Da proibição da guerra: breve análise do desenvolvimento histórico do status legal dos conflitos armados internacionais no Direito Internacional

Resumo: Em uma análise dos contextos históricos e em uma pesquisa em fontes escritas, a história da guerra demonstra que esta teve vários status de legalidade durante os séculos, iniciando-se em uma conjectura em que ir à guerra é um direito inerente aos Estados, e se findando em um cenário com normas proibitivas que regem com quase absolutismo o Direito Internacional. Nos últimos três séculos a ideia de que os conflitos armados entre nações não devem ser utilizados como instrumento de solução de conflitos ganhou força, dando espaço para a normatização e da proibição das guerras. A partir de instituto jurídicos que se mostravam, inicialmente, como exceção, até a criação da Carta da Organização das Nações Unidas que se demonstrou como regra e bastião da paz mundial por definitivo, a legalidade dos conflitos se demonstra como uma construção histórica das relações internacionais e um bem-visto desenvolvimento do Direito Internacional como propagador de uma paz duradoura entre as nações.

Palavra-chave: Direito Internacional; Guerra; Guerra Justa; Nações Unidas.

Abstract: In an analysis of historical contexts and in a research in written sources, the history of war shows that the military conflicts had several legal statuses over the centuries, starting with a conjecture where the “going to war” is an inherent right to the States and ending in a scenario with prohibitive norms ruling with almost absolutism the International Law. In the last three centuries, the idea that armed conflicts between nations should not be used to resolve conflicts gained intensity in the international community discussions, giving room for normalization and the prohibition of wars. From legal institutions that initially appeared as an exception, until the Charter of the United Nations established as the rule and bastion of world peace as definitive, the legality of conflicts shows itself as a historical construction of international relations and a well seen development of International Law as the propagator of a lasting peace among nations.

Keywords: International Law; War; Just War; United Nations.

Sumário: Introdução; 1. Questões de legalidade; 2. Exceções da liberdade de ir à guerra; 3. Normas proibitivas contemporâneas; 3.1. Pacto Kellog-Briand; 3.2. Carta da Organização das Nações Unidas; Considerações Finais; Referências.

Introdução

O desenvolvimento histórico da legalidade da guerra é latente, se diversificando e se atualizando com uma grande constância nos últimos três séculos. Há de convir que a forma de se lidar com os momentos de beligerância entre os Estados na atualidade se diferencia do âmbito que se encontrava antes das duas grandes guerras. No Direito, isso se reflete justamente no que concerne a legalidade de se declarar uma guerra contra outro Estado. A construção histórica demonstra, portanto, a transição entre uma conjectura em que o direito de ir à guerra por parte dos Estados Nacionais é absoluto, para um contexto moderno e contemporâneo de que a guerra é objeto de normas proibitivas do Direito Internacional, e que sua quebra infere um atentado a comunidade internacional como um todo.

Deve-se compreender que a construção histórica de institutos jurídicos não se deve a apenas a alguns dispositivos jurídicos criados ao seu tempo, mas sim a uma edificação – com diversas polaridades – de discussões, para se resolver certos problemas que aconteçam em concreto e que requeiram uma solução positivada, pelo menos. Entretanto, didaticamente, ao se tocar alguns instrumentos chaves, entende-se o contexto e as consequências geradas no plano fático. Por essa forma, o presente texto traz em elucidação certos dispositivos jurídicos do Direito Internacional que demonstraram a instalação de normas proibitivas que, não por acaso, transformaram as relações bélicas no palco dos conflitos entre Estados. Por essa forma, no item 1 do presente artigo, destaca-se em primeiro lugar as questões de legalidade, de que o querer ir à guerra se apresentava como um direito inerente a soberania estatal, e que a guerra justa não batia contra nenhuma norma geral do Direito Internacional. Em um segundo momento, no item 2, apresenta-se as exceções da liberdade de ir à guerra, tais como os tratados de paz entre nações e as primeiras determinações contra bélicas das Convenções de Paz de Haia. No item 3, por fim, demonstra-se os principais pactos e institutos jurídicos que integralizaram a proibição efetiva da vontade bélica no século XX.

