Resumo: O direito a acessibilidade é um meio de garantir que as pessoas com deficiências ou com mobilidade reduzida possam desfrutar do direito de circularem e se movimentarem pelos espaços da cidade de forma plena e livre de barreiras. O direito de acesso ao meio físico da cidade, sobretudo para as pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida foi assegurado na Constituição Federal brasileira e em diversas normas infraconstitucionais, todavia, o que se constata ainda é a existência de inúmeras barreiras físicas que impedem que essas pessoas usufruam do direito fundamental de se locomoverem livremente pelas calçadas, praças, edificações públicas e de uso coletivo.
Palavras-Chave: Acessibilidade, direito a igualdade, direito fundamental, planejamento urbano, mobilidade urbana, barreiras físicas.
Abstract: The right of accessibility is a way to assure that disable people or those that have reduced physic mobility can move full and free of any barriers, without any restrictions, through the city. The right of access to the physical environment of the cit, mainly for disable or reduced mobility people is assured in Brazilian Federal Constitution and various infra Constitutional laws, however, what is noted is the existence of many physical barriers that prevent people to fully enjoy the fundamental right to move freely on the sidewalks, parks, buildings collective use.
Key-words: Accessibility, the right to equality, fundamental rights, urban planning, urban mobility, physical barriers.
Sumário: 1- Introdução – 2- Conceito de acessibilidade: as barreiras físicas – 3 – Direito ao Acesso ao meio físico da cidade: Um direito fundamental – Conclusão – Bibliografia.
1- Introdução
As pessoas que não possuem deficiência ou mobilidade reduzida[1], ou não lidam com a questão, não costumam perceber as inúmeras situações discriminatórias que essas pessoas sofrem com um projeto negligente ou inadequado. No inicio de um projeto de construção de um ambiente, as pessoas em cadeiras de rodas, por exemplo, são muitas vezes excluídas pela inexistência de calçadas rebaixadas na maior parte das vias de circulação das cidades. A falta de acessibilidade, nos espaços públicos, faz com que, essas pessoas fiquem confinadas em suas casas ou em clínicas. Sem os espaços de sua cidade adaptados, não se tem acessibilidade, e sem esta, não há direitos iguais, não há inclusão social[2].
A Constituição Federal elege como fundamentos da República, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos I e III, respectivamente) e, como um dos seus objetivos fundamentais, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, inciso IV). Dispõe, também, no artigo 5º, caput, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. No tocante a política de desenvolvimento urbano, avançou muito ao incluir um capítulo específico sobre essa política urbana, estabelecendo em seu artigo 182 que a mesma deve ser executada pelo Poder Público Municipal e deve ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Assegurou também que o Plano Diretor é o instrumento fundamental para o desenvolvimento desta política urbana. No ano de 2001, é promulgada a Lei Federal n° 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade, que mais que uma simples regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição, é o grande norteador para o desenvolvimento urbano das cidades.
Com estes instrumentos, afirma Lanchotti[3], é possível, no crescimento da cidade, fazer com que seus espaços passem a ser pensados, produzidos e executados com a acessibilidade adequada.
Já está comprovado em vários estudos e experimentações que a inclusão é um processo de transformação, que se manifesta na mudança de atitudes, do comportamento, da administração, do atendimento da organização físico-espacial ao longo do tempo. Inclusão se manifesta, então através da acessibilidade. [4]
Assim, a promoção da acessibilidade nos espaços da cidade deve fazer parte do processo de planejamento e ordenamento do território, cabendo portanto, aos Municípios incluir em seus instrumentos de planejamento e em seus instrumentos de regulação de uso e ocupação os requisitos de acessibilidade.
Mas o que se entende por acessibilidade?
2- Conceito de acessibilidade: as barreiras físicas
A questão da acessibilidade não é tema tão recente. Tal como acontece em muitos países, no Brasil, teve início em 1981, quando foi declarado o Ano Internacional dos Portadores de Deficiência pelas Nações Unidas. No ano de 1982, a mesma Organização aprovou o Programa Ação Mundial para Pessoas com Deficiência, ressaltando o direito dessas pessoas a terem às mesmas oportunidades que os demais cidadãos e a desfrutarem, em condições de igualdade, de melhorias nas condições de vida resultantes do desenvolvimento econômico e social.
