É inquestionável a importância das
instituições jurídicas em um sistema democrático. Da mesma forma que é
importante o Legislativo, o Executivo, as ONGs,
as religiões e o próprio povo. Qualquer instituição pode ser utilizada
para bem ou para o mal, querer atribuir ao sistema jurídico a responsabilidade exclusiva de fazer justiça, considerando
esta como o que é certo, talvez seja um caminho equivocado.
A classe jurídica brasileira parece
esquecer que o instrumento mais importante não é o processo judicial, e sim, a
lei. Portanto, em lugar de formar “práticos jurídicos” ou “despachantes
judiciais”, deveriam formar o profissional para um visão
mais ampla do Direito, mais científica e mais crítica. De maneira inadequada
estamos gastando mais para resolver conflitos decorrentes da aplicação da lei
do que com a sua elaboração, pois o legislativo consome em média 2% do
orçamento, enquanto o Judiciário com 6% e mais o Ministério Público com
aproximadamente 2%, fora os departamentos jurídicos situados no Executivo. Não
precisa ser gênio para concluir que bastaria aperfeiçoarmos o nosso sistema
legislativo e punir rigorosamente o descumprimento da lei para reduzirmos o
número de litígios. Não é o litígio que traz o direito, este já existe, o ideal
é o respeito ao mesmo. Contudo, infelizmente a classe jurídica brasileira não
desenvolveu uma consciência de consultoria, logo precisa do conflito entre as
partes para ter retorno financeiro.
Atualmente, a moda jurídica é dizer se
é constitucional ou não. Em geral com base no critério “achismo”.
Afinal, com o elevado número de dispositivos em nossa
Constituição Federal, sempre haverá um artigo para respaldar
qualquer posicionamento. Entretanto, a maioria nunca leu sobre a história da
composição do aspecto Constitucional e não é demais relembrar que no período da
escravidão havia “juristas” defendendo a mesma. Logo, muitos não interpretam,
simplesmente lêem a Constituição. Assim, qualquer cidadão poderia fazer.
Curiosamente, alguns ilustres juristas
insurgem contra as câmaras de filmagem postadas em locais públicos como meio de
segurança por, no entendimento deles, ofenderem o direito à intimidade. Em
analogia a este pensamento, de forma hilária em breve estaremos tendo que andar
de olhos vendados nas ruas para não invadirmos a privacidade e intimidade de
quem anda na via pública.
Se todo poder
emana do povo e em seu nome será exercido, ainda não consegui vislumbrar a
legitimidade do Poder Judiciário e do Ministério Público. A
questão de poder do estado e poder social deixa claro a posição nova
assumida pelo Ministério Público como poder de fiscalização e que quase
diariamente tem obtido o afastamento de vários líderes políticos em razão das
provas produzidas, muitas vezes atuando perante o Legislativo (impeachment e
renúncia) e perante o Executivo (exoneração, renúncia). Entretanto, não dá para
aceitar que estas duas instituições não tenham um controle social e externo.
Afinal, se temem o povo, é porque não estão ao lado do mesmo, e sim, na defesa
dos seus interesses pessoais e institucionais. Considerando que fazem os seus
concursos quase que internamente em todas as suas fases, pelo menos no momento
da investigação social e do vitaliciamento, a
população deveria ser ouvida, até como forma de demonstrar respeito.
O controle proposto é para a área
financeira e administrativa, assim de maneira alguma feriria a
independência funcional dos promotores e juízes. Aliás, estes já sofrem
controle da corregedoria, de uma forma não muito clara, pois não se publica um
relatório das prioridades e das punições aplicadas, permitindo que os amigos
fiquem impunes e os adversários sejam perseguidos internamente. Entretanto, o
controle externo seria mais para evitar nomeações irregulares
para cargos, como nepotismo, concursos com critérios suspeitos, obras
estranhas, promoções subjetivas e outras modalidades. Mas quem tem o
controle administrativo e financeiro dos Tribunais e Procuradorias são os
Desembargadores e Procuradores, respectivamente, os quais escolhem quem os
substituirá através das promoções. Logo, nada mais justo que alguns segmentos
sociais fiscalizem o que está ocorrendo com o dinheiro e a gestão pública, pois
estão colocando milhões de dinheiro nas mãos de pessoas que controlam os órgãos
de fiscalização, Judiciário e Ministério Público, e que muitas vezes nem têm
cursos de administração pública.
