A constitucionalidade da prerrogativa de requisição do membro da Defensoria Pública: uma análise à luz do atual plano normativo institucional

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Nome do autor
: Frederico Cesar Leão Encarnação. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (UNESA). Atualmente é Defensor Público do Estado de Roraima. Foi Defensor Público do Estado do Amazonas (2013-2015). E-mail: [email protected].

Resumo: O estudo tem como objeto o exame da compatibilidade com a Constituição Federal das disposições legais que conferem ao membro da Defensoria Pública o poder de requisição, notadamente levando em conta o novo perfil institucional trazido pela EC nº. 80/2014. Fez-se um breve escorço acerca da Defensoria Pública no cenário constitucional. Em seguida, abordou-se aspectos referentes ao poder de requisição. Posteriormente, realizou-se uma incursão pelo principal precedente (a ADI nº. 230/RJ) trazido pela Procuradoria-Geral da República no bojo das recentes ações diretas de inconstitucionalidade em que se discute a prerrogativa em análise, cotejando-o com o atual panorama constitucional em que se encontra inserido a instituição. Por último, extraiu-se, com base na realidade empírica suportada pela Defensoria Pública e pelos usuários dos seus serviços, a imprescindibilidade do poder de requisição para a efetivação do acesso à justiça. Concluiu-se, ao final, que a prerrogativa de requisição é compatível com o comando constitucional que atribui à instituição a função de garantir a assistência jurídica, de forma integral e gratuita, aos vulneráveis, assim como se harmoniza com os próprios fundamentos e objetivos fundamentais da República.

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Palavras-chave: Defensoria Pública. Poder de requisição. Acesso à justiça.

 

Abstract: The object of the study is to examine the compatibility with the Federal Constitution of the legal provisions that grant the member of the Public Defender’s Office the power of requisition, notably taking into account the new institutional profile brought by EC nº. 80/2014. A brief foreshortening was made about the Public Defender’s Office in the constitutional scenario. Then, aspects related to the power of requisition were discussed. Subsequently, there was an incursion into the main precedent (ADI nº. 230/RJ) brought by the Attorney General’s Office in the wake of recent direct actions of unconstitutionality in which the prerogative under analysis is discussed, comparing it with the current panorama constitutional in which the institution is inserted. Finally, based on the empirical reality supported by the Public Defender’s Office and by the users of its services, the indispensability of the power of requisition for the effective access to justice was extracted. In the end, it was concluded that the prerogative of requisition is compatible with the constitutional command that assigns to the institution the function of guaranteeing legal assistance, in full and free of charge, to the vulnerable, as well as harmonizes with its own fundamental foundations and objectives. of the Republic.

Keywords: Public Defender’s Office. Requisition power. Access to justice.

 

Sumário: Introdução. 1.Breve escorço da Defensoria Pública no cenário constitucional. 2. Considerações sobre o poder de requisição. 3. Síntese das ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República. 4. A constitucionalidade da prerrogativa de requisição do membro da Defensoria Pública. 4.1. Da (necessidade de) superação do (equivocado) entendimento exarado pelo STF na ADI 230/RJ diante do novo parâmetro constitucional. 4.2. Da imprescindibilidade da prerrogativa de requisição para a efetivação do acesso à justiça. 4.3. Da compatibilidade da prerrogativa do poder de requisição com o devido processo legal (e seus consectários). 4.3.1. Da (inexistente) violação ao princípio da igualdade. 4.3.2. Da (inexistente) violação ao princípio do contraditório. 4.3.3. Da (inexistente) violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Conclusão. Referências.

 

Introdução

O fenômeno da globalização econômica contribuiu para o incremento da complexidade das relações sociais. Os conflitos ganharam contornos qualitativa e quantitativamente mais expressivos. Acumulou-se aos (conflitos e direitos) individuais os (conflitos e direitos) coletivos. A idealização de novas formas de composição de controvérsias se mostrou indispensável para atenuar os efeitos negativos advindos da sociedade massificada formada.

O grande desafio que ainda se coloca na atualidade é alcançar a solução para a superação dos obstáculos ao acesso à justiça – hoje compreendido não apenas como acesso ao Judiciário ou aos meios judiciais de solução de conflitos, mas também aos meios extrajudiciais.

Nesse contexto, a Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional estatal, tem a missão constitucional de buscar a concretização dos direitos individuais e coletivos, de maneira integral e gratuita, de parcela significativa da população, sobretudo num país marcado pela desigualdade social como o Brasil.

Para o bom desempenho do mister de promover o efetivo acesso à justiça, diante de dificuldades estruturais acrescidas do excessivo volume de trabalho e do perfil do destinatário dos serviços da instituição, são conferidas aos membros da Defensoria Pública diversas prerrogativas legais, dentre elas a de requisitar de autoridade pública e/ou de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições, nos termos dos artigos 44, X, 89, X e 128, X, todos da Lei Complementar nº.80/94.

Diante do apontado cenário, o problema a ser arrostado é assim delineado: o poder de requisição é compatível com as funções outorgadas pela Constituição Federal à Defensoria Pública ou ofende algum preceito constitucional?

Persegue-se a hipótese de que, notadamente com o advento da Emenda Constitucional nº. 80/2014, ao atribuir à Defensoria Pública expressamente a missão de promover direitos humanos e a defesa extrajudicial de interesses individuais e coletivos, a Carta Magna admite a expedição de requisições pelos seus membros.

A contemporaneidade do assunto surge a propósito da ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria-Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal em face de dispositivos da Lei Complementar Federal nº. 80/94 que tratam da prerrogativa de requisição conferida aos membros da Defensoria Pública, bem como de outras vinte e duas ADIs contra disposições de legislações estaduais acerca de tal prerrogativa.

O método utilizado neste estudo é o hipotético-dedutivo, por meio do qual se averigua o atual perfil constitucional da Defensoria Pública e as funções que lhe foram outorgadas, para, a partir daí, inferir a admissibilidade da prerrogativa de requisição.

Utilizou-se, como técnicas, a pesquisa bibliográfica e documental, consistente na análise da doutrina, incluindo constitucionalistas, processualistas e autores que se dedicam aos estudos das funções institucionais da Defensoria Pública, sem olvidar o exame da legislação e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação à matéria.

 

1 BREVE ESCORÇO ACERCA DA DEFENSORIA PÚBLICA NO CENÁRIO CONSTITUCIONAL

Dispunha o artigo 134 da Constituição da República que “A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”.

Referido dispositivo já era comemorado, pois, ao prever, de maneira inovadora, uma instituição encarregada de tutelar juridicamente (não apenas judicialmente) o hipossuficiente, o Texto Constitucional de 1988 revelava a sua preocupação em constituir-se a República Federativa do Brasil num autêntico Estado Democrático de Direito.

Com o propósito de solidificar o verdadeiro papel da instituição no contexto democrático – de guardiã dos vulneráveis –, o Poder Constituinte derivado promoveu sucessivas alterações na Carta Magna.

As primeiras delas que se podem destacar, implementaram-se pela Emenda Constitucional nº. 45/04, com o reconhecimento da autonomia funcional e administrativa e da iniciativa de sua proposta orçamentária.

Posteriormente, a Emenda Constitucional nº. 69/12 ratificou a aplicação à Defensoria Pública do Distrito Federal do mesmo regramento previsto para as Defensorias Públicas dos Estados, bem como alterou o art. 21, o art. 22 e o art. 48, todos da Constituição da República.

Por sua vez, a Emenda Constitucional nº. 74/13 ampliou a autonomia funcional, administrativa e a iniciativa de proposta orçamentária – até então conferidas às Defensorias Públicas Estaduais – para a Defensoria Pública da União e para Defensoria Pública do Distrito Federal.

Por fim, foi promulgada a festejada Emenda Constitucional nº. 80, de 04 de junho de 2014, que alterou o Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça, do Título IV – Da Organização dos Poderes, e acrescentou o artigo 98 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal.

 

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PODER DE REQUISIÇÃO

Nesta etapa do trabalho, após sucinto apontamento da evolução constitucional da Defensoria Pública, faz-se um bosquejo acerca da natureza jurídica, das finalidades, da extensão objetiva e do alcance da destinação subjetiva do poder de requisição conferido ao Defensor Público.

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O art. 44, X, o art. 89, X e o art. 128, X, todos da Lei Complementar nº. 80/94 conferem ao membro da Defensoria Pública a prerrogativa de “requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições”.

A requisição emanada dos membros da Defensoria Pública, nessa perspectiva, qualifica-se como ato administrativo, revestido dos atributos da imperatividade, da autoexecutoriedade e da presunção de legitimidade, que veicula uma ordem para o fornecimento de informação ou para a realização de providências, cuja inobservância, pela autoridade pública ou pelos seus agentes destinatários, pode ocasionar sanções administrativas e até criminais.

Sílvio Roberto Mello Moraes (apud ESTEVES; SILVA, 2018, p. 707), a respeito da natureza jurídica da requisição e das consequências de seu desatendimento, explica: “A requisição envolve uma ordem, que deve ser cumprida pelo seu destinatário, salvo se for flagrantemente ilegal. O desatendimento de requisição formulada por membro da Defensoria Pública da União, no exercício de suas atribuições, sujeita o seu destinatário às sanções penais e administrativas cabíveis”.

A partir da distinção entre requerimento (solicitação) e requisição (ordem), Guilherme Peña de Moraes (1999, p. 288) conclui que “não poderão as autoridades públicas ou seus agentes deixarem de atender às requisições dos Defensores Públicos, desde que lhe sejam fornecidos os dados suficientes para persecução, sob pena de desobediência, sem prejuízo de eventuais sanções disciplinares”.

Sobre a finalidade do poder de requisição, cumpre transcrever os judiciosos ensinamentos de Gustavo Augusto Soares dos Reis, de Daniel Guimarães Zveibil e de Gustavo Junqueira (2013): “[…] a finalidade da requisição é trazer subsídios ao defensor público para que possa bem se desincumbir de suas funções institucionais – seja ela qual for. Consulte o leitor, com calma, as amplas funções institucionais da Defensoria Pública e, depois, imagine o exercício dessas funções sem o lastro do poder de requisitar certidões, perícias, informações, esclarecimentos, providências outras etc. Não sem razão, Corgosinho salienta que o poder de requisição é uma das prerrogativas mais importantes dos membros da Defensoria Pública no exercício de suas atribuições. Basta notar que se torna impossível a defesa dos direitos e garantias fundamentais do cativo se o defensor público depender de favor da autoridade custodiante e de seus superiores hierárquicos; impossível a defesa do meio ambiente, se depende de favor dos órgãos a quem compete esta matéria e dos órgãos que poderiam realizar perícias e outros estudos; impossível abraçar atividades judiciais e extrajudiciais sem certidões e outros documentos indispensáveis para prevenir conflitos ou resolvê-los de modo legítimo etc”.