Dentro desse contexto, o Brasil, publica a primeira norma técnica sobre o tema – a NBR 9050/1985 – Adequação das Edificações e do Mobiliário Urbano à Pessoa Deficiente elaborada pela comissão de estudos do Comitê Brasileiro da Construção Civil, da Associação Brasileira de Normas Técnicas.
Após três anos, é promulgada a Constituição Federal de 1988, que disciplina a acessibilidade quando assegura no artigo 227, § 2º, que a Lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir o acesso adequado às pessoas com deficiência, e, no artigo 244 contempla a citada norma, acrescentando que “a lei disporá sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência, conforme o disposto no artigo 227, º 2º”.
Atendendo a tal comando, foi editada a Lei n° 7.853¤89, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – CORDE institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Em seu artigo 2° já assegurava que os órgãos e entidades da Administração direta e indireta devem dispensar tratamento prioritário e adequado às pessoas com deficiência, determinando, na área das edificações, a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas com deficiência, permitindo o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transportes.
O Decreto n° 3.298¤99 que regulamentou a Lei n° 7.853¤89 trouxe como um dos objetivos da Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência o acesso, o ingresso e a permanência delas em todos os serviços oferecidos à comunidade, estabelecendo em seu artigo 2°, parágrafo único, que os órgãos e entidades da administração direta e indireta devem dispensar tratamento prioritário e adequado para viabilizar medidas em diversas áreas, dentre as quais, a adoção e execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência e que permitam o acesso destas a edifícios, logradouros e meios de transporte.
A acessibilidade foi novamente tratada pela lei n° 10.048/00 que assegura tratamento prioritário às pessoas com deficiência, idosos, às gestantes, às lactantes e às pessoas acompanhadas por crianças de colo. Essa Lei obriga as repartições públicas, empresas concessionárias de serviço público e instituições financeiras a dispensar tratamento prioritário, por meio de serviços individualizados a essas pessoas, bem como sejam reservados assentos nos transportes coletivos; orienta ainda que compete às autoridades adotarem normas de construção e licenciamento para garantir acessibilidade em logradouros e sanitários públicos, bem como em edifícios de uso público e também, a acessibilidade nos meios de transportes.
A lei n° 10.098/00 estabelece normas gerais e critérios básicos para promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, nas edificações públicas ou privadas, no espaço público, logradouros e seu mobiliário, nas comunicações e sinalização entre outros. O objetivo desta lei será alcançado quando forem suprimidas as barreiras e obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação. Define em seu artigo 2, inciso I, a acessibilidade como sendo a possibilidade e condição de alcance para utilização com segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação por pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida.
A atual NBR[5] 9050¤2004 que veio substituir a NBR 9050¤85[6], ambas da Associação Brasileira de Normas Técnicas, ampliou o termo definindo a acessibilidade como a “possibilidade e condição de alcance, percepção e entendimento para a utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos”. Acessível é definido como “espaço, edificação, mobiliário, equipamento urbano ou elemento que possa ser alcançado, acionado, utilizado e vivenciado por qualquer pessoa, inclusive aquelas com mobilidade reduzida”, implicando tanto a acessibilidade física como a de comunicação.
Cabe esclarecer que, as normas técnicas, embora sejam de uso voluntário, passam a ter força de lei, quando mencionadas explicitamente no corpo legislativo. É o que ocorreu com as normas de acessibilidade da Associação Brasileira de Normas Técnicas que passaram a integrar à Lei n° 10.098¤2000 e o Decreto n° 5.296¤04.
