Resumo: O presente artigo pretende analisar, sem esgotar o tema, a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica por meio da legislação brasileira e das decisões jurisprudenciais, envolvendo os diversos âmbitos de aplicação nas mais diversificadas áreas do direito.
Palavras-chaves: Pessoa jurídica. Empresa. Obrigações. Responsabilidade. Disregard Doctrine.
Sumário: Introdução. 1. Da Pessoa Jurídica. 1.1 Conceito. 1.2. Histórico. 1.3 Natureza Jurídica. 1.4 Requisitos para sua Constituição. 1.5 Da Existência Legal, Capacidade e Representação. 1.6 Responsabilidade Civil. 1.7 Classificação. 2. Do Direito de Empresa. 2.1 Princípios Norteadores do Direito Empresarial. 2.2 Do Conceito de Empresa e Empresário. 3. Da Desconsideração da Personalidade da Pessoa Jurídica. 3.1 Conceito. 3.2 Histórico. 3.3 Teorias. 3.4 Fundamentos Legais Brasileiros. 3.5 Espécies. 3.6 Aspectos Materiais. 3.7 Aspectos Processuais. 4. Da Aplicação nos Tribunais Brasileiros. 4.1 Desvio de Finalidade, Abuso de Direito e Fraude à Credores. 4.2 Encerramento / Dissolução Irregular da Sociedade. 4.3 Responsabilidade do Ex-Sócio pelas Obrigações Sociais. 4.4 Direito Tributário: Impostos e Multas Administrativas. 4.5 Direito Ambiental. 4.6 Recuperação Judicial / Falência. Conclusão.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal e a legislação infraconstitucional estabelecem normas que regem o Direito Empresarial, delimitando sua abrangência, bem como estipulando o melhor e mais adequado procedimento para apresentar soluções satisfatórias às mais distintas situações envolvendo o direito societário.
A pessoa jurídica é criada – quando observados os requisitos legais – com personalidade jurídica distinta de seus membros, sujeito de direitos e obrigações e com autonomia patrimonial para o desenvolvimento de atividades e alcance de uma finalidade específica e lícita.
Quando a pessoa jurídica é constituída com a finalidade de exercer atividade organizada, com objeto social definido para a produção ou circulação de bens ou serviços e com o objetivo de auferir lucro, Estamos diante de uma sociedade empresária.
Todavia, não raro nos deparamos com situações em que a pessoa jurídica tem sua finalidade desviada; quando seus membros a utilizam com o intuito de favorecimento pessoal em prejuízo dos interesses de terceiros, manipulando a autonomia para alcançar fins escusos, muito distante do que dispôs, inicialmente, o seu contrato social.
Com o objetivo de coibir práticas fraudulentas e abusos de direito – por parte dos membros ou sócios – utilizando-se da pessoa jurídica, e de proteger os direitos e interesses de terceiros, o legislador no Código Civil (Lei Federal 10.406/2002), inseriu em seu art. 50, a previsão da desconsideração da personalidade jurídica, que consiste no afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, tornando ineficaz a limitação da responsabilidade dos sócios, para que seja(m) identificado(s) o(s) responsável(eis) pelo desvio de finalidade, infrações a lei e ao contrato ou estatuto social e este(s) responda(m) pelas dívidas e obrigações com seu patrimônio pessoal.
1. DA PESSOA JURÍDICA
A pessoa ou sujeito de direitos “é a unidade personificada das normas jurídicas que lhe impõem deveres e lhe conferem direitos. Logo, sob o prisma kelseniano é a “pessoa” uma construção da ciência do direito, que com esse entendimento afasta o dualismo: direito objetivo e direito subjetivo” (KELSEN, 2007, p. 113/114). Contudo, a doutrina tradicional entende pessoa como “aquele que é sujeito de um dever jurídico, de uma pretensão ou titularidade jurídica, que é o poder de fazer valer, através de uma ação, o não cumprimento do dever jurídico, ou melhor, o poder de intervir na prolação da decisão judicial” (CANOVAS, 2007, p. 113/114).
Toda pessoa – natural ou jurídica – é dotada de personalidade, que revela a habilidade para adquirir direitos e contrair obrigações, isto é, figurar nas relações jurídicas. Essa habilidade é medida/limitada pela capacidade. A capacidade pode ser de direito ou de fato. Tem-se por capacidade de direito o mesmo significado do conceito atribuído à personalidade, eis que toda pessoa é sujeito de direitos e deveres; isso quer dizer, todos a possuem e dela não podem ser privados, conforme estabelece o art. 1.º do Código Civil (Lei Federal 11406/2002). A capacidade de fato é a aptidão para exercer os seus direitos e cumprir com seus deveres, ou seja, a prática plena dos atos da vida civil. Em todas as relações jurídicas sempre há quem esteja na posição de sujeito de direito e de obrigações.
“A pessoa tida como um fato jurídico é a pessoa humana, cujo ingresso no mundo jurídico provém de fatos eminentemente naturais, não co-relacionados com atos humanos. (…) Para o ser pessoa humana implica, antes de tudo, o ser Homem vivo, independente do lapso temporal que medeia o nascer com vida e o perecimento. A pessoa representativa de um ato jurídico é a pessoa jurídica, uma vez que a sua existência não está condicionada a nenhum fenômeno natural e aparece na esfera do Direito como decorrência da exteriorização consciente de vontade do Homem, “dirigida a obter um resultado juridicamente proibido e possível” (CAMATA, 2005).
A pessoa jurídica – assim como a pessoa natural – é dotada de personalidade e surge da necessidade de conjugação de esforços para a realização de empreendimentos complexos, ou seja, da personificação de um ente coletivo, com o escopo de obter resultados mais amplos do que se fossem perseguidos com atuação individual. “A possibilidade de mobilizar capitais mais vultosos, a necessidade de reunir para uma finalidade única atividades mais numerosas e especializadas do que o indivíduo isolado pode desenvolver, a continuidade de esforços através de órgãos que não envelhecem” (PEREIRA, 2009, p. 297/298).
1.1 Conceito
A pessoa jurídica consiste em uma unidade de pessoas naturais ou de patrimônios, com o objetivo de alcançar determinados fins (CUNHA GONÇALVES, 2007, p. 229). Já para ANDRADE FILHO (2005, p.44), “a personalidade jurídica é moldada pelo direito positivo; ela nasce, permanece e perece segundo normas jurídicas. A personalidade é o papel distribuído a cada homem para que ele venha representar na vida jurídica; é um encargo de uma coisa que o homem recebe para poder agir nos quadros do direito”. E, segundo o magistério de RODRIGUES (2006, p. 86), as pessoas jurídicas “são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que as compõe, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”.
Destarte, a pessoa jurídica pode ser conceituada clara e objetivamente como a reunião de pessoas que se organizam para a realização de diversos fins – privados ou públicos – e “fazem jus ao reconhecimento de atributos intrínsecos à sua essencialidade, como por exemplo, os direitos ao nome, à marca, ao símbolo e à honra. Nascem com o registro da pessoa jurídica, subsistem enquanto estiverem em atuação e terminam com a baixa do registro, respeitada a prevalência de certos efeitos posteriores, a exemplo do que ocorre com as pessoas físicas” (BITTAR 2003, p. 13).
No Código Civil vigente foram encerrados os debates acerca da existência ou não dos direitos de personalidade da pessoa jurídica, haja vista que o art. 52 estatui, expressamente: “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos de personalidade”. Assim, passemos a análise dos direitos de personalidade da pessoa jurídica.
O direito ao nome está tutelado no art. 5.º, inciso XXIX da Constituição Federal e no art. 33 da Lei de Registros Públicos de Empresas Mercantis e Atividades Afins (Lei Federal 8934/94)[1]. O nome da pessoa jurídica integra a personalidade da pessoa jurídica, porque é elemento que a identifica e a individualiza na sociedade, assegurado o seu uso exclusivo no Estado em que o registro dos atos constitutivos for averbado, podendo ainda exercer o direito a extensão dessa proteção em nível nacional nos termos do art. 1166, § único do Código Civil. Ao adotar nome distinto daqueles registrados preserva “não só o direito de concorrência, mas igualmente os direitos e os interesses dos consumidores e, mesmo dos parceiros comerciais, evitando que sejam enganados, confundindo um empresário ou sociedade empresária com outro” (MAMEDE, 2006, p. 56).
O título do estabelecimento (nome empresarial ou nome fantasia) é o “rótulo que se dá ao estabelecimento por meio do qual se empresaria” (MAMEDE, 2006, p. 56) ou é a identificação da atividade empresarial no local em que é desempenhada, cuja tutela está inserida no art. 209 da Lei de Propriedade Industrial (Lei Federal 9279/96)[2].
A marca é outra forma de identificação e individualização da pessoa jurídica, dos seus produtos ou dos serviços por meio de sinais, que correlacionam automaticamente com o nome ou com o título de estabelecimento perante a sociedade. As diversas formas e procedimentos para a sua tutela está disposta nos artigos 122 a 182 da Lei de Propriedade Industrial (Lei Federal 9279/96).
O direito à imagem é um dos principais direitos de personalidade, já que esta demonstra a aceitação ou não da pessoa jurídica perante fornecedores, consumidores e que pode ser considerado fator para o desenvolvimento de parcerias comerciais, ou seja, um fator de credibilidade.
Os direitos à intimidade, ao segredo ou sigilo comercial e industrial, estão incluídos no rol dos direitos de personalidade, cuja violação enseja responsabilidade civil e a reparação pelos danos morais e materiais decorrentes dos atos ilícitos perpetrados; isto porque tais direitos constituem a individualização da própria pessoa jurídica, os planos de seus produtos ou a prestação dos seus serviços. O segredo “abarca a proteção a elementos guardados no recôndito da consciência na defesa de interesses pessoais, documentais profissionais ou comerciais. Deriva da necessidade de respeito a componentes confidenciais da personalidade, sob os prismas da reserva pessoal e negocial” BITTAR (2003, p. 123). Já a intimidade, se caracteriza por ser a sua privacidade interna (seu domicílio, suas correspondências, etc), onde circulam informações de caráter restrito e inviolável a terceiros, somente revelados aos envolvidos diretamente com os interesses e objetivos da pessoa jurídica. Por fim, os sigilos comercial e industrial caracterizam-se pelas decisões e estratégias adotadas nas atividades negociais de natureza confidencial, cuja divulgação indevida acarreta o comprometimento da própria atividade, o objeto da pessoa jurídica.
O direito à liberdade caracteriza prerrogativa da pessoa jurídica em fazer ou não alguma coisa, ou melhor, exercer a sua atividade da forma que for mais condizente com os seus interesses, sem a intervenção do Estado, exceto nos casos determinados em lei. Quanto ao direito à reparação por danos morais e materiais em decorrência da violação dos direitos de personalidade da pessoa jurídica, o Superior Tribunal de Justiça, por meio das súmulas 37 e 227, firmou o entendimento de que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral, inclusive admitiu a cumulação dos pedidos reparação de danos moral e material decorrentes de ato ilícito.
Como visto, a pessoa jurídica possui os direitos de personalidade compatíveis com a sua natureza e a sua proteção pode ser realizada a partir do seu registro e após o encerramento de suas atividades, por meio de tutela (i) emergencial, para cessar ameaça ou evitar lesão ou (ii) reparatória, para promover a indenização de ordem material e/ou moral.
1.2 Histórico
A Idade Média foi marcada pela estagnação econômica em decorrência da autossuficiência dos feudos, tendo por consequência a negação do comércio pelos senhores feudais. Objetivando mudanças de interesse econômico e social, e por conta da revolução industrial com impacto direto no comércio nascente, a Idade Moderna foi marcada pela substituição da produção feudal pelo modo capitalista, ou seja, o desenvolvimento do comércio e a valorização dos trabalhadores, que passavam a receber contraprestação pelo trabalho executado.