Nesse passo, em sua essência, o poder de requisição tem por finalidade viabilizar a coleta de provas para que o usuário dos serviços da instituição possa defender sua pretensão de direito material em juízo.

Aduz-se, ademais, que a prerrogativa de requisição se presta à orientação para efetivação de um direito da pessoa vulnerável, independentemente da tramitação prévia ou posterior de processo de natureza administrativa ou judicial e da adoção de qualquer outra providência (MORAES, apud ESTEVES; SILVA, 2018, p. 707).

Para a adequada compreensão da extensão objetiva da prerrogativa em estudo, é necessária a leitura atenta dos citados incisos X, dos artigos 44, 89 e 128, da Lei Complementar nº. 80/94, com destaque para a fórmula legal aberta “e providências necessárias ao exercício de suas atribuições” que segue as medidas expressamente especificadas sujeitas à requisição.

Trata-se, portanto, de um rol meramente exemplificativo de medidas passíveis de serem requisitadas, viabilizando-se o manejo do instrumento, em defesa dos interesses da pessoa vulnerabilizada, para a obtenção das mais variadas providências relacionadas ao exercício das funções institucionais.

A fórmula legal aberta, contudo, não confere poderes irrestritos aos Defensores Públicos. Por certo, para não se afastar dos ideais republicanos, a atuação encontra limites intransponíveis, como aqueles que se extraem das cláusulas de reserva jurisdicional – compreendida como a vedação da prática de determinados atos por parte de autoridade pública diversa do juiz.

Hugo Nigro Mazzili (2007, p. 409) subdivide a hipóteses de sigilo legal em informações objetivamente sigilosas e em informações subjetivamente sigilosas. As primeiras, relativas àquelas que buscam a proteção de matérias especiais, como, por exemplo, a segurança nacional; e as últimas, relacionadas à proteção de dados confidenciais de pessoas determinadas, a exemplo de informações médicas e bancárias. Nesse caso – de sigilo instituído em proveito de uma pessoa –, se a informação estiver sendo requisitada em defesa dos interesses da beneficiada pelo sigilo ou se o possuidor da informação for por ela autorizada, as informações devem ser dadas.

Outro limite que se impõe ao exercício do poder de requisição se extrai do princípio do defensor natural, previsto expressamente no inciso IV, do art. 4º-A, da Lei Complementar nº. 80/94. O citado dispositivo assegura aos usuários dos serviços da Defensoria Pública “o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural”. Com fundamento no princípio em tela, veda-se designações casuísticas de Defensores Públicos para atuarem em casos específicos. A atribuição do membro para atuar em determinado caso concreto deve ser fixada de acordo com regras previamente estabelecidas.

Assim como ninguém pode ser sentenciado senão pela autoridade judiciária competente (princípio do juiz natural) e ninguém pode ser processado senão pelo órgão de execução do Ministério Público previamente investido em tal atribuição (princípio do promotor natural), o vulnerável não deve ter seus direitos e interesses defendidos por qualquer membro da Defensoria Pública – senão pelo Defensor Público cuja atribuição seja fixada por critérios anteriormente constituídos.

Dessa forma, exige-se que a expedição do ato requisitório seja realizada por um membro com atribuição para defender determinado direito, conforme normas internas previamente estabelecidas, sem descurar-se a avaliação das particularidades do caso concreto, tais como a natureza do interesse a ser tutelado – individual ou metaindividual –, a qualidade da autoridade pública destinatária da ordem – por exemplo, membros do Poder Legislativo ou Chefe do Poder Executivo – e outros critérios, de modo equivalente mutatis mutandis ao que se deve proceder para determinar a competência do órgão jurisdicional.

E qual é a destinação subjetiva da prerrogativa em estudo? Indagando-se em outros termos, quem deve cumprir as requisições emanadas dos membros da Defensoria Pública? A questão é sobremaneira tormentosa. Aqui reside grande polêmica e a necessidade de um cuidadoso exame da matéria.

A Lei Complementar nº. 80/94, como visto, autoriza a expedição de requisição a “autoridades públicas” e a “seus agentes”, sem, contudo, trazer o significado de tais expressões. Diante da omissão da LC nº. 80/94, quanto a acepção dos termos “autoridade públicas” e “seus agentes”, para fins de delimitação subjetiva do campo de incidência do poder de requisição, a doutrina institucional vem advogando a aplicação dos escólios referentes ao mandado de segurança.

Elege-se as lições relativas ao mandado de segurança com o propósito de perquirir a significação de “autoridades públicas” e “de seus agentes”, porquanto os destinatários da sua impetração são também autoridade pública e agentes de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público, nos termos do artigo 5º, LXIX, da Constituição Federal (LIMA, 2012, p. 346).

Precisas são as ponderações de Frederico Rodrigues Viana de Lima (2012, p. 346) a esse respeito: “Destaque-se, ainda, que o descumprimento das prerrogativas da Defensoria Pública (dentre elas a de requisição) dá ensejo à utilização dos mais variados remédios processuais para defendê-las, a exemplo do mandado de segurança (art. 4º, LX, LC 80/94). Logo, se uma autoridade pública ou um de seus agentes (art. 5º, LXIX, CF) está apto a violar uma prerrogativa da Defensoria Pública, a ponto de ser necessário restaurá-la pela via do mandado de segurança (p. ex. requisição), parece natural supor que estas mesmas pessoas sejam a autoridade pública e os agentes referidos pela norma que dispõe sobre a requisição”.

Mostra-se pertinente a distinção entre autoridade pública e agente público, promovida por Hely Lopes Meirelles. Na perspectiva de Meirelles (1999, p. 31, apud LIMA, 2012. p. 347), enquanto a autoridade pública “detém, na ordem hierárquica, poder de decisão e é competente para praticar atos administrativos decisórios”, o agente público “não pratica atos decisórios, mas simples atos executórios”.

Observam Gustavo Augusto Soares dos Reis, Daniel Guimarães Zveibil e Gustavo Junqueira (2013) que “a Lei Orgânica nacional fala também em ‘agentes’ da autoridade a fim de que não se coloque o empecilho de argumentar a necessidade de ‘autorização superior para atendimento da requisição’ ou de ‘consulta prévia à autoridade pública’”. Concorda-se com a perspicácia da inclusão de “agentes” e com a afirmação dos autores de que “Nesse sentido, a lei foi feliz”.

Assim, a requisição poderá ser endereçada não apenas para quem pratica atos decisórios, mas também para quem realiza meros atos executórios.

Podem ser destinatários da requisição qualquer autoridade ou agente que integre a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Diogo Esteves e Franklyn Roger Alves Silva (2018, p. 710) sustentam que a requisição alcança tanto os membros dos Poderes quanto os membros das funções essenciais à justiça (Ministério Público, Advocacia-Geral da União e Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal).

Nessa perspectiva, o Defensor Público (seja federal, estadual ou do Distrito Federal) poderá se valer da requisição em face de autoridade ou agente de qualquer unidade federativa, pouco importando se o destinatário compõe os quadros da União, do Distrito Federal ou de algum Estado ou Município.

Da mesma forma, os particulares que agem por delegação do Poder Público, como os concessionários de serviços públicos, são potenciais destinatários do poder de requisição conferido ao Defensor Público (LIMA, 2012, p. 347).

Vale registrar, outrossim, que o poder de requisição não está jungido à esfera de circunscrição das atribuições do membro da Defensoria Pública. Significa dizer que um Defensor Público Federal, no exercício de suas atribuições, pode requisitar providências de autoridades públicas ou de agentes de determinado Estado da Federação, assim como um Defensor Público estadual pode se valer da prerrogativa para exigir providências de autoridades públicas ou de agentes de outro estado-membro ou da União, por exemplo.

Gustavo Augusto Soares dos Reis, Daniel Guimarães Zveibil e Gustavo Junqueira (2013) alertam que a divisão do poder de requisição por âmbitos federativos restringiria o campo de atuação institucional, negligenciando-se as situações de responsabilidades jurídicas solidárias entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Afinal, “essa limitação seria irrazoável porque, a despeito da autonomia constitucional entre as esferas federativas, indubitavelmente trabalham conectadas na atividade administrativa havendo até mesmo repasse de verbas orçamentárias por força do ordenamento vigente”.

O que não se pode deixar de observar, em todas as hipóteses, é atribuição do membro da Defensoria Pública para o caso concreto, em homenagem ao princípio do defensor natural, como já anteriormente delineado.

De toda sorte, o uso impróprio de informações obtidas por meio de requisições ou qualquer excesso perpetrado pelo membro da Defensoria Pública poderão ensejar responsabilização civil, penal e administrativa.

Após tais apontamentos, para uma melhor contextualização do tema objeto do presente estudo, apresentar-se-á, de forma sintética, as recentes ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República, por meio das quais se questiona a validade da prerrogativa de requisição conferida aos membros da Defensoria Pública.

 

3 SÍNTESE DAS AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE AJUIZADAS PELA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA
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A Procuradoria-Geral da República, inicialmente, no dia 20 de maio de 2021, ajuizou a ação direta de inconstitucionalidade nº. 6.852/DF, em que se questiona a validade dos dispositivos da Lei Complementar nº. 80/94 que tratam da prerrogativa de requisição dos membros da Defensoria Pública.

Posteriormente, no mesmo sentido, a Procuradoria-Geral da República ajuizou outras vinte e duas ações diretas de inconstitucionalidade – ADIs 6860 (MT), 6861 (PI), 6862 (PR), 6863 (PE), 6864 (PA), 6865 (PB), 6866 (MG), 6867 (ES), 6868 (MS), 6869 (BA), 6870 (DF), 6871 (CE), 6872 (AP), 6873 (AM), 6874 (AL), 6875 (RN), 6876 (RO), 6877 (RR), 6878 (SC), 6879 (SP), 6880 (TO) e 6881 (AC) – em face de dispositivos de Leis Complementares Estaduais que contêm semelhantes previsões sobre a prerrogativa de requisição.

Aduz a PGR, nas citadas ADIs, que as normas impugnadas conferem à categoria dos Defensores Públicos um atributo que os advogados privados em geral não detêm – o de requisitar de autoridades públicas e de seus agentes providências necessárias ao desempenho das funções institucionais. Alega, outrossim, que a prerrogativa de requisição retira determinados atos da apreciação judicial. Ademais, argumenta que, ao conferir acentuados poderes a somente uma das partes, desequilibra a relação processual, notadamente quanto a produção de provas.