O termo acessibilidade indica a condição de livre acesso, de possibilidade. Falar em acessibilidade em termos gerais, segundo José Antonio Lanchotti é
“compreender a possibilidade de acesso, da aproximação, da utilização, do manuseio de qualquer objeto, local, ou condição e, tudo isso, deve ser oferecido com facilidade, não exigindo do usuário um esforço excessivo”.[7]
O Decreto n. 5.296¤04 levou o Poder Executivo – Presidente da Republica, a alterar o conceito de acessibilidade definido no artigo 2, inciso I da Lei 10.098¤00, visto anteriormente. No artigo 8, inciso I, desse Decreto, a acessibilidade foi considerada como “condição para utilização com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços…”. (grifo nosso).
Todavia, Marcelo Guimarães assevera que a “acessibilidade assistida” equivale à falta de acessibilidade, pois esse termo é contrário “às noções de independência, autodeterminação, espontaneidade e autonomia que são básicas para o uso ambiental bem sucedido por todas as pessoas”. Mais adiante, o mesmo autor diz que a acessibilidade assistida se constitui como barreiras arquitetônicas para as pessoas com deficiência que se vêem impossibilitadas de utilizarem dos recursos ambientais previstos para sua acessibilidade.[8] (grifo nosso).
Embora as palavras autonomia e independência sejam sinônimas segundo os dicionários convencionais, tais palavras têm significados diferentes dentro do enfoque trazido pelo movimento inclusivista.
“Autonomia”, segundo Sassaki, diz respeito ao domínio do ambiente físico e social, sem tirar a dignidade da pessoa que o está exercendo. Tem como denominador comum o controle maior ou menor da pessoa portadora de deficiência sobre o ambiente em que se locomove. Mais adiante, o mesmo autor esclarece que “independência” se refere à capacidade da pessoa portadora de deficiência em decidir se precisa depender mais ou menos de outrem, certamente, também, relacionada à sua própria identidade, à compreensão exata de sua dimensão, com o mundo que a cerca e autodeterminação com prontidão e decisão daquilo que ela pode desenvolver em termos de realização, que lhe facilitem a independência e a autonomia. Sempre atentas sobre a intensidade maior ou menor, conforme o seu estado físico, mas mais atentos ainda para o que, nesse estado físico dependente, ela possa conseguir ou eliminar.[9]
Será que podemos falar em liberdade e principalmente, em igualdade, se um usuário de cadeiras de rodas necessita ser carregado por um terceiro para adentrar a uma repartição pública porque o local possui escadas? E se ele precisa da ajuda de um estranho para que possa adentrar num transporte publico que não esta acessível? E, se uma pessoa com deficiência visual necessita ser conduzida pelo braço de estranhos para caminhar pelas vias públicas ou outros espaços públicos que se encontram em situações que impeçam a livre e segura circulação?
As pessoas que necessitam do auxílio de outras para alcançar seus objetivos não vivenciam a essência do conceito da acessibilidade universal em nenhum momento.[10]
Só há que se falar em inclusão das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida se houver acessibilidade com autonomia e independência.
Toda a movimentação e deslocamento dessas pessoas devem ser realizados por elas mesmas, em condições seguras e com autonomia, sem depender de ninguém, mesmo que para isso necessite utilizar-se de objetos e aparelhos específicos, por exemplo, uma cadeira de rodas.
O objetivo da acessibilidade é proporcionar a todas as pessoas, e, principalmente às pessoas com deficiência, um ganho de autonomia e mobilidade, para que possam usufruir dos espaços com mais segurança, confiança e comodidade.[11]
A acessibilidade segundo Romeu Sassaki[12] apresenta seis dimensões, quais sejam: acessibilidade comunicacional, que se refere às barreiras de comunicação interpessoal, escrita e virtual; acessibilidade metodológica que requer que não existam barreiras nos métodos e técnicas de estudo, de trabalho, de ação comunitária, de educação dos filhos; acessibilidade instrumental, aquela que exige sejam extintas as barreiras nos instrumentos, utensílios e ferramentas de estudo, de trabalho, de lazer e recreação; acessibilidade programática, que determina que não tenham barreiras invisíveis embutidas em políticas públicas, normas e regulamentos; acessibilidade atitudinal, que se refere às atitudes humanas, nas quais os preconceitos, estigmas e discriminações, nas pessoas em geral, devem ser extirpados, e, acessibilidade arquitetônica, aquela pela qual devem ser eliminadas as barreiras ambientais físicas, de residências, edifícios, espaços urbanos, equipamentos urbanos e meios de transporte individual ou coletivo. É a dimensão mais conhecida, e aquela que nos interessa nesse estudo.
