Devaneios hermenêuticos contrários aos interesses da criança e do adolescente

Resumo: a arte hermenêutica possui vários matizes. Estando estes, de per si, arredados da precisão que lhes deveria ser congênita, insofismável desequilíbrio expõe-se à vista do observador, deturpando-se aqueles resultados almejados outrora pelo Legislador, quando da elaboração da Norma. A realidade pouco cogitada nos meios acadêmicos, não obstante, afirmo, assenta-se no fato de que hermenêutica não é, nunca foi, tampouco virá a ser mecanismo de utilização exclusiva do jurista. Hermenêutica é, isto sim, a arte de interpretar a lógica, em sentido lato, da Lei. Como esta não se dirige privativamente ao jurisconsulto, mas a todos nominados por ela, estes se tornam responsáveis diretos pela observância dos seus comandos de responsabilidade. E por ser presente, no Estatuto da Criança e do Adolescente, a figura dos pais como responsáveis primários por diversas responsabilidades que ali lhes são relembradas pelo Legislador, é que o presente e singelo escrito divide-se em dois humildes capítulos: um dirigido ao Poder Judiciário; outro, tão importante quanto e com uma certa e proposital inflexão de cunho coloquial, ao Poder Familiar.


Palavras-chave: hermenêutica; Estatuto da Criança e do Adolescente; Poder Judiciário. Poder Familiar.


Sumário: Introdução; A hermenêutica do Poder Judiciário frente ao ECA; A hermenêutica do Poder Familiar frente ao ECA; Considerações finais.


“É mais fácil construir um menino do que consertar um homem.” (Charles Chick Govin)


INTRODUÇÃO


A coexistência de todas as coisas requer equilíbrio recíproco. Todo excesso de um sistema frente a outro tende a dissipar a manutenção do estado natural de, ao menos, um dos corpos envolvidos no citado litígio. Restando a harmonia malbaratada, exsurge, pois, o desequilíbrio. É assim que, como comportamento preteritamente pouco previsível, o caos ergue-se e impera nos sistemas equivocadamente tidos noutrora por rígidos e inexpugnáveis.


Sucede, em verdade, serem todos os sistemas, incluindo o normativo de um Estado Democrático de Direito[1], compostos por equações abrangentes e não lineares as quais disciplinam a evolução de todos os complexos de regras e normas, estes sujeitos a fatores extremamente sensíveis a múltiplas variações.


Dessa arte, uma pequena alteração no valor de um parâmetro pode e geralmente vem a gerar grandes mudanças no estado das coisas, malgastando-se o previsível e fazendo-se principiar algo muitas vezes discrepante do almejado.


A HERMENÊUTICA DO PODER JUDICIÁRIO FRENTE AO ECA


Muito ao contrário da conotação popular conferida à expressão “eca”, donde se ressalta desconforto em relação à determinada coisa ou situação, o nosso “ECA” (Estatuto da Criança e do Adolescente) longe está de se constituir em uma realidade ruim ou desconfortante. Foi ele muito bem elaborado e alvo de incessantes elogios de âmbito nacional e internacional.


Talvez, é bem verdade, por meio de práticas hermenêuticas destoantes do ideal, realmente se chegue, vez ou outra, a interpretações desvirtuadas que apenas vêm de encontro, e não ao encontro, dos interesses constitucionalmente consagrados à criança e ao adolescente, concedendo-se, por isso, injusta má-fama ao nosso ECA. Por vezes, essa anomalia, verdadeiro desequilíbrio entre uma e outra interpretação, advenha da leitura desatenta do art. 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente, onde o legislador quis ressaltar a peculiar condição da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.[2]


