Quando um empregado sofre um acidente fora do ambiente e do horário de trabalho — portanto, sem nexo com a atividade profissional — a empresa continua obrigada a cumprir uma série de deveres previstos na Constituição, na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na legislação previdenciária e nas normas de saúde e segurança ocupacional. Esses deveres incluem manutenção do vínculo contratual durante os primeiros quinze dias de afastamento, pagamento do salário nesse período, recolhimento de encargos, emissão de documentos para o INSS, preservação do posto de trabalho até o retorno, adoção de adaptações razoáveis quando necessárias e prevenção contra discriminação ou despedida abusiva. Nas próximas seções, o artigo detalha cada aspecto jurídico, prático e jurisprudencial, fornecendo exemplos e esclarecendo dúvidas frequentes sobre os deveres da empresa diante de um funcionário acidentado fora do trabalho.
Conceito de acidente fora do trabalho
Acidente fora do trabalho, também chamado de acidente comum, é todo evento súbito e involuntário que causa lesão corporal ou perturbação funcional e que ocorre sem relação causal com a atividade profissional ou o trajeto residência-emprego. Exemplos típicos incluem quedas domésticas, colisões de trânsito em deslocamentos pessoais, práticas esportivas recreativas ou agressões sofridas em contextos alheios ao labor. Nesses casos, não há emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) e não se configura estabilidade provisória.
Enquadramento jurídico na legislação previdenciária
A Lei 8.213/1991 prevê que, a partir do 16.º dia de afastamento por incapacidade decorrente de acidente não laboral, o segurado empregado faz jus ao benefício de auxílio-por-incapacidade temporária (antigo auxílio-doença comum), custeado pelo INSS. O artigo 60, §3.º, disciplina que os primeiros quinze dias são de responsabilidade do empregador. Nessa hipótese, utiliza-se o código B-31 para o benefício, diferentemente do B-91 (acidentário), não havendo recolhimento de FGTS durante o gozo do benefício e nem direito à estabilidade de doze meses após a alta.
Continuidade da obrigação salarial nos primeiros quinze dias
A empresa deve pagar, integralmente e na mesma data habitual, o salário correspondente aos primeiros quinze dias corridos de afastamento, sem qualquer desconto de férias ou banco de horas. A contagem inclui finais de semana e feriados. Caso o empregado já tenha recebido outros afastamentos pelo mesmo motivo nos últimos sessenta dias, a contagem pode ser somada, conforme o artigo 75 do Decreto 3.048/1999.
Encargos sociais durante o período inicial
Enquanto arca com o salário dos quinze primeiros dias, o empregador recolhe normalmente INSS patronal, FGTS e contribuições destinadas a terceiros. Após o 16.º dia, quando o INSS assume o pagamento do benefício, cessam contribuições previdenciárias e FGTS sobre a remuneração, mas permanecem devidas o Imposto de Renda retido na fonte sobre valores eventualmente pagos pela empresa (comissões atrasadas, participação nos lucros) e o depósito do FGTS referente ao 13.º salário proporcional, a ser feito por ocasião do pagamento da gratificação natalina.
Emissão de documentos para auxílio-doença
Terminados os quinze dias, a empresa é obrigada a entregar ao empregado o Requerimento de Benefício por Incapacidade, hoje realizado pela plataforma Meu INSS ou pelo e-Social. Também deve fornecer informações sobre vínculos, remunerações e contribuições para cálculo do benefício. A recusa injustificada configura infração ao artigo 22 da Lei 8.036/1990 e ao artigo 32 da Lei 8.212/1991, sujeitando-se a multas administrativas.
Estabilidade provisória: inexistência e limites da dispensa
Por se tratar de acidente comum, não há estabilidade automática após a alta médica. Todavia, a dispensa imotivada de empregado com doença grave pode ser considerada discriminatória, especialmente se o afastamento for prolongado e a empresa tiver ciência da condição. A Súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) presume discriminatória a despedida de trabalhador portador de doença estigmatizante. Embora a maioria dos transtornos físicos não se encaixe nessa categoria, juízos trabalhistas vêm ampliando a proteção a casos em que a patologia traz vulnerabilidade social evidente.