Ressurgia, assim, o desenvolvimento das práticas comerciais por meio das rotas comerciais além-mar, retomadas pelos italianos (Mar Mediterrâneo, após liberação do monopólio árabe); depois pelos portugueses e espanhóis (Ásia e América); seguidos pelos franceses, ingleses e holandeses, noticiando-se as primeiras formas de associações. Com a utilização crescente das associações comerciais, traduziu-se a efetividade das operações estabelecidas entre os agentes econômicos da época, culminando no reconhecimento da existência de um Direito Comercial autônomo, que disciplinava os atos de comércio, culminando por definir alguns atos da vida civil como comerciais.
Nessa esteira, a pessoa jurídica foi sendo delineada, estruturando-se como unidade independente, destacando-se “a vontade coletiva do grupo das vontades individuais dos participantes, de tal forma que o seu querer é uma resultante e não mera justaposição das manifestações volitivas isoladas” (PEREIRA, 2009, p. 298).
Dada à importância da pessoa jurídica no desenvolvimento econômico e social do Estado, este definiu a sua estrutura jurídica como unidade ao qual concedeu personalidade e capacidade jurídica para o exercício de seus direitos e cumprimento dos deveres que lhe são concernentes.
1.3 Natureza Jurídica
A natureza jurídica da pessoa jurídica é de realidade técnica em que a vontade cria um ente, constituído de personalidade, sujeito de direitos e obrigações reconhecidos pelo Direito. Ensina VENOSA (2009, p. 231) que a pessoa jurídica “funciona como conceito unificador das relações jurídicas entre os indivíduos e as organizações. A realidade jurídica a que se refere é meramente abstrata, ideal, como sucede a todos os institutos jurídicos, porque a pessoa jurídica diferentemente dos seres humanos não se vê e não se toca”.
O Direito Brasileiro estabelece que a pessoa jurídica existe quando inscreve o seu ato constitutivo no órgão competente, por isso tem natureza de realidade técnica; é um ente que cumprindo seus requisitos tem sua existência configurada e sua personalidade constituída neste ato.
1.4 Requisitos para a sua Constituição
A constituição de uma pessoa jurídica exige o cumprimento de três requisitos: (i) vontade humana criadora; (ii) cumprimento das disposições legais para sua formação e (iii) finalidade lícita.
A vontade humana criadora é a pluralidade de membros com a pretensão de constituir uma unidade para existir de forma distinta dos seus membros, direcionando a vontade da pluralidade de pessoas com um objetivo em comum a ser perseguido pelo corpo social constituído.
A pessoa jurídica adquire a capacidade para exercer direitos e contrair obrigações na vida civil (personalidade) por meio do cumprimento das determinações legais para a sua constituição. A declaração de vontade para a sua constituição deve ser manifestada em documento – público ou particular – que deverá ser levado ao Cartório de Registros Públicos para que a pessoa jurídica tenha existência legal. Também decorre da lei a necessidade de autorização para que determinadas pessoas jurídicas possam ser constituídas.
Por fim, a finalidade lícita completa o rol de requisitos para a constituição da pessoa jurídica. “A justificativa existencial da pessoa jurídica é a objetivação das finalidades a que visa o propósito de realizar mais eficientemente certos objetivos, a liceidade destes é imprescindível à vida do novo ente” (PEREIRA, 2009, p. 257). A ordem jurídica somente permite a constituição deste ente se as atividades e os objetivos forem lícitos, sob pena de ter cerceada e extinta sua personalidade se for constatado o desvio de finalidade.
1.5 Da Existência Legal, Capacidade e Representação
A pessoa jurídica de direito privado nasce e adquire personalidade jurídica com o registro de seus atos constitutivos junto ao cartório competente, acompanhada da autorização do Poder Executivo para a sua constituição – quando se fizer necessário tal requisito – em decorrência da atividade a que se propõe realizar (art. 45 do Código Civil).
Os atos constitutivos – contratos ou estatutos sociais – estabelecem as regras internas das pessoas jurídicas; é neste documento que os membros estabelecem o conjunto de direitos, obrigações e faculdades de forma livre e autônoma. Trata-se das regras de auto regulação, com os fundamentos jurídicos de sua existência, prevalecendo sobre os dispositivos legais, desde que não contrariem normas de ordem pública.
Com a elaboração e registro dos atos constitutivos – estatutos ou contratos sociais – ocorre a outorga de poderes para a pessoa jurídica, que amplia o seu poder de atuação, gozando de “direitos patrimoniais (ser proprietário, usufrutuário, etc), de direitos obrigacionais (contratar) e de direitos sucessórios, pois adquire causa mortis” (PEREIRA, 2009, p. 234).
A capacidade da pessoa jurídica é oriunda da personalidade que lhe é concedida pelo ordenamento jurídico, limitada pela finalidade para a qual foi constituída, exercendo os “direitos civis que lhe são necessários à realização dos fins justificativos de sua existência” (ROSSEL E MENTHA, p. 128).
Nos termos do art. 48 do Código Civil, a administração da pessoa jurídica será realizada conforme se estabeleceu no contrato social. Contudo, se o ato constitutivo não fizer nenhuma expressa disposição, as decisões serão tomadas por voto da maioria simples dos presentes, tendo por critério o valor das cotas de cada um. “Em outras palavras, a maioria a que a disposição em sub examine alude é a formada por votos cuja somatória exteriorize mais da metade do capital social da pessoa jurídica” (SCAVONE JR., 2009, p. 190.).
1.6 Responsabilidade Civil
A responsabilidade civil é um instituto que está intimamente relacionada com o conceito de obrigação. Esta consiste em uma “relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor, cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, que lhe garante o adimplemento por meio do seu patrimônio”. (MONTEIRO, 1979, p. 8). Já a responsabilidade nasce de ato omissivo ou comissivo, que acarreta prejuízos de natureza patrimonial a outrem.
Em relação à pessoa jurídica, a responsabilidade pode ser contratual (art. 389 do Código Civil[3]), em que o descumprimento acarreta o direito a reparação dos danos suportados em decorrência da inobservância dos termos do contrato entabulado; e extracontratual ou aquiliana (art. 927 do Código Civil[4]), que estabelece a reparação do ato ilícito com base na conduta do agente e no seu grau de culpa. Os preceitos da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado foram elencadas nos arts. 932 e 933[5] e para as de direito público foi estabelecido no art. 43[6], ambos do Código Civil.
1.7 Classificação
As pessoas jurídicas são classificadas, segundo o art. 40 do Código Civil, entre pessoas jurídicas de direito privado e pessoas jurídicas de direito público – interno e externo.
1.7.1 Das pessoas jurídicas de direito público
Ensina VENOSA (2009, p. 236) que “O Estado é a pessoa jurídica de direito público interno por excelência; é a nação politicamente organizada. Nos Estados de organização federativa, desdobra-se a pessoa jurídica, como entre nós, em Estados federados e municípios”.
Os incisos do art. 41 do Código Civil elencam as pessoas jurídicas de direito público: a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, os Municípios, as autarquias, as associações públicas e as demais entidades de caráter público criadas por lei. Contudo, em decorrência das funções de natureza complexa e de caráter múltiplo exercidas pelo Estado, necessário foi a descentralização das suas atividades, criando-se entidades paraestatais, algumas com personalidade privada outras públicas, tais como as fundações, empresas públicas e sociedade de economia mista.
Os entes da administração pública direta são: a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios e os Municípios. A União “é uma das partes componentes da organização político-administrativa da República Federativa do Brasil” (GUIMARÃES, p. 538). Atua em nome próprio e tem a incumbência de exercer as competências elencadas no art. 21, incisos I a XXIII da Constituição Federal, que envolvem questões relativas a manutenção da integridade nacional, o encerramento de grave comprometimento de ordem pública, a relação com os Estados estrangeiros de ordem econômica e social, a participação nas organizações internacionais, a administração das reservas cambiais do país, fiscalização das operações de natureza financeira, ordenamento do território nacional e o desenvolvimento econômico e social, dentre outros. Os Estados são as unidades territoriais, que formam a União. Possuem governo e constituições próprios, assim como autonomia financeira. A competência dos Estados é residual, uma vez que pode ser exercida, desde que não haja vedação na Constituição Federal, conforme disposição no art. 25 e §§ da Constituição Federal.
Os Municípios são a “célula básica da federação brasileira” (GUIMARÃES, p. 411), que possuem autonomia político-administrativa e são regidos por leis orgânicas. No que tange a sua competência, envolvem questões de interesse local, nos termos do art. 30, incisos I a IX da Carta Magna. O Distrito Federal é a unidade federativa em que se encontra a capital do país, sede do Governo Federal, que é regido por lei orgânica, assim como os Municípios. A Constituição Federal atribuiu-lhe a competência legislativa reservada aos Estados e Municípios, na qual tem autonomia para a instituição de impostos, taxas e contribuições de melhoria, em conformidade com o disposto no art. 32 da Carta Maior.
Os entes da administração pública indireta são: as autarquias, as associações públicas, fundações públicas, agências reguladoras. As autarquias são pessoas jurídicas criadas por lei específica, constituída com patrimônio próprio, para a realização de atividades estatais específicas, com o objetivo de melhorar o funcionamento da gestão administrativa do Estado. As associações públicas são pessoas jurídicas constituídas por meio da conjugação de esforços de diversos entes públicos, que se unem como uma espécie de consórcio com a finalidade de executar um objeto público, v.g., como a preservação de um rio, que corta diversos municípios em um determinado Estado.
As fundações públicas são constituídas com o patrimônio individualizado de um determinado ente público, direcionando-o para a realização de uma finalidade administrativa e organizada adequadamente, cuja fiscalização fica a cargo do Tribunal de Contas e do Ministério Público. As agências reguladoras são pessoas jurídicas constituídas com a autonomia de poder público, para o exercício de competências regulatórias, tais como normatizar, disciplinar, monitorar e fiscalizar a prestação de serviços de interesse público por diversos agentes econômicos.
1.7.2 Das pessoas jurídicas de direito privado
As pessoas jurídicas de direito privado tem origem “na vontade individual, propondo-se à realização de interesses e fins privados, em benefício dos próprios instituidores ou de determinada parcela da coletividade” (VENOSA, 2009, p. 237). No Art. 44 do Código Civil vigente estão relacionadas as pessoas jurídicas de direito privado: (i) as associações; (ii) as fundações; (iii) as organizações religiosas; (iv) os partidos políticos e (v) as sociedades.
As associações são constituídas pela união de pessoas que se organizam para as mais diversas finalidades[7], desde que dentre elas não esteja o escopo econômico, estando ausentes direitos e obrigações recíprocas entre os associados, nos termos do art. 53, caput e parágrafo único do Código Civil. As fundações são constituídas pela universalidade de bens para a realização de uma determinada finalidade, bem diferente do que ocorre com as associações e sociedades em que a existência inicia-se da reunião de pessoas com o objetivo de realizar um objetivo comum. O momento da constituição das referidas instituições é delineado por dois momentos: “o ato de fundação propriamente dito, que é a sua constituição emanada de vontade e o ato de dotação de um patrimônio, que é a reserva de bens livre, a indicação dos fins e a maneira pelo qual o acervo será administrado” (VENOSA, 2009, p. 271).
As sociedades são pessoas jurídicas de direito privado, que possuem autonomia patrimonial e atuam em nome próprio, constituídas com o objetivo econômico e de lucro. As sociedades personificadas podem ser separadas em duas espécies: (i) civil ou simples e, (ii) mercantil ou empresárias. A sociedade simples é a pessoa jurídica, cujo lucro auferido é alcançado pela prestação de serviços específicos, “trabalho não organizado, autônomo, desempenhado por cada um dos sócios sem conexão maior com a atuação dos demais” (MAMEDE, 2009, p. 40). A sociedade mercantil ou empresária é a pessoa jurídica, que objetiva o lucro com o exercício profissional de atividades mercantis, o que significa dizer que “desenvolve atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços, normalmente sob a forma de sociedade limitada ou anônima” (COELHO, 2002, p. 13).