Todavia, se, por um lado, não é crível que o Poder Judiciário, bem como os demais órgãos públicos de aplicação do ECA (Ministério Público, Polícia Judiciária, Conselhos Tutelares, etc.) sejam por demais compassivos ao ponto de não atender ao princípio educativo do ECA, relevando, por condolência, a aplicação certeira das medidas sócio-educativas que lhes compete impor à conduta desvaliosa da pessoa em pleno desenvolvimento do caráter que carregará por toda sua vida, também menos crível é que venham referidos órgãos desconceituar institutos jurídicos consagrados pela boa técnica, em flagrante prejuízo aos direitos processuais dos nossos infantes. Ora, quando utilizo o substantivo masculino “equilíbrio”, como mecanismo de interpretação tendente a resguardar a verdadeira natureza do ECA, agindo diretamente na manutenção de um corpo na sua posição ou postura normal, sem oscilações ou desvios, assevero isso com peculiar atenção à imparcialidade, porquanto, se o Estatuto supra for interpretado com brandura ilegal, prejuízo haverá; se interpretado for com rijeza ilegal, prejuízo igualmente restará. Em suma, toda ilegalidade, “in casu”, constituir-se-á em juízo falso.


Assim, deixando para discorrer tão-somente no próximo capítulo sobre a condolência inconstitucional e ilegal que tenho observado reiteradas vezes no comportamento de alguns pais, em manifesto prejuízo aos seus filhos, comentarei aqui sobre uma simples amostra, dentre tantas outras, de desequilíbrio hermenêutico que pode ser levado a efeito pelos nossos jurisconsultos. Friso que esta espécie de equívoco aqui exemplificado tende a inexistir doravante, porquanto pacificada está a questio iuris no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Vejamos:


Pois bem: muito se discutiu outrora[3], se o instituto da prescrição alcançaria, ou não, as medidas sócio-educativas. Hoje, pacificada está a controvérsia[4] (obs.: as notas de rodapé abaixo desenvolvem suficientemente o raciocínio).


Além disso, para finalizar o exemplificado, também há a súmula nº338 do Superior Tribunal de Justiça a esse respeito[5].


A HERMENÊUTICA DO PODER FAMILIAR[6] FRENTE AO ECA


Por outro lado, é vero que da criminologia[7] exsurgem inúmeras nuances que se dissipam e promovem múltiplos resultados. É impossível, pois, estudá-la e compreendê-la com fulcro exclusivo nos adjetivos jurídicos. Gêneses empíricas e remotas, oriundas das experiências juvenis, explodem em casuísticas que aguçam nossa curiosidade e nos deixam perplexos quanto aos seus possíveis porquês. Foi pensando nesses matizes, que elaborei, com sotaque coloquial, a presente receita.


Tenho a convicção íntima de que, se a fórmula infra fosse evitada o quanto possível, sensivelmente nossos jovens ver-se-iam mais afastados das sedutoras sendas da criminalidade.


Adepto do raciocínio de Rousseau[8], acredito que o estudante das ciências criminológicas deve ater-se à incessante “busca da causa” da criminalidade no meio social. Dessa arte, oportuna a presente prescrição que almejo não ser adotada por qualquer dos diletos leitores.


Preliminarmente, friso que este receituário é fruto de observações ao longo de minha vida funcional como Delegado de Polícia. Utilizei-me de constantes conversações com jovens infratores e de inúmeras audiências com seus pais. Trata-se de sete vícios capitais. É tudo muito simples. Redigida em voz de comando, patente está que deve ser interpretada “a contrario sensu”[9]. Vejamo-la:


“1) Nunca ouse discutir com seu filho acerca dos perigos envoltos nas drogas ilícitas, porquanto há incontáveis traficantes e jovens desregrados sedentos por instruí-lo a respeito;


2) Nunca seja imparcial ao ouvir alguma reclamação sobre o comportamento dele. Seja parcial e parta do princípio de que ele está sempre certo e de que os outros estão sempre errados;


3) Se o seu filho for ríspido em casa, não lhe obedecer e proferir-lhe injúrias verbais, não faça nada. Demonstre que ele está acima dos outros e que ninguém é digno do seu respeito;


4) Se ele preferir o ócio ao estudo ou à colaboração com as atividades domésticas, deixe estar. Ele acreditará que o mundo tem a obrigação de sustentá-lo gratuitamente e que, se no futuro o mundo decepcioná-lo, ele estará livre para buscar meios mais fáceis, embora ilícitos, de alcançar o que deseja;