Ante a análise por hora introduzida, o presente estudo busca compreender – através da exposição de fontes de legislações e da doutrina – os aspectos cronológicos da construção dos feitios proibitivos da liberdade de ir à guerra, entendendo-se, por consequência, o caminhar do Direito Internacional quantos aos conflitos bélicos e a liberdade de um Estado Nacional optar por essa.

1. Questões de legalidade

Por muitos anos a guerra era vista como algo inerente a natureza humana, imparável, tal como são as doenças e outras forças da natureza. Não é de se admirar, pois, os conflitos bélicos acontecem desde as mais distantes raízes da história humana, apresentando-se como um fato inesgotável e até mesmo cíclico. Afinal, como diz um antigo provérbio latino, si vis pacem, para bellum[1], que além de justificar o uso da força em tempos de paz, expressa uma tendência sem fim de ir à guerra.

Tal correlação entre guerra e catástrofe influenciou diversos juristas e suas respectivas teorias e doutrinas sobre a posição do conflito armado diante do direito internacional. Sob essas perspectivas pelas quais se faz necessário aqui se referir, o direito não teria função diante de quando a guerra ocorre (jus ad bellum), apenas se limitando ao como (jus in bello). Sob essa visão, Nussbaum afirmou que o “eclodir da guerra é um fenômeno metajurídico, um acontecimento fora do âmbito de controle da lei”.[2] Kelsen, complementando – e mesmo que pela perspectiva da continuidade do direito de ir à guerra segundo o próprio Direito – afirmou que “em uma sociedade organizada (…) a ausência absoluta de força – a ideia de anarquismo – não é possível”[3].

Tal pensamento não é de todo ilógico, entretanto carece de uma devida autocrítica. Comparar a guerra a uma força da natureza não é correto, já que tal acontecimento é um efeito da ação humana e, consequentemente, poderá estar suscetível a qualquer força normativa. Logo, o direito internacional não se limitará a apenas atuar nas condutas durante o percurso da guerra, mas também irá agir na vontade das nações beligerantes diante do nascer de um conflito. O “quando” e o “como” estão disponíveis para o direito agir, portanto.

Atos violentos, dentro da esfera de um ordenamento jurídico nacional, são corriqueiramente proibidos para se proteger diversos direitos, tal como ocorre com os casos de homicídio, roubo, latrocínio e etc. Em analogia, a guerra, como sendo um ato primariamente de violência, e também como sendo um ato puramente humano em sua coletividade, muito bem estará suscetível em toda sua integridade perante o direito internacional. Não é porque por muito tempo – por séculos, pode-se até dizer – o direito internacional não tenha interferido na liberdade dos Estados de entrarem em conflito com outros, que aquele deixe de atuar, banindo-se, assim, tal conduta na relação entre nações.

Afastando-se desse status de extralegalidade da guerra proposto por muitos, até mesmo em meados do século XX, o Direito coloca o conflito armado suscetível a ser legal ou ilegal, tornando-se uma conjectura melhor a ser apresentada, já que um suposto conflito dito por legal poderá ser condenado, algo que não poderia acontecer se os conflitos armados tivessem uma característica extralegal.

Agora, sob uma perspectiva em que impere a legalidade ou ilegalidade, a liberdade que os Estados Nacionais tinham para entrar em guerra não pode ser aplicada na atualidade. Superando a teoria da justum bellum, muitos governos soberanos se viam protegidos, já que qualquer atitude hostil e bélica era vista como um ato de soberania. Quaisquer motivos que fossem, ou mesmo a ausência de tais, eram muitas vezes resguardadas nas constituições e nas leis orgânicas dos respectivos países. Entretanto, tal comportamento da comunidade internacional era detentora de uma incoerência. Além da anomalia quanto a existência de um direito que permitia o ataque a soberania de outro para se fazer valer a soberania daquele, há também críticas mais profundas referentes a função do próprio direito internacional. Pois, qualquer estrutura jurídica deve proteger os seus subordinados, entretanto, nessa conjectura de um “direito irrestrito à guerra”[4], era possível a desintegração de um Estado diante da ação de outro. Era de uma inconsistência gritante, mas por muito tempo, até meados do século XX, era algo dito por normal no cenário mundial. Mesmo a doutrina demonstrando essas inconsistências, governantes e outros poderosos ignoravam e faziam as suas forças beligerantes marcharem sobre o solo inimigo.