Para corroborar o seu posicionamento, a PGR invocou o precedente formado na ADI nº. 230/RJ, afirmando que o Supremo Tribunal Federal já teria enfrentado a matéria e consignado que a requisição seria ato próprio de autoridade e, por isso, caberia ao advogado apenas a formulação de requerimentos.

Com base em tais considerações, a Procuradoria-Geral da República sustenta que as normas impugnadas afrontam os princípios da isonomia, da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório, bem como do devido processo legal e, destarte, pugna pela declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Federal nº. 80/94 e de outras vinte e duas legislações estaduais que preveem a prerrogativa de requisição conferida aos membros da Defensoria Pública.

Analisar-se-ão todos os argumentos no capítulo seguinte, que trata da constitucionalidade da prerrogativa em tela.

 

4 A CONSTITUCIONALIDADE DA PRERROGATIVA DE REQUISIÇÃO DO MEMBRO DA DEFENSORIA PÚBLICA

Chega-se ao momento de discutir a constitucionalidade da prerrogativa conferida aos membros da Defensoria Pública de requisitar de autoridade pública e/ou de seus agentes exames, certidões, perícia, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições.

Para cumprir tal mister, far-se-á, primeiramente, uma incursão pelo principal precedente (a ADI nº. 230/RJ) trazido pela Procuradoria-Geral da República no bojo das recentes ações diretas de inconstitucionalidade, cotejando-o com o atual cenário constitucional em que se encontra inserido a Defensoria Pública.

Após a demonstração da necessidade de superação do entendimento exarado no citado precedente, apontar-se-á, com base na realidade empírica suportada pela Defensoria Pública e pelos usuários dos seus serviços, a imprescindibilidade do poder de requisição para a efetivação do acesso à justiça e, por último, percorrer-se-á pelos princípios processuais tidos como violados pelas disposições legais que asseguram a prerrogativa em estudo.

Vamos aos argumentos.

 

4.1 DA (NECESSIDADE DE) SUPERAÇÃO DO (EQUIVOCADO) ENTENDIMENTO EXARADO PELO STF NA ADI 230/RJ DIANTE DO NOVO PARÂMETRO CONSTITUCIONAL

Em fevereiro de 2010, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a ADI nº. 230/RJ, declarou a inconstitucionalidade do artigo 178, IV, “a”, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que garantia o poder de requisição do Defensor Público em face de “autoridade pública” e de “entidade particular” (BRASIL, 2010).

O dispositivo impugnado possuía a seguinte redação: “Art. 178: Lei complementar disporá sobre e organização e funcionamento da Defensoria Pública, bem como sobre os direitos, deveres, prerrogativas, atribuições e regime disciplinar dos seus membros, observadas, entre outras:[…]IV – as seguintes prerrogativas: a) requisitar, administrativamente, de autoridade pública e dos seus agentes ou de entidade particular: certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências, necessários ao exercício de suas atribuições. (grifos nossos)

O voto da ministra relatora Cármem Lúcia, num primeiro momento, sinalizava para a declaração de inconstitucionalidade somente da expressão “ou de entidade particular”. Após debates entre os ministros da Corte, entretanto, a relatora mudou a orientação para considerar incompatível com a Constituição Federal não apenas a destinação subjetiva da prerrogativa à entidade particular, mas também à autoridade pública e a seus agentes. O Plenário, assim, por unanimidade, reconheceu a inconstitucionalidade do dispositivo em sua integralidade.

Extrai-se do acórdão que, para o Supremo Tribunal Federal, o dispositivo da Constituição fluminense que conferia o poder de requisição ao membro da Defensoria Pública não encontrava previsão equivalente no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e que a prerrogativa chegava a ser mais ampla do que à outorgada ao Ministério Público. Restaria, por tais circunstâncias, violado o princípio da isonomia, ao tornar o Defensor Público um “superadvogado”.

Surgiu a discussão se, com a declaração de inconstitucionalidade levada a efeito no julgamento da ADI nº. 230/RJ, as disposições da Lei Complementar Federal nº. 80/94 e de outras leis estaduais que tratam do poder de requisição continuariam válidas ou se a ratio do precedente a elas se estenderia, fulminando-as também pela inconstitucionalidade.

O debate girou em torno da extensão do efeito vinculante, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, dos fundamentos determinantes do precedente – e não apenas da parte dispositiva (teoria da transcendência dos motivos determinantes ou de efeito transcendente dos motivos determinantes).

Contrário a se estender o efeito vinculante aos motivos determinantes no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, Georges Abboud (2018) tece as seguintes considerações: “[…] a possibilidade de, em uma determinada ADIn, o STF resolver a temática que eventualmente pode se repetir em leis de outros Estados parece ser válvula aberta a diversos tipos de ativismo. Se o STF puder ampliar seu julgamento para além do ato normativo impugnado julgamento assunto e não a lei contestada, a amplitude da decisão da jurisdição constitucional se tornaria desmedida. Ao que tudo indica, por meio desse entendimento, corre-se o risco de o STF criar uma espécie de julgamento de ADIns repetitivas. Isso porque se julga o caso submetido, define a tese, e, em seguida, esse entendimento é aplicado para qualquer outra ADIn posterior”.

Apesar da oposição de notórios constitucionalistas, o Supremo Tribunal Federal não vem adotando a “teoria da transcendência dos motivos determinantes”, de modo que somente o dispositivo das decisões prolatadas em controle abstrato de constitucionalidade produzem efeitos vinculantes (BRASIL, Rcl 8168, 2015). De acordo com Daniel Amorim Assumpção Neves (2013), o STF aplicou o efeito transcendente dos motivos determinantes durante certo período, mas atualmente o posicionamento do Tribunal foi alterado e, assim, “a teoria subsiste apenas no ambiente doutrinário, sem encontrar aplicação na praxe forense”.

Dessa maneira, voltando ao cerne da questão, tem-se que o reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo da Constituição fluminense, quando do julgamento da ADI nº. 230 pelo Supremo Tribunal Federal, não importa, de per si, na inconstitucionalidade de outras normas que atribuem a prerrogativa do poder de requisição aos membros da Defensoria Pública.

Defendendo a manutenção da prerrogativa, em parecer elaborado a pedido da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais, Daniel Sarmento (2015, p. 30) aduziu que: “[…] com base em orientação já sedimentada no STF, a pronúncia de inconstitucionalidade de preceito contido na Constituição do Estado do Rio de Janeiro não se estende automaticamente a outros diplomas normativos que contenham previsões similares. Portanto, sob o ângulo processual, a subsistência do preceito contido no art. 44 da Lei Complementar nº 80/94 no ordenamento jurídico é induvidosa”.

Dessa forma, existindo a prerrogativa prevista em outros diplomas legais, os dispositivos de cada legislação devem ser objeto de ações diretas de inconstitucionalidade específicas para eventualmente serem declarados inconstitucionais.

Aliás, a conclusão pela manutenção da prerrogativa do poder de requisição da Defensoria Pública, mesmo após o julgamento da ADI nº. 230/RJ pelo Supremo Tribunal Federal, pode ser claramente extraída inclusive das seguintes considerações, em obiter dictum, do Ministro Marco Aurélio (BRASIL, 2010): “Vamos deixar para pensar na Lei Complementar posteriormente, quando estiver sendo impugnada. Cada dificuldade em seu dia. […] E se continua aplicando a lei federal, até ser declarada inconstitucional”.

E o momento – à que o Ministro Marco Aurélio se referia – de o STF “pensar” na prerrogativa chegou, com as recentes ADIs ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República.

No atual cenário institucional e constitucional, sobretudo com os contornos traçados pela EC nº. 80/14, mostra-se imprescindível a superação do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal na ação direta de inconstitucionalidade nº. 230/RJ, porquanto a ratio decidendi do acórdão restou desatualizada.

No Brasil, embora mantenha-se a tradição romano-germânica (ligada à civil law) de que a jurisprudência não é fonte formal do direito, é possível observar nas últimas décadas a crescente importância conferida pelo ordenamento jurídico aos precedentes e, destarte, uma aproximação do sistema common law.

Mesmo nos países de common law, em que se prestigia sobremaneira a jurisprudência, a força vinculativa do precedente – o stare decisis – vem sendo relativizada por intermédio de técnicas processuais, como a overrruling e a distinguishing. Aos estreitos limites do presente trabalho, interessa a primeira figura, a overruling, que consiste na “técnica através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído (overruled) por outro precedente” (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2016, p. 507).

Os juízes, nos sistemas de common law, quando determinado caso é levado à apreciação dos tribunais, têm uma liberdade restrita para criar a norma, pois deve observância à outras regras e princípios já existentes. Desse modo, “Quando se detecta a necessidade de mudança, ou porque (a) se considera agora, a norma errada; ou porque (b) se considera agora a norma errada, embora ela não estivesse errada, quando foi criada, ocorre o overrruling”, explica Teresa Arruda Alvim Wambier (2009, p. 121).

Embora com diferentes temperamentos, a doutrina brasileira reconhece que a jurisprudência deve buscar a evolução do direito e, portanto, não pode ser fechada a transformações. Nessa perspectiva, “A possibilidade de mudança do entendimento é inerente ao sistema de precedentes judiciais. O dever de estabilidade da jurisprudência não impede a alteração do entendimento; ele impede alteração injustificada desse entendimento” (DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2016, p. 509).

Celso de Albuquerque Silva (apud DIDIER JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA, 2016, p. 511), ao sintetizar as situações mais comuns de superação do precedente, destaca, dentre outras, quando o precedente está obsoleto e desfigurado; quando é absolutamente injusto e/ou incorreto; quando se revelar inexequível na prática. No mesmo sentido, o Enunciado nº. 322 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) sinaliza que “A modificação de precedente vinculante poderá fundar-se, entre outros motivos, na revogação ou modificação da lei em que ele se baseou, ou em alteração econômica, política, cultural ou social referente à matéria decidida”.

Como se viu, o principal argumento para sustentar a incompatibilidade do poder de requisição do Defensor Público com a Constituição Federal consiste na inexistência de semelhante previsão aos advogados, o que o transformaria o membro da Defensoria Pública em um “superadvogado”.

A modificação do parâmetro que deu arrimo à decisão do Supremo recomenda a sua superação total (overruling), pois o precedente se tornou inadequado ao ordenamento jurídico, notadamente com a expressa distinção entre Defensoria Pública e advocacia trazida pela EC nº. 80/14 (ESTEVES; SILVA, 2018. p. 717).