Mas o que são essas barreiras?
Antigamente, quando técnicos e especialistas envolvidos com as condições de movimentação das pessoas com deficiência começaram a buscar termos e definições para seus estudos, todo tipo de obstáculo ou entrave era classificado como “barreira arquitetônica”.
Por muito tempo, este foi o termo utilizado para indicar a existência dos obstáculos que impediam as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida de se locomoverem nos espaços de uso comum da cidade.
A Lei n°10.098¤00 define barreira como sendo qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação com segurança das pessoas, classificando-as em:
“a) barreiras arquitetônicas urbanísticas – as existentes nas vias públicas e nos espaços de uso público;
b) barreiras arquitetônicas na edificação – as existentes no interior dos prédios públicos e privados;
c) barreiras arquitetônicas nos transportes – as existentes nos meios de transporte e,
d) barreiras nas comunicações – qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagem por intermédio dos meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa”.[13]
O Decreto n° 5.296¤04, que regulamentou essa Lei, define as barreiras como qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento, a circulação com segurança e a possibilidade de as pessoas se comunicarem ou terem acesso à informação. E as classifica em barreiras urbanísticas: as barreiras existentes nas vias públicas e nos espaços de uso público e coletivo e nas áreas internas de uso comum das edificações de uso privado multifamiliar. Barreiras nas edificações: as existentes no entorno e interior das edificações de uso público e coletivo e no entorno e nas áreas internas de uso comum nas edificações de uso privado multifamiliar; as barreiras nos transportes: as existentes nos diferentes modos de transporte; e as barreiras nas comunicações e informações: são os entraves ou obstáculos que dificultam ou impossibilitam a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos dispositivos, meios ou sistemas comunicação, sejam ou não de massa, bem como aqueles que dificultem ou impossibilitem o acesso à informação (artigo 8°, II, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”).
Podem-se encontrar, em variados trabalhos, classificações diversificadas destas barreiras e obstáculos, considerando uma ou outra variante como sendo a mais importante.
Uma forma de agrupar estas barreiras, segundo esclarece Lanchotti, é considerar o agente principal causador do impedimento. Embora os elementos causadores possam ser diversos e os efeitos também podem variar de acordo com o indivíduo e suas limitações particulares, as consequências produzidas geram impedimentos ou dificuldades na acessibilidade, também com variados graus de gravidade, dependendo de pessoa a pessoa. Assim sendo, para esse autor, a classificação não será pelas pessoas e, sim, pelo que causa o problema, agrupando-as em barreiras físicas, barreiras tecnológicas e barreiras atitudinais.
“1. Barreiras Físicas – São elementos físicos, de qualquer natureza, produzidos ou naturais, existentes no interior de edificações públicas ou privadas, nos espaços externos às edificações, mas internos aos lotes e que sejam de uso comum, nos espaços urbanos e nos meios de transportes, inclusive o respectivo mobiliário de apoio ou comodidade pública.
2. Barreiras Tecnológicas – São obstáculos gerados por evolução social de certa comunidade ou por avanços tecnológicos que não atenderam às limitações na mobilidade de algumas pessoas, limitando ou impedindo a acessibilidade aos espaços, objetos, determinados aparelhos, às comunicações, ao deslocamento, ao entendimento de certas situações.
3. Barreiras Atitudinais – São posturas da sociedade em geral que geram entraves e que sejam causadas por atitudes de funcionários, moradores, comerciantes, profissionais liberais, os próprios indivíduos prejudicados ou qualquer pessoa da sociedade, por desconhecimento, despreparo, descaso ou ignorância, e que dificultem ou impeçam o acesso, a permanência, o manuseio, o livre deslocamento de pessoas com mobilidade reduzida a locais de uso comum ou qualquer outra atividade social que queiram realizar, participar, presenciar ou contemplar.”[14]
O impacto das barreiras, principalmente das barreiras físicas, encontradas pelas pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida nos espaços e equipamentos urbanos e nos edifícios de domínio público e privado impedem que elas expressem suas habilidades e, especificamente em nosso estudo, que elas consigam circular livremente. Portanto, a eliminação desses obstáculos, através da legislação, da disponibilização de instalações adequadas, do desenho universal[15] e por outros meios, é considerada indispensável para obter a igualdade de oportunidades para elas.