2. Exceções da liberdade de ir à guerra

Mesmo que no período anterior ao século XX a liberdade dos Estados de irem à guerra era quase a regra, haviam diversos documentos entre algumas nações que pregavam uma conduta de não agressão entre eles. Tratados que davam aos países signatários a condição de não entrarem em conflito armado para a solução de qualquer litígio, devendo este ser solucionado de forma amigável, através de mediação ou arbitramento, por exemplo. Tal como foi entre Honduras e Nicarágua que, em 1878, concordaram em tratado de que “não haveria guerra” entre eles.[5]

Entretanto, o momento que caminhou o direito internacional no geral para a proibição dos conflitos armados se deu a partir das Convenções de Paz de Haia de 1899 e 1907. Na I Convenção de Haia, em seu 1º artigo, era expresso que:

“A fim de evitar tanto quanto possível o recurso à força nas relações entre os Estados, as potências signatárias acordam em empregar todos os esforços para assegurarem a solução pacífica das pendências internacionais” [6].

Adicionava-se ainda, em seu 2º artigo, que:

“No caso de dissentimento grave ou de conflito, e antes do apelo às armas, as potências signatárias concordam em recorrer, tanto quanto as circunstâncias o permitirem, aos bons ofícios ou à mediação de uma ou diversas potências amigas.”[7]

Percebe-se que nesse momento a liberdade de ir à guerra foi limitada, entretanto, de forma acanhada, ainda a deixar a critério das partes contratantes a opção de ir à força ou buscar algum tipo de mediação internacional.

Sob outro aspecto, até então era de prática entre as nações de se utilizar de meio bélicos para se cobrar quantias pecuniárias contraídas entre os países, apresentando-se, portanto, como outro fator que começou a ser tratada e revisada nas convenções de Haia, sobretudo ao que se refere a segunda convenção de 1907. Tal adição está relacionada com o desenvolvimento da Doutrina Drago, referente a atuação do ministro argentino de mesmo nome quanto aos bombardeios a portos, apresamentos de frotas e bloqueios econômicos que a Alemanha, Itália e Inglaterra realizaram sobre a Venezuela em 1902, com o argumento deste dever àqueles.[8] Evocando-se a norte-americana Doutrina Monroe, Luís Maria Drago defendeu a soberania dos países latino-americanos perante os interesses das potências europeias, sendo reforçado, por consequência, pela diplomacia americana. As palavras de Drago iniciaram o fim permanente dos conflitos por razões pecuniárias, já que, por conseguinte na Convenção de Haia supracitada, a opção pela arbitragem se tornou extinta, passando a ser obrigatória. A questão venezuelana acabou sendo resolvida, não por acaso, através da arbitragem. Pode-se perceber que mesmo a proibição de guerra não tenha sido absoluta em tais convenções, houve uma evolução quanto ao que se entendia, professava e propagava do jus ad bellum.

Após o fim da Primeira Guerra Mundial, a maior conflagração humana vista até então, foi criada a Liga das Nações, que tinha objetivos de busca pela paz internacional através de critérios morais e jurídicos.[9] Sem dúvida, tal convenção era um passo adiante no avanço da paz mundial, entretanto, as sanções mínimas presentes no documento, que se apresentavam simplesmente através das mais simples punições morais, econômicas e militares, não se mostraram satisfatórias para a segurança e a proibição definitiva dos conflitos armados. Por exemplo, conforme o artigo 10 e subsequentes da Convenção da Liga das Nações, há uma atmosfera não abolitiva dos conflitos, pois, mesmo que tenha havido termos proibitivos específicos, a legalidade de ir à guerra permaneceu. Segundo o artigo 13, os Estados-membros comprometem-se a, em estado de quase conflagração, se submeterem a arbítrio ou à solução judicial.

“Art. 13. Os membros da Sociedade acordam que, se houver entre eles um litígio suscetível, na sua opinião, de uma solução arbitral e se esse litígio não puder ser resolvido, de modo satisfatório, por via diplomática, será submetido integralmente à arbitragem.”[10]

Há de perceber que as condições para imposição da arbitragem eram genéricas, tendo de os Estados terem de se submeter de boa-fé. Em consequência, o artigo 15 afirma que as disputas entre os países-membros não submetidas a arbitragem ou decisão judicial deveriam ser levadas ao Conselho.[11] No parágrafo 6 desse mesmo artigo, afirma-se que se o relatório elaborado por esse Conselho sobre o litígio em tela fosse decidido por unanimidade, excluindo-se as partes em disputas, os membros consentiriam em não ir à guerra.

