Resumo: Discorre-se brevemente neste trabalho acerca dos aspectos históricos do direito da infância e da juventude – com o intuito de expor o contexto em que estão inseridos os avanços legislativos hoje existentes em tal ramo. Nesse sentido, relaciona-se o clamor social predominante no final da década de 80, em prol da extensão dos direitos humanos aos infantes, à constitucionalização da proteção a esse grupo, o que acabou por contribuir para a promulgação da lei nº. 8069 (o Estatuto da Criança e do Adolescente) em 1990. Nesse ensejo, apresentam-se os principais dispositivos constantes da Constituição Federal de 1988 sobre o tema, sobretudo o artigo 227, em que se concentram muitos desses direitos constitucionais específicos, mas sem olvidar os direitos fundamentais elencados no artigo 5º e também dispersos por toda a extensão do texto constitucional. Da mesma forma, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente e da interpretação doutrinária acerca dos seus dispositivos, traçam-se as os aspectos principiológicos do direito da infância e da juventude hoje vigente no Brasil.
Palavra-chave: Infância e Juventude, Estatuto da Criança e Adolescente, Constituição Federal.
Abstract: This academic task discourses about the historical aspects of the children and adolescents’ rights – in oder to expose the context wich is inserted the legislative advances in this branch today. Therefore, it relates the prevalent social clamor in the late 80’s in favor of the extension human rights to infants and the constitutionalization of the protection of this group, wich ended up by helping the 8069 Federal Law’s elaboration (the Statute of Children and Adolescents), in 1990. In this occasion, it presents the main legal devices of 1988 Brazilian Federal Constitution about the subject matter, mostly the article 227, wich concentrates many specific constitutional rights, not to mention the fundamental rights listed on the fifth article and also among the constitutional text. Likewise, passed on the Statute of Children and Adolescents and on the doctrinal interpretation of its legal devices, it traces the today’s elementary aspects of the childhood and youth’s rights in Brazil.
Keywords: Childhood and Youth, Federal Constitution, Statute of Children and Adolescents
Sumário: Introdução. 1. Breve relato histórico do direito da infância e da juventude no Brasil. 2. Os direitos das crianças e dos adolescentes na Constituição Federal. 3. O Estatuto da Criança e do Adolescente: aspectos principiológicos. Conclusão.
Introdução
No ordenamento jurídico ordinário brasileiro é aplicável a doutrina da proteção integral, que é aquela que atua buscando garantir todas as necessidades da pessoa enquanto infante, possibilitando o total desenvolvimento de sua personalidade, mediante condutas protetivas.
A Carta Magna brasileira e a legislação menorista vigente, então, atuam com base nos ensinamentos da doutrina da proteção integral, que dá ênfase à proteção especial às crianças e aos adolescentes. Abrangem, portanto, aspectos tal como a criação de programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.
A atenção que atualmente se observa na legislação brasileira nem sempre foi dispensada à infância e à juventude, subsistindo por décadas atitudes estatais repressivas. No que tange à situação dos menores em conflito com a lei, então, não foi diferente. Nos dias de hoje, contudo, o processo formal para a imputação de ato infracional e para a aplicação de medida socioeducativa a menor obedece aos ditames constitucionais e infraconstitucionais (advindos do ECA).
São visíveis os avanços alcançados ao longo dos anos em prol do reconhecimento legislativo estatal do direito dos menores à proteção especial. O ECA veio como um sistema legislativo inovador cerca de dois anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual já havia atendido ao clamor da opinião pública e reservado espaço para a constitucionalização dos direitos dos menores e, em especial, à proteção integral da infância e da juventude.
Dessa forma, mister se faz traçar algumas considerações no que pertine ao desdobramento histórico do direito da infância e da juventude no Brasil, bem assim quanto aos aspectos principiológicos e às principais disposições sobre o tema presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal de 1988.
1. Breve relato histórico do direito da infância e da juventude no Brasil
A evolução legislativa, em amplo sentido, parece óbvia e decorrente do fluir dos tempos e do desenvolvimento do entendimento do homem acerca da necessária relação entre o regramento jurídico e os indivíduos a quem é dedicado. Com o direito da criança e do adolescente não poderia ser diferente, havendo, com o passar do tempo, um aperfeiçoamento legislativo no trato com os infantes.