3- Direito ao Acesso ao meio físico da Cidade: Um direito fundamental
A toda pessoa é garantido o direito de ir e vir, estabelecido na Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, assinada pelo Brasil em 10 de Dezembro de 1948, que assegura em seu artigo XIII – 1 “toda pessoa tem o direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado.”
Com a promulgação da Constituição Federal, esse direito vem assegurado como um dos direitos fundamentais previsto no artigo 5º, inciso XV, nos seguintes termos: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.
O direito de locomoção é o direito de ir, vir, ficar e permanecer, constituindo assim na possibilidade ampla que tem o indivíduo de circular livremente, conforme o seu desejo. Nesse sentido, é o magistério de José Afonso da Silva que afirma que o direito de locomoção implica o de circulação. E conceitua o direito de circulação como “a faculdade de deslocar de um ponto a outro através de uma via pública ou afetada ao uso público.” [16]
José Afonso da Silva, reportando-se a doutrina do insigne publicista Pedro Escribano, esclarece que a utilização de vias públicas constitui mais do que uma simples possibilidade, guindando-se ao nível de um direito exercitável erga omnes.
“Independentemente do meio através do qual se circula por uma via pública, o transeunte terá um direito de passagem e de deslocamento por ela, por constituir esta forma de deslocamento a manifestação primária e elementar do direito de uso de uma via afetada. Em conseqüência, a menos que circunstâncias excepcionais o obriguem (a ruína iminente de um edifício), a Administração não poderá legalmente impedir esta utilização, sempre deixando a salvo os direitos dos confinantes.”[17]
À luz do Direito Urbanístico, o direito de locomoção também engloba
“o direito de freqüentar ambientes públicos fechados (direito de acesso arquitetônico), de percorrer ruas, praças e avenidas (direito de trânsito) e de utlilizar-se, nesse trajeto, de meios de transporte público financeira e ergonomicamente acessíveis.”[18]
Considerando que, segundo dados estatísticos do Censo do IBGE de 2000, cerca de mais de 80% da população brasileira vivem em cidades, consequentemente, não há a menor dúvida que o Brasil é um País urbano. Todavia, viver nas cidades continua sendo um grande transtorno e também um grande desafio para inúmeras pessoas que, ao se locomoverem e se movimentarem pelos seus espaços, deparam-se com incontáveis obstáculos econômicos, sociais, e especificamente, com os obstáculos físicos, que as impedem de exercer muito de seus direitos.
Dentre essas inúmeras pessoas que não conseguem usufruir dos espaços das cidades estão, inclusive, as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
É o Município, o principal responsável pela tomada de decisões e das ações executórias das políticas de acessibilidade. É o poder público municipal, a esfera de governo mais próxima do cidadão, e, assim, da vida de todos. Essa proximidade permite, ainda, maior articulação entre os vários segmentos que compõem a sociedade local e, também, a de organizações não-governamentais, de representantes dos interesses privados na elaboração, implementação e avaliação de políticas urbanas.
Afinal, cabe ao Município a promoção do adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo, sendo, portanto, o responsável por formular a política urbana e fazer cumprir, as funções sociais da cidade, possibilitando acesso e garantindo o direito a todos que nela vivem à moradia, aos serviços e equipamentos urbanos, ao transporte público, ao saneamento básico, à saúde, à educação, à cultura e ao lazer e, notadamente, o acesso ao meio físico aos que vivem na cidade (art. 30, VIII e 182 da CF).
A proteção e a adoção de medidas efetivas por parte do Município em assegurar a acessibilidade em seus espaços é, pois, dever indeclinável e se há concurso da União e dos Estados à consecução dessa tarefa, força é concluir que prepondera o interesse e o dever do ente público municipal. Tanto que, o princípio que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual caberá aos Municípios conhecerem os assuntos de interesse local (art. 30, I).