2. DO DIREITO DE EMPRESA
A origem do comércio formal não tem uma data precisa. Contudo, sabe-se que os pequenos grupos familiares buscavam na natureza alimentos para a sua sobrevivência e material de que tinham necessidade. Contudo, diante do inevitável crescimento da população esse sistema não se mostrou mais viável, oportunidade em que foram iniciadas as trocas dos produtos excedentes ou de bens desnecessários ao agrupamento. Progressivamente alguns itens passaram a servir de itens intermediadores que passaram a servir como espécie de moeda.
Em decorrência do crescimento desta atividade tornou-se necessário estabelecer regras comerciais e profissionais, momento em que foram criadas as Corporações de Ofício, que regulamentavam as atividades dos seus membros com fundamento nos usos e costumes. A conjugação do crescimento econômico decorrente das práticas comerciais com o avanço das idéias liberais resultou na promulgação do Código Comercial Francês (1808), que classificou as relações entre civis e comerciais pela prática de determinados atos.
No Brasil, os atos de comércio foram recepcionados pelo Código Comercial (1850) e pelo Regulamento 737/1850 que, respectivamente, conceituaram e apresentaram o comerciante e o rol taxativo das atividades comerciais.
“No regime do Código Comercial de 1850, a marca distintiva do Direito Comercial era o exercício efetivo de comercio (art. 9.º), isto é fazer da mercancia uma profissão habitual (art. 4.º, parte final). A conceituação logo causou dúvidas, razão pela qual, naquele mesmo ano, editou-se uma norma, Regulamento 737, que embora cuidasse do processo comercial, trouxe no art. 19 uma relação de atos que reputava comerciais. (…) Assim, quem montasse uma pequena birosca à beira mar para vender latinhas de cerveja e lucrar poucas centenas de reais por mês era comerciante e estava submetido ao Direito Comercial: compra e venda de efeitos móveis. Em contraste, uma grande imobiliária, que faturasse milhões por mês, não era considerada comerciante, pois sua atuação não estava incluída na relação do art. 19 do Regulamento” (MAMEDE, 2009, p. 4).
Diante da necessidade de normatização mais ampla da atividade comercial, o Código Civil Italiano (1942) adotou a teoria da empresa definindo-a como “atividade econômica exercida de forma organizada que passa a contar com a tutela do direito comercial, abrangendo, inclusive, a atividade rural, a prestação de serviços e a atividade imobiliária” (VENOSA, 2010, p. 5). E, seguindo o modelo italiano, o Brasil promulgou o Código Civil (Lei Federal 10.460/2002), denominando este capítulo de direito de empresa.
2.1 Princípios Norteadores do Direito Empresarial
O direito de empresa está fundamentado em princípios que representam o preceito legal nuclear do sistema normativo. Os princípios “revelam o conjunto de regras ou preceitos que se fixaram para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando assim a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica” (HUTTER, 2004, p. 31). Referida área se apresenta dinâmica e exigente para o exercício da atividade empresarial de forma sustentável, concreta e segura. Contudo, as constantes evoluções e modificações do Direito acarretam lacunas legislativas, que devem ser solucionadas sem, entretanto, ter que se esperar pela burocrática e demorada apreciação legislativa acerca do tema.
Eis a importância dos princípios norteadores para sanar as dúvidas ou as lacunas existentes, especialmente, no que tange a superação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, um dos princípios basilares do Direito Empresarial.
A livre iniciativa[8] consiste na liberdade que qualquer indivíduo tem para iniciar e desenvolver qualquer uma atividade econômica, desde que seja desempenhada de acordo com as normas da ordem econômica e financeira. E a livre concorrência[9] consiste no direito das empresas criarem e utilizarem mecanismos que proporcionem ao consumidor a oportunidade de conhecer o seu produto e fidelizá-lo como cliente, permitindo a empresa conquistar o mercado em que atua. Contudo, essa liberdade não pode ser utilizada como meio de dominar mercados, eliminar a concorrência ou aumentar arbitrariamente os lucros.
Ensina VENOSA (2010, p. 14/15) que “a conquista de mercado é um processo natural fundado na maior eficiência do agente econômico em relação aos seus competidores; qualquer tentativa de burlar o processo natural de conquista do mercado caracteriza infração à ordem econômica”. SALOMÃO FILHO (2010, p. 15) completa esse raciocínio ao afirmar que “quando a criação de poder no mercado decorre da eliminação dos concorrentes, há sem dúvida, comportamentos ilícitos caracterizadores da concorrência desleal ou de atuação tendente à dominação do mercado”. Assim, para a proteção da livre concorrência entre os empresários o legislador promulgou a Lei 8884/94, estabelecendo as hipóteses de infração à ordem econômica.
Prosseguindo, a liberdade de contratar ou de negociar[10] consiste em ninguém estar obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei; assim, a pessoa física ou jurídica têm o direito de definir a forma de cumprimento das obrigações pelos contratantes, de acordo com o que for melhor para o desenvolvimento da atividade empresarial e da efetiva entrega do bem ou da execução do serviço contratado. Contudo, cabe ao legislador intervir nessa liberdade, quando certas práticas forem consideradas nocivas ou abusivas, de forma a proteger a ordem econômica, determinando padrões a serem observados na prática de determinados atos ou expressar a sua proibição.
Na função social da empresa se expressa o seu dever de exercer suas atividades empresarias para a produção e circulação de bens ou a prestação de serviços não somente para atender aos interesses dos titulares da empresa, com a obtenção do lucro e distribuição dos dividendos entre s sócios e acionistas, mas, também, à sociedade, já que a empresa se torna um meio de cumprimento dos direitos sociais constitucionalmente estabelecidos (art. 6.º da Constituição Federal). E a preservação da empresa é um desdobramento do princípio da sua função social, mas não significa um impedimento ao encerramento das atividades empresariais (arts. 974 e 1033 do Código Civil). Recomenda-se, sobretudo, a manutenção das suas atividades, após o estudo do impacto que tal pretensão vai causar na sociedade. Na hipótese da análise do quadro geral (riscos ao meio ambiente, desemprego, redução de negócios, continuidade jurídica / a licitude do objeto social, etc.) trazer resultados em sua maioria negativos em comparação com os benefícios existentes, independente do impacto social que advier, o melhor é não manter as atividades, pois em alguns casos os custos econômicos e jurídicos para a manutenção são tão elevados que não compensam o investimento.
Destarte, a autonomia patrimonial é um dos elementos que surgem quando da constituição de uma pessoa jurídica. Tem suma importância nesta monografia uma vez que é exatamente esse princípio que é superado quando ocorre a aplicação da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Por este princípio decorre que a pessoa jurídica ao ser constituída possui capacidade, personalidade jurídica e patrimônio jurídico próprio independente dos seus membros, sendo ela titular de direitos e de obrigações. Assim, os sócios ou acionistas, em regra, não respondem pelas obrigações sociais.
“Da definição de sociedade empresária como pessoa jurídica derivam consequências precisas, relacionadas com a atribuição de direitos e obrigações ao sujeito de direito nela encerrado. Em outros termos, na medida em que a lei estabelece a separação entre pessoa jurídica e os membros que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações relacionados ao exercício da atividade econômica explorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e a devedora dessas obrigações” (COELHO, 2006, p. 14).
Assim, se a sociedade empresária é a devedora, então é o patrimônio desta que responderá pelo adimplemento das obrigações (art. 391 do Código Civil) e não os seus sócios. Somente em ocasiões especiais é que se autoriza a execução do patrimônio pessoal do sócio em busca da satisfação do crédito como será avaliado oportunamente.
2.2 Do Conceito de Empresa e Empresário
O direito de empresa é orientado pelos princípios constitucionais da atividade econômica e protegido pelo atual Código Civil. Mas o que é empresa?
A definição de empresa é econômica e incumbe ao mundo jurídico o exame dos seus elementos e das relações, que podem advir dessa reciprocidade. Giuseppi Ferri conceitua empresa na visão econômica:
“A produção de bens e serviços para o mercado não é a consequência de atividade acidental ou improvisada, mas sim de atividade especializada e profissional, que se explica através de organismos econômicos permanentes nela predispostos. Estes organismos econômicos que se concretizam da organização dos fatores de produção e que se propõe à satisfação das necessidades alheias e, mais precisamente, das exigências do mercado geral” (REQUIÃO, 2000, p. 47).
Contudo, a definição social de empresa apresentada por REQUIÃO (2000, p. 62) é mais objetiva e abrangente para análise dos elementos constitutivos do direito de empresa na esfera jurídica:
“Exercício de uma atividade organizada, destinada à produção ou circulação de bens ou de serviços, na qual se refletem expressivos interesses coletivos, (…), um produtor impulsionado pela persecução de lucro, é verdade, mas consciente de que constitui uma peça importante no mecanismo da sociedade humana”.
O empresário é aquele que explora com habitualidade a atividade, por meio de atos interligados e coordenados e reúne os quatro fatores da produção (capital, mão de obra, tecnologia e insumos) produzindo bens e serviços com o objetivo de remunerar o capital investido[11].
“Assim, o empresário se vale do trabalho de outras pessoas, capitaliza-se com recursos próprios ou de terceiros e com esse capital e trabalho busca um fim produtivo, com intuito de lucro. Sem essa organização a atividade econômica não será considerada profissional e, portanto, não será abrangida pelo direito empresarial” (VENOSA, 2010, p. 19).
Pode o empresário ser individual ou uma sociedade empresária, de origem rural ou urbana, desde que invista um capital na aquisição de bens materiais ou imateriais, organizando-os para realizar o objeto social, por meio de diversos atos contínuos, habituais e coordenados para a produção e circulação de bens ou prestação de serviços, com o escopo de auferir lucro e, por consequência, o reconhecimento do seu nome empresarial e de sua marca perante os consumidores e empresas que atuam no mesmo ramo de atividade.
O empresário individual exerce a atividade empresarial e responde diretamente pelas obrigações que assumir com o seu patrimônio particular; enquanto que a sociedade empresária é uma pessoa jurídica, cuja existência, personalidade e patrimônio são distintos de seus membros e responde em seu nome pelas obrigações assumidas. Esta é basicamente a diferença entre as espécies de empresário.
O legislador nos arts. 45 e 985 do Código Civil expressamente estabeleceu que a personalidade jurídica da sociedade empresária é adquirida somente após a sua “inscrição, no registro próprio e na forma da lei os seus atos constitutivos”. A pessoa que pretende exercer a atividade empresária deve se inscrever perante o Registro Público de Empresas Mercantis[12], apresentando os documentos que demonstrem o cumprimento das exigências legais. Com o deferimento do pedido, procede-se ao arquivamento dos atos constitutivos da empresa e declaram-se válidos e eficazes os atos jurídicos a partir desta data.
Oportuno esclarecer que a sociedade empresária encerra suas atividades por meio do procedimento dissolutório, que deve ser cumprido em três fases: dissolução, liquidação e partilha. E quando não há o atendimento aos requisitos deste procedimento oportuniza-se aos credores a possibilidade de responsabilizar (i) o ente coletivo mesmo após o encerramento de suas atividades (de forma irregular e fraudulenta), assim como, (ii) os sócios pela inobservância aos ditames legais.
A sociedade empresária, a partir do momento em que registra o seu ato constitutivo no órgão competente, adquire existência, personalidade jurídica e autonomia patrimonial, distintas de seus sócios, uma vez que é sujeito de direitos e deveres. Em decorrência dessa personalização a responsabilidade dos sócios é subsidiária, ou seja, somente após esgotar os bens sociais, seus bens poderão ser demandados, o que se denomina de benefício de ordem.
Ensina Fabio Ulhôa Coelho que no direito brasileiro não existe responsabilidade solidária entre empresa e sócios, mas, somente entre os sócios, quando da pendência da integralização do capital social. Contudo, na hipótese de sociedade irregular o sócio responde diretamente pelas obrigações sociais (art. 990 do Código Civil).