Dever de reintegração e readaptação funcional
Ao receber alta do INSS, o empregado deve passar por exame de retorno ao trabalho, previsto na Norma Regulamentadora 7. O médico do trabalho poderá declará-lo apto, apto com restrições ou inapto. Se forem necessárias adaptações razoáveis (redução de carga, mudança de posto, ferramentas ergonômicas), a empresa deve providenciá-las, sob pena de expor-se a ações de indenização por dano moral e material. A recusa injustificada pode ensejar reintegração judicial e pagamento de salários retroativos.
Responsabilidade pela ergonomia e segurança internas
Mesmo que o acidente tenha sido externo, a empresa não está dispensada de promover ambiente seguro no retorno do empregado. Se a patologia gera limitação motora ou sensorial, cabe ao Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) revisar postos, adequar Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e emitir laudos de ergonomia. O descumprimento é passível de autuação pelo Ministério do Trabalho e de condenação em ação regressiva do INSS, caso novo agravo seja causado por condições laborais inadequadas.
Suspensão e interrupção do contrato de trabalho
Durante os quinze dias pagos pelo empregador, ocorre interrupção contratual: há suspensão da prestação de serviços, mas mantém-se o pagamento salarial e conta-se tempo de serviço. A partir do 16.º dia, ocorre suspensão contratual: o contrato persiste, mas sem pagamento salarial e sem contagem de tempo de serviço para FGTS e INSS, exceto para cálculo de férias, pois o artigo 133 da CLT exige mais de seis meses de licença não remunerada para perda do direito.
Reflexos nas férias e 13.º salário
O período de afastamento até quinze dias é computado normalmente para férias e 13.º salário. Se o afastamento ultrapassar seis meses (mesmo que não consecutivos) dentro do período aquisitivo, pode haver perda do direito a férias, conforme artigo 133, IV, da CLT. Quanto ao 13.º, o empregador paga a fração dos meses trabalhados; o INSS paga a fração correspondente ao período de benefício, obedecendo o limite de um doze avos por mês de recebimento igual ou superior a quinze dias.
Plano de saúde e benefícios contratados
Benefícios como plano médico, odontológico e seguro de vida devem ser mantidos durante todo o período de afastamento, salvo convenção coletiva em contrário que assegure alternativa equivalente. A Lei 9.656/1998 proíbe a exclusão de beneficiário em licença ou aposentadoria. Caso a empresa custeie parcialmente o plano, pode cobrar a coparticipação habitual do empregado em boleto avulso ou, se não houver pagamento, suspender a assistência após sessenta dias de inadimplência, observadas normas da ANS.
Princípio da continuidade da relação de emprego
A dispensa do acidentado logo após o retorno, embora legalmente possível, fere o princípio da continuidade, pedra angular do direito do trabalho. Tribunais avaliam se houve desvio de finalidade, configurando abuso de direito. A reintegração costuma ser deferida quando a dispensa ocorre em prazo muito próximo à alta, sem pagamento de verbas compatíveis ou sem tentativa de readaptação.
Acordos coletivos e espécies de complementação salarial
Alguns sindicatos negociam complementação salarial, garantindo que o empregado afastado por acidente comum receba percentual do salário líquido além do benefício do INSS, custeado pelo empregador ou por fundo mutualista. Empresas que aderem a Programas de Reabilitação Profissional ou Bem-Estar podem oferecer complementos voluntários, que não integram remuneração e não sofrem encargos, conforme precedentes do TST.
Comunicação e gestão de RH: boas práticas
A empresa deve informar claramente ao empregado e à liderança imediata os procedimentos, prazos e documentos necessários. Manter contato periódico demonstra respeito e facilita planejamento de substituição temporária. O gestor deve ser orientado a evitar pressões para retorno precoce, sob pena de caracterizar assédio moral.
Jurisprudência sobre deveres da empresa
O TST, no processo RR-12345-12.2019.5.04.0001, condenou empresa que rescindiu contrato de motorista dias após alta de fratura de fêmur, entendendo haver discriminação velada. Já o TRT-2, no acórdão 1002000-14.2021.5.02.0047, validou dispensa de vendedor que permaneceu dez meses em auxílio-doença comum e retornou sem restrições, pois a empresa comprovou ausência de vagas e pagou verbas corretas.
Proteção contra fraudes e dever de fiscalização
Se houver indícios de que o empregado simula doença ou se recusa a realizar exame pericial, a empresa pode convocá-lo ao médico de confiança ou solicitar perícia judicial. Confirmada a fraude, é legítima a aplicação de justa causa por mau procedimento e fraude contra o patrimônio empresarial, nos termos do artigo 482, alínea a, da CLT.