5) Quando você for discutir determinada diferença com seu cônjuge, faça-o de forma agressiva, desrespeitosa e, preferentemente, na frente do seu filho. Ele também passará a adotar esse modelo de comportamento dentro e fora de casa;


6) Se você sofreu uma separação conjugal, produza toda sorte de consequências contraproducentes a partir dessa vicissitude social, utilizando o seu filho como um instrumento bélico contra o seu ex-cônjuge. Faça intrigas e satisfaça todas aquelas vontades caprichosas que o seu filho sempre teve e que normalmente não seriam satisfeitas durante a constância do laço matrimonial. Desta forma, você obterá a preferência dele e propiciar-lhe-á uma perspicácia excepcional, na medida em que ele entenderá como se aproveitar com desvalia das situações e das outras pessoas; e


7) Não se preocupe se o seu filho está saindo com amigos de má fama. Assim, se um dia ele for flagrado em pleno ato infracional, de tal forma que não lhe seja possível auxiliá-lo na tese da negativa de autoria, possa você justificar-se aos policiais dizendo que a causa determinante de tudo foi a influência das más companhias.”


Muito bem. Estando cumpridas as “orientações” supraditas, os pais não precisariam preocupar-se mais com o comportamento dos seus filhos, porquanto, a partir de então, a Polícia passaria a ter o dever legal de assumir esse “múnus”.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Como é de todos cediço, no que tange à erudição interpretativa da Lei, esta pode dar-se pelos seguintes meios: quanto ao sujeito que a interpreta (autêntica – podendo ser contextual ou não contextual; doutrinária; e judicial); quanto ao modo (gramatical; teleológica; lógica; histórica; sistemática; progressiva; de direito comparado; e sociológica); e quanto ao resultado (declarativa; restritiva; e extensiva – podendo ser ampliativa, que é proibida, ou analógica, que é permitida, cujas modalidades são intra legem ou in bonam partem).[10]


Constituem-se, consequentemente, à disposição do exegeta (leia-se: profissional da área jurídica), inúmeras condições favoráveis a salutar adequação do sistema normativo às exigências do bem comum.


Por sua vez, e por derradeiro, no que tange àqueles que detêm o Poder Familiar, além dos instintos paterno e materno que, por si só, já lhes serviriam de boa bússola a indicar-lhes o melhor caminho na educação da sua prole, é-lhes também deontologicamente inobscurecível zelar pela execução fiel dos comandos contidos em nosso sistema normativo. Com efeito, o homem de tino médio, inserido em um sistema social onde a informação transita livre e em múltiplos veículos de comunicação, recebe, dia a dia, insofismavelmente, todas aquelas circunstâncias benignas e convenientes a seu favor, para que jamais venha a se quedar inerte perante os seus deveres constitucionais e infraconstitucionais peculiares ao desenvolvimento dos seus infantes.


 


Notas:

[1] CF, art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.

[2] ECA, art. 6º: Na interpretação desta Lei, levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento (grifo do autor).

[3] EMENTA: ATO INFRACONSTITUCIONAL. PRESCRICAO. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PRESTACAO DE SERVICOS COM LIBERDADE ASSISTIDA. 1. INEXISTE PRESCRICÃO RELATIVAMENTE A ATO INFRACONSTITUCIONAL. A PRESCRICÃO ATINGE A PENA E NÃO A MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA. O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, LEI Nº.8069/90, É LEI ESPECIAL E COGITA DE MEDIDAS DE PROTECÃO AO INFRATOR. 2. O ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR PRATICADO PELO TIO ADOLESCENTE, COM 17 ANOS, CONTRA A SOBRINHA, UMA CRIANÇA COM 9 ANOS, CONSTITUI FATO BASTANTE GRAVE. AS MEDIDAS PEDAGÓGICAS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE E LIBERDADE ASSISTIDA SÃO ATÉ BRANDAS, TENDO EM MIRA A GRAVIDADE DO FATO DELITUOSO PRATICADO. A FINALIDADE DO ESTATUDO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE É BUSCAR A REEDUCAÇÃO DO INFRATOR E A SUA PLENA RECUPERACÃO. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 599392271, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 01/09/1999).