Assim, cabe aos Municípios assegurar às pessoas que vivem em suas cidades, o direito de acesso, permitindo o seu deslocamento com segurança, autonomia e livre de obstáculos físicos. Segundo afirma a Secretária Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Linamara Battistela, “a acessibilidade nos municípios é o primeiro passo para garantir a inclusão (…) ”. Completa a Secretária afirmando que “os Municípios representam a nossa casa, se eles estiverem acessíveis, vão permitir que as pessoas superem as barreiras na escola, do trabalho, e se sintam pertencentes às cidades. E é essa sensação que faz a cidadania”.[19]
Todavia, as cidades, ao longo dos anos, foram sendo construídas e projetadas sem considerar a diversidade humana e continuam fisicamente inacessíveis. Arquitetos e engenheiros utilizam em seus projetos arquitetônicos a escala humana ideal como medida de referência (método Vitruviano[20]). As cidades continuam a contemplar em seus projetos o indivíduo perfeito, de preferência jovem, forte e no ápice de seu vigor físico – capacidades físicas e sensoriais. Esquecem que qualquer indivíduo, a qualquer momento de sua vida, poderá ter sua mobilidade reduzida, nem que seja até mesmo em conseqüência do envelhecimento. Em muitas de nossas cidades, postos de saúde sem rampas, calçadas sem rebaixamento na maior parte das vias de circulação, praças totalmente inacessíveis, transportes públicos sem adaptação adequada dentre outras dificuldades, são projetados e construídos em total desacordo com as normas que dispõem sobre a acessibilidade e, por conseguinte, sem a prática do desenho universal.
Dentro desse contexto, assevera Eduardo Vasconcellos, que a estrutura de circulação na cidade não é construída para os pedestres. As principais barreiras que esbarram as pessoas ao circularem por seus espaços são os problemas de piso e a sua condição física, além das guias das calçadas e, problemas nos veículos de transporte em razão do acesso, circulação interna, acomodação, bem como em seus terminais.[21]
As quatro funções básicas da cidade fixadas na Carta de Atenas de 1933[22]: habitação, trabalho, recreação e circulação, continuam válidas, tanto que, com o advento da Constituição de 1988, elas transcenderam a ciência da arquitetura e do urbanismo e passaram a ingressar em nosso ordenamento jurídico constitucional como princípios da política de desenvolvimento urbano a serem concretizados pelo poder público municipal[23].
Discorrendo sobre essas funções, José Afonso da Silva afirma que “realizar as chamadas funções urbanísticas de propiciar habitação (moradia), condições adequadas de trabalho, recreação e de circulação humana, é realizar, em última instância, “as funções sociais da cidade (CF, art. 182)”.[24] No mesmo sentido aduz Hely Lopes Meirelles que as funções sociais da cidade são aquelas pertinentes à habitação, trabalho,
recreação e circulação.[25]
Para a Adriana Romeiro de Almeida Prado, o principio da função social da propriedade e da cidade pode ser entendido “como a predominância da formulação e implementação das políticas urbanas de interesse comum sobre o direito individual de propriedade, como o uso socialmente justo e ambientalmente sustentável do espaço urbano”, significando o Direito à Cidade “o usufruto equitativo aos espaços urbanos, dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social, como colocados na Constituição Federal de 1988”.[26] No entanto, o que ocorreu é que a função de circulação numa atualização terminológica é substituída pela denominação mobilidade pela amplitude conceitual que o novo termo possui.