Outro aspecto positivo do controle
externo é que os seus membros permanecerão por mandatos fixos, o que evita uma
manipulação permanente de idéias. Afinal, em regra, apenas quando um grupo sai
é que se pode perceber o estado da instituição. E o melhor ainda, é que serão
de órgãos diferentes, evitando o corporativismo, inclusive jurídico, pois não
haverá apenas membros da área jurídica. Entretanto, querer fazer um controle
externo do Judiciário feito por ele mesmo, é algo que nem a metafísica explica, um corpo externo a si mesmo. È o mesmo que dizer
“sair para fora”, “subir para cima”, é pleonasmo. Externo é externo e não faz
de conta.
Curiosamente a classe jurídica tão
ardorosa defensora da democracia em seus discursos, esquece-se que um dos
elementos desta qualidade é a transparência. A própria OAB que usufrui de
benefícios como a imunidade tributária por ser uma
autarquia especial federal, não quer prestar contas ao TCU. Em suma, na hora
dos benefícios é órgão de natureza pública, mas no momento do ônus é órgão de
natureza privada. Parece que os juristas não sabem que nem tudo é retórica.
Inclusive no 40º concurso para promotor em Minas até a ciência exata da
matemática foi alterada.
Se estudarmos a estrutura de nosso
sistema judicial veremos que pouco mudou com o advento
da república. Muitos ainda acham que baseando no modelo de contrato social
proposto por Rosseau, eles estariam fora das normas,
pois são príncipes. Ledo engano, em um estado democrático.
Entretanto, a própria classe jurídica
almeja uma idolatria ao sistema judicial, pois neste há uma necessidade de
contratar um advogado. Na verdade, o cidadão não tem o direito de contratar um
advogado; ele tem a obrigação, ainda que tenha conhecimento jurídico, como ser
formado em Direito, ser Promotor ou Juiz. O objetivo é mais de reserva de
mercado do que de defesa do cidadão.
No mundo jurídico, a distância entre o
discurso e as ações é quase que infinito. Vale mais escrever sobre cidadania do
que efetivar medidas de assegurar este direito. Mas como definir juridicamente
conceitos como intimidade, fixar valor de alimentos, aquilatar
danos morais, decidir sobre responsabilidade de acidente de trânsito, estes são
aspectos que envolvem outros conhecimentos não jurídicos, e até mesmo
experiência de vida?
Em verdade, muitos juristas com um
discurso de proteção da sociedade, querem mesmo é ter pessoas servas de uma
burocracia judicial, onde os seus serviços parecem ser mais importantes do que
realmente o são. Afinal, por qual motivo questões como divórcio
consensual necessitam de intervenção judicial? Por qual motivo uma
execução de alimentos necessita de um advogado, ou uma execução fiscal sem
embargos?
Talvez o grande erro seja
termos adotado o modelo norte americano de controle constitucional por
um órgão judicial, enquanto na Europa usa um controle por órgãos
independentes aos poderes estatais e os membros ficam em média oito anos.
Afinal, a Constituição não é um documento meramente jurídico, é um documento
também sociológico e político. E como é que um poder pode ser
imparcial julgando a si mesmo, principalmente dispositivos constitucionais que
lhe são do seu interesse?
Freqüentemente criticamos a ditadura
militar, mas se estes tivessem o controle dos tribunais e procuradorias, não
precisariam de mais nada. Condenariam os inimigos e absolveriam a si mesmos.
Censura também existe na democracia jurídica, onde o que não interessa não é
divulgado. Tortura também existe, mas é psicológica, em razão
da lentidão, apesar de se acusar o legislativo, na verdade o problema é
institucional e não apenas processual.
Como já advertia Rubem Alves, os mitos
inibem pensamentos e estimulam comportamentos. Enfim, criamos o mito de que o
Judiciário é a Justiça, e que os juristas fazem a
justiça. Mera retórica. Todos os órgãos e pessoas podem fazer justiça,
que é dar a cada um o que é seu. A finalidade do
Judiciário deveria ser resolver conflitos, como última opção, com base
nos fatos e teses que lhes são encaminhadas. Porém, nem isto o Judiciário tem
feito, pois quando não quer decidir alega um questão
processual ou então alega excesso de serviço, pois em vez de delegar os
despachos e priorizar as sentenças, prefere ficar com os despachos. No
Brasil, criamos a figura do juiz despachante judicial. Mas o Judiciário é
pago para ficar negando a decidir o conflito? As provas já foram produzidas, as
teses jurídicas já foram desenvolvidas pelas partes? O único trabalho que teria
seria escolher uma das teses, mas o processo não finda.
Assim começam uma série de indagações
que gostaria de compartilhar com o leitor:
Por qual motivo quase todos os
problemas têm que passar pelo Judiciário? Muitos poderiam ser resolvidos
extrajudicialmente.
Por qual razão fatos que não são
conflitos precisam da intervenção judicial? Como a separação consensual.
Por qual fator um bacharel em Direito
não pode fazer a sua defesa pessoal, pois tem conhecimento técnico, sendo obrigado
a contratar um advogado?