Ao comentar o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº. 230/RJ, Daniel Sarmento (2015, p. 30-33) reforçou a diferença entre Defensores Públicos e advogados, bem como assinalou a superação do precedente, inclusive pela própria jurisprudência superveniente da Corte: “[…] além de equivocado, o precedente do STF parece já ter sido implicitamente superado pela própria jurisprudência superveniente da Corte, quando reconheceu que a Defensoria Pública desempenha papel que não se limita à mera representação processual de pessoas hipossuficientes. Nesse sentido, destaca-se o julgamento da ADI nº 3.943, que afirmou a constitucionalidade da atribuição de legitimidade ativa à defensoria pública em ações civis públicas. O voto condutor, da lavra da Ministra Carmen Lúcia, reproduziu, para endossá-lo, longo trecho da justificativa apresentada pelo Senador Mauro Benevides à PEC nº 247/2014, que resultou na aprovação da EC nº 80/2014. […] Em suma, o papel institucional dos defensores públicos não corresponde ao exercício da advocacia, ao contrário do que afirmou o acórdão proferido na ADI nº 230, e como parece resultar do aresto posterior, que decidiu a ADI nº 3.943. A Defensoria Pública tem várias outras funções, ligadas especialmente à garantia dos direitos humanos dos grupos vulneráveis, que permitem, inclusive, que a instituição seja enquadrada como ombudsman […]”.

A “confusão” entre ambas as carreiras existia (e, ao que parece, ainda existe), porque a Defensoria Pública encontrava-se prevista na Constituição da República, ao lado da Advocacia, na Seção III, no capítulo IV (Das funções Essenciais à Justiça), do título IV (Da Organização dos Poderes).

A inserção da Defensoria Pública juntamente com a Advocacia na mesma Seção no Texto Constitucional, bem como o artigo 3º, § 1º da Lei 8.906/94 (que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil), conduziam o senso comum à (equivocada) crença de que Defensor Público é advogado (de pobre).

A Constituição da República, com a promulgação da Emenda Constitucional nº. 80/14, dedicou uma seção exclusiva à instituição, qual seja a Seção IV. Desse modo, cada uma dessas duas “Funções Essenciais à Justiça” (Defensoria e Advocacia) constitui uma seção na Carta Magna, o que reforça a autonomia e a importância de cada uma delas.

Maurilio Casas Maia (2018, p. 72), ao analisar a redação originária da Constituição da República de 1988, que trazia a Advocacia e a Defensoria Pública em dispositivos diferentes de uma mesma seção do capítulo relativo as “Funções Essenciais à Justiça”, apresenta a concepção de “ladeamento constitucional das carreiras postulantes defensivas, afastando-se qualquer grau de superioridade entre elas, cada qual exercendo seu mister constitucional”.

Da mesma maneira, o Código de Processo Civil de 2015 destinou à Defensoria Pública o Título VII, do Livro III (Dos Sujeitos do Processo), destacando-se o papel da instituição no processo e diferenciando-a das outras “Funções Essenciais à Justiça”.

Sobre o tema, citam-se os ensinamentos de Patrícia Kettermann (2015, p. 66-67): “Aliás, a criação de Seção própria para a Defensoria Pública na Constituição Federal, por força da mesma EC 80/14, demonstra cabalmente que a Defensoria Pública não é outra coisa que não Defensoria Pública, ou seja, não é advocacia nem advocacia pública, razão pela qual a capacidade postulatória dos seus agentes políticos decorre exclusivamente da posse no cargo, tendo em vista que o regramento aplicável é o previsto na LC 80/94. […] Os diplomas legais mais modernos (em construção ou já em vigor), trazem esta nova realidade jurídica e tratam da Defensoria Pública de forma absolutamente diferenciada da Advocacia. O exemplo mais atual e importante é o Novo Código de Processo Civil, que traz Seção própria para a Defensoria Pública e supera o anterior tratamento confuso, mencionando os defensores públicos e os advogados, em todos os dispositivos pertinentes, como entes diferentes que são”.

A diferença reside não apenas em relação as carreias propriamente ditas, mas ainda na relação jurídica formada entre “assistido” e o membro da Defensoria Pública, e na relação jurídica entre cliente e advogado. O vínculo que une o Defensor Público ao destinatário dos seus serviços é de cunho público-estatutário. Não se trata de uma relação contratual – como se evidencia entre advogado e cliente. A capacidade postulatória do membro da Defensoria Pública provém exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo (art. 4º, § 6º, da LC 80/94).

Ademais – diferentemente do profissional liberal –, por força dos princípios da unidade, da indivisibilidade e do defensor natural (arts. 134, § 4º da CR e art. 4º-A, IV da LC 80/94), não pode o membro da Defensoria escolher em quais causas e para quais pessoas irá atuar. Presente a situação de vulnerabilidade (econômica, organizacional ou jurídica), o Defensor Público de maneira indistinta deverá agir. Da mesma forma, não pode o destinatário dos serviços da instituição escolher o Defensor Público que irá representá-lo. A parte será representada pelo membro previamente designado pelos atos normativos internos da instituição, sem a possibilidade de escolhas e de designações casuísticas.

As diferenças não param por aí. A Lei Complementar nº. 80/94 garante aos Defensores Públicos a prerrogativa de “representar a parte, em feito administrativo ou judicial, independentemente de mandato, ressalvados os casos para os quais a lei exija poderes especiais” (art. 44, XI, art. 89, XI e art. 128, XI da LC 80/94). Infere-se, pois, que o membro da Defensoria Pública pode praticar, sem instrumento de mandato, todos aqueles atos (que para o profissional da advocacia) se inserem entre os intitulados poderes da “clausula ad judicia”, além de não necessitar de inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.

A clássica divisão das funções institucionais em típicas – assim consideradas aquelas voltadas à defesa dos interesses de pessoas hipossuficientes do ponto de vista estritamente econômico – e atípicas – as demais que não se relacionam ao aspecto financeiro do destinatário – ganha na atualidade outros contornos.

A partir do advento da Lei Complementar nº. 132/09 e da Emenda Constitucional nº. 80/2014, o perfil individualista da Defensoria Pública, calcado na ideia central de assistência judicial às pessoas pobres, cedeu espaço para um perfil, mais amplo, solidarista.

Sobre esse aspecto, José Augusto Garcia de Sousa (2010, p. 100) aduz: “Além de ser a entidade que presta advocacia aos pobres, consolida-se para a Defensoria o papel de uma grande agência nacional de promoção da cidadania e dos direitos humanos, voltada para quem mais necessita de cidadania e direitos humanos. Desmancha-se de vez o exacerbado individualismo que sempre acompanhou os caminhos da instituição, passando a prevalecer filosofia bem mais solidarista”.

O caput, do artigo 134, da Constituição Federal, após a Emenda Constitucional nº. 80/14, recebeu a seguinte redação: “Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”.

Nota-se que se incorporou à Constituição aspectos relevantes e enaltecedores sobre a Defensoria Pública – que já eram positivados na Lei Complementar nº. 80/94, com redação dada pela Lei Complementar nº. 132/09.

Ao incorporar o designativo “permanente”, o poder constituinte derivado reformador corroborou a impossibilidade de se extinguir a Defensoria Pública por intermédio de Emenda Constitucional. Não se deve olvidar que antes da EC nº. 80/2014 já havia forte entendimento no sentido de que a existência Defensoria seria uma cláusula pétrea, diante do previsto no artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal – garantia de assistência jurídica integral e gratuita, que se concretiza por meio da instituição.

Ademais, ao qualificar a Defensoria Pública como expressão e instrumento do regime democrático, reforçou-se a importância da instituição na garantia da manutenção da democracia, limitando o poder estatal.

Trazer para o Texto Maior a tarefa de promover os direitos humanos (que até então era positivado no art. 3º-A, III, da LC nº. 80/94 como um dos objetivos da Defensoria Pública) também merece aplausos, pois os menos abastados são, sem dúvidas, as maiores vítimas de violações aos referidos direitos. Desse modo, além de a prevalência e efetividade dos direitos humanos serem objetivos da Defensoria, mostra-se como imperativo constitucional.

Outra alteração promovida pela EC nº. 80/14 digna de destaque, relaciona-se a expressa previsão da solução extrajudicial de conflitos, robustecendo-se a importância de se observar a função institucional, encontrada no artigo 4º, II, da LC nº. 80/94, de “promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos”.

Quanto aos direitos coletivos, a alteração do artigo 134 promovida pela Emenda Constitucional nº. 80/14 consagrou definitivamente a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de ações coletivas.

Em que pese o acréscimo, promovido pela Lei nº. 11.448/07, da Defensoria no rol de legitimados da Lei nº. 7.347/85, assim como a expressa previsão trazida pela Lei Complementar nº. 132/09, vozes, calcadas em discursos eminentemente corporativistas, sustentavam a impossibilidade do patrocínio de ações civis públicas pela instituição.

Argumentava-se, em síntese, que o artigo 5º, inciso LXXIV e o artigo 134, ambos da Constituição, restringiam a atuação da Defensoria Pública ao âmbito individual, pois a tutela coletiva obstaculizaria a aferição da necessidade econômica dos interessados. Sustentava-se, ainda, que a atuação da Defensoria no âmbito coletivo interferiria nas funções institucionais do Ministério Público.

Vale lembrar a fracassada tentativa da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) de declarar a inconstitucionalidade da Lei nº. 11.448/2007 que introduziu a Defensoria Pública no rol dos legitimados do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública (ADI 3943/DF).  Um chamativo trecho do voto da Ministra relatora Cármen Lúcia (BRASIL, 2015) merece transcrição para reflexão no presente estudo: “Parece-me equivocado o argumento, impertinente à nova processualística das sociedades de massa, supercomplexas, surgida no Brasil e no mundo como reação à insuficiência dos modelos judiciários convencionais. De se indagar a quem interessaria o alijamento da Defensoria Pública do espaço constitucional-democrático do processo coletivo. A quem aproveitaria a inação da Defensoria Pública, negando-se-lhe a legitimidade para o ajuizamento de ação civil pública? A quem interessaria restringir ou limitar, aos parcos instrumentos da processualística civil, a tutela dos hipossuficientes (tônica dos direitos difusos e individuais homogêneos do consumidor, portadores de necessidades especiais e dos idosos)? A quem interessaria limitar os instrumentos e as vias assecuratórias de direitos reconhecidos na própria Constituição em favor dos desassistidos que padecem tantas limitações? Por que apenas a Defensoria Pública deveria ser excluída do rol do art. 5º da Lei n. 7.347/1985? A ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que compõem o sistema constitucional de Estado Democrático de Direito”.