No entanto, o direito da infância e da juventude mostra-se hoje evoluído de forma peculiar em relação aos demais ramos do Direito, considerando, principalmente, a visível disparidade (a pior) existente entre o tratamento social dedicado aos menores em relação aos adultos em tempos passados. Veja-se que não se fala aqui em disparidade de direitos, e sim se dá ênfase ao comportamento social humano, já que houve época em que sequer existiam direitos positivados reservados aos menores.
Em diversos povos oriundos das civilizações primitivas, como os hebreus, os espartanos e os romanos, as crianças eram consideradas servas da autoridade paterna. Nesse período, segundo Tavares (2001, p. 46), “O pai tinha o terrível jus vitae necis sobre a pessoa do seu filho não emancipado, podendo aliená-lo e, nos tempos mais recuados, até matá-lo”.
Os primeiros sinais de abrandamento desse sistema existente na antiguidade surgiram com o Código de Hamurabi, que trazia disposições favoráveis aos infantes, como a previsão de revogação da adoção quando o adotante não cumprisse o dever paterno de promover a iniciação profissional do adotado. Com a evolução do direito romano, o abrandamento no tratamento da infância e da juventude foi notado, principalmente, a partir da diferenciação entre menores púberes e impúberes na aplicação das punições da Lei das XII tábuas (TAVARES, 2001).
No Brasil, desde a época do descobrimento, a situação de precariedade com que se tratava a infância e a juventude poderia ser verificada, inicialmente, com o abandono dos filhos malquistos das famílias portuguesas mais pobres nas colônias e, logo em seguida, com o abandono dos filhos de escravos e de crianças indígenas que não se encaixavam no quadro social (SOUZA, 2008).
Essa fase da história, inserida entre os séculos XV e XVIII, é conhecida na doutrina como fase da caridade, em que a proteção à infância ficava em maioria por conta da Igreja. Acentua Souza (2008, p. 67) acerca da fase da caridade que “além da visão caridosa das pessoas benevolentes com o sofrimento alheio e o forte conteúdo religioso das ações protetivas, percebe-se a inexpressiva atuação do Estado”.
Foi somente nas Ordenações Afonsinas, seguidas pelas Ordenações Filipinas, que a tutela de menores apareceu pela primeira vez na legislação brasileira. Além disso, mais adiante, no século XIX, o Código Criminal do Império, de 1830, e o Código Penal de 1890 trouxeram disposições destinadas às crianças e aos adolescentes. (CUNHA; LÉPORE; ROSSATO, 2010).
As codificações acima referidas, contudo, restringiam-se à questão da juventude em conflito com a lei, deixando de regulamentar os temas vistos hoje como essenciais, tais como os princípios e os conceitos básicos do direito juvenil, e ignorando, ainda, as tutelas cíveis atinentes à menoridade.
As Ordenações do Reino representavam sistema eminentemente coercitivo, apresentando regras de procedimento absolutamente subjetivas, conforme se vê da transcrição a seguir:
“E se for de idade de dezasete anos até vinte, ficará em arbítrio dos Julgadores dar-lhe a pena total, ou diminuir-lha. E em este caso olhará o Julgador o modo, com que o delicto foi commettido, e as circumstancias dele, e a pessôa do menor; e se o achar em tanta malícia, que lhe pareça que merece total pena, dar-lhe-ha, postoque seja de morte natural.” (Ordenações Filipinas, Título CXXXV).
Observe-se, pelo que se depreende do trecho acima colacionado, que a única distinção em razão de idade estaria na aplicação da sanção: se seria aplicada pena máxima ou não; pena, de qualquer modo, haveria, pois fosse criança, adolescente ou adulto, ocorrido o crime, o agente era criminoso e deveria ser punido.
Ademais, conforme esclarece Tavares (2001, p.51), nas Ordenações Filipinas “A lei concedia, como ‘benevolência’ em face da tenra idade, a execução da pena de morte, a ser aplicada ao menor de 25 e maior de 17 anos, sob a forma ‘suavizada’ de enforcamento simples, o que era chamada então pena de morte natura!” (grifo do autor). Enforcamento simples era o executado sem crueldade.
Percebe-se, assim, que até o início do século XX aos menores apenas cabia a imputação penal, sem delimitação de direitos e deveres de outra ordem a não ser a criminal, não possuindo, ainda que nessa esfera, qualquer distinção significativa de tratamento jurídico em relação aos adultos.
A normatização existente acerca dos menores infratores demonstrava a atitude estatal equivocada e de contumaz repressão, mesmo após a política criminal do Império, em que houve abrandamento no tratamento à infância previsto nas Ordenações. Isso porque, a inserção de dispositivos legais acerca da infância e da juventude em leis estritamente penais, como aconteceu nos códigos de 1830 e de 1890, pouco solucionou a questão.