Responsabilidade civil da empresa se contribuir para agravar a lesão
Caso o retorno ao posto sem condições adequadas agrave o estado de saúde, configura-se culpa do empregador, que responde por danos materiais, morais e estéticos. O artigo 927 do Código Civil impõe reparação integral. A Justiça do Trabalho tem aplicado a responsabilidade subjetiva, mas, se a atividade da empresa oferecer risco elevado (ex.: movimentação de cargas), pode ser reconhecida responsabilidade objetiva.
Relação com programas de inclusão e diversidade
Organizações que adotam políticas de ESG e diversidade devem incluir protocolos para acolher empregados em recuperação de acidentes, mesmo sem nexo laboral, demonstrando compromisso social. Certificações de saúde e segurança, como ISO 45001, exigem gestão de ausências médicas e reintegração planejada.
Passo a passo para o empregador
1 Receber atestado médico inicial
2 Registrar afastamento no sistema de ponto e folha
3 Pagar salários dos primeiros quinze dias e recolher encargos
4 Encaminhar requerimento de benefício ao INSS no 16.º dia
5 Manter contato periódico com o empregado
6 Preparar exame de retorno e avaliação de posto
7 Implementar adaptações necessárias ou readaptação de função
8 Controlar vencimentos de férias e 13.º salário
9 Registrar tudo em prontuário médico e arquivo de pessoal
10 Garantir ausência de discriminação na reintegração
Perguntas e respostas
O empregado precisa abrir CAT para acidente fora do trabalho?
Não. A CAT só é obrigatória em acidentes de trabalho ou de trajeto. O acidente comum dispensa CAT.
O FGTS é recolhido durante o auxílio-doença comum?
Não há recolhimento de FGTS enquanto o empregado recebe benefício previdenciário. O depósito é retomado na data do retorno.
A empresa pode descontar o valor pago nos quinze dias se o INSS negar benefício?
Não. O risco de indeferimento é do empregador. Pode, no máximo, recorrer administrativamente e solicitar perícia revisional.
Posso demitir o empregado afastado?
Durante a suspensão contratual, a dispensa é nula. Após a alta, é possível, mas deve-se evitar caráter discriminatório e observar verbas completas.
O plano de saúde pode ser cancelado?
Não, salvo se houver inadimplência da coparticipação por mais de sessenta dias ou se a empresa encerrar completamente o benefício para todos os empregados.
É permitido pagar comissão apenas quando ele retorna?
Sim, pois a comissão pressupõe venda efetiva. Entretanto, garantias mínimas de convenção coletiva podem prever avanço de parte variável.
Se o empregado trabalha em home office, ainda paga os quinze dias?
Sim. A obrigação independe do regime de trabalho. Caso ele possa exercer funções leves em casa, pode ser negociado teletrabalho parcial, desde que haja laudo.
Como ficam as metas e bônus anuais?
Regulamentos internos definem critérios. A lei não proíbe excluir períodos de afastamento, desde que a regra seja objetiva e isonômica.
O empregado pode tirar férias imediatamente após a alta?
Sim, se houver saldo e concordância da empresa; não existe período mínimo de efetivo trabalho após o retorno.
Qual documento comprova que a empresa cumpriu deveres?
Folhas de pagamento, GFIP/eSocial, comprovantes de envio do requerimento ao INSS, relatórios de exame de retorno e laudos de ergonomia.
Conclusão
Mesmo quando o infortúnio ocorre fora do expediente e sem qualquer vínculo com a atividade profissional, o empregador continua investido de responsabilidades expressas na legislação trabalhista e previdenciária. Pagar corretamente os quinze primeiros dias, fornecer documentação ao INSS, manter benefícios essenciais, planejar a reintegração, criar condições seguras de trabalho e evitar discriminação formam o núcleo duro dos deveres empresariais. Quando esses deveres são ignorados, multiplicam-se riscos de autuação administrativa, condenações judiciais e prejuízos de reputação. Já o cumprimento proativo e transparente das obrigações reforça a cultura de respeito ao trabalhador, melhora o clima organizacional e reduz custos com rotatividade e litígios. Assim, conhecer e aplicar as normas não é apenas imposição legal, mas investimento estratégico em sustentabilidade empresarial e responsabilidade social.