“Se o parecer do Conselho for aprovado por unanimidade, não entrando no computo da mesma unanimidade o voto dos Representantes das Partes, os Membros da Sociedade comprometem-se a não recorrer à guerra contra qualquer Parte que se conforme com as conclusões do referido parecer.”[12]

Por outro lado, se não houvesse unanimidade, o sétimo parágrafo reservava o direito das partes de tomarem as devidas atitudes na forma que acharem necessário, para a manutenção do direito e da justiça.

“No caso em que o Conselho não consiga fazer aceitar seu parecer por todos os membros que não os Representantes de qualquer Parte do litígio, os Membros da Sociedade reservam-se o direito de agir como julgarem necessário para a manutenção do direito e da justiça.”[13]

Ainda havia um lapso temporal para a disponibilização do parecer pelo Conselho, sendo de seis meses para tanto. Após isso, as partes do litígio estavam liberdadas para tomar qualquer decisão que considerassem conveniente, conforme se expressa no artigo 12.[14] Ainda quanto a esse artigo, nenhuma guerra poderia se iniciar dentro de três meses a partir da decisão, sentença ou recomendação. Conclui-se, portanto, que após esse período, era possível o início dos conflitos armados contra um Estado que falhasse no cumprimento do disposto pelo Conselho.

Por fim, o papel do Conselho aqui se restringia a elaborar e apresentar recomendações. Ainda se faz referência que um relatório da Assembleia da Liga das Nações, quando adotado com votos de todos os membros do Conselho e com a maioria dos outros membros – ainda se excluindo aqui as partes na disputa – tinha a mesma força de um relatório unânime do Conselho.

Com tudo isso, fica-se claro a falta de força para proibir com total clareza os conflitos armados, mantendo-se ainda a legalidade desses. O fato, por exemplo, da ausência de unanimidade do Conselho permitir que os Estados partes no conflito façam o que achar melhor, ou seja, tendo a possibilidade de ir à guerra, demonstra o mantimento da liberdade de se criar conflitos armados.

É possível ainda discernir outras lacunas na estrutura jurídica dada pela Convenção da Liga das Nações.[15] Posteriormente, tentou-se corrigir os erros, através do Protocolo de Genebra sobre o Estabelecimento Pacífico de Disputas Internacionais, que foi acolhida pela Liga em 1924, mas nunca chegando a vigorar de fato. Em seu artigo 2º, por exemplo, ficava expresso que os membros signatários concordavam em “não recorrer à guerra, em hipótese alguma”, exceto para se defender ou quando o Conselho da Liga ou Assembleia permitisse. Como tais elementos proibitivos definitivos nunca obtiveram efeito, a legalidade de ir à guerra permaneceu até o Pacto Kellog-Briand de 1928.

3. Normas Proibitivas Contemporâneas

3.1. Pacto Kellog-Briand

O Pacto Kellog-Briand se trata do Tratado Geral para a Renúncia da Guerra como Instrumento de Política Nacional, escrito em Paris em 1928. Com o início da Segunda Guerra Mundial, o pacto atingiu a marca de 63 membros signatários, um recorde na época.[16] Era um documento simples, possuidora de apenas três artigos, porém, representando a progressão do direito internacional do jus ad bellum para o jus contra bellum. No seu primeiro artigo, expressava que:

“As Altas Partes contratantes declaram solenemente, em nome dos respectivos povos, que condenam o recurso à guerra para a solução das controvérsias internacionais, e a ela renunciam como instrumento de política nacional nas suas mútuas relações.”[17]

O segundo artigo expressava o desejo das nações signatárias de solucionar os seus litígios somente por meios pacíficos. “As Alta Partes contratantes reconhecem que o ajuste ou a solução de todas as controvérsias ou conflitos qualquer natureza ou origem, que se suscitem entre elas: nunca deverá ser procurado senão por meios pacíficos”.[18] O terceiro artigo é puramente técnico.