Tal entendimento foi seguido no Brasil até a criação do código Mello Mattos, em 1927, o qual, de toda sorte, estava longe de reconhecer direitos efetivos às crianças e aos adolescentes.
Não obstante, a lei de 1927 representou algum avanço: primeiramente, em razão de se constituir em uma codificação especial para a infância e juventude, antes não existente; depois, por reconhecer o direito de proteção aos infantes.
O contexto que permeava a promulgação da lei de menores do começo do século XX era de uma sociedade que começava a perceber a necessidade da implantação de políticas sociais e econômicas, notadamente, em razão da influência europeia do período pós-guerra. Era esta a fase da filantropia, em que, nas palavras de Souza (2008, p. 68) “a atuação do Estado continuava tímida e sem projeção social, embora a legislação já imputasse a responsabilidade estatal na proteção dos direitos infanto-juvenis”.
A propósito, vale ressaltar que os avanços na legislação menorista passaram a ser especialmente notados a partir dos tratados internacionais sobre direitos humanos, especialmente em razão da discussão acerca de sua aplicabilidade aos menores.
Após a Declaração de Genebra, datada de 1924, seguida pela Declaração dos Direitos do Homem, de 1928, observou-se a necessidade de discriminação da infância e da juventude em relação aos adultos, o que refletiu no ordenamento jurídico brasileiro e fomentou a criação dos Códigos de 1927 e de 1979.
O direito de proteção reconhecido pelo Código Mello Mattos, entretanto, era muito mais decorrente de deveres do Estado e da família do que propriamente um direito oriundo da situação peculiar das crianças e dos adolescentes como seres em desenvolvimento. Nesse sentido, menor, naquele contexto, eram os abandonados e os delinquentes, com os quais os pais deixaram de cumprir seus deveres, e aos quais o Estado deveria tutelar.
Por óbvio, distante do avanço hoje existente, nessa fase a condição do menor como ser em desenvolvimento não lhe conferia maior consideração no mundo jurídico, pois o entendimento era o de que exatamente por não possuir plena consciência dos seus atos e dos acontecimentos da vida civil, não lhe cabia lugar ativo na sociedade (MELO, 2010).
Assim, se por um lado o Código de 1927 representou um grande passo na construção do direito da infância e da juventude ao legislar com base em referências biológicas e psicológicas do desenvolvimento humano – prevendo a proteção e a assistência à menoridade, por outro lado acabou por estigmatizar o menor de idade como delinquente, traçando medidas, ainda, demasiadamente repressoras. Nessa esteira, refere Melo (2010, p. 165):
“Segundo o artigo 26 [do código Mello Mattos], uma série de situações eram caracterizadas como irregulares, a maioria delas referidas à pobreza ou a vagos padrões de condutas dissonantes da camada dirigente. As consequências, segundo o art. 55 do mesmo código, eram drásticas, todas, de regra, de afastamento da família, de institucionalização de crianças, podendo envolver todas de uma mesma família.”
Salienta-se, nesse sentido, que o direcionamento do código de 1927 aos menores abandonados e delinquentes não se trata de interpretação doutrinária, e sim da expressão literal da lei, nos termos do seu artigo 1º: “O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às medidas de proteção e assistência contidas neste Código”.
Ademais, pode-se perceber pelo preceito legal acima mencionado que não existia diferenciação legal entre criança, adolescente e jovem, utilizando-se a lei apenas da expressão “menor”, da mesma forma que ocorreu nas legislações anteriores e, também, no código que o sucedeu. O agravante, todavia, encontra-se na associação da menoridade à delinquência a partir da aplicação desta lei.
Nessa toada, sobreveio ao Código Mello Mattos o Código de Menores de 1979, que, em verdade, tratou-se de reforma legislativa, trazendo preceitos bastante parecidos e objetivos quase inalterados em relação ao Código anterior. Uma das modificações mais expressivas do novo Código foi a inclusão de um terceiro aspecto de incidência da lei: a vigilância de menores. In verbis:
“Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores:
I – até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular;
II – entre dezoito e vinte e um anos, nos casos expressos em lei.”
Além disso, no inciso I do artigo acima referido estava expressa a doutrina observada pela legislação brasileira acerca da infância e da juventude àquela época: a doutrina da situação irregular, que vinha sendo desenvolvida desde a vigência do Código Mello Mattos.