Os sócios podem responder de forma limitada ou ilimitada, podendo ser classificados em três critérios: “(a) responsabilidade ilimitada, se todos os sócios respondem pelas obrigações sociais ilimitadamente (sociedade em nome coletivo); (b) responsabilidade mista, quando apenas parte dos sócios responde de forma ilimitada (sociedade em comandita simples ou por ações); (c) responsabilidade limitada, em que todos os sócios respondem de forma limitada pelas obrigações sociais (sociedade por quotas de responsabilidade limitada e anônima)” (COELHO, 2002, p. 28).
3. DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE DA PESSOA JURÍDICA
A sociedade empresária após o registro adquire existência, personalidade jurídica e patrimônio jurídico distinto dos seus sócios. Em razão do princípio da autonomia patrimonial, a pessoa jurídica é titular de direitos e responde pelas obrigações com o seu próprio patrimônio. Contudo, existem hipóteses em que a limitação de responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais pode ser ignorada, sendo o seu patrimônio pessoal utilizado para o cumprimento das obrigações empresariais. Trata-se da hipótese em que “as sociedades empresárias podem ser utilizadas como instrumento para a realização de fraude contra credores ou mesmo abuso de direito” (COELHO, 2002, p. 31). Trata-se do instituto da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica ou disregard doctrine, que passamos agora ao estudo dos seus aspectos.
3.1 Conceito
A desconsideração de personalidade jurídica foi conceituada por diversos juristas como uma forma de inibir o desvio de finalidade da pessoa jurídica praticado pelos sócios e/ou administradores, que a utiliza para a prática de atos abusivos ou fraudulentos. Assim, diante dos fatos que caracterizem a aplicação do instituto, tem-se por consequência o levantamento do véu corporativo e a inaplicabilidade pontual do princípio da separação patrimonial, devendo aquele responder pessoalmente pelos resultados decorrentes dos atos prejudiciais a terceiros.
Portanto, consiste em “uma técnica casuística e, portanto, de construção pretoriana, de solução de desvios da função da pessoa jurídica, quando o juiz se vê diante de situações em que prestigiar a autonomia e a limitação de responsabilidade da pessoa jurídica implicaria sacrificar um interesse que ele reputa legítimo” (GRINOVER, 2004, p. 5/6).
MAMEDE (2009, p. 245) ensina que “é uma hipótese excepcional na qual se permite superar a distinção entre a personalidade da pessoa jurídica e a personalidade dos sócios, associados ou administradores. Assim, desconsidera-se a personalidade da pessoa jurídica da companhia para identificar o(s) ato(s) daquele(s) que, usando aquela personalidade de forma ilícita ou fraudatória, determinaram o prejuízo. A partir da desconsideração será possível responsabilizá-los pessoalmente”.
Nesta esteira, COELHO (2002, p. 42.) afirma que “cabe invocar a teoria quando a consideração da sociedade empresária implica em ilicitude dos atos praticados, exsurgindo a ilicitude apenas em seguida a desconsideração da personalidade jurídica dela. Somente nesse caso se opera a ocultação da fraude e, portanto, justifica-se afastar a autonomia patrimonial, exatamente para revelar o oculto por trás do véu da pessoa jurídica”.
E, por fim, elucida REQUIÃO (1969, pp. 12/24):
“O mais curioso é que a disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo todavia a mesma incólume para seus outros fins legítimos. Ora, a doutrina da desconsideração nega precisamente o absolutismo do direito da personalidade jurídica. Desestima a doutrina esse absolutismo, perscruta através do véu que a encobre, penetra em seu âmago, para indagar de certos atos dos sócios ou do destino de certos bens. Apresenta-se, por conseguinte, a concessão da personalidade jurídica com um significado ou um efeito relativo, e não absoluto, permitindo a legitima penetração inquiridora em seu âmago. […] O que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude)”.
Desse modo, definido está que a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica é instituto de exceção em que somente deve ser aplicado, quando a manutenção de personalidade da sociedade empresária vier a ser um empecilho para se apurar quem praticou os ilícitos e responsabilizá-los.
3.2 Histórico
A desconsideração da personalidade jurídica desenvolveu-se nos países da Common Law. Nos Estados Unidos – afirma-se que em 1809 – no caso Bank of United States vs. Deveaux foi aplicada a teoria pela primeira vez; contudo, não se tratava de um caso que envolvesse propriamente a questão da desconsideração ou que envolvesse a questão da responsabilidade e autonomia patrimonial, mas apenas a definição de um conflito de competência, que resultou fixada após analisar a naturalidade dos acionistas do banco, desconsiderando-se o lugar onde efetivamente o banco havia sido constituído.
Na Inglaterra, em 1897, o caso Salomon vs. Salomon efetivamente repercutiu a primeira aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Neste caso, Aaron Salomon comerciante individual decidiu constituir uma limited company (No Brasil, uma espécie de sociedade anônima fechada), oportunidade em que transferiu o seu fundo de comércio para a sociedade recém-constituída. A sociedade foi constituída por Aaron (titular de 20 mil ações) e seis membros de sua família, tendo cada um a titularidade de uma (1) ação, além de ter recebido diversas garantias, tornando-se credor privilegiado. Após um ano a sociedade entrou em liquidação em razão da inviabilidade das suas atividades. O liquidante na pretensão de indenizar os credores, afirmou que a companhia era atividade pessoal de Aaron, uma vez que os outros sócios eram fictícios. Em primeira instância, o pedido do liquidante foi acolhido, desconsiderando-se a personalidade jurídica da companhia, impondo a Aaron a responsabilidade pelos débitos sociais, mas a decisão foi reformada pela Corte de Apelação, prestigiando-se a autonomia patrimonial da sociedade.
Muito embora o princípio da autonomia tenha sido privilegiado neste caso, é importante destacar que foi a partir dele que surgiram as hipóteses de aplicação do afastamento destes princípios ao se configurar a prática de fraudes e abuso de direito, utilizando-se a pessoa jurídica.
3.3 Teorias
A desconsideração da personalidade jurídica no Brasil está baseada em duas teorias distintas, denominadas (i) maior e (ii) menor.
A teoria maior é mais completa e elaborada, porque efetivamente estabelece a aplicação da desconsideração na hipótese de fraude a credores ou abuso de direito da pessoa jurídica. Nessa teoria pretende-se ignorar a autonomia patrimonial, quando for eficaz para coibir a prática de ilícitos.
“A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova da insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração) ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração). Já a teoria da menor desconsideração, acolhida no §5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, permite a desconsideração da personalidade jurídica com a mera prova da insolvência da pessoa jurídica em detrimento do consumidor. Neste caso, a simples prova da insolvência da pessoa jurídica já justifica o obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados ao consumidor, o que autoriza a desconsideração. (Agravo de Instrumento 0419658-3 – Tribunal de Justiça do Paraná)”.
A teoria Menor trata da aplicação da desconsideração na hipótese de insolvência social e de solvência do sócio; essa simples demonstração já é suficiente para que este seja responsabilizado pelo adimplemento da obrigação societária. COELHO (2002, p. 46) denomina esta teoria de “crise da autonomia patrimonial”, uma vez que não se procura apurar a ocorrência de fraude ou abuso de direito, mas fundamenta-se, apenas e tão somente na insolvência social. Assim, conclui-se que a teoria menor ficou restrita à proteção de “bens jurídicos de patente relevo social e inequívoco interesse público”[13] e, por isso, foi recepcionada pelo Código de Defesa do Consumidor, Código Nacional Tributário, Consolidação das Leis do Trabalho e Lei de Concorrência. Todavia, ao se analisar o caso concreto, constata-se que este não é o único critério que enseja a responsabilidade patrimonial de pessoas (físicas ou jurídicas) relacionadas com o abuso da personalidade do entre corporativo.
Por oportuno, ressalte-se que a legislação pátria recepcionou as duas teorias, e ambas têm sido aplicadas. Contudo, há que se ter em mente que a desconsideração “é medida excepcional que reclama atendimento de pressupostos específicos relacionados com a fraude ou o abuso de direito em prejuízo de terceiros, o que deve ser demonstrado sob o crivo do devido processo legal”[14].
3.4 Fundamentos Legais Brasileiros
O legislador acolheu a teoria da desconsideração de personalidade da pessoa jurídica em leis específicas, na esfera do direito privado ou público, como apresentado a seguir.
3.4.1 Direito do Consumidor
No Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28, caput e § 5.º[15], estabeleceu-se a hipótese de afastamento da autonomia patrimonial do fornecedor.
O abuso de direito é configurado quando ao exercer um direito a sociedade empresária excede os limites da sua finalidade, ou seja, flagrante desequilíbrio de interesses. O excesso de poder ocorre quando se pratica atos em nome da pessoa jurídica fora da sua competência para tanto. O ato ilícito é a ação do fornecedor que acarreta prejuízos ao consumidor. A má administração consiste no fato de que o fornecedor deve exercer sua atividade com profissionalismo na apresentação de bens ou serviços ao consumidor, e a falta desta qualidade enseja o dever de indenizar pela sua imperícia. Os obstáculos ao ressarcimento dos prejuízos causados ao consumidor não devem ser interpretados como um modo de indenizar o consumidor a qualquer custo, sendo necessário demonstrar que o fato é suficiente para permitir a desconsideração. Contudo, a exegese deste parágrafo tem causado polêmica.
Fabio Ulhoa Coelho ensina que para aplicação do §5.º do art. 28 do Código do Consumidor, deve-se ter em mente a inibição de práticas fraudulentas e abuso de direito (teoria maior) e não simplesmente a abertura de uma hipótese tão abrangente para afastar a autonomia patrimonial da sociedade empresária, que acarretaria a perda de sua eficácia, por não se apresentar expressamente os motivos que fundamentam e autorizam o pedido. Caso contrário, não seria mais objetivo o legislador incluir um dispositivo expresso do que criar “atalhos” por meio da desconsideração? E arremata ao afirmar que é “pertinente apenas às sanções impostas ao empresário por descumprimento de norma protetiva dos consumidores de caráter não pecuniário. Por exemplo, a proibição de fabricação de produto e a suspensão temporária da atividade ou fornecimento” (COELHO, 2002, p. 52).
3.4.2 Direito da Concorrência
A segunda referência legislativa sobre a desconsideração da personalidade jurídica está disposta na Lei Antitruste, em seu art. 18[16], que reproduziu a permissão estabelecida na lei protetiva ao consumidor.
MAMEDE (2007, p. 51) leciona que o dispositivo trata “da proteção à livre concorrência, na expressão do artigo 170, IV, da Constituição Federal, o que justificou a edição da Lei 8.884/94, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico, esclarecendo o parágrafo único de seu artigo 1.º que a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por aquela lei”.
Assim, a pretensão de proteção ao direito à livre conquista de mercado deve passar pelo processo natural, resultando em maior eficiência na aplicação dos meios de produção. Por essa razão, o princípio da livre concorrência despertou no legislador não só a previsão de fatos que pudessem incidir na infração à ordem econômica, como também a forma de coibir a sua prática.
3.4.3 Direito Ambiental
O instituto da desconsideração de personalidade de pessoa jurídica foi também inserido na legislação do Direito Ambiental no art. 4.º da Lei Federal 9.605/1998[17], tendo por base a redação do Código de Defesa do Consumidor.
Diante da questão ambiental, Fabio Ulhoa Coelho leciona que nesta hipótese de danos causados ao meio ambiente não há como impedir a responsabilização dos sócios e, portanto, a desconsideração da personalidade jurídica consiste em um meio eficaz para afastar a autonomia patrimonial da sociedade para a devida indenização.
E ressalta, ainda, que na hipótese dos controladores da sociedade responsável pelo dano ambiental intentar a criação de nova empresa, será possível que o pagamento da indenização seja direcionado para ambas empresas:
“Se determinada sociedade empresária provocar sério dano ambiental, mas, para tentar escapar à responsabilidade, os seus controladores tentarem constituírem nova sociedade, com sede, recursos e pessoal diversos, na qual passem a concentrar seus esforços e investimentos, deixando a primeira minguar paulatinamente, será possível por meio da desconsideração das autonomias patrimoniais, a execução do crédito ressarcitório no patrimônio das duas sociedades” (COELHO, 2002, p. 53).