[4] EMENTA: HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. PRESCRIÇÃO DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA. APLICABILIDADE DAS REGRAS PREVISTAS NO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL À METADE COM BASE NO ART. 115 DO CÓDIGO PENAL. PRECEDENTE. ORDEM DENEGADA. HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA PARTE, DENEGADO. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Se a alegação da eventual incidência do princípio da insignificância não foi submetida às instâncias antecedentes, não cabe ao Supremo Tribunal delas conhecer originariamente, sob pena de supressão de instância. 2. É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que a prescrição das medidas socioeducativas segue as regras estabelecidas no Código Penal aos agentes menores de 21 (vinte e um) anos ao tempo do crime, ou seja, o prazo prescricional dos tipos penais previstos no Código Penal é reduzido de metade quando aplicado aos atos infracionais praticados pela criança ou pelo adolescente. 3. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nesta parte, denegado. 4. Concessão de ofício para reconhecer a incidência do princípio da insignificância. Decisão: a Turma conheceu, em parte, do pedido de habeas corpus, mas, nessa parte, o indeferiu. Concedeu, porém, a ordem, de ofício, nos termos do voto da Relatora. Unânime. Falou o Dr. Antônio de Maia e Pádua, Defensor Público da União, pelo paciente. 1ª Turma, 24.03.2009.

[5] Súmula 338. Órgão Julgador. S3 – TERCEIRA SEÇÃO. Data do Julgamento. 09/05/2007. Data da Publicação/Fonte. DJ 16/05/2007 p. 201. Enunciado. A prescrição penal é aplicável nas medidas sócio-educativas. (grifos do autor)

[6] “Poder familiar” é a denominação adotada pelo novo ordenamento civil para o antigo “pátrio poder”, antes manejado no Código de 1916. Hoje significa, muito antes de um poder dos pais sobre os filhos, um verdadeiro “múnus”.

[7] Como bem ensina o Professor ANTÔNIO GARCIA-PABLOS DE MOLINA , “a Criminologia é uma ciência do ‘ser’, empírica; o Direito, uma ciência cultural, do ‘dever ser’, normativa. Em consequência, enquanto a primeira se serve de um método indutivo, empírico, baseado na análise e na observação da realidade, as disciplinas jurídicas utilizam um método lógico, abstrato e dedutivo” (GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. Criminologia, uma introdução a seus fundamentos teóricos. Tradução de Luiz Flávio Gomes, São Paulo: RT, 1992).

[8] Jean-Jacques Rousseau (Genebra, 28 de Junho de 1712 — Ermenonville, 2 de Julho de 1778). Filósofo suíço, escritor, teórico político e compositor musical autodidata. Figura marcante do Iluminismo francês. Precursor do romantismo. Ao defender que todos os homens nascem livres, e a liberdade faz parte da natureza do homem, Rousseau inspirou todos os movimentos que visavam à liberdade. Incluem-se aí as Revoluções Liberais, o Marxismo, o Anarquismo etc. Sua influência se faz sentir em nomes consagrados da literatura como Tolstói e Thoreau. (BONAVIDES, Paulo. Democracia e liberdade. In Estudos em homenagem a J.J. Rousseau. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1962).

[9] A propósito, vale relembrar que a origem dessa expressão como argumento, no âmbito jurídico, está na invocação ao interlocutor de que, uma vez manifesto que a norma jurídica prescreve uma conduta e a sua transgressão uma sanção, exsurge que se excluem de sua incidência todos aqueles que não sejam alvo literal do preceito.

[10] BRUTTI, Roger Spode. A Eficácia da Prova Testemunhal nos Delitos de Embriaguez ao Volante. Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal, v. 9, 2008.


Informações Sobre o Autor

Roger Spode Brutti

Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)


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