Assim, espancando-se os argumentos contrários, a defesa dos interesses metaindividuais pela Defensoria Pública, além de prevista expressamente na Constituição Federal, foi chancelada pelo Supremo Tribunal Federal.

Feitas tais considerações que evidenciam o novo parâmetro constitucional explicitado pela EC nº. 80/14, defende-se a necessidade de superação do posicionamento exarado pelo Supremo Tribunal Federal no bojo da ação direta de inconstitucionalidade nº. 230/RJ.

 

4.2 DA IMPRESCINDIBILIDADE DA PRERROGATIVA DE REQUISIÇÃO PARA A EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA

O acesso à justiça, considerado parte integrante da dignidade da pessoa humana (RODRIGUES, 2014, p. 128), representa elemento crucial de um regime jurídico-constitucional de cunho democrático e republicano (FENSTERSEIFER, 2017. p. 159).

Trata-se de garantia de concretização de todos os demais direitos insculpidos no ordenamento jurídico. De nada adianta a previsão de determinado direito ou garantia se inexistirem instrumentos apropriados para sua real fruição. Como bem expressaram Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1998, p. 11-12): “a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reinvindicação”. Ressaltam Cappelletti e Garth (1998, p. 11-12), nesse diapasão, que “o acesso à Justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”.

Ao possibilitar que a comunidade vulnerável tenha seus direitos (individuais e coletivos) materializados, de maneira gratuita e simplificada, a partir de mecanismos informais de solução de conflitos, a Defensoria Pública se coloca como símbolo das três “ondas renovatórias” do movimento de acesso à justiça, idealizadas por Cappelletti e Garth. A primeira consubstanciada na garantia da assistência jurídica aos pobres. Por sua vez, a segunda caracterizada pela tutela dos direitos difusos. A terceira, a seu turno, qualificada pela simplificação dos métodos de solução de conflitos.

Assim, “a Defensoria Pública torna os direitos constitucionais ‘realmente acessíveis a todos’”, ressalta André Ramos Tavares (2020). Defende o consagrado constitucionalista a necessidade de adoção de medidas práticas e concretas que, extrapolando o plano teórico, viabilizem a realização da essencialidade da instituição de acordo com a realidade brasileira; afinal “[…] a relevância da Defensoria Pública para a cidadania não é apenas uma nota técnica” (TAVARES, 2020).

Com os delineamentos trazidos até o momento, é possível perceber a dimensão normativa outorgada à Defensoria Pública e sua evolução desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. O ordenamento jurídico pátrio sofreu sucessivas alterações que buscam a materialização do acesso à justiça e    reforçam a opção do poder constituinte originário pelo salaried staff model, como modelo público de assistência jurídica.

Diante desse cenário, ao menos sob a ótica eminentemente normativa, pode-se dizer que a máxima cura pauperibus clausa est (“o Tribunal está fechado para os pobres”) não se faz presente no país (BULOS, 2014, p. 1437). Asseveram Franklyn Roger e Diogo Esteves (2017, p. 141) que “Dentro da realidade mundial o Brasil encontra-se em milhas de distância dos demais sistemas jurídicos em matéria de assistência jurídica”.

Mas e na prática, de fato, as pessoas com parcos recursos financeiros têm iguais oportunidades de acesso à justiça em comparação com os mais abastados? A Defensoria Pública, enquanto instituição vocacionada a garantir o acesso igualitário à justiça, faz-se presente em todas as unidades jurisdicionais, como determina o art. 98 do ADCT, incluído pela EC. nº. 80/2014? E nos locais em que está instalada, há estrutura adequada para os Defensores Públicos desempenharem suas atividades funcionais?

Tais questionamentos servem para jogar luz ao debate que defende a imprescindibilidade do poder de requisição do membro da Defensoria Pública para a atuação efetiva e não meramente formal na defesa dos interesses do público vulnerável.

O país, há muito, apesar de possuir formalmente assegurado por disposições constitucionais e legais um dos mais aperfeiçoados sistemas de garantia de igualdade de acesso à justiça – que engloba, além da representação em juízo isenta de custas processuais, a orientação e o aconselhamento jurídico de cunho preventivo para aquelas pessoas que não dispõem de recursos financeiros para arcar com as despesas da contratação de advogado –, na prática a realidade é bem diferente (ALVES, 2016, p. 234).

Uadi Lammêgo Bulos (2014, p. 1438), sem descurar a relevância da constitucionalização da Defensoria Pública pela Carta Magna de 1988 e sem desmerecer o trabalho dos membros da instituição, adverte que no Brasil os pobres “nem sempre têm acesso condigno à Justiça. Os recursos são insuficientes. Nada obstante o enorme esforço dos Defensores Públicos, o patrocínio gratuito, por falta de estrutura mesmo, muito longe se encontra de ser satisfatório”.

Assinala Ana Paula de Barcellos (2018) que “Entre a previsão constitucional e a realidade, porém, há uma distância. Poucos Estados têm Defensoria Pública em todas as comarcas, e o número de defensores é, em geral, insuficiente para atender às demandas da população necessitada”. Leonardo Greco (2015), do mesmo modo, constata que “A instituição da Defensoria Pública, exigida em todo o País pela Constituição de 1988 (art. 134), ainda está muito longe de ser estruturada para atender satisfatoriamente os objetivos pretendidos pelo artigo 5º da Carta Magna”.

A discrepância estrutural entre a Defensoria Pública e outras instituições que compõem o sistema de justiça também não passou despercebida por Luís Roberto Barroso (2020), que, em obra acadêmica, apontou: “As Procuradorias-Gerais dos Estados encontram-se estruturadas em todas as unidades federativas, o que já não é o caso das Defensorias Públicas, que em muitos Estados estão sujeitas a condições extremamente precárias. Tal fato, como intuitivo, compromete o acesso à justiça das pessoas necessitadas”.

O 2º Mapa das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital no Brasil, lançado pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sinaliza que o país até maio de 2021 contava com 6.235 (seis mil duzentos e trinta e cinco) membros. A pesquisa evidenciou, ademais, que a Defensoria Pública atualmente está presente em 1.162 (mil cento e sessenta e duas) do total de 2.762 (dois mil setecentos e sessenta e duas) comarcas, ou seja, a instituição se faz presente em apenas 42% (quarenta e dois por cento) das comarcas do país (2021).

De acordo com o Ministério da Justiça, adotando-se apenas o critério do rendimento, o ideal é um Defensor Público para atender cada grupo de 15.000 (quinze mil) pessoas. Em outros termos, para suprir o déficit da categoria e viabilizar o adequado atendimento da demanda existente, faz-se necessário um incremento de cerca de 80% (oitenta por cento) do número de membros.

Esse quadro sinaliza que a promoção da “integralidade” da assistência jurídica, atribuída pelo texto constitucional à Defensoria Pública, “muito frequentemente ainda é apenas uma ‘promessa’, um ideal, muito longe da realidade não apenas em longínquos rincões do imenso território nacional, mas também nas periferias dos grandes centros metropolitanos” (ALVES, 2015, p. 106). O problema vai além da ausência da Defensoria em todas as unidades jurisdicionais do país. Nota-se que, até quando efetivamente instalada, a instituição “muitas vezes não possui estrutura e aparelhamento adequado para permitir aos defensores públicos uma atuação que corresponda às determinações vanguardistas emanadas dos diplomas legais que disciplinam seu funcionamento”, como enfatizado por Cleber Francisco Alves (2015, p. 106).

Assim, em que pese o reconhecimento do relevante papel da Defensoria Pública para a sociedade – sobretudo para a comunidade vulnerável –, entre o plano normativo e a prática ainda há um amplo abismo, que não pode ser descurado pelo operador do direito. As peculiaridades da Defensoria Pública e dos destinatários de suas atribuições precisam mover o intérprete da norma para que haja um adequado tratamento das questões que visam, especialmente, viabilizar o acesso à justiça.

O intérprete deve ter em mente que as prerrogativas funcionais são atributos conferidos pelo legislador aos membros da Defensoria Pública para o fiel exercício das funções constitucionais e legais que lhes foram confiadas. Não se tratam, pois, de privilégios pessoais dos Defensores Públicos, mas sim de ferramentas indispensáveis para realizar de forma eficiente a incumbência de garantir a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos vulnerabilizados.

Nesse diapasão, são as lições de Cássio Scarpinella Bueno (2020): “Para a realização de seus misteres constitucionais, a Lei Complementar n. 80/94 reserva aos defensores públicos, de todos os níveis federados, garantias, prerrogativas, deveres, vedações e impedimentos similares àqueles que são reconhecidos aos magistrados e aos membros do Ministério Público. Aqui, como naqueles casos, a função das regras é instrumental, isto é, elas visam não à criação de privilégios de determinados agentes do Estado, mas, bem diferentemente, à criação de objetivas condições de atingimento das finalidades inerentes ao exercício de seu cargo e que, em última análise, justificam a própria existência da instituição que integram”.

No mesmo sentido, aduz Frederico Rodrigues Viana de Lima (2012, p. 297): “Antes de privilégios pessoais, as prerrogativas expressam “direitos exclusivos” constituídos com a finalidade de que a função pública realizada pelos agentes possa ser cumprida da melhor maneira. Elas não existem para servir ao ocupante do cargo, mas, sim, para que ele esteja munido de um aparato ideal para desempenhar as funções que lhe foram cometidas”.

Para Amélia Soares da Rocha (2013, p. 221), além de não constituírem privilégios, as prerrogativas não são propriamente dos membros da Defensoria Pública, “mas, sim, de seus assistidos, que já tão maltratados pela ausência de Justiça social, precisam de instrumentos que, viabilizando o tratamento desigual, possibilitam a igualdade material […]”.

Ainda sobre as prerrogativas, vale a transcrição das ponderações formuladas por Rogério Nunes de Oliveira (2006, p. 83 apud ESTEVES; SILVA, 2018, p. 628): “[…] representam o reconhecimento da desigualdade social e da ausência de oportunidades que grassam nas comunidades mais humildes, de modo a auxiliar a efetivação da prestação da assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes em pé de igualdade com aqueles que, no reconforto da fortuna, dispõem de condições materiais para suportar os ônus financeiros decorrentes da contratação de um profissional do Direito”.