3.4.4 Direito do Trabalho
No direito do trabalho, considerando que o crédito ali perseguido tem natureza alimentar, os magistrados ao se depararem com a situação de não cumprimento voluntário da decisão judicial, aplicam o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, afastando-se a autonomia patrimonial da sociedade e inserindo os sócios como responsáveis pelo cumprimento da obrigação.
Ensina VENOSA (2009, p. 281) que o § 2.º do art. 2.º[18] da Consolidação das Leis do Trabalho é uma “franca aplicação do princípio da desconsideração em prol de maior proteção ao trabalhador”:
E no mesmo raciocínio segue OLIVEIRA (1995, p. 201): “Não se compadece com a índole do direito obreiro a perspectiva de ficarem os créditos trabalhistas a descoberto, enquanto os sócios, a final os beneficiários diretos do resultado do labor dos empregados da sociedade, livram os seus bens pessoais da execução, a pretexto de que os patrimônios são separados. Que permaneçam separados para os efeitos comerciais, compreende-se; já para os fins fiscais, assim não entende a lei; não se deve permitir, outrossim, no Direito do Trabalho, para a completa e adequada proteção dos empregados”.
A aplicação da desconsideração nesta hipótese tem seu fundamento na teoria menor e independe de prova de fraude, desvio de finalidade ou abuso de direito, justificando-se apenas “pela afirmação de que os créditos trabalhistas não podem ficar a descoberto” MAMEDE (2007, p. 248).
3.4.5 Direito Tributário
A desconsideração na esfera tributária deve observar o princípio da legalidade, pois o “tributo não encontra fundamento nem na noção de ilicitude nem na idéia de comutatividade. Aquele que está obrigado ao pagamento da prestação tributária encontra-se em tal situação jurídica por exclusiva decorrência de ser portador de riqueza, em última análise” (JUSTEN FILHO, 1987, p. 107).
O art. 135, inciso III, do Código Nacional Tributário[19] estabelece a responsabilidade pelas obrigações tributárias aos diretores, gerentes ou representantes que atuarem com excesso de poder ou infringindo a lei ou o contrato social, ou seja, somente o sócio gerente poderá ser responsável pelas obrigações tributárias, pois suas ações geram responsabilidades.
Explica MACHADO (2004, p. 155) que a responsabilidade surge pela “condição de administrador de bens alheios. Por isso a lei fala em diretores, gerentes ou representantes. (…) Não basta ser diretor, gerente ou representante. É preciso que o débito tributário em questão resulte de ato praticado com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto”.
Por oportuno, destaque-se que somente é possível a aplicação do instituto da desconsideração nas hipóteses estabelecidas no art. 60 do Decreto-Lei 1.598/77 e modificado pelo Decreto-Lei 2.065/83[20].
Importante são as considerações de HOFFMANN (2002) sobre as comparações entre os institutos da responsabilidade por substituição e a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:
“A comparação (analogia) que se faz entre o artigo 135 do CTN e a disregard doctrine é que em ambos os casos a pessoa jurídica, através de seu controlador, é utilizada com dolo, má-fé, para fins diversos dos estabelecidos no estatuto social, ou nas leis vigentes. E, nestas mesmas situações, o responsável pela utilização “fraudulenta” da empresa responderá pelos danos causados. A diferença existente é que em um caso há a incidência de norma de responsabilidade tributária por substituição e em outro caso há a desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica para atingir os bens dos sócios”.
Deste modo, conclui-se que a responsabilidade (por substituição) dos sócios decorre de expressa previsão legal (art. 135 do Código Tributário Nacional), desde que atue com excesso de poder ou infração à lei ou ao contrato, de modo que o instituto da desconsideração jurídica na esfera tributária somente pode ser aplicado quando houver autorização legal expressa, ou seja, nas hipóteses de distribuição disfarçada de lucros aos controladores. Tratando-se de institutos distintos, mas na prática é aplicado como sinônimos.
3.4.6 Direito Civil
O Código Civil, em seu art. 50[21], elencou as hipóteses na qual a autonomia patrimonial da pessoa jurídica poderá ser afastada. Recepcionou, portanto, a teoria maior com o objetivo de exigir que a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica seja aplicada quando cumuladas a comprovação da insolvência da pessoa jurídica e o desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Assim, a possibilidade de aplicação deste instituto deve ser observada a situação caso-a-caso, tendo por fundamento o princípio da boa-fé objetiva inerente a todos os negócios jurídicos, segundo Silvio de Salvo Venosa. E na hipótese de desconsideração, para cumprimento de obrigações, deverá ser considerado tanto o patrimônio pessoal dos sócios como outras pessoas jurídicas na qual detenha o controle acionário.
3.5 Espécies
A desconsideração da personalidade jurídica pode ser efetivada de três maneiras como exposto a seguir.
Na espécie direta, decorre da prática de ato fraudulento ou abuso de direito em que se pretende o afastamento da autonomia patrimonial para atingir aquele que efetivamente praticou o ato lesivo e ilegal. Entre as práticas mais comuns em que incide este instituto está no fato dos sócios fecharem de forma irregular o estabelecimento, sem deixar qualquer vestígio para a sua localização e sem cumprir as obrigações.
Na indireta, também decorre da prática de fraude ou abuso de direito; contudo, para a aplicação desta hipótese, é preciso a análise mais atenta para estabelecer os atos de cada agente, bem como os limites e os efeitos da responsabilidade especificamente, haja vista que o ilícito pode ter origem na ação de fraudadores externos (pessoas físicas e pessoas jurídicas).
E na forma inversa, é aplicada quando a fraude perpetrada incide na pessoa do sócio, que tenta se utilizar da proteção à autonomia patrimonial da pessoa jurídica e transfere para esta os seus bens pessoais no intuito de prejudicar terceiros, mas continua a usufruir deles como se pessoais ainda fossem, impossibilitando que os credores o acionem pelas dívidas contraídas em seu nome. Desse modo, a desconsideração busca responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações dos sócios.
3.6 Aspectos Materiais
O instituto deve ser analisado sob os prismas objetivos e subjetivos. No critério objetivo aprecia-se o dano em si; já o critério subjetivo tem por objeto a conduta do agente, a sua intenção quando da prática do ato, utilizando por base os fundamentos caracterizadores do desvio de finalidade[22] da pessoa jurídica, que está intimamente relacionada à fraude aos credores ou ao abuso de direito.
Nas transações comerciais espera-se que no curso das relações entabuladas, as partes contratantes ajam com boa-fé (objetiva). No caso do devedor, que este mantenha o seu patrimônio em montante suficiente para o adimplemento da obrigação contraída que, por vezes, deixa de exigir uma garantia real ou especial. A fraude a credores surge no momento em que o devedor passa a se desfazer, indevida e ilegalmente, do seu patrimônio, que consistia em garantia para o credor satisfazer o seu crédito.
VENOSA (2010, p. 155) ensina que a fraude a credores “se caracteriza por meios que iludem a lei por via indireta, sem que ocorra forma ostensiva”, isto é, são atos que praticados levam o devedor a insolvência. A lei estabelece os requisitos legais para a sua caracterização:
(i) anterioridade do crédito é um requisito lógico, pois por meio dele será possível configurar quando o débito foi contraído; a existência de bens para a sua satisfação nesta oportunidade e, consequentemente, a demonstração da violação do direito creditório, com o desfazimento dos bens a ponto da insolvência.
(ii) eventus damni a demonstração da fraude a credores exige a configuração de dano/prejuízo ao credor, ou seja, é a demonstração de que a alienação, a transferência, a remissão da dívida ou a sub-rogação (etc.) foram causa determinante para a insolvência do devedor.
(iii) consilium fraudis é requisito que exige a demonstração de conluio entre o devedor e o adquirente de seus bens, de forma a acarretar a insolvência daquele; ressalte-se que a “notoriedade e a ciência da insolvência pelo outro contratante dependem, exclusivamente, do caso concreto, podendo, no entanto, ser traçadas balizas para essa prova, mas nunca de forma inflexível”[23], pois a venda de um bem, em alguns casos, “é o meio procurado pelo devedor para obter fundos com que manter o seu crédito e desembaraçar-se da má situação que considera passageira” (AMERICANO, 1932, p. 56).
“A teoria da desconsideração assegura que a estrutura da sociedade com responsabilidade limitada pode ser desconsiderada apenas no caso concreto, atingindo-se a personalidade jurídica do sócio, tanto pessoa natural quanto pessoa jurídica, responsabilizando-o pela fraude e pelo abuso de direito, bem como nos casos em que ele se esconde atrás da personalidade jurídica da sociedade para evitar obrigação existente, tirar vantagem da lei, alcançar ou perpetrar monopólio, ou proteger desonestidade ou crime. A ideia da busca da justiça é fator preponderante para a aplicação da teoria. A fraude deve ser entendida como dolo, erro, simulação e fraude contra credores. O abuso de direito é a utilização da pessoa jurídica de maneira contrária ao fundamento que o criou ou o reconheceu. Abuso de direito é o uso excessivo ou impróprio da pessoa jurídica em benefício dos sócios” (SILVA, 2000, p. 58).
O abuso de direito aparenta-se a um ato legítimo, mas que por de trás apresenta ilegalidades, ou seja, “é ato contrário ao direito e ocasiona responsabilidade do agente pelos danos causados” (VENOSA, 2010, p. 535). Para a sua configuração, o foco deve ser o desvio de finalidade do direito exercido. O “exercício anormal do direito é abusivo. A consciência pública reprova o exercício do direito do indivíduo, quando contrário ao destino econômico e social do direito em geral” (BEVILACQUA, 1916. p. 473).
A intenção do agente (aspecto subjetivo) não deve ser rechaçado totalmente, contudo, a análise do caso concreto da desconsideração da personalidade jurídica deve se concentrar, principalmente, nos aspectos objetivos da fraude praticada ou do abuso de direito cometido (o dano cometido):
“A formulação dos critérios para a fixação do alcance do ato abusivo de direito. Uma, de caráter subjetivo, onde se teria que buscar a intenção do titular do direito; outra, de caráter objetivo, em que se bastaria examinar o ato, dito abusivo, e as consequências dele defluentes, para se concluir se houve ou não exercício irregular do direito. Dentro da concepção, o ato só seria abusivo quando o inspirasse a mera intenção de prejudicar a terceiro, ou fosse exercido sem qualquer interesse por seu autor. […] De acordo com o critério objetivo, não há por que indagar a intenção do agente, bastando examinar o dano em si. […] A concepção objetiva atingiu seu auge com Josserand, em sua célebre monografia sobre o assunto. Haverá abuso de direito, segundo esse autor, quando o seu titular o utiliza em desacordo com a finalidade social para a qual os direitos subjetivos foram concedidos” (COELHO, 1989, p. 58/59).
Desse modo, o ato ilícito (fraude, abuso de direito, desvio de finalidade) é configurado e justifica a desconsideração quando a responsabilidade da pessoa jurídica é imputada à pessoa física que efetivamente manipulou o princípio da autonomia patrimonial.
3.7 Aspectos Processuais
A desconsideração da personalidade jurídica não constitui a extinção da sociedade empresária, mas apenas o afastamento pontual do princípio da autonomia patrimonial de forma que os sócios ou administradores, excepcionalmente, respondam pelas obrigações societárias nos processos em que efetivamente houver autorização judicial.
Assim, a disregard doctrine tem sua aplicação quando há conjunção dos fundamentos materiais (art. 50 do Código Civil e os demais preceitos legais esparsos) ao fundamento processual (art. 795 do Código de Processo Civil 2015), que representam a autorização para a responsabilização patrimonial dos sócios pelas obrigações da sociedade em decorrência da prática de abusos.
A instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica pode ser requerida pela parte interessada ou pelo Ministério Público e tem cabimento em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial (art. 134 do Código de Processo Civil 2015), desde que justificado o seu pedido pela parte interessada no benefício e sua concessão seja devidamente fundamentada e em consonância com os pressupostos legais (art. 134, § 4.º c/ c art. 93, inciso IX da Constituição Federal).