Qual o fundamento da necessidade de
apenas ser formado em Direito para interpretar uma Constituição, considerando
que existe aspectos políticos, econômicos e sociais no
seu contexto?
Considerando que para muitos, com base
no princípio da igualdade, nos concursos para juiz e promotor não se pode
exigir idade mínima, prática jurídica e cursos de pós
graduação, por qual motivo então que se exige o curso de graduação em
Direito, também não fere o princípio da igualdade?
Então igualdade é tratar os
desiguais na medida de suas desigualdades, logo idade, experiência profissional
e pós-graduação devem ser avaliados como requisitos
básicos.
Por qual motivo o cidadão não pode
transigir os seus direitos em conselhos arbitrais?
Por qual razão a audiência de
reconciliação de casais não pode ser feita por psicólogos e assistentes sociais
em órgãos municipais?
Por que não se pode
criar os conselhos municipais de conciliação ligados aos municípios para
resolver a vida dos cidadãos sem necessidade de saírem de suas cidades?
Por qual motivo cientistas políticos e
sociólogos não podem fazer concurso para juiz e promotor? Se a prova mede o
conhecimento e se eles foram aprovados, não têm conhecimento?
Onde é que está a
democracia na estrutura do Judiciário e do Ministério Público? Como é que podem
defender a democracia se não são democráticos? Não precisa fazer eleição, mas
pelo menos o referendo popular das autoridades jurídicas é salutar.
Qual a razão de não se exigir um
conhecimento de administração para ser presidente de Tribunal ou Procurador
Geral?
Se o Judiciário é imparcial, como é que
pode agir e participar ativamente da investigação, como ocorre no processo
penal, no eleitoral e na infância e juventude? O Judiciário quando julga a si
mesmo é imparcial? É possível ser imparcial, mesmo que não se atenha às teses
do réu e do autor?
Como fica o cidadão se o Judiciário
recusa-se a resolver a lide com base em argumentos processuais?
Qual a razão do medo do controle
externo? Por que as regras dos concursos, as formas de correção e as promoções
não são minuciadas em lei, com previsão expressa de
punição para quem as descumprir?
Qual a razão de não remunerar os juízes
leigos? Nem implantar os juízes de paz? E de boicotar o desenvolvimento da
arbitragem?
Em defesa da sociedade entendo que não
é mais possível deixar a sociedade nas mãos de uma classe profissional. Em uma
democracia os meios de solução de conflitos devem ser pluralizados. Dizer que o
bacharel em Direito está apto a interpretar a constituição é desconhecer a
realidade do ensino jurídico. Pessoalmente, fiquei um ano estudando o artigo 5º
da Constituição Federal e tinha que responder na prova de acordo com o caderno
do “professor”.
Da mesma forma que os municípios
criaram os Procons devem criar os “Projus” com possibilidade de resolverem vários conflitos
através da conciliação, inclusive ações de estado.
Criamos um mito de justiça judicializada, e isto não é verdadeiro. Vários processos
são ajuizados desnecessariamente. No serviço judicial há um monopólio do
mercado jurídico, mas a ciência deve ser popular e não aristocrática ou
hermética. Ao controle externo que tomara que venha fazemos três sugestões:
fiscalizem as promoções, os concursos (normas do edital e escolha de
examinadores) e os cargos de confiança.
Afinal, interpretar a lei, não
significa violar o seu texto, nem criar palavras; e sim, deve-se buscar adaptar
o caso à lei. Legislar no caso concreto é ficar a menos de um passo para o
julgamento de exceção. Pior do que o Tribunal de exceção é o julgamento de
exceção. Outrossim, nos países europeus é comum optarem pelo julgamento
coletivo feito por juízes togados; nos Estados Unidos pode-se escolher se quer
ser julgado pelo júri ou pelo juiz togado, logo o julgamento individual também
não é democrático. É comum, no Brasil, dizer que o juiz tem que julgar de
acordo com sua consciência. Mas onde foi medida a consciência deste
profissional? Há bons juízes, mas há maus também. Normalmente, os argumentos já
foram expostos pelas partes nas peças processuais, cabendo ao Judiciário optar
por uma das teses, afinal é uma espécie de poder moderador. Caso contrário, teremos uma ditadura dos juristas que anulam a vontade do
legislativo e impedem a atividade do executivo, mas são benevolentes consigo
mesmos. Inclusive todos sabem que a responsabilidade pela lentidão do jurídico
brasileiro é dos próprios juristas. Afinal, todas as reformas encaminhadas ao
legislativo foram aprovadas, até em tempo recorde como foi com a lei do
Juizado Especial Federal.
