenamento jurídico, ante a vedação do bis in idem.
O princípio do non bis in idem, cuja construção decorre dos princípios da legalidade, tipicidade, do devido processo legal e da proporcionalidade, traduz a ideia de que, conforme leciona Fábio Medina Osório (2011, p. 282-283), “ninguém pode ser condenado ou processado duas ou mais vezes por um mesmo fato”.
Esta proibição constitucional implícita constitui, de fato, verdadeiro óbice à reparação duplicada, ainda que em instâncias distintas. Não é disso que se pretende convencer. Em verdade, o objetivo é sustentar a condenação (imposição da obrigação de ressarcir) duplicada. O Superior Tribunal de Justiça enfrentou a questão no Recurso Especial n. 1.135.858, de relatoria do Ministro Humberto Martins, cabendo, pela total pertinência e maestria do julgado, a transcrição do respectivo aresto, in verbis:
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – CONDENAÇÃO AO RESSARCIMENTO DO DANO – EXISTÊNCIA DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL PROVENIENTE DE DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS – CO-EXISTÊNCIA DOS TÍTULOS EXECUTIVOS – POSSIBILIDADE – NÃO-OCORRÊNCIA DE BIS IN IDEM.
1. O fato de existir um título executivo extrajudicial, decorrente de condenação proferida pelo Tribunal de Contas da União, não impede que os legitimados ingressem com ação de improbidade administrativa requerendo a condenação da recorrida nas penas constantes no art. 12, II da Lei n. 8429/92, inclusive a de ressarcimento integral do prejuízo.
2. A formação do título executivo judicial, em razão da restrição às matérias de defesa que poderão ser alegadas na fase executória, poderá se mostrar mais útil ao credor e mais benéfica ao devedor que, durante o processo de conhecimento, terá maiores oportunidades para se defender.
3. Ademais, não se há falar em bis in idem. A proibição da dupla penalização se restringe ao abalo patrimonial que o executado poderá sofrer. O princípio não pode ser interpretado de maneira ampla, de modo a impedir a formação de um título executivo judicial, em razão do simples fato de já existir um outro título de natureza extrajudicial.
4. Na mesma linha de raciocínio, qual seja, a de que o bis in idem se restringe apenas ao pagamento da dívida, e não à possibilidade de coexistirem mais de um título executivo relativo ao mesmo débito, encontra-se a súmula 27 desta Corte Superior.
Recurso especial provido”.
O julgado transcrito é de clareza solar: o bis in idem se restringe à hipótese de duplo pagamento da quantia devida a título de ressarcimento pelos prejuízos causados ao Erário, não prejudicando, dessarte, a condenação judicial simultânea e posterior à condenação extrajudicial.
Nesse sentido, se posiciona Emerson Garcia (GARCIA; ALVES, 2010, p. 611), que afirma, em nota de rodapé: “O ressarcimento integral do dano, elencado entre as sanções do art. 12 da Lei nº 8.429/92, somente será passível de determinação até a recomposição do status quo. Atingido este limite em uma instância, não haverá que se falar em novo ressarcimento”.
Ademais, além de malferir a proibição do bis in idem, o duplo ressarcimento implicaria em um enriquecimento ilícito por parte da pessoa jurídica de direito público, o que, da mesma forma, é vedado pelo ordenamento jurídico.
Nesse diapasão, incumbe aos juízos das execuções – dos títulos executivos extrajudicial e judicial – obstarem eventual duplicidade no ressarcimento, extinguindo, na hipótese de se verificar que o pagamento já foi efetuado, o procedimento executório.
5. A potencialidade da dupla condenação
Em conformidade com o anteriormente analisado, o princípio da autonomia das instâncias e o princípio da inafastabilidade da jurisdição viabilizam a dupla condenação ao ressarcimento do Erário no âmbito do Tribunal de Contas e da ação de improbidade. Contudo, à luz de um estudo comparativo das decisões administrativa e judicial, e partindo de uma visão sistemática do ordenamento jurídico, impende reconhecer que a dupla condenação não somente é possível, como também tem um grande potencial de efetividade para promover a restituição do Erário.