A decisão concessiva deve ser fundamentada (art. 93, inciso IX da Constituição Federal c/c art. 371 do Código de Processo Civil 2015), identificando “aquele ou aqueles que suportarão os efeitos da obrigação em face da desconsideração da personalidade jurídica, bem como apresentar as razões de fato e de direito que sustentam tal reconhecimento” (MAMEDE, 2009. p. 254).
O trâmite processual seguirá a forma estabelecida nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil 2015, qual seja: (i) a instauração do incidente, observando-se os pressupostos previstos em lei; salvo se o pedido for feito na petição inicial; (ii) a demonstração de preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica; (iii) a citação do sócio ou da pessoa jurídica para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo legal de 15 (quinze) dias. Verifica-se, portanto, que embora de tramite simples, o incidente segue o estabelecido no art. 5.º, incisos LIV e LV da Constituição Federal, assegurando àqueles a aplicação dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
A inclusão de forma incidental ao processo trata-se de observância aos princípios da economia processual e instrumentalidade das formas[24]. Ao ser concluída a fase instrutória, o incidente será resolvido por decisão interlocutória. E se o pedido do requerente for acolhido, a alienação ou a oneração de bens, havidas em fraude de execução, serão ineficazes em relação ao requerente (art. 137 do Código de Processo Civil 2015).
Para finalizar os óbices existentes ao deferimento da desconsideração da pessoa jurídica, há que se esclarecer que a sua concessão não fere os limites subjetivos da coisa julgada. Explica-se. O art. 506 do Código de Processo Civil 2015 estabelece que “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”, isto quer dizer que:
“Deve ser distinguida a eficácia natural da sentença da autoridade da coisa julgada. Para o grande processualista, na verdade a coisa julgada não é efeito da sentença, mas sim uma qualidade especial da sentença, que, em determinada circunstância, a torna imutável. Dentro dessa ordem de idéias, esclarece Liebman: (a) a eficácia natural vale para todos (como qualquer ato jurídico); mas (b) a autoridade da coisa julgada atua somente para as partes” (THEODORO JR., 2009, p. 547).
A imutabilidade da sentença somente vincula as partes que participaram da relação jurídica processual. Todavia, terceiros podem vir a suportar os efeitos reflexos da decisão, tendo o direito de impugná-la quando esta lhe causar prejuízo. Esta é exatamente a hipótese em que os sócios são responsabilizados pelas obrigações sociais por uso indevido da pessoa jurídica. Trata-se, portanto, da responsabilidade patrimonial secundária[25] estabelecida nos arts. 790, inciso VII e 795, § 4.º do Código de Processo Civil 2015.
“Não se está desconstituindo provimento de mérito, mas construindo-se a relação processual executiva, mediante a apreciação dos critérios de sujeição patrimonial ao cumprimento da obrigação oriunda da ação de indenização. Segundo, porque a responsabilidade patrimonial pode recair sobre terceiro, desde que haja previsão legal, independentemente desse terceiro haver participado do processo de conhecimento”[26].
Por fim, esclarece THEODORO JR. (1997, p. 198) que “a obrigação, como dívida, é objeto do direito material. A responsabilidade, como sujeição dos bens do devedor à sanção, que atua pela submissão à expropriação executiva, é uma noção absolutamente processual”.
4. Da Aplicação nos Tribunais Brasileiros
A desconsideração da personalidade jurídica no sistema legislativo pátrio tem sua aplicação sob o enfoque dos critérios doutrinários e jurisprudenciais estabelecidos na Teoria Maior e Teoria Menor. Como visto, a teoria maior condiciona o afastamento da autonomia patrimonial do ente corporativo, de forma a coibir o desvirtuamento da finalidade da pessoa jurídica (pressuposto objetivo); e a teoria menor estabelece como critério para a desconsideração a caracterização da insolvência da sociedade para o cumprimento de suas obrigações e somada a demonstração da existência de patrimônio pessoal dos sócios para que a este seja imputada a obrigação de adimplemento do crédito pretendido.
A observância dos pressupostos subjetivos e objetivos no caso concreto se faz necessária, uma vez que o legislador orientou a sua aplicação sem no entanto, indicar as hipóteses de forma taxativa ou pelo menos exemplificativas. O pressuposto subjetivo leva em consideração a intenção e os atos dos sócios e dos administradores no intuito de frustrar a pretensão do credor, para a aplicação do levantamento do véu corporativo. Segundo estabelece o art. 373 do Código de Processo Civil (2015)[27], que incumbe o ônus da prova a quem alega o fato que venha a constituir o seu direito. Contudo, a demonstração das intenções subjetivas do devedor é prova demasiadamente difícil de ser produzida, e em razão desta complexidade a doutrina estabeleceu alguns critérios baseados na inversão do ônus probatório e em presunções relativas (COELHO, 2002, p. 43). É neste cenário que surge o pressuposto objetivo com o escopo de facilitar a constituição da prova em juízo, vinculando-se a desconsideração à confusão patrimonial, ao desrespeito à espécie societária ou ao desaparecimento do objeto social, segundo análise de COMPARATO (1977, p.283).
4.1 Desvio de Finalidade, Abuso de Direito e Fraude a Credores
O desvio de finalidade e o abuso de direito são formulações subjetivas da disregard doctrine, seguindo a orientação da teoria maior. Trata-se de requisitos em que objeto de análise é a pessoa dos responsáveis pela manipulação da pessoa jurídica, seja com o objetivo de burlar a lei ou lesar interesse de terceiros. E, diante da dificuldade na constituição da prova baseada apenas na intenção do sócio ou administrador, a doutrina e a jurisprudência passaram a cumular critérios objetivos para facilitar a proteção dos direitos, bem como evitar ofensas a lei e aos contratos ou estatutos sociais.
Considerando-se que as modalidades de fraudes e abusos são múltiplas e suas formas de execução estão cada dia mais diversificada, complexas e estratégicas, o que impossibilita a sua enumeração taxativa em lei, criou-se parâmetros a serem aplicados caso a caso para configurar a hipótese de sacrifício da autonomia patrimonial da sociedade empresária, tais como: a ofensa a boa-fé objetiva, a caracterização de confusão patrimonial, desvio de finalidade, desaparecimento do objeto social, empregos de meios ardis e fraudulentos para obstar a satisfação do crédito, dissolução irregular de sociedade, provocação do encerramento das atividades da pessoa jurídica e outras situações semelhantes em que se constata a intenção de violar a lei.
A desconsideração foi aplicada em caráter excepcional na situação apresentada no Agravo de Instrumento n.º 0504284-48.2010.8.26.0000[28] em razão da configuração do abuso de direito do devedor ao impedir, por meios ardilosos e fraudulentos, o andamento da execução de título extrajudicial e a satisfação do crédito:
“A nomeação de administrador judicial decorre da determinação deste Tribunal ad quem para a garantia da penhora sobre o faturamento da executada, questão também já decidida. No entanto, conforme relato copiado as fls. 1098/1099 (1007/1008 dos originais) ficou constatado que a executada movimenta: “valores milionários e se esquiva de informar onde efetua essa movimentação, sendo certo que a mesma esta utilizando-se de interpostas pessoas para fazer a sua movimentação financeira, como bem se vê nas tentativas infrutíferas de penhora on-line, o que demonstra a sua intenção de se opor maliciosamente à execução, empregando ardis e meios fraudulentos”.
Em situação apreciada nos autos do Agravo de Instrumento n.º 0178537-72.2010.8.26.0000[29], verifica-se que o afastamento do véu corporativo foi necessário em razão da demonstrada intenção do sócio-administrador em lesar interesses de terceiros ao furtar-se a cumprir as obrigações. Constatou-se a insolvência da sociedade empresária somada a intenção de fraude a credores (movimentação bancária realizada por intermédio de terceiros estranhos ou aparentemente sem relação com a sociedade empresária); confusão patrimonial dos bens da sociedade e dos seus sócios (em razão da ausência de bens ativos em nome da empresa Agravada, muito embora essa se mantenha em atividade sem qualquer valor em caixa) e, finalmente, o desvio de finalidade da empresa (violação das regras dispostas no contrato social).
“No presente caso, está caracterizada relação comercial entre as partes, aplicando-se a disciplina civilista. Por essa disciplina, é necessária a conjunção do seguintes elementos: a insolvência do devedor; o abuso de personalidade, entendido como confusão patrimonial ou desvio de finalidade; e de requerimento da parte para que a personalidade jurídica seja desconsiderada. Há, nos autos, expresso requerimento da Agravante (fls. 624), bem como estão demonstrados o abuso de personalidade e a insolvência do devedor. A insolvência da Agravada se configurou com a infrutífera tentativa de penhora on-line de dinheiro depositado em contas bancárias dela própria (fls. 549/551) e da empresa Comafal Comércio, Empreendimentos e Participações S/A (fls. 616/617), controladora da Agravada, além de não ter sido indicado pela Agravada bem que pudesse ser penhorado. Comprovou-se o abuso de personalidade pelo fato de que a Agravada e a empresa que detém o seu controle acionário, mesmo tendo adquirido a maioria das ações da empresa Agravada, não possuem qualquer valor em caixa, apesar de continuarem em atividade, o que evidencia que as movimentações financeiras dessas empresas estão se dando por meio de contas bancárias de terceiros. A confusão patrimonial se observa quando não é possível separar o patrimônio do sócio do patrimônio da pessoa jurídica. No caso, a ausência de ativos financeiros em nome da empresa Agravada e da sua controladora confirma que a pessoa jurídica foi utilizada para fins diversos daqueles previstos em seus atos constitutivos e que seus bens se confundem com os de seus sócios, o que, a um só tempo, impossibilita o esgotamento prévio dos bens de titularidade daquela para posterior alcance do patrimônio destes e permite, a desconsideração da personalidade jurídica que, neste contexto, se revela oportuna”.
A desconsideração, em ambos os casos, atendeu aos requisitos do art. 50 do Código Civil e as orientações da teoria maior, ao demonstrar a análise dos fatos e indícios de caracterização da manipulação da pessoa jurídica, demonstrando que “não é infreqüente que a entidade assim criada se desvie da sua finalidade, para atingir fins excusos ou prejudicar terceiros. Não se esqueça que, apesar da pessoa jurídica ser distinta de seus membros, são estes que lhe dão vida e agem por ela” (VENOSA, 2009, p. 279).
4.2 Encerramento / Dissolução Irregular da Sociedade
O encerramento ou a dissolução irregular da sociedade para ensejar a desconsideração da personalidade da sociedade em relações de natureza civil ou comercial, também seguem as exigências do art. 50 do Código Civil e as orientações da teoria maior. Contudo, vejamos que mesmo tendo o mesmo fundamento para o pedido, as soluções para a responsabilização dos sócios ou administradores foi distinta.
Em análise do Agravo de Instrumento n.º 1.0024.03.181752-1/003[30], o juiz primevo indeferiu o pedido de desconsideração da personalidade por ausência dos requisitos para a sua concessão. Todavia, as informações e documentos constantes dos autos caracterizavam: o inadimplemento das obrigações, a insolvência da pessoa jurídica caracterizada pela ausência de bens e o fato de que a empresa não foi localizada no endereço existente nos arquivos da Junta Comercial e da Receita Federal, presumindo-se a dissolução irregular. Estes motivos fundamentaram a reforma da decisão com fundamento no art. 50 do Código Civil:
“In casu, apesar dos argumentos do douto julgador de primeiro grau, entendo ter a agravante demonstrado motivos suficientes a ensejar a aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica ao caso. Observa-se que a presente ação de execução foi ajuizada nos idos de 2003, contra a empresa CENTRAL PARK COMERCIO E SERVIÇOS S. A. e até hoje não chegou ao final, diante da impossibilidade de se localizar bens da devedora para garantir o pagamento do débito. Tentou-se de todas as formas penhorar bens e numerário da empresa devedora, sem sucesso, como se infere das certidões de fl.45, 51, 54v, 56. Além disso, a agravante informou a ocorrência da dissolução irregular da empresa/agravada, que sequer funcionava no endereço que consta na Alteração do Contrato Social, fl. 280/283-TJ e também dos arquivos da Junta Comercial e da Receita Federal, o que foi confirmado pela certidão de fl. 124.Ao que tudo indica, tem razão o agravante quando afirma a dissolução irregular da empresa, tendo ele apresentado provas cabais de que ela não mais existe. Tanto é assim que somente os sócios apresentaram resposta a este recurso, fl. 302. (…) In casu, comprovou o agravante que a empresa devedora não mais existe, há muitos anos, o que denota sua dissolução irregular para prejudicar credores. Diante disso, inequívoca a possibilidade de se desconsiderar a personalidade jurídica da empresa devedora, com o redirecionamento da execução para alcançar os bens dos seus sócios, o que me leva a reformar a r. decisão agravada”.