A mobilidade é entendida, segundo o magistério de Eduardo Vasconcellos, como a “habilidade de movimentar-se, em decorrência de condições físicas e econômicas.” Neste sentido, assevera o mesmo autor que as pessoas com limitações físicas estariam nas faixas inferiores de mobilidade em relação às pessoas sem problemas físicos de deslocamento. A mobilidade é vista como um atributo associado às pessoas e bens,
“corresponde às diferentes respostas dadas por indivíduos e agentes econômicos às suas necessidades de deslocamento, consideradas as dimensões do espaço urbano e a complexidade das atividades nele desenvolvidas.” [27] ”É a condição necessária de um indivíduo para que possa usufruir as ofertas do espaço de uso comum com autonomia e equiparação de oportunidades.”[28]
A necessidade de circular está ligada ao desejo de realização das atividades sociais, culturais, políticas e econômicas necessárias na sociedade. As pessoas que vivem nas cidades, dentre elas as pessoas com deficiência e/ou com mobilidade reduzida, circulam ou deveriam conseguir se movimentar pelos seus espaços com autonomia, segurança e conforto. Sair de sua residência, conseguir chegar até o seu local de trabalho, buscar algum lazer ou ir a seu trabalho; todas essas possibilidades de deslocamento das pessoas pelos espaços da cidade compõem a mobilidade urbana. Essa necessidade de deslocar dependerá de como a cidade está organizada territorialmente e vinculada funcionalmente às atividades que se desenvolvem em seu espaço.
Segundo o projeto de lei nº 1687/2007 em tramitação no Congresso Nacional, que estabelece o Estatuto da Mobilidade Urbana, mobilidade urbana “é um atributo da cidade, correspondente à facilidade de deslocamento das pessoas e bens no espaço urbano, tendo em vista a complexidade das atividades econômicas e sociais nele desenvolvidas”.[29]
A mobilidade urbana retrata as formas integradas de circulação nas cidades, onde as pessoas, serviços e produtos, devem estar servidos por uma rede de infra-estruturas de trânsito e transportes. Portanto, é tida como um atributo das cidades e se refere à facilidade de deslocamentos de pessoas ou bens pelos seus espaços; corresponde às diferentes respostas dadas por indivíduos e agentes econômicos às suas necessidades de deslocamento. Tais deslocamentos são feitos através de veículos, vias e toda infra-estrutura (vias, calçadas) que possibilitam esse ir e vir cotidiano. [30] Face à mobilidade, os indivíduos podem ser pedestres, ciclistas, usuários de transportes coletivos ou motoristas, bem como podem utilizar do seu esforço direto (deslocamento a pé) ou recorrer a meios de transporte não-motorizados (bicicletas, carroças, cavalos) e motorizados (coletivos e individuais).[31]
Assim, a mobilidade pelos espaços da cidade, segundo assevera José Antonio Lanchotti e Gilda Bruna, é condição básica para a conquista da cidadania de uma sociedade.[32]
Dentro desse contexto, todas as pessoas, inclusive as com deficiência e com mobilidade reduzida, ainda encontram muitas dificuldades para se locomoverem nos espaços da cidade, ficando impedidas de acessar os equipamentos públicos, entrar nos recintos, utilizar o telefone público, utilizar os meios coletivos de transporte, caminhar pelas ruas e calçadas, enfim, passam por dificuldades em seu deslocamento pelo fato de o espaço de uso comum não ter sido executado corretamente. A existência de barreiras físicas de acessibilidade em seus espaços impede o deslocamento dessas pessoas. Cabe aos Municípios planejar suas cidades para incluir essa parcela considerável da população.
Nesse sentido aduz Renato Boareto, em introdução ao Programa Brasil Acessível, que, nos dias atuais, diante dos grandes transtornos sofridos pelas pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida ao tentarem usufruir dos espaços da cidade, a acessibilidade é vista como parte de uma política de mobilidade urbana que deverá promover a inclusão social, a equiparação de oportunidades e o exercício da cidadania dessas pessoas que, ao longo dos tempos, viveram isoladas e excluídas da sociedade.[33]
Por essa lógica, a acessibilidade não pode mais ser vista como uma mera possibilidade de entrar em um determinado local ou veículo, mas sim na capacidade que as pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida terão para se deslocar, se movimentar pelos espaços da cidade, de maneira independente, com autonomia e segurança.