Segundo Naves (2004, p. 71), a Doutrina da Situação Irregular “alcançava todos os jovens e crianças brasileiras que não se adequassem ao ‘figurino’ do pensamento oficial de uma infância e adolescência enquadradas”. Isso porque, o contexto histórico era de autoritarismo governamental, efetuado pelo regime militar, o que impossibilitou o desenlace do conceito de menor das ideias de indisciplina e de delinquência advindas das legislações anteriores.
Nesta seara, dada a severidade do regramento normativo acerca da menoridade, a muitas crianças e adolescentes em situação irregular foi aplicada a medida de internação após decisão singular do Juízo de Menores, sem que houvesse a participação prévia dos Conselhos Tutelares, como atualmente se recomenda (NAVES, 2004).
Tais menores eram, então, encaminhados para a FEBEM (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), instituição administrada pelos estados federados, anteriormente subdivisão da FUNABEM (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor), órgão federal instituído a partir da vigência do Código de Menores de 1979 (NAVES, 2004).
Em suma, o tratamento reservado aos menores era meramente assistencialista, fase que se iniciou, na verdade, na década de 60. Neste sentido, refere Souza (2008, p. 68) que nesta época a “ideia central era a de recolhimento dos menores carentes, infratores ou não e, a partir das ações iniciais, a completa submissão aos regimes e medidas fixadas pelo Juiz de Menores”.
Cabe lembrar que no ínterim de vigência do Código de 1927, vinte anos antes das alterações que resultaram no Código de Menores de 1979, foi criada a Declaração sobre os Direitos da Criança (1959). A partir daí, em âmbito internacional, as crianças e adolescentes foram reconhecidos como sujeitos de todos os direitos garantidos à pessoa humana e, especialmente, de outros direitos que lhe são essenciais em decorrência da diferença de idade (MELO, 2010).
Sobre a Declaração dos Direitos da Criança, declarou Bobbio (1992, p. 35): “A Declaração dos Direitos da Criança apresenta o problema dos direitos da criança como uma especificação da solução dada ao problema dos direitos do homem”. A ideia insculpida a partir da atenção internacional dispensada às necessidades individuais de determinados grupos era, então, a de desenvolvimento dos direitos humanos pelo tratamento pontual de suas especificidades.
No entanto, como se viu, os reflexos da Declaração dos Direitos da Criança no ordenamento jurídico brasileiro não foram os mais intensos, o que se acredita ter causa no autoritarismo do regime governamental da época. Isso porque, foi na década de 70, após os primeiros sinais da falência do sistema autoritário, que, no ensejo do movimento democrático, iniciou-se o movimento social em prol dos direitos da criança e da juventude no Brasil.
Segundo a bem colocada narrativa de Naves (2004, p. 72) acerca do tema, a “oposição contra a repressão política rapidamente ampliou-se para combate de toda a forma de repressão social, abarcando, como não poderia deixar de ser, a escandalosa situação em que se encontrava a maioria da infância brasileira”.
O movimento pelos direitos da criança e juventude se arrastou ao longo da década de 80, fomentando debates no meio acadêmico, em organizações de classe e no meio empresarial. Os primeiros resultados da movimentação social pela cidadania da juventude brasileira se deram com a Convocação da Assembleia Constituinte e a consequente promulgação da Constituição Federal de 1988, que reservou vasto rol de direitos e garantias aos menores de 18 anos (NAVES, 2004).
A crescente expansão dos direitos humanos pelo mundo foi fator de grande importância para o fim da estagnação legislativa imposta pelo regime autoritário no tocante à área da infância e juventude. Era a comunidade internacional falando aos mais diversos países, inclusive ao Brasil. Portanto, importa referir o raciocínio de Bobbio (1992, p.31) sobre a importância da comoção internacional para o desenvolvimento dos direitos do homem:
“Somente a extensão dessa proteção de alguns Estados para todos os Estados e, ao mesmo tempo, a proteção desses mesmos direitos num degrau mais alto do que o Estado, ou seja, o degrau da comunidade internacional, total ou parcial, poderá tornar cada vez menos provável a alternativa entre opressão e resistência”.
Não por outro motivo, foi com o advento da Convenção sobre os Direitos da Criança que a sociedade internacional passou de fato a refletir acerca do tratamento às crianças e aos adolescentes como sujeitos de direitos e como merecedores de proteção, concomitantemente. Por isso, no Brasil a Convenção de 1989 foi destaque no movimento social em favor da aprovação de um novo texto normativo sobre os direitos da infância e da juventude (MELO, 2010).