Na situação apreciada no Agravo de Instrumento n.º 0559934-80.2010.8.26.0000[31], o requerimento de desconsideração da personalidade fundamentou-se no encerramento irregular da empresa, que restou indeferido. Contudo, com base nos termos dos arts. 1052 e 1080[32] do Código Civil, em razão da dissolução irregular e diante da inexistência de bens que garantissem o cumprimento das dívidas sociais, redirecionou-se a execução contra o sócio-gerente, que foi incluído no pólo passivo da ação ao lado da sociedade, para responder com seus bens pessoais pelas obrigações empresariais, solidária e ilimitadamente, em razão de ofensa ao contrato social e/ou a legislação.
No caso em tela, o MM. Juiz a quo fundamentou a r. decisão na dissolução irregular da empresa e na inexistência de bens disponíveis para a garantia do débito exequendo, atestadas pelo insucesso de ordens judiciais pretéritas. Todavia, a experiência mostra que qualquer dos motivos apontados pelo Magistrado são passíveis de ocorrência independentemente de haver má-fé dos sócios na condução das pessoas jurídicas a qual sejam vinculados; razão por que, no caso concreto, caberia ao ora agravado, interessado na manutenção do decreto de desconsideração da personalidade jurídica da parte adversa, apresentar ao Colegiado competente para o julgamento deste agravo, com suas contrarrazões, elementos capazes de convencer os Julgadores da suposta perfídia, carente de cabal demonstração. O recorrido, porém, tão somente trouxe aos autos as cópias do Mandado de Penhora e Avaliação datado de 11/12/2009 (fls. 42), da Certidão do Oficial de Justiça acerca da inexistência de bens no local declinado (fls. 43) e de três listagens de processos distribuídos na Comarca de Campinas em desfavor da Construtora agravante e de seus sócios, José Antonio da Silveira e Sonia Inês Martinazzo da Silveira (fls. 44/49). Importante ressaltar, contudo, ser pessoal, solidária e ilimitada a responsabilidade do sócio-gerente de sociedade limitada dissolvida irregularmente isto é, sem a liquidação do passivo, quando este comete atos contrários à lei ou ao contrato social” .
Ensina Manoel Justino Bezerra Filho[33] que se a sociedade não tem condições de efetivar a baixa regular da sua inscrição na Junta Comercial formalmente e os sócios querem salvaguardar o seu patrimônio particular da responsabilidade pelas dívidas sociais deve requerer a sua autofalência, nos termos do art. 105 da Lei Federal 11.101/2005:
“Dentro deste tipo de raciocínio, o “fechamento de fato” da sociedade empresária, com a cessação de suas atividades sem a correspondente baixa no registro do comércio, constitui atitude que pode permitir a aplicação da teoria da desconsideração. O entendimento correto é no sentido de que a sociedade empresária deve fazer a “baixa” regular de sua inscrição na Junta, cessando formalmente suas atividades; alternativamente, se não tiver condições de efetuar tal “baixa” (v.g., por ter dívidas em aberto), deve valer-se do art. 105 da Lei 11.101/05, a Lei de Recuperação e Falências, e requerer sua auto-falência, na qual explicitará as causas de sua derrocada, salvaguardando assim seu patrimônio pessoal ao comprovar a inexistência de atos ilícitos, ao demonstrar que a falência foi apenas resultado do natural risco da atividade empresarial”.
Assim, quando não requerida a sua autofalência ou na ausência de esclarecimentos acerca da sua situação impõe-se a desconsideração da personalidade jurídica.
4.3 Responsabilidade do Ex-sócio pelas Obrigações Sociais
O objetivo da desconsideração da pessoa jurídica engloba a responsabilização da pessoa dos sócios ou administradores pelas obrigações sociais. Contudo, para a segurança das relações jurídicas, o Código Civil, nos arts. 1.003 e 1032[34], estabeleceu que o sócio retirante será responsável pelas obrigações e dívidas que tinha como sócio por até dois anos contados da data de averbação do contrato social modificado perante a Junta Comercial.
Em análise do Agravo de Instrumento n.º 1.0024.07.769457-8/001[35] verifica-se que houve reforma da decisão proferida em primeiro grau, que desconsiderou a personalidade e incluiu no polo passivo da ação todos os sócios que compunham o quadro societário na data da emissão do título, objeto da ação monitória, inobservando as regras de responsabilidade do sócio que se retira da sociedade.
“Compulsando os autos verifica-se às fls. que o pedido de desconsideração acolhido em primeiro grau foi direcionado a todos os sócios que constavam no contrato social da empresa despersonificada no momento da emissão do título (20/07/2006), a teor do que se infere às fls. 44-TJ, compreendendo desta feita os bens particulares de Josilis Mendes Castro Veloso, ora agravante. Entretanto, o levantamento do véu societário neste caso não poderá estender os seus efeitos ao patrimônio do recorrente, pois este se retirou da sociedade devedora em 22/08/2006, a teor do que se infere da quinta alteração contratual trazidas às fls. 32/36-TJ, registrada na Junta Comercial do Estado de Minas Gerais em 01/09/2006, conforme certidão de fls. 36-TJ.(…) Mostra-se relevante, ainda, salientar que o fato de a sociedade empresária ter sido dissolvida em 23/10/2008, por permanecer irregular por prazo superior a 180 dias, conforme se infere da certidão de fls. 78, não possui o condão de alargar o prazo previsto na legislação civil para compreender os bens do sócio retirante”.
A responsabilidade do sócio retirante não se estendem ad eternum, vez que ela está delimitada a dois aspectos: “no âmbito temporal, sua vigência respeitará o prazo de dois anos, contando sempre da data em que for requerida a averbação no Oficial de Registro Civil de Pessoa Jurídica. No âmbito material, ela abrangerá as obrigações do cedente, já existentes na data da cessão, derivadas da aplicação do contrato plurilateral e transmitidas ao cessionário…” (FILHO; 2007, p. 840).
Os equívocos cometidos na decisão mencionada residem nos seguintes fatos: (i) a sócia retirante foi incluída no polo passivo por obrigação constituída pela sociedade após a data de sua retirada devidamente averbada; e (ii) a dissolução da sociedade por permanecer irregular por prazo superior a 180 (cento e oitenta dias)[36] é fundamento para a aplicação da desconsideração em desfavor apenas dos sócios que permaneceram na condução das atividades empresariais ou daqueles que tenham se retirado, mas que não tenha decorrido o lapso temporal de dois anos do art. 1003 do Código Civil.
Convém destacar que na justiça do trabalho a responsabilidade dos sócios decorre da demonstração de insolvência da pessoa jurídica independente da prova de prática de abusos ou fraudes. Todavia, a regra de limitação da responsabilidade estabelecida no art. 1003 do Código Civil é respeitada, ainda que o sócio retirante tenha se beneficiado do trabalho do reclamante:
“O juízo da 3ª Vara do Trabalho, após pronunciar a prescrição das parcelas anteriores à 19/12/2002, julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pelo autor, condenando a reclamada a proceder à baixa na CTPS do reclamante entre outras obrigações. Tal decisão teve seu trânsito em julgado em 13/3/2008. Todavia a reclamada não compareceu para quitar o débito. Assim, o Juízo de origem desconsiderou a personalidade jurídica da executada, com o fim de incluir os sócios administradores, no entanto, não houve resultado, uma vez que o exequente impugnou os bens ofertados por um deles, para garantir a execução, sob a alegação de que aqueles bens não existiam. A alegação foi acolhida pelo juízo. O exequente requereu ainda a citação e o bloqueio, pela penhora on-line, (BACENJUD) na conta-corrente dos demais sócios, inclusive, do ex-sócio. A juíza substituta da 3ª Vara do Trabalho de Brasília, Rosarita Machado de Barros Caron, indeferiu o pedido sob o fundamento de que “ainda que os sócios retirantes tenham se beneficiado com o labor do exequente, o feito fora extinto com resolução do mérito no período em que eles poderiam ser responsabilizados”. Nesse sentido, a execução prosseguiu contra a executada e os sócios administradores. Ocorre que em 9/3/2011, o oficial de justiça procedeu à penhora de bem móvel pertencente ao ex-sócio. Na ocasião, discordando, o ex-sócio opôs exceção de pré-executividade, a fim de evitar a constrição no seu patrimônio. O juízo originário acolhendo a exceção determinou a desconstituição da penhora. Esclareceu que o agravado não fazia parte do polo passivo da demanda”[37].
Desse modo, decorridos o lapso temporal de dois anos após a averbação da alteração do contrato social, o sócio retirante não pode ser responsabilizado pelas dívidas e obrigações sociais ainda que elas tenham sido contraídas na época em que figurava no quadro societário.
4.4 Direito Tributário: Impostos e Multas Administrativas
Na esfera tributária a responsabilidade dos sócios ou administradores decorre de infração à lei ou ao contrato social, bem como quando estes agem com excesso de poder, ou seja, ato praticado fora dos limites da outorga. Ressalte-se, ainda, que o levantamento do véu corporativo na esfera tributária deve ser imputado ao sócio que exerce a gerência da sociedade, vez que as suas decisões tem o condão de gerar responsabilidades.
O pleito de desconsideração da pessoa jurídica em execução fiscal de créditos de natureza tributária, se funda no art. 135 do Código Tributário Nacional, todavia, quando a natureza do crédito é não-tributária (multa administrativa) a sua concessão terá que respeitar os requisitos do art. 50 do Código Civil.
No Agravo de Instrumento n.º 2000.03.00.053896-4 o credor objetivando receber os créditos declarados de Imposto sobre Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) por meio da pessoa do sócio ou administrador requereu a desconsideração da pessoa jurídica fundamentando sua pretensão no encerramento irregular das atividades da devedora. O pedido foi acolhido e fundamentando a decisão no princípio da legalidade (art. 135, inciso III do Código Tributário Nacional)[38], imputou aos sócios ou administradores com poder de gerência a responsabilidade pelas obrigações tributárias.
“Em suma, como é de elementar sabença, a prescrição intercorrente se dá quando há inércia por parte do credor durante o lapso temporal de 5 anos. Não é o que ocorreu na hipótese, tendo em vista os andamentos processuais e as diversas diligências efetuadas pela Fazenda do Estado de São Paulo para o regular prosseguimento do feito e satisfação de seu crédito. (…) Com efeito, a execução fiscal interposta pela Fazenda Estadual objetiva o recebimento de R$ 500.827,67, relativos a débito de ICMS declarado e não pago, referente aos exercícios de 1986, 1987 e 1989. Inicialmente, não há falar-se em decadência, pois, em 07/05/90, foi lavrado o auto de infração AIIM n° 012369/370 série ‘Q’, constituindo-se o crédito tributário. (…) Diante do encerramento irregular das atividades da executada, a Fazenda do Estado requereu, em 30/03/98, nos termos dos artigos 134 e 135, do Código Tributário Nacional, a inclusão dos sócios da empresa executada no pólo passivo, bem como expedição de carta precatória para citação, penhora, avaliação e eventual leilão de seus bens pessoais. Por outro lado, a teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica tem inteira aplicação na hipótese, uma vez que a empresa teve seu encerramento sem a quitação dos débitos fiscais. Nas hipóteses de garantia de dívida fiscal, a responsabilidade por substituição dos sócios em relação à empresa é expressamente prevista, nos termos do art. 135, III, do Código Tributário Nacional”.