Portanto, tão importante quanto adequar os espaços públicos da cidade para garantir a circulação dessas pessoas, eliminando-se as barreiras existentes, é necessário que o Poder Público municipal não crie diariamente novas barreiras ao projetar ou executar uma nova obra pública ou adaptar uma obra já existente, ou ainda, ao publicar um edital de licitação para prestação dos serviços de transporte público que não contemple a questão da acessibilidade.
Conclusão
Não há a menor dúvida que o Brasil é um País urbano. E, não há menor dúvida que, viver nas cidades continua sendo um grande transtorno e também um grande desafio, principalmente para a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida que, ao se movimentarem pelos seus espaços, deparam-se, ainda, com incontáveis obstáculos físicos, que as impedem de exercer seus direitos em igualdade de condições com as demais pessoas.
A necessidade de circular está ligada ao desejo de realização das atividades sociais, políticas e econômicas necessárias na sociedade. Todas as pessoas deveriam conseguir se locomover pelos seus espaços com autonomia, segurança e conforto, sobretudo às pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Sair de sua residência, conseguir chegar até o seu local de trabalho ou buscar algum lazer; todas as possibilidades de deslocamento das pessoas pelos espaços da cidade compõem a mobilidade urbana. Essa necessidade de deslocar dependerá de como a cidade está organizada territorialmente e vinculada funcionalmente às atividades que se desenvolvem em seu espaço.
Constatamos que o direito de locomoção vem assegurado na Constituição Federal no artigo 5º, inciso XV. Ele inclui o direito de ir, vir, ficar e permanecer, constituindo a possibilidade ampla que tem o indivíduo de circular livremente, conforme o seu desejo. Nesse sentido, o direito de locomoção implica o de circulação. À luz do Direito Urbanístico, esse direito também engloba o direito de frequentar ambientes públicos fechados, de percorrer ruas, praças e avenidas e de utilizar-se, nesse trajeto, de meios de transporte público acessíveis.
A acessibilidade aos edifícios e logradouros públicos, no transporte coletivo e nas suas mútuas interações é regra mínima e básica de cidadania, tanto que, o constituinte, materializou-a no artigo 227, § 2º e no artigo 244. Para dar eficácia a esses dispositivos constitucionais, foram editadas, dentre outras, a Lei 7.853/89, o Decreto nº 3.298/99, as Leis nº 10.048/00 e nº 10.098/00 e o Decreto nº 5.296/04. De uma maneira geral, toda essa legislação visa garantir à pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida a plena integração social, com garantia de acessibilidade aos espaços da cidade.
O direito à acessibilidade é, portanto, uma exigência constitucional que surge, atualmente, como um direito fundamental, notadamente para a pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida.
Para que essas pessoas possam realizar de modo pleno e irrestrito esse direito fundamental e compartilhar os aspectos positivos da urbanização, é essencial que lhes assegure a capacidade de circular pela cidade, onde se desenvolve parcela significativa de sua vida.
É fato que o Município é o principal responsável pela tomada de decisões e ações executivas das políticas de acessibilidade. Esse dever advém, dentre outras fontes, das competências estabelecidas nos artigos 30, I, VIII e 182, todos da Constituição Federal. O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) reconheceu o papel fundamental dos municípios na formulação e condução do processo de gestão das cidades, estabelecendo diretrizes para nortear a elaboração de políticas públicas urbanas. Consolidou e ampliou a competência jurídica da ação municipal.
Portanto, a falta de acessibilidade nos espaços de uma cidade deixa de ser o local de convívio, de encontro, da troca, do compartilhamento (espaços de inclusão social), para tornarem-se locais de exclusão espacial.
a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;
d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
1. comunicação;
Informações Sobre o Autor
Flávia Piva Almeida Leite
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica – PUC – São Paulo/SP, Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru /SP, Pós graduada em Gerente de Cidades pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP – São Paulo – SP, Graduada em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE – Bauru /SP. Professora nas disciplinas de Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direito Tributário nos cursos de Direito das seguintes instituições educacionais: Complexo Educacional das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU, Universidade de Mogi das Cruzes – UMC – Campus Villa Lobos Universidade Paulista – UNIP – Campus Paraíso – São Paulo – SP; e, Universidade Paulista – UNIP, todas em São Paulo – SP.