Em 14 de julho de 1990, enfim, correspondendo ao engajamento dos diversos setores da sociedade brasileira, foi promulgada a lei 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que, não só por ser a legislação que atualmente vige no país, mas também por representar a maior evolução legislativa no tratamento à menoridade, terá, nos mesmos moldes da Constituição Federal, seus principais aspectos revelados nos próximos itens.
2. Os direitos das crianças e dos adolescentes na Constituição Federal
Conforme anteriormente referido, o desenvolvimento dos direitos da criança e do adolescente no Brasil deu-se, principalmente, em razão da influência das normas internacionais acerca dos Direitos Humanos, que surgiram ao longo do século passado.
Nessa seara, tem-se que o efetivo reconhecimento jurídico dos direitos da infância e da juventude representa a positivação dos direitos humanos internacionais, tornando-os direitos fundamentais. E, por isso, é de essencial relevância relacionar os dispositivos legais constitucionais acerca do tema.
No mesmo sentido, é o entendimento de Cunha, Lépore e Rossato (2010, p. 75):
“pode-se apontar que o reconhecimento jurídico dos direitos da criança e do adolescente se deu no Brasil já em um novo patamar, mais ligado aos processos emancipatórios e constituído por uma concepção de positivação dos direitos humanos, tornando-os fundamentais”.
Aliás, importante referir que foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, um dos principais fundamentos da ideia de Estado e da ruptura do absolutismo. A noção de Estado daquela época, por óbvio, sofreu modificações ao longo dos anos, passando o Estado a ser denominado Estado de Direito, Estado Social de Direito e, finalmente, Estado Democrático de Direito (SOUZA, 2008).
No entanto, já nas primeiras concepções de Estado trazidas pela Declaração de 1789, advinda da Revolução Francesa, havia disposição acerca da criação de uma Carta Maior. Segundo Souza (2008, p. 140), “o documento internacional exigia para a afirmação básica de Estado, à época, que suas ações fossem norteadas e dirigidas por uma Constituição, inclusive com fixação da separação de poderes”.
As primeiras Constituições, com certeza, não representavam a evolução jurídica que se tem hoje, e compilavam direitos individuais dos cidadãos frente ao Estado liberal. No Brasil, a primeira Constituição foi promulgada apenas em 1824, sem que apresentasse grande preocupação com as crianças e com os adolescentes.
Na verdade, em todas as Constituições anteriores a de 1988, rememora Souza (2008, p. 24), “os direitos e interesses relativos à crianças e aos adolescentes foram fixados de forma esparsa, sem adequada sistematização e voltados, com mais ênfase, para os aspectos e medidas repressivas estatais de delinqüentes juvenis” (sic).
A Constituição Federal vigente, portanto, representa o melhor regramento jurídico constitucional em matéria de infância e juventude no Brasil, dispensando à área a atenção e o status merecidos, em prol do progresso legislativo e social do país.
De início, a Constituição Federal de 1988 apresenta a existência do direito de proteção conferido às crianças e aos adolescentes, sem que dispense maior detalhamento. É o que se vê do artigo 6º, que, em suma, identifica a existência do direito e esclarece a sua natureza de direito social. Versa o artigo 6º:
“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
Importa ressaltar a expressão “proteção à maternidade”, pois aqui o bem juridicamente tutelado é a expectativa de vida do nascituro, que possui direitos expressos em lei, embora de efeitos suspensos. Ensina Venosa (2008, p. 135):
“A posição do nascituro é peculiar, pois o nascituro possui, entre nós, um regime protetivo tanto do Direito Civil como no Direito Penal, embora não tenha ainda todos os requisitos da personalidade. Desse modo, de acordo com nossa legislação, inclusive o Código de 2002, embora o nascituro não seja considerado pessoa, tem a proteção legal de seus direitos desde a concepção”.
O nascituro pode receber bens em doação, adquirir bens por testamento, receber pensão alimentícia, entre outros direitos. Portanto, certamente estariam também protegidos pelas regras do direito da infância e da juventude, inclusive, em status constitucional, como se vê.