Segundo Yoram Dinstein, há quatro falhas no presente pacto. A primeira é quanto a questão da legítima defesa, que não foi claramente mencionada no texto. O segundo é quanto a não colocação de limites na legalidade da guerra como instrumento de política internacional. A terceira é quanto a proibição da guerra não considerar a comunidade internacional por inteiro. E a quarta e última é sobre não abordar as guerras breves.

Para solucionar os defeitos encontrados no Pacto Kellog-Briand, foi-se colocado como um dos objetivos da Carta da Organização das Nações Unidas o sanar daquele.

3.2. Carta da Organização das Nações Unidas

Escrita em São Francisco no ano de 1945, a Carta da Organização das Nações se demonstrou um novo expoente nas relações internacionais, firmando princípios de proteção a dignidade da pessoa humana, além do enaltecimento da paz entre as nações. O principal propósito da ONU está presente logo no seu primeiro artigo da Carta, expondo claramente a razão de ser deste.

“Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz;”[19]

Sob o espírito apresentado no preâmbulo, pelo qual se busca “salvar as futuras gerações dos estigmas da guerra”, a Carta da ONU prossegue com outros pontos importantes para o jus ad bellum. As questões de legalidade da guerra foram colocadas logo no segundo artigo, inciso 4 da Carta, que dispõe:

“Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.”[20]

Não há a menção da guerra nesse artigo, entretanto está incluída, já que o texto se refere ao uso da força. Perceba que a interpretação permite não somente se utilizar dos conflitos armados propriamente dito, mas também a qualquer uso hostil da força, tal como também a mais simples ameaça. Sob essa perspectiva, faz-se necessário entender a ameaça e a força conjuntamente, pois, para se considerar que a ameaça seja ilegal, a força a ser utilizada – objeto da ameaça – também o deve ser.

O artigo 2º, inciso 3, não deve ser interpretado em separado com o artigo 2º, inciso 4. Dispõe aquele que “todos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais”.[21] A interpretação ideal é da proibição do uso da força, independentemente da razão, por qualquer Estado-membro, a menos pelo o que é expressamente permitida pela Carta.

Ainda sobre o inciso 4 do artigo 2º, a limitação do uso da força se estende além dos Estados-membros. Afirma-se na Carta que nenhum membro deve agir com força contra qualquer Estado, mesmo que este não seja membro da ONU. Quanto a ação de um Estado não-membro contra qualquer outro Estado, está apregoada no inciso 6 do artigo 2º da Carta que “A Organização fará com que os Estado que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais”.[22] Por princípios dos tratados internacionais, fixados na Convenção de Viena de 1969, nenhum Estado que não concorde expressamente vontade de se submeter a um Tratado, não obterá obrigação em relação a este, logo não há como entender, a partir deste inciso citado, de que os Estado não-membros estejam sujeitos a Carta da Organização das Nações Unidas, mas sim há de entender de que a obrigação presente recai sobre a própria Organização, dando-lhe o dever de agir contra os Estado não-membros que coloquem em perigo a paz e a segurança internacional. Percebe-se, portanto, que as Nações Unidas tomaram para si a função de intervir no direito internacional costumeiro e, por consequência, atingindo com tudo a então liberdade dos Estado de irem à guerra. Entretanto, e aqui se faz uma pequena observação a tal afirmação, à época, em um período após os dois maiores conflitos armados da história da humanidade, tal liberdade havia se tornado obsoleta, levando facilmente os dispositivos proibitivos da Carta da ONU a se tornarem partes essenciais ao direito costumeiro internacional.

Mesmo que haja no caso concreto a persistência do uso da força a desrespeitar os princípios apresentados na Carta, não se pode deixar de entender que esses não são válidos mais, já que é necessário entender que o Direito age no plano do dever ser, sob a perspectiva do ideal da maioria, mesmo que muitas vezes não corresponda com a realidade. Ainda que haja a aversão quanto a aplicabilidade de uma regra, os Estados compartilham a crença na autoridade que a Carta das Nações Unidas demanda sobre a comunidade internacional.