Com base em um comportamento
aristocrático até os concursos são concentrados na capital, sendo que poderiam
ser descentralizados para facilitar o acesso de pessoas mais carentes. Acesso à
justiça não é apenas acesso ao Judiciário.
Certa vez conversávamos com um profissional
jurídico sobre a necessidade de os professores do ensino fundamental e médio lerem a Constituição Federal em sala para os alunos. Ele
disse que isto era um absurdo, pois isto teria que ser feito por juristas. Pensamos, os juristas que se acham donos do direito
das pessoas, agora se acham donos da Constituição, o povo não pode nem mais
discuti-la. Nós temos dois tipos de síndromes no mundo jurídico, a mais antiga
é a “processualite”, mas recentemente
existe um novo vírus: a “constitucionalite”.
Contudo, é provável que 95% dos “juristas” nunca leram uma obra sobre as
funções do poder, não conhece Constituições de outros países e nem o sistema de
controle constitucional. Como é que se define intimidade, funções de
fluxo de poder e idéias, além de outros termos, juridicamente? O que me
preocupa é que transformaram a ciência jurídica em técnica de memorização. Há
alguns aprovados nos concursos da magistratura, ministério público e também no
exame de OAB que não têm cultura geral e nem raciocínio lógico; apenas
conhecem alguns textos de lei esparsa sem muita capacidade de imaginação. Mas a
responsabilidade está na falta de critérios científicos para escolha dos
examinadores.
Entendemos, que para ser Ministro do Supremo e
Procurador Geral da República deveria ter notável conhecimento jurídico, de
administração pública, de sociologia, economia e de ciência
política. Não conseguimos vislumbrar a ciência jurídica sem interagir com
as demais ciências.
Não há como defender a democracia e
manter um monopólio com instituições jurídicas autocráticas. Não há como
defender o cidadão e desproteger a sociedade. Não há como confundir cidadão com
consumidor. Não é crível priorizar o jurídico-processual e ignorar o
jurídico-social. Não há como abdicar do preventivo e aguardar o efeito
repressivo. Estudamos para melhorar a vida da sociedade, e não para
escravizá-los ou criarmo-lhes mais problemas. Quando
os juristas vão aos órgãos de imprensa, geralmente ficam criticando e mostrando
problemas, mas precisamos de soluções. É curioso criticar o Executivo pela
crise de energia, mas não cremos que a área jurídica seja um exemplo de
administração pública. E mais, é curioso criticar o Presidente da República
pela edição de medidas provisórias, mas poupar o STF, que poderia adentrar no
mérito da relevância e urgência, mas não o faz.
Colocamos a Constituição como um dogma,
mas esquecemos que o povo e as relações sociais evoluem, e que muita coisa que
está no texto constitucional é ilógico como o artigo
236. Também esquecemos que 1/3 dos senadores constituintes em 1988 eram
“biônicos”. E que todos os constituintes não foram eleitos apenas para elaborar
a constituição, continuaram os mandatos em seguida; logo legislaram em causa
própria. E mais, na carta de 1969, em plena ditadura militar, previa-se
que em caso de afastamento definitivo de algum Senador, assumiria o suplente
mais votado no partido. E hoje? Assume um suplente desconhecido que constava na
chapa, mas nem é informado no momento da eleição. Os militares têm um conceito
de pátria, de povo; podem até ter exagerado, mas pelo menos pátria
e povo é algo mais concreto do que um papel. O que divergimos dos
juristas é dizer que a Constituição é a vontade maior do povo; nem sempre, pelo
menos no Brasil. E entendemos que acima da Constituição está o povo, pois não
foi a Constituição quem criou a pátria, ou povo. Foi o povo quem criou a
pátria, e deveria também criar a Constituição. O ideal seria incluir no
currículo das escolas o estudo básico da Constituição, o que seria feito pelos
próprios professores, sem necessidade de ser jurista ou “prático
jurídico”. O conhecimento da Constituição não pode ser monopólio de uma
classe. Que democracia é essa defendida pelos juristas? Democracia do povo ou
de uma classe? “Democracia” de classe é aristocracia ou oligarquia.
Curioso que se preocupem com direito de escolha a usar cinto de segurança,
direito de intimidade, direito a sigilo bancário, mas não se preocupam
com direitos à alimentação de quase 30 milhões de brasileiros que passam fome,
número de pessoas bem maior do que os que teriam os sigilos de contas
quebrados.
Como afirma Platão, in A República: “A
justiça está em cada um dos componentes da sociedade exercer corretamente sua
função. Isso já é justiça, já é atuação social.”
Informações Sobre o Autor
André Luís Alves de Melo
Mestre em Direito Público pela Unifran e Promotor de Justiça em Estrela do Sul MG, pesquisador jurídico