No que tange a execução de crédito de natureza não tributária, como mencionado, a imputação da responsabilidade pelas obrigações fiscais aos sócios deve aplicar o art. 50 do Código Civil.
“No mais, como se observa, a PREFEITURA MUNICIPAL DE RIBEIRÃO PRETO promove execução fiscal contra COMERCIAL ABBOUD LTDA., em razão do inadimplemento de multa administrativa pelo valor de R$ 3.148,20 (cf. fls. 26/27). Frustrada a penhora de bens móveis (cf. fls. 33), a exequente requereu a citação dos sócios nos termos do art. 135 do CTN, a fim de viabilizar a penhora on-line, o que foi deferido pela r. decisão agravada, no essencial, verbis: “Tratando-se de execução fiscal de cobrança de crédito de natureza não-tributária, ficam afastadas as regras do CTN; porém, a desconsideração da personalidade jurídica, no caso, deve obedecer as regras da legislação civil. Assim, com base no art. 50 c/c art. 1080 do Código Civil, defiro a inclusão do sócio no polo passivo da ação, procedendo-se às anotações necessárias, inclusive junto ao Cartório Distribuidor” (cf. fls. 43 – verso – grifado). Ocorre que a executada é uma sociedade limitada (cf. fls. 50/53), cuja personalidade não se confunde com a dos seus sócios (art. 1.052 do CC), não havendo, em princípio, prova de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial – art. 50 do Código Civil. E que, conforme determinado pela r. decisão agravada (cf. fls. 43 – verso) nas cobranças de crédito de natureza não-tributária ficam afastadas as regras do CTN, aplicando-se as regras da legislação civil”[39].
Nesta hipótese, como a desconsideração da pessoa jurídica na esfera civil é medida excepcional, o credor deve demonstrar o abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
4.5 Direito Ambiental
A desconsideração da pessoa jurídica em matérias relacionadas ao direito ambiental segue a orientação da teoria menor, em que a demonstração de insolvência da pessoa jurídica para a reparação do dano causado ao meio ambiente é fundamento suficiente para a imputação de responsabilidade aos sócios, que responderão com o seu patrimônio pessoal, independente de prova de dolo ou culpa, de ocorrência de fraude ou abuso de direito e de excesso de poder.
Pode ocorrer a desconsideração na modalidade inversa, quando a empresa é responsabilizada por atos praticados pela pessoa física dos seus sócios, quando a propriedade está em nome da pessoa jurídica. Assim, seja por ação omissiva ou comissiva, os sócios serão chamados a responder pela reparação ao meio ambiente:
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO IBAMA CONTRA PESSOA FÍSICA AO POSSÍVEL ABRIGO DA PROPRIEDADE DO IMÓVEL EM NOME DE PESSOA JURÍDICA – TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA – COMBATE À PRÁTICA DE ATOS FRAUDULENTOS – CCB, ART. 50 – LEI Nº 9.605/98 – LISTISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO QUE SE IMPÕE. (…) 2- O demandado principal da ação originária era o proprietário das terras, que foram incorporadas pela pessoa jurídica agravante, da qual o principal acionista é o réu, ao qual o IBAMA aponta reiterada conduta de prática de danos ambientais que estariam sendo perpetrados pela pessoa física ao abrigo da propriedade do imóvel em nome da pessoa jurídica. (…) 5- Em sede de direito ambiental, a Lei nº 9.605/1998 estabeleceu as hipóteses de responsabilização das pessoas jurídicas, dos seus diretores e funcionários e ressaltou, expressamente em seu art. 3º, parágrafo único, que “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.” – Teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica. (…) 7- A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, seja em sua forma direta ou inversa, é potencial criadora de tais conflitos na medida em que há a figura da pessoa jurídica que terá sua autonomia patrimonial afastada, e há a figura dos sócios ou administradores que serão responsabilizados com seus próprios patrimônios pelo uso fraudulento da pessoa jurídica. 8- A teoria da despersonalização da pessoa jurídica objetiva coibir a utilização da pessoa jurídica para a prática de atos fraudulentos. Em casos específicos faz-se necessário, de modo a preservar seu espírito, alterar a legitimidade, colocando também, como parte, quem originariamente não foi posto como tal no processo, numa hipótese de litisconsórcio necessário. 9- O litisconsórcio passivo necessário se justifica, na espécie, pois ao fim e ao cabo, se restar decidido que a hipótese é de aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, os efeitos subjetivos da coisa julgada afetarão tanto a pessoa física como a pessoa jurídica, motivo pelo qual empresa deve ser chamada à lide”[40].
O fundamento constitucional que justifica a aplicação da disregard doctrine está disposto no art. 225[41], caput e § 3.º, vez que é um direito de todos viverem em um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e um dever de todos a sua defesa e preservação. Os requisitos expressos no Código Civil (art. 50) não são exigidos, pois o fato, o dano, o prejuízo ambiental são s e provas mais que suficientes da necessidade de reparação, seja esta responsabilidade imputada à pessoa jurídica, aos sócios ou a ambos.
4.6 Recuperação Judicial / Falência
A empresa em recuperação judicial quando tem deferido o seu processamento, se beneficia da suspensão das ações e execuções contra ela ajuizadas, de forma que a sociedade empresária tenha a oportunidade de se reorganizar no prazo de 180 (cento e oitenta) dias (art. 6.º, caput e 52, inciso III da Lei 11.101/2005).
Considerando que o deferimento do processamento e a concessão do benefício recuperacional favorece apenas a sociedade empresária, quando a desconsideração da pessoa jurídica é autorizada, os sócios (devedores solidários) são incluídos no polo passivo da ação e a execução prossegue contra eles; se houver a quitação da dívida, este crédito é excluído do quadro geral de credores. Todavia, se o inadimplemento se mantiver, a quitação do crédito sujeito à recuperação judicial será quitado nos termos plano da recuperação judicial que vier a ser aprovado, extinguindo-se a execução e liberando-se os coobrigados da responsabilidade.
“PROCESSUAL CIVIL- AGRAVO DE INSTRUMENTO- AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIALEXECUTADA COM PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL- SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO CONTRA ELA. POSSIBILIDADE- CONTINUIDADE DO PROCESSO CONTRA OS DEVEDORES SOLIDÁRIOS- CABIMENTOREFORMA PARCIAL DA DECISÃO AGRAVADA- RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. Em caso de deferimento do pedido de recuperação judicial da sociedade empresária, a execução movida contra ela deve ser suspensa, com base no art. 6º da Lei 11.101/2005. Havendo Desconsideração da personalidade jurídica da empresa, a execução movida contra ela prossegue contra os sócios. “Se futuramente for aprovado o plano de recuperação judicial, com a concessão da recuperação por sentença, e se o crédito exequendo estiver abrangido pela ação de recuperação judicial, a execução ficará suspensa em relação à sociedade empresária executada, Guerreiro Mix Ltda., até que o crédito seja satisfeito de acordo com as condições do plano de recuperação aprovado por assembleia de credores ou pelo Juízo Concursal. Todavia, a suspensão não se opera em relação aos co-devedores solidários Cleber Ferreira e Darcy de Souza Martins Almeida e esta é a hipótese dos autos. Como a obrigação agora está sendo exigida de devedores solidários, conforme cópia da decisão que desconsiderou a personalidade jurídica de f. 35-TJ, a qual não consta que tenha sido revogada em segundo grau, em relação a estes devedores solidários, não cabe a suspensão da execução determinada à f. 72-TJ. Caso satisfeito o crédito pelos co-devedores na execução, ciente o Juízo Concursal, haverá respectiva quitação no plano de recuperação, ficando a sociedade empresária liberada do débito. Caso não satisfeito o crédito na forma mencionada, o débito persistirá na recuperação, que se quitado nesta, ciente o Juízo da execução, liberará os coobrigados e a sociedade em recuperação, ensejando a extinção da execução”[42].
No procedimento falimentar, a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica pode ser requerida em sede de tutela de evidência (antiga tutela antecipada) com base em prova inequívoca, que convença o magistrado da ocorrência de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
No Agravo de Instrumento n.º 1.0024.07.799352-5/001[43] a disregard doctrine tinha por fundamento a extensão dos efeitos da falida às demais sociedade do grupo econômico, para a seguir indisponibilizar os seus bens e proteger a universalidade de credores (art. 82, § 2.º da Lei 11.101/2005)[44]. O pedido foi fundamentado na ocorrência de confusão patrimonial entre as empresas:
“Havendo indícios de confusão patrimonial e, ante a desconsideração da personalidade jurídica das empresas do mesmo grupo econômico, correta a decisão singular que determina a indisponibilidade dos bens das sociedades, como forma de assegurar o acautelamento efetivo dos direitos da universalidade dos credores, no decorrer do processo falimentar”.
Constata-se, portanto, que houve cumprimento efetivo dos requisitos do art. 50 do Código Civil, para conceder a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Diante dos fatos apresentados, às sociedades coligadas e aos seus sócios foram estendidos os efeitos da falência decretada, para que estes respondessem com o patrimônio da pessoa jurídica das sociedades coligadas e com o patrimônio pessoal dos seus respectivos sócios pelas obrigações sociais da massa falida.
CONCLUSÃO
O presente estudo objetivou, sem a pretensão de esgotar o tema, demonstrar que a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica é instrumento de coação para o cumprimento das obrigações da sociedade empresária. Ressalte-se, contudo, que a sua importância vai além do adimplemento e satisfação do crédito ou da obrigação perseguida.
Trata-se de um instituto que tem por função coibir a prática de atos fraudulentos e abusos de direito, cometidos pelos sócios ou administradores, que manipulam a personalidade da pessoa jurídica em benefício próprio e, consequentemente, em prejuízo de terceiros.
O princípio norteador do Direito Empresarial afetado com a desconsideração de personalidade jurídica é o da autonomia patrimonial, que afasta por consequência, a responsabilidade limitada dos sócios, fazendo com que o seu patrimônio pessoal, seja responsável pelas dívidas e obrigações societárias.
É claro que, em razão da sua inclusão no polo passivo da ação, para responder por dívida da sociedade, poderão os sócios exercer o direito ao contraditório e a ampla defesa, de forma a demonstrar ao juízo que seus atos não incidiram em fraude, abuso de direito, desvio de finalidade, etc.
Destaque-se que a simples insolvência da pessoa jurídica, não é por si só, fundamento para a aplicação do instituto, responsabilizando os sócios pelas obrigações sociais, muito embora existam hipóteses em que este é o único fundamento utilizado, como foi demonstrado.
A disregard doctrine no Brasil é orientada por duas teorias, a maior e a menor. A teoria maior é mais exigente, pois é necessária a demonstração de desvio de finalidade e/ou confusão patrimonial, somados à insolvência da sociedade empresária para configurar a hipótese de incidência do instituto. Tem aplicação nas relações jurídicas do direito civil, direito empresarial, direito tributário. A teoria menor é menos exigente, porque exige apenas a demonstração de insolvência da sociedade, para que o patrimônio pessoal dos sócios seja integrado para cumprir a obrigação; a sua aplicação é limitada ao direito do consumidor, direito ambiental e na justiça do trabalho.
Por meio do estudo fundado nas jurisprudências colacionadas neste trabalho, constatou-se que a desconsideração de personalidade da pessoa jurídica, por tratar-se de medida excepcional, necessita que as partes tragam os fatos e as provas factíveis do cumprimento dos requisitos para aplicação do instituto. E essa é a maior dificuldade enfrentada pelos advogados e magistrados: demonstrar as hipóteses de desvio de finalidade, o abuso de direito ou mesmo a fraude, tendo em vista que as intenções subjetivas do devedor são provas de difícil constituição em muitas situações.
Informações Sobre o Autor
Aline Mirna Barros Vieira
Advogada. Graduada em Direito. Pós-Graduada em Direito Processual Civil, Direito Empresarial, Recuperação de Empresa e Falência. MBA em Gestão de Negócios