Dessa forma, longe de privilégios, as prerrogativas conferidas aos Defensores Públicos procuram neutralizar carências provenientes do acúmulo de atribuições, possibilitando que a tutela dos interesses de pessoas menos favorecidas economicamente seja promovida em igualdade de condições em relação aos mais abastados. (ESTEVES; SILVA, 2018, p. 628)

Nessa perspectiva, Tiago Fensterseifer (2017, p. 72), ao tratar da prerrogativa de requisição, afirma: “Trata-se o poder de requisição, por certo, de medida indispensável ao adequado exercício das suas funções institucionais, ou seja, de um poder implícito e inerente às atribuições institucionais, já que, sem tal mecanismo para instruir suas ações e mesmo medidas extrajudiciais, o Defensor Público se verá, muitas vezes, com sua atuação obstada”.

Sem o poder de requisição o mister constitucionalmente atribuído à Defensoria Pública de tutela do vulnerável resta sobremaneira comprometido, tanto do ponto de vista individual quanto do coletivo. E neste último, a preocupação é ainda mais acentuada. Os reflexos na atuação institucional, na hipótese de eventual limitação a tal garantia, são de dimensões incalculáveis para o sistema de justiça e principalmente para os usuários dos serviços da instituição.

No âmbito individual, diante dos reais percalços (das mais variadas ordens) à que são submetidas as pessoas mais carentes, em favor de quem a atividade da Defensoria se direciona, a adequada coleta de material probatório para a defesa da pretensão de direito material a ser deduzida em juízo é praticamente inviabilizada.

A seu turno, na seara transindividual, a requisição ganha ainda mais proeminência, na medida em que, não raras as vezes, é o único instrumento capaz de viabilizar a adequada instrução de ações civis públicas. Nesse contexto, a subtração do poder de requisição da Defensoria Pública significa – sem qualquer exagero – esvaziar a sua atuação na área coletiva.  É o mesmo de retirar a legitimidade da instituição para o ajuizamento da ação civil pública, já confirmada pelo Supremo Tribunal Federal e expressamente disposta no ordenamento jurídico, inclusive no próprio texto constitucional.

Trazendo para a prática, nem sempre as Defensorias Públicas possuem estrutura adequada para a realização de perícias em matérias que demandam conhecimentos técnicos específicos, como, por exemplo, nas frequentes hipóteses em que atua em busca de melhorias estruturais em hospitais, escolas e unidades prisionais. A Defensoria Pública depende da colaboração de órgãos como os Departamentos de Vigilância Sanitária, de Defesa Civil, Corpo de Bombeiros Militares etc.

Sem dúvidas o ideal seria que as Defensorias Públicas estivessem devidamente aparelhadas para que elas mesmo pudessem promover perícias, por meio de estruturas próprias, compostas de profissionais técnicos especializados, pertencentes aos quadros da instituição. Esse cenário, contudo, ainda está longe de ser alcançado em praticamente todas as Defensorias Públicas brasileiras.

Não se deve olvidar que, na seara da tutela coletiva, a requisição, assim como outros instrumentos extrajudiciais colocados à disposição do Defensor Público, à exemplo da recomendação, tem um importante potencial de composição de conflitos. A autoridade pública, destinatária da requisição, ao receber o documento, em dadas situações, é induzida a não prosseguir com determinado intento ou a solucionar alguma questão tutelada pela Defensoria Pública, sem que nenhuma medida judicial precise ser adotada.

Em virtude dos aspectos apontados, mais do que legítima, a expedição de requisições por parte do Defensor Público é indispensável para o fiel exercício das funções constitucionais e legais que lhes foram confiadas e, por conseguinte, para a efetivação do amplo e igualitário acesso à justiça.

 

4.3 DA COMPATIBILIDADE DA PRERROGATIVA DO PODER DE REQUISIÇÃO COM O DEVIDO PROCESSO LEGAL (E SEUS CONSECTÁRIOS)

Em continuidade ao trabalho, passa-se a análise dos princípios processuais reputados como transgredidos pelas normas que asseguram o poder de requisição aos membros da Defensoria Pública.

Com efeito, as leis infraconstitucionais devem ser elaboradas conforme os parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal e o operador do direito não pode se furtar de interpretar a norma conforme a realidade sobre a qual acontece. Assim, “a interpretação constitucional não deve se dar no plano da pura especulação intelectual, afastando-se do mundo concreto, pois se trata de atividade voltada ao equacionamento de problemas reais vivenciados por pessoas de carne e osso” (SARMENTO, 2015, p. 27).

Dentro desse contexto, o exame da validade de instrumentos e prerrogativas conferidas à Defensoria Pública perpassa pela análise de elementos jurídico-normativos, tais como as funções outorgadas à instituição, e não pode prescindir da verificação de aspectos da realidade empírica, como as deficiências estruturais e as desigualdades sociais, que recaem principalmente em face do público vulnerável destinatário dos serviços da Defensoria (SARMENTO, 2015, p. 27).

É, portanto, com os olhos voltados aos grupos socialmente vulnerabilizados que a análise da compatibilidade do poder de requisição deve ser realizada. Afinal, nas palavras de Patrícia Kettermann (2015, p. 67), “A Defensoria Pública não é um fim em si mesma e sob essa ótica, há que se pensar a Instituição e, sobretudo, executá-la da forma que mais atenda aos interesses das pessoas que necessitam dela para “garantir suas garantias”.

O devido processo legal, nas mais diversas searas, é comumente invocado pelos operadores do direito, dada a amplitude e a complexidade da sua conceituação. Como ocorre com outros conceitos dotados de vagueza e abstração, a noção de devido processo legal pode ser malversada. Luís Roberto Barroso (2014, p. 60), ao analisar (e refutar) argumentos contrários ao uso da dignidade humana como um conceito jurídico, alerta para os riscos envolvidos na construção de um significado para o termo: “Qualquer ideia complexa, de fato, está sujeita ao abuso e à má utilização: a democracia pode ser manipulada por populismo, o federalismo pode se degenerar em hegemonia do governo central e controle judicial de constitucionalidade pode ser contaminado pela política ordinária”.

Barroso (2014, p. 60), nesse aspecto, enfatiza que “a dignidade humana, não menos do que inúmeros outros conceitos cruciais, precisa de boa teoria, debate público, consenso sobreposto e juízes prudentes”. É o caso do devido processo legal, que não pode ser reduzido pelo intérprete a uma alegação genérica dirigindo sua proteção em abstrato, de forma irrefletida.

Não é tarefa simples definir as origens e o conceito de devido processo legal, e tampouco é o que se propõe em singelas linhas. Procura-se apenas tecer concisas considerações a fim de confirmar que o poder de requisição conferido aos membros da Defensoria Pública não configura violação aos elementos que compõem a cláusula do devido processo legal.

Acredita-se que a noção de devido processo legal remonta ao direito anglo-saxão e à Magna Carta de 1215. Modernamente sua positivação ocorreu a partir das emendas 5ª e 14ª à Constituição norte-americana (BARCELLOS, 2018). Após uma primeira etapa, marcada pelo caráter eminentemente processual do devido processo legal, seguiu-se, com o julgamento do leading case Calder vs. Bull, no ano de 1798, a aplicação pela Suprema Corte Americana do devido processo legal numa vertente substantiva, no exercício do controle de atos governamentais (judicial review) (RODRIGUES, 2014, p. 144-145).

No ordenamento pátrio, o devido processo legal teve sua primeira menção expressa na Constituição da República de 1988, que trouxe, no rol de direitos e garantias fundamentais, a previsão de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV).

A doutrina sinaliza que o “Devido processo legal é o reservatório de princípios constitucionais, expressos e implícitos, que limitam a ação dos Poderes Públicos” (BULOS, 2014, p. 686). Nessa perspectiva, “Mais do que um princípio, o devido processo legal é um sobreprincípio, ou seja, fundamento sobre o qual todos os demais direitos fundamentais repousam” (BULOS, 2014, p. 686). Trata-se de um “princípio-síntese” ou “princípio de encerramento” de todas as compreensões dos demais indicados pela Constituição Federal e desenvolvidos em âmbito doutrinário e jurisprudencial (BUENO, 2020). Em aproximado sentido, destaca Cândido Rangel Dinamarco (2017, p. 74-75): “Ele tem na ordem constitucional o significado sistemático de fechar o círculo das garantias e exigências relativas ao exercício do poder, mediante uma fórmula sintética destinada a afirmar a indispensabilidade de todas elas e reafirmar a autoridade de cada uma. Esse enunciado explícito vale ainda como norma de encerramento portadora de outras exigências não tipificadas em fórmulas mas igualmente associadas à ideia democrática que deve presidir a ordem processual (Const., art. 5º, § 2º)”.

Costuma-se relacionar o devido processo legal material ou substantivo (substantive due process) com a noção de razoabilidade das leis, dos atos administrativos, das decisões judiciais e das avenças particulares. Por sua vez, atrela-se o devido processo legal formal ou processual (procedural due process) à observância das garantias processuais fundamentais.

Atualmente, a doutrina tem preferido, para designar o plexo de garantias fundamentais que procuram concretizar o pleno acesso à justiça, falar em processo justo ou devido processo constitucional. Marco Antonio dos Santos Rodrigues (2014, p. 145-146), nesse sentido, sintetiza a ideia de devido processo legal, referindo-o como “um direito ao processo justo e adequado, isto é, a um processo em que sejam asseguradas a todos as condições mínimas necessárias para que possam obter uma decisão favorável a si, respeitando-se as demais garantias constitucionais do processo”.

O direito ao processo justo, como apontam Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero, tem função integrativa, interpretativa, bloqueadora e otimizadora. Esse caráter multifuncional (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2020): “[…] exige a realização de um estado ideal de proteção aos direitos, determinando a criação dos elementos necessários à promoção do ideal de protetividade, a interpretação das normas que já preveem elementos necessários à promoção do estado ideal de tutelabilidade, o bloqueio à eficácia de normas contrárias ou incompatíveis com a promoção do estado de proteção e a otimização do alcance do ideal de protetividade dos direitos no Estado Constitucional”.

Assim, do devido processo legal (ou melhor, devido processo constitucional) se extrai as garantias materiais e processuais do indivíduo, a exemplo da isonomia (art. 5º, caput, e inciso I, da CR), da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inc. XXXV, da CR), da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, inc. LV, da CR), que tangenciam o presente estudo.

Com efeito, “A Constituição Federal brasileira, ao indicar, expressamente, qual é o conteúdo mínimo do devido processo constitucional, não permite que qualquer intérprete ou aplicador do direito reduza o seu alcance e sua amplitude sem que isso incida em inconstitucionalidade” (BUENO, 2020).

Diante das ponderações trazidas até este momento, retoma-se ao problema, indagando-se: o poder de requisição, assegurado aos membros da Defensoria Pública, viola alguma dessas garantias?