Considerações Finais

O desenvolvimento da legalidade da guerra não finda com a Carta da Organização Unidas, obviamente, porém, tal marco histórico se aproxima de um status condizente com uma paz perpétua, tal como a propagada por Kant em seus ensaios filosóficos. A presente exposição de institutos jurídicos serviu para elucidar justamente a transição entre a conjectura anterior do Direito da Guerra, para a atual – mais próxima de um Direito da Paz. Com o pós-guerra, o mundo se viu diante da destruição criada pelos conflitos armados em larga escala, logo a liberdade de ir à guerra deixou de ter sentido. Foi com o sofrimento de muitos que o Direito, em sua esfera internacional, começou a de fato proteger os seus bens tutelados e os indivíduos detentores de personalidades jurídicas em tal seara, havendo agora com um futuro promissor – mesmo com as intempéries das inconstâncias das políticas entre nações.

Desde da época do justum bellum como o principal baluarte da doutrina jurídica da guerra não se vê um período de paz tão duradouro – considerando-se, é claro, que há anos que não há um conflito armado entre potências. Desde o fim da guerra fria, com um cenário não polarizado, mas com desgaste interno de países, que se vê somente conflitos regionais – tais como guerras civis – nada que atinja por inteiro a estabilidade mundial. À passos lentos, pode-se assim dizer, o Direito caminha para um cenário em que o dever ser atinja a concretude de seus objetivos. Foi com a proibição da guerra que o Direito Internacional se entregou a um caminho único à paz mundial. Reza-se por mais.

 

Referências
BRASIL. Decreto nº 19.841, de 22 de Outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização das Nações Unidas. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, RJ, 11. Nov. 1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm> Acesso em: 09-08-2016;
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Tratado Geral para Renúncia da Guerra como Instrumento de Política Nacional (Pacto Kellog-Briand de Paris). 1928. Disponível em: < http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/segurancapublica/Tratado_renuncia_guerra_paris.pdf > Acesso em: 09-08-2016;
VIANNA, Regina Cecere. A liga das nações e a ONU: na busca da paz, do Direito, da justiça e da vida. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8686> Acesso em: 07-08-2016.
 
Notas
[1] “Se queres paz, prepara-te para a guerra”.

[2] NUSSBAUN, A. Just War – A legal concept. In: Mich. LR 42, 1943-44, p. 453, 477 apud DINSTEIN, Yorem. Guerra, Agressão e Legítima Defesa. Ed. Manole: Barueri, 2004. p. 103.

[3] KELSEN, Hans. A paz pelo Direito. Ed. WMF Martins Fontes: São Paulo, 2011. p. 3.

[4] Ibidem. p. 108.

[5] Tratado de amistad, comercio y extradición entre Nicaragua y Honduras, 1878. p. 3. Disponível em: < http://sajurin.enriquebolanos.org/vega/docs/1878%20Tratado%20larios%20Rosa%20Extradicion.pdf > Aceso em 21/12/2017.

[6] I Convenção de Haia para a Solução Pacífica dos Conflitos Internacionais. 1899. Disponível em: < http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/FPC_MA_27961.pdf > Acesso em: 27/09/2009

[7] Ibidem.

[8] SOUZA, Christiane Laidler de. A Doutrina Drago e as relações entre as repúblicas americanas. Disponível em: < http://anphlac.fflch.usp.br/sites/anphlac.fflch.usp.br/files/christiane_laidler.pdf > Acesso em: 29-07-2016.

[9] VIANNA, Regina Cecere. A liga das nações e a ONU: na busca da paz, do Direito, da justiça e da vida. Disponível em: < http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8686 >
Acesso em: 07-08-2016

[10] Pacto da Sociedade das Nações. 1919. Disponível em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/his1919.htm > Acesso em: 30-09-2016.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] DINSTEIN, Yorem. Op. Cit. p. 114.

[16] Ibidem. p. 117.

[17] Tratado Geral para Renúncia da Guerra como Instrumento de Política Nacional (Pacto Kellog-Briand de Paris). 1928. Disponível em: < http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/segurancapublica/Tratado_renuncia_guerra_paris.pdf > Acesso em: 09-08-2016

[18] Ibidem.

[19] BRASIL. Decreto nº 19.841, de 22 de Outubro de 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização das Nações Unidas. Diário Oficial da União. Rio de Janeiro, RJ, 11. Nov. 1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm> Acesso em: 09-08-2016

[20] Ibidem.

[21] Ibidem.

[22] Ibidem.


Informações Sobre o Autor

Petrus Petrônio Andrade Barbosa

Advogado e graduado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduando lato sensu em Filosofia


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