De pronto, não se pode olvidar que a proteção do Erário foi erigida à bem jurídico tutelado pela Constituição Federal, que, em conjunto com a legislação infraconstitucional, dispõe dos mais variados mecanismos, que objetivam garantir a integridade do patrimônio público e a sua total reparação, em caso de dano.
O zelo com os recursos públicos se inicia com a imposição do dever de prestar contas àqueles que os manipulam, sejam entes de natureza pública ou privada, trazendo consequências graves para o seu descumprimento – tais como o cometimento de crime de responsabilidade e de ato de improbidade administrativa. No mais, a Carta Magna previu um amplo controle da gestão das verbas públicas: administrativo (interno e externo) e judicial, sendo este realizado por meio das ações de improbidade, popular, de ressarcimento etc.. Em paralelo, conferiu, ainda, extensa legitimidade para a deflagração da fiscalização, atribuindo-a ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas, às pessoas jurídicas afetadas e, inclusive, a qualquer pessoa do povo.
Outrossim, a Constituição Federal afastou, em relação à pretensão reparatória, uma das maiores garantias do indivíduo, corolário do princípio da segurança jurídica – a da prescrição das pretensões pelo decurso do tempo. O instituto da imprescritibilidade é excepcionalíssimo e denota a relevância do Erário para o Estado brasileiro.
Ao lado disso, a Lei n. 8.429/92, que regulamenta o art. 37, § 4º, da Carta Constitucional, trouxe como espécie de ato de improbidade administrativa aquele que provoca lesão ao Erário, que é o único tipo cujo elemento subjetivo admite a culpa e o dolo – as demais categorias são apenas dolosas. Isso demonstra, mais uma vez, o resguardo quanto ao patrimônio econômico estatal.
E não poderia ser diferente. A proteção que o sistema jurídico outorga ao Erário se justifica no fato de serem os recursos imprescindíveis à consecução das finalidades públicas. São as verbas que proporcionam o atendimento das necessidades básicas da sociedade, como saúde e educação; a realização dos serviços públicos incumbidos ao Estado; a manutenção da própria estrutura estatal; e outras atividades inerentes à Administração Pública.
A malversação, o desvio e o malbaratamento quanto ao dinheiro público ferem interesses que transcendem a órbita estatal, atingindo toda a sociedade. Por isso, faz-se imperiosa a máxima proteção ao Erário, haja vista que a diminuição patrimonial reflete diretamente em toda a comunidade.
Neste contexto, considerando a relevância da integridade do Erário, bem assim a escassez dos recursos estatais em face do montante de atividades investidas ao Estado, é notável que, havendo danos, a concretização do reparo é premente. Destarte, o estudo da potencialidade da condenação dúplice perpassa pelo exame da efetividade dos instrumentos que viabilizam o ressarcimento.
A decisão judicial, após esgotada as vias recursais, é acobertada pela coisa julgada, sendo o conteúdo essencial da resolução dotado de estabilidade e definitividade. Assim, ultrapassada a fase de impugnações judiciais ou mesmo transcorrido o prazo para a interposição de recursos, a decisão condenatória é erigida à condição de coisa julgada material.
De sua vez, a condenação determinada pelo Tribunal de Contas, pelo cunho administrativo, não faz coisa julgada material, sendo suscetível de modificação mediante ajuizamento de ações perante o Poder Judiciário, com ampla possibilidade de discussão sobre o mérito do decisum, que pode, ainda, ser desconstituído. Vale dizer, mesmo após o esgotamento dos recursos na via administrativa, admite-se a impugnação judicial da condenação do órgão de controle, por meio de uma ação de conhecimento.
Os empecilhos à efetivação do ressarcimento, no que pertine à condenação no âmbito do Tribunal de Contas, contudo, não se esgotam na multiplicidade dos meios de impugnação da imputação administrativa do débito; o próprio procedimento executivo do título extrajudicial é deveras mais extenso, porquanto comporta ampla cognição. Isto se deve à própria ausência da coisa julgada material, o que permite a modificação e até a desconstituição do título.