 

4.3.1 Da (inexistente) violação ao princípio da igualdade

Como corolário de um dos ideais da Revolução Francesa, o princípio da igualdade, forte nos fundamentos de um regime democrático, está insculpido no caput e no inciso I, do artigo 5º, da Constituição da República. Da declaração de que todos são iguais perante a lei, no caso brasileiro, poder-se-ia extrair a inadmissibilidade de qualquer privilégio ou prerrogativa que não guarde esteio na ordem democrática.

Para efeito dos estreitos limites do presente trabalho, limitar-se-á ao aspecto processual da igualdade, comumente trazido à baila nos debates que envolvem prerrogativas funcionais e/ou processuais.

No âmbito processual, o princípio da igualdade – ou da paridade de armas – reclama que às partes seja assegurado tratamento isonômico, devendo ser resguardadas iguais oportunidades para elas.

A questão que se coloca, neste momento, reside em perquirir se a prerrogativa de requisição conferida aos membros da Defensoria Pública vulnera o princípio da igualdade pelo fato de não ser da mesma forma franqueada à advocacia privada. Ou seja, o tratamento diferenciado é justiçável ou ofende a isonomia?

Para responder a indagação formulada, é importante lembrar que a análise da isonomia exclusivamente do ponto de vista formal – tratamento igual a todos – perdeu cenário para o exame da isonomia sob a ótica material – tratamento desigual para os desiguais, na medida de suas desigualdades. Em outros termos, aqui vale socorrer-se à consagrada máxima propugnada por Aristóteles de que os iguais devem ser tratados de forma igual e os desiguais devem ser tratados de forma desigual na medida de suas desigualdades.

A igualdade no atual estágio da dogmática processual deve levar em conta as reais diferenças entre os sujeitos envolvidos na relação processual, especialmente as condições sociais, econômicas e culturais.

Mostra-se, desse modo, equivocada a afirmação pura e simples de que, por força do princípio da isonomia, a legislação não possa instituir desequiparações. Explica Alexandre de Moraes (2017): “[…] o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça”. Esclarece Ana Paula de Barcellos (2018) o que, de fato, o princípio da isonomia veda: “[…] são as desequiparações que não tenham um fundamento racional e razoável e que não se destinem a promover um fim constitucionalmente legítimo. Veda-se o arbítrio, o capricho, o aleatório, o desvio”.

A esse respeito, Cândido Rangel Dinamarco (2017, p. 59) destaca a incumbência do juiz e do legislador de neutralização das desigualdades verificadas: “Essas desigualdades que o juiz e o legislador do processo devem compensar com medidas adequadas são resultantes de fatores externos ao processo – fraqueza de toda ordem, como pobreza, desinformação, carências culturais e psicossociais em geral. Neutralizar desigualdades significa promover a igualdade substancial, que nem sempre coincide com uma formal igualdade de tratamento porque esta pode ser, quando ocorrente essas fraquezas, fontes de terríveis desigualdades. A tarefa de preservar a isonomia consiste, portanto, nesse tratamento formalmente desigual que substancialmente iguala”.

Compete, assim, ao Estado superar as desigualdades existentes no plano material, porquanto apenas “o equilíbrio de situações é que garante a verdadeira contraposição dialética” (GRINOVER, p. 6).

Cumpre transcrever as tradicionais lições de Celso Antônio Bandeira de Mello (2017, p. 21) acerca dos critérios para identificação de situações evidenciadoras de desrespeito à isonomia: “Parece-nos que o reconhecimento das diferenciações que não podem ser feitas sem quebra da isonomia se divide em três questões: a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados”.

O autor explica (MELLO, 2017, p. 21-22): “[…] tem-se que investigar, de um lado, aquilo que é adotado como critério discriminatório; de outro lado, cumpre verificar se há justificativa racional, isto é, fundamento lógico, para, à vista do traço desigualador acolhido, atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da desigualdade proclamada. Finalmente, impende analisar se a correlação ou fundamento racional abstratamente existente é, in concreto, afinado com os valores prestigiados no sistema normativo constitucional. A dizer: se guarda ou não harmonia com eles”.

Infere-se, pois, que, sob pena de violação à igualdade substancial, é vedada à lei a adoção de fatores discriminatórios sem a relação com a distinção que coloca. Desse modo, a lei deve propiciar que as partes tenham os mesmos instrumentos para que possam estar em equilíbrio na relação processual, salvo quando diante de um fator de discrímen que justifique o tratamento desigual.

A partir das considerações de Celso Antonio Bandeira de Mello, entende-se que o elemento de desigualação selecionado (membros da Defensoria Pública) guarda uma correlação lógica com o tratamento jurídico sugerido (poder de requisição), mormente em razão, dentre outros aspectos, das dificuldades de obtenção de documentos, de informações e de diligências, por exemplo. Além disso, o fator de distinção sugerido é plenamente compatível com a assistência jurídica integral e gratuita constitucionalmente prevista. Desse modo, verifica-se que há fundamento lógico que justifique o discrímen.

Assim, não devem prosperar argumentos no sentido da inconstitucionalidade – por quebra da paridade de armas – de disposições que conferem o poder de requisição aos membros da Defensoria Pública.

O que a prerrogativa anseia é justamente a promoção do equilíbrio da balança, igualando situações desiguais. Afinal, não se assegura a almejada paridade de armas, senão “dando uma espada mais longa para o litigante de braço mais curto” (ALVIM, 2018).

Em laborioso parecer, Daniel Sarmento (2015, p. 27) ressaltou que as prerrogativas e os instrumentos de atuação para o desempenho das funções institucionais dispostos na Lei Complementar nº. 80/1994, com redação dada pela Lei Complementar nº. 132/2009, não vulneram o princípio da igualdade, pelo fato de não serem na integralidade franqueadas à advocacia privada e pública – mas, ao contrário, o asseguram em seu aspecto material.

No mesmo sentido são as considerações de Frederico Rodrigues Viana de Lima (2016, p. 348): “A desigualdade jurídica compensatória de uma desigualdade de fato e o ideário de que os desiguais devam ser tratados de modo desigual, na medida em que se desigualam, símbolos do princípio da isonomia, autorizam o regramento particular atribuído à Defensoria Pública. Por esse motivo, não se pode pretender que o tratamento jurídico dispensado à advocacia privada (ou mesmo à pública) seja transportado, sem alterações, para a Defensoria Pública – como equivocadamente persistia no antigo CPC. Temperamentos se fazem necessários, sob pena de inviabilização do exercício da função defensorial”.

Não se está, nesse quadro, diante de fator de desequilíbrio processual injustificado e, portanto, inconstitucional. Pelo contrário, a possibilidade de o Defensor Público ter acesso, de forma mais simplificada, à documentos, perícias e providências é uma alternativa de garantir, principalmente ao vulnerável do ponto de vista econômico (que acaba por trazer consigo outras vulnerabilidades), o equilíbrio na relação processual.

 

4.3.2 Da (inexistente) violação ao princípio do contraditório

Atrelado a igualdade se encontra o princípio constitucional do contraditório, que restaria desatendido exatamente se não ocorresse o tratamento desigual para situações desiguais, como a que se verifica com a prerrogativa de requisição conferida ao Defensor Público, para exercer o mumus de prestar assistência jurídica integral e gratuita ao vulnerável.

Nas palavras de Carreira Alvim (2018), “o princípio da paridade de tratamento” é “irmão gêmeo do princípio do contraditório”. Aclara Humberto Dalla Bernardina de Pinho (2020) que “juntamente com o princípio da isonomia, o contraditório constitui importante premissa democrática que com ele se relaciona de modo a garantir um efetivo equilíbrio entre as partes”. Nesse prisma, “o contraditório também permanece ligado à igualdade, mas não à formal, e sim à substancial”, como elucida Marco Antonio dos Santos Rodrigues (2014, p. 162).

Para se compreender o princípio do contraditório, é importante conhecer os elementos que o compõe. Entretanto, tal tarefa não é fácil. A doutrina moderna diverge ao apresentá-los. Para os estreitos limites propostos no presente estudo, vale transcrever a síntese de Delosmar Mendonça Jr. (2001, p. 38) sobre os posicionamentos doutrinários acerca do assunto: “Dinamarco aponta informação e participação como elementos do contraditório. Já Nelson Nery Jr., na esteira de Sérgio de La China, fala em informação e ‘reação’. Joaquim Canuto Mendes de Almeida se refere à informação e ‘contrariedade’. Rogério Lauria Tucci aduz informação e ‘manifestação. Vicente Greco Filho se refere a informação e contraposição”.

O contraditório hoje – com a sua grande projeção humanitária (GRECO, 2015) – não comporta a limitada noção de direito de ser ouvido no processo. Sob o ângulo processual, é necessário assegurar a parte uma participação efetiva, mediante real (não apenas formal) igualdade, com o condão de influenciar, de fato, na decisão a ser tomada pelo Estado-Juiz.

Por intermédio da atuação do legislador e do juiz – que estão obrigados a estabelecer discriminações imprescindíveis a garantia e a preservação da participação igualitária entre as partes, atentando-se as dificuldades econômicas e outras peculiaridades – se pode desenvolver o contraditório efetivamente (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2020).

A doutrina italiana, a exemplo da capitaneada por Mario Chiavario (apud (MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, 2020), assinala que a participação em igualdade de condições (ou em paridade de armas) não significa absoluta identidade de direitos e obrigações. Traduz-se, sim, na necessidade de que possíveis diferenças de tratamento entre os sujeitos processuais sejam justificáveis em face de critérios de reciprocidade, de forma a prevenir a ocorrência de um desequilíbrio global em detrimento de uma das partes.

Nesse sentido, as considerações de Luiz Guilherme Marinoni, de Sérgio Cruz Arenhart e de Daniel Mitidiero (2020): “[…] paridade de armas não quer dizer que as partes de um mesmo processo devam ter os mesmos poderes, até porque isso seria ignorar a obviedade de que elas podem ter diferentes necessidades. O que importa é que tais poderes tenham fundamento racional na diversidade das necessidades das partes e que, diante de qualquer poder conferido a uma delas, outorgue-se à outra o correlato poder de reação”.

No contexto de possibilidade de influir nos meandros processuais e na formação da decisão judicial figura o direito à produção de provas.

O volume de demandas a que estão submetidos os Defensores Públicos supera (e muito!) o acervo de trabalho de qualquer advogado. Ademais, as restrições de aparelhamento da Defensoria Pública somadas as limitações das mais variadas ordens – como econômicas, organizacionais, jurídicas e, por vezes, intelectuais – dos usuários dos serviços da instituição inviabilizam a adequada produção de provas.

Cumpre citar as observações de José Augusto Garcia de Sousa (2016, p. 488-489) quanto ao excessivo volume de trabalho impingido à Defensoria Pública: “Nenhum ‘escritório’ tem tantas partes sob sua responsabilidade e orientação. É certo que a Advocacia da União e as Procuradorias estaduais, bem como algumas Procuradorias municipais, atuam em uma grande quantidade de feitos; mas o cliente é um só. No caso da Defensoria, diversamente, as partes representadas contam-se aos milhares, o que não é de estranhar em um país cuja população é formada, na sua grande maioria, por pessoas carentes”.

Franklyn Roger Alves e Diogo Esteves (2018, p. 706), com o brilhantismo e a maestria que lhes são peculiares, demonstram a distinta realidade enfrentada por quem tem condições financeiras de contratar um advogado e pelos destinatários dos serviços da Defensoria Pública: “Para aqueles que possuem melhores condições econômicas é mais fácil conseguir, mediante remuneração, que profissionais busquem ou produzam as provas que necessitam para a instrução processual. Por atuarem em reduzido número de causas, os advogados podem acompanhar seus clientes nas repartições públicas e realizar diligências para recolherem as provas necessárias para a adequada instrução da causa. Para o economicamente necessitado, no entanto, tudo é mais difícil. Como o Defensor Público não possui condições de realizar pessoalmente as diligências probatórias que antecedem a propositura da ação judicial, o hipossuficiente econômico acaba sendo obrigado a buscar sozinho todas as provas necessárias à postulação de seus direitos. Nessa peregrinação em busca de documentos e informações, a própria locomoção do indivíduo carente para determinados lugares muitas vezes é dificultada por problemas financeiros ou pela impossibilidade de deixar a atividade laborativa. Além disso, a reconhecida limitação intelectiva gerada pela marginalização social dificulta a obtenção de provas pelo hipossuficiente, que na maioria das vezes não sabe o que pedir, a quem pedir e, nem mesmo, como pedir. No fim, sem recursos materiais e desprovido de cultura, o litigante pobre acaba literalmente perdido e sem condições de buscar o lastro probatório necessário para pleitear adequadamente seus direitos”.

A parte patrocinada pela Defensoria Pública não se coloca em indevida posição de vantagem pelo fato de ter em seu favor a possibilidade de o Defensor Público exigir diligências ou documentos para o exercício da atividade funcional. Em diversas situações, não fosse por intermédio de requisições prévias, a parte autora representada pela Defensoria Pública teria dificuldades (ou até mesmo a impossibilidade) de se desincumbir de instruir minimamente a demanda com provas dos fatos constitutivos de seu direito, na forma do art. 373, inciso I, do Código de Processo Civil.

Ao ser proporcionado o contraditório efetivo à parte que não tenha seus interesses defendidos pela Defensoria Pública (e, portanto, não tenha se valido da requisição), não há que se falar em quebra da paridade de armas. O litigante poderá livremente refutar as alegações trazidas, propor a produção de outras provas, bem como pugnar por quaisquer providências que repute apropriadas a tutela do direito material envolvido e a influenciar de forma eficaz no convencimento judicial.

Na contemporânea sistemática processual-constitucional, ancorada num modelo de processo “cooperativo”, reforçada pelo advento do Código de Processo Civil de 2015, salvo específicas situações em que o contraditório será diferido, não se tolera decisões judiciais sem antes ouvir as partes – notadamente o litigante potencialmente prejudicado –, inclusive quanto as matérias sobre as quais o juiz deve decidir de ofício.

O magistrado é incumbido de assegurar a real participação dos envolvidos na relação processual, inclusive independentemente de provocação das partes – o que reforça a inexistência de qualquer desequilíbrio ensejador de quebra da paridade de armas no processo, por conta de utilização de algum elemento obtido por meio de requisição.

A garantia do contraditório não deve ser analisada de maneira isolada pelo intérprete, mas sempre em conjunto com outras também estatuídas na Constituição da República, para não se distanciar da ideia de processo justo. Em outros termos, trata-se de garantia que deve coexistir “com as demais constitucionalmente consagradas, em especial a tutela jurisdicional efetiva, sendo, portanto, inútil adotar postura absoluta quanto ao primeiro e, com isso, conceder aos jurisdicionados um provimento inadequado à realidade” (RODRIGUES, 2014, p. 169).

Diante de tais ponderações, verifica-se que as dificuldades – decorrentes da deficitária estrutura da Defensoria Pública, da excessiva carga de trabalho e das limitações de ordem financeira e intelectuais dos usuários da instituição – na obtenção de provas é fator que respalda a diferenciação de tratamento dispensado ao Defensor Público.

 

4.3.3 Da (inexistente) violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição

Afirma-se, ainda, para imputar suposta ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, que a prerrogativa de requisição atribuída ao membro da Defensoria Pública termina por subtrair certos atos à apreciação judicial.

Para além de garantir o acesso ao órgão judicial, ao cidadão deve ser resguardada uma prestação jurisdicional adequada, efetiva e célere, conforme recomenda a Constituição da República.

O argumento de afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição não se sustenta, porquanto a extensão objetiva da prerrogativa de requisição não é irrestrita, como apontado no capítulo 2 do presente estudo. O Defensor Público, tal como o membro do Ministério Público no exercício do poder requisitório, deve respeito as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição, ou seja, determinadas diligências e informações sempre dependerão de autorização judicial.

Nesse sentido, Daniel Sarmento (2015, p. 32) aduz que “da mesma forma que o Ministério Público detém, no âmbito da sua atuação, o poder de requisição – respeitados sempre os sigilos constitucionais sujeitos à reserva de jurisdição – não é inconstitucional que a mesma faculdade seja conferida à Defensoria Pública […]”.

Com a expedição de requisições, não raras as vezes, consegue-se equacionar, de forma extrajudicial, uma infinidade de questões que inevitavelmente desaguariam no já assoberbado Poder Judiciário. Mostra-se contraproducente, sob qualquer ponto de vista, defender, na atual conjuntura, a necessidade de o Defensor Público ter de se socorrer ao juízo para obter determinada informação ou diligência e, após, mais uma vez, acionar o Judiciário para a tutela do direito relativo às informações ou diligências anteriormente requeridas.

Exigir a intervenção judicial para a obtenção de toda e qualquer providência é impedir que a jurisdição seja cumprida de forma adequada, efetiva e tempestiva diante do direito material.

 

Conclusão

O presente estudo teve como objeto o exame da compatibilidade com a Constituição Federal das disposições legais que conferem ao membro da Defensoria Pública o poder de requisição, notadamente levando em conta o novo perfil institucional trazido pela Emenda Constitucional nº. 80/2014. Partiu-se da hipótese de que as atribuições incumbidas à Defensoria Pública justificam a prerrogativa de requisitar providências necessárias à adequada atuação da instituição.

O debate travado acerca da legitimidade da prerrogativa em questão – novamente trazido à baila nas recentes ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Procuradoria-Geral da República – deve ser despido de concepções meramente coorporativas, importando-se, de fato, o interesse constitucional de facilitação de acesso à justiça, em especial de grupos socialmente vulnerabilizados.

Demonstrou-se que, à luz do atual panorama constitucional, está-se diante de hipótese que recomenda a superação do entendimento estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº. 230/RJ, que declarou a inconstitucionalidade do poder de requisição assegurado pela Constituição do Estado do Rio de Janeiro aos membros da Defensoria Pública.

Sob pena de perpetuação da crise do ordenamento jurídico pátrio instalada, as instituições que compõem o famigerado “sistema de justiça” necessitam superar o paradigma liberal-individualista, com a conformação de cada uma delas no cenário constitucional contemporâneo.

Ao erigir a Defensoria Pública, o Ministério Público, as Advocacias Pública e Privada como “funções essenciais à justiça”, a Constituição abraçou a terminologia “justiça” em seu sentido mais amplo, franqueando o exercício da capacidade postulatória de tais entidades perante todos os Poderes Estatais e não somente junto ao Poder Judiciário.  Apenas a partir da adoção de uma concepção de caráter ético e axiológico do termo “justiça” será possível assegurar o fiel cumprimento de “critérios justos e de equidade nas relações interpessoais cotidianas, perseguindo-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e assegurando-se plena efetividade dos direitos tanto pelas vias judiciais quanto extrajudiciais” (ALVES, 2015, p. 95).

O arcabouço normativo constitucional e infraconstitucional recomenda, como forma de suplantar os obstáculos ao acesso à justiça, a adoção de um modelo coletivo e resolutivo de atuação institucional em detrimento do tradicional padrão individualista e demandista.

O poder de requisição, frente ao atual cenário de crise do Poder Judiciário, além de absolutamente consentâneo com as funções que são atribuídas constitucional e legalmente à Defensoria Pública, “alinha-se com a nova base principiológica do NCPC, eis que reforça o paradigma da priorização da resolução extrajudicial de conflitos, combatendo o fenômeno da ‘superlitigância’ judicial” (PAIVA; FENSTERSEIFER, 2019, p. 377).

Evidenciou-se que a realidade empírica suportada pela Defensoria Pública e pelos usuários dos seus serviços – retratada pela deficitária estrutura, pela excessiva carga de trabalho, pelas limitações de ordem financeira e por vezes intelectuais dos assistidos – exige o poder de requisição para uma atuação efetiva e não meramente formal.

A partir da análise dos princípios processuais reputados como transgredidos pelas normas que asseguram o poder de requisição, percebeu-se que a prerrogativa se harmoniza não apenas com o comando constitucional que atribui à instituição a função de garantir a assistência jurídica, de forma integral e gratuita, aos vulneráveis (art. 134 da CF), mas também aos próprios fundamentos (art. 1º da CF) e objetivos fundamentais (art. 3º da CF) da República Federativa do Brasil, intrinsecamente relacionados aos objetivos da Defensoria Pública estampados no artigo 3º-A da LC nº. 80/94, com destaque para “a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais” (inc. I); para “a afirmação do Estado Democrático de Direito” (inc. II); para “a prevalência e efetividade dos direitos humanos” (inc. III); e para “a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório” (inc. IV).

A eliminação do poder de requisição, após diversas modificações constitucionais e legislativas que reforçam o papel da Defensoria Pública de garantidora de direitos humanos e que orientam a composição extrajudicial de conflitos individuais e coletivos, configura intolerável retrocesso institucional.

Espera-se que, em deferência ao amplo e igualitário acesso à justiça, o intérprete máximo da Constituição Federal freie mais uma tentativa de enfraquecimento do modelo de assistência jurídica estatal gratuita.

 

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