Na ação de improbidade administrativa, todo o mérito da condenação já está protegido sob o manto da coisa julgada, motivo que reduz a discussão no procedimento executório às questões elencadas no Código de Processo Civil. A garantia do credor quanto à concretização da pretensão ressarcitória, nesse caso, é muito maior.
Ademais, malgrado a medida cautelar de indisponibilidade de bens possa ser decretada tanto pelo Tribunal de Contas, quanto pelo Poder Judiciário, aquela somente pode constringir os bens no prazo de um ano, o que torna a medida ineficaz, tendo em vista que, ante a complexidade da execução de títulos executivos extrajudiciais, o procedimento executório dificilmente se concluiria nesse período. Cuida-se, pois, de mais uma vantagem que a medida judicial oferece em prol da efetividade da reparação do Erário.
Estabelecidas essas premissas, conclui-se que, insofismavelmente, o processamento e julgamento da pretensão ressarcitória no âmbito judicial, a despeito de condenação administrativa pré-existente, propiciam maior certeza de uma concreta reparação. A sustentada baixa efetividade de execução de decisões provenientes da Corte de Contas pode ser ratificada pelos percentuais divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça[16], em dezembro de 2010, que traça um histórico dos índices de recuperação dos recursos desviados, mediante execução de acórdãos do Tribunal de Contas da União. Há 15 anos, a média era de 0,5%; há 10 anos, de 1,5%; há 5 anos, abaixo de 2%; em 2009, o índice atingiu 10% – devido a uma parceria firmada entre a Advocacia Geral da União e o Tribunal de Contas da União.
Imperioso admitir, diante disso, que a condenação única, na órbita do órgão de controle de contas, não satisfaz, per se, a necessidade de recuperação do prejuízo provocado ao Erário, em detrimento de toda a sociedade. Nesse diapasão, é imprescindível a condenação judicial em reforço à decisão administrativa.
A possibilidade da dupla condenação, embora carente de abordagem em produções doutrinárias, já vem sendo reconhecida pelos Tribunais Pátrios, a exemplo dos seguintes julgados: Recurso Especial n. 1135858 – TO[17]; Apelação Cível n. 477439 – CE[18]; Apelação Cível 454421 – CE[19].
A par de não haver um posicionamento definitivo acerca da matéria[20], quando se trata de dano ao Erário, os esforços devem ser concentrados para a concreção do seu ressarcimento, de modo que a busca pela efetividade deve permear a aplicação e interpretação do direito, proporcionando a criação de soluções viáveis juridicamente e benéficas a toda a sociedade.
A possibilidade da dupla condenação ao ressarcimento do Erário, pelo potencial de efetividade que apresenta, resulta, pois, de uma interpretação absolutamente consentânea com as necessidades sociais e com o sistema jurídico, que claramente tencionou conferir uma tutela eficaz ao Erário.
Conclusão
Diante do quanto exposto, é possível concluir que a decisão condenatória no âmbito do Tribunal de Contas não obsta o acolhimento do pleito de reparação veiculado na ação de improbidade administrativa, sendo a viabilidade da dupla condenação lastreada no princípio da independência das instâncias – que permite a coexistência de responsabilizações acerca do mesmo fato em searas distintas –, bem como no princípio da inafastabilidade da jurisdição – que torna inconstitucional qualquer postura no sentido de privar o Poder Judiciário de processar e julgar um pedido de ressarcimento em decorrência de uma lesão.
Não obstante, malgrado seja possível haver a dupla condenação, esta não pode ser confundida com o duplo ressarcimento, o que configuraria violação ao princípio da vedação ao bis in idem e implicaria um enriquecimento ilícito por parte da pessoa jurídica lesada. Assim, incumbe aos juízes responsáveis pelas execuções obstarem a duplicidade de adimplementos, extinguindo o procedimento executório na hipótese de se verificar que o ressarcimento já foi efetivado.
Por fim, restou demonstrado que, sob o prisma da efetividade da tutela ressarcitória, a condenação judicial, quando comparada à decisão exarada na órbita administrativa, mostra-se mais eficaz e célere, representando um reforço à decisão do Tribunal de Contas, o que torna a duplicidade de condenações, além de possível, desejável.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Laís de Araújo Primo
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Advogada