Contudo, é no artigo 227 que a Constituição Federal ratifica seu ideal de proteção à infância e à juventude, esclarecendo-o e especificando-o desde o caput aos seus 8 parágrafos. Versa o caput do referido dispositivo:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Sobre o tema ressalta Naves (2004, p. 74):
“É preciso dizer, em primeiro lugar, que o Estatuto da Criança e do Adolescente teve, antes de sua promulgação, um importante antecedente: o artigo 227 da Constituição Federal de 1988. De fato, como reflexos das lutas democráticas que já mencionamos, os constituintes, ao definirem os direitos da criança e do adolescente, refletiram no texto, a influência do debate internacional que levaria as Nações Unidas ao consenso da Convenção Internacional dos Direitos da Criança”.
Aspecto relevante desse dispositivo é, finalmente, a existência no texto legal de tratamento dedicado às crianças, aos adolescentes e aos jovens como seres com peculiaridades específicas decorrentes da idade de cada um. A Constituição, no entanto, não trouxe a conceituação de tais sujeitos de direito, mas preparou as terminologias para posterior regulamentação, o que ocorreu no Brasil com o advento do ECA dois anos mais tarde.
O artigo 227, no entendimento de Cunha, Lépore e Rossato (2010, p. 75), “assegura a crianças e adolescentes o status de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, além de conferir-lhes a titularidade de direitos fundamentais e determinar que o Estado os promova por meio de políticas públicas” [grifo dos autores]. A Constituição Federal, assim, reconhece a infância e a juventude como momentos especiais na vida do ser humano.
Ademais, outro aspecto a salientar no caput do artigo 227 da CF é a expressão “com absoluta prioridade”. Tal expressão trata-se do metaprincípio existente no direito brasileiro da prioridade absoluta dos direitos da infância e da juventude, o qual, pelos termos da lei, é destinado à família, à sociedade e ao Estado. É tamanha a importância de tal metaprincípio, que conta com reprodução quase integral no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A proteção das crianças e dos adolescentes, então, trata-se de ação que, para ser efetivada, deve contar com prioridade de assistência, além de integração e união de forças do Estado (por meio da criação de políticas públicas), da família, (com a manutenção da integridade física e psíquica do infante) e da sociedade (possibilitando a convivência comunitária harmônica).
Nessa linha, o artigo 227, § 1º, prevê que o “Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas”.
O Estado, nos termos de tal dispositivo, deve promover programas de assistência à saúde dos infantes, aplicando percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil e, ainda, criando programas de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência (inciso I e II do § 1º do artigo 227 da CF). Já o § 2º traz disposição acerca da regulamentação da regra do § 1º, a qual deve se dar por lei ordinária.
Em continuidade, não se detendo à previsão de prioridade absoluta, o artigo 227, em seu § 3º, especifica os aspectos considerados pela Constituição Federal à proteção especial da infância e da juventude.
Os 3 primeiros incisos do § 3º tratam eminentemente de direitos trabalhistas dos adolescentes e dos jovens, prevendo, nos moldes do que já se lia no artigo 7º da Constituição Federal, a idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, além da garantia de direitos previdenciários e trabalhistas e de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola.
Importa destacar, ademais, que o § 3º do artigo 227 discrimina normas relacionadas ao cometimento de ato infracional. Assim, disciplina que o direito à proteção especial, ainda, abrangerá a garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, de igualdade na relação processual e de defesa técnica por profissional habilitado, além de, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade, garantia de obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
O tratamento aos menores infratores aparece, ainda, no artigo 228 da Constituição Federal, que estabelece serem inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, lhes sendo assegurado o direito à submissão a tribunal especial, que, segundo Cunha, Lépore e Rossato (2010, p.78), será “regido por uma legislação especial e presidido por um juiz igualmente especial, o Juiz da Infância e da Juventude”.
Na última parte do § 3º aparecem, ademais, disposições direcionadas às pessoas em desenvolvimento que necessitam de tratamento especial em decorrência da situação peculiar em que se encontram. Esse é o caso das crianças e adolescentes órfãos e abandonados, bem como dos dependentes de entorpecentes e drogas afins. Versa o artigo 227, § 3º, incisos VI e VII da Constituição:
“O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: (…)
VI – estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;
VII – programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins”.
O § 4º do artigo 227 da Constituição Federal, a seu turno, determina a severa punição do abuso, da violência e da exploração sexual da criança e do adolescente, demonstrando o absoluto repúdio da legislação brasileira com tais práticas. Nesse sentido, asseveram Cunha, Lépore e Rossato (2010, p. 78):
“Note-se que o Constituinte foi enfático no modo de expressar-se: a lei punirá severamente. Examinando a Constituição verifica-se que essa expressão foi utilizada somente no parágrafo mencionado”.
Os §§ 5º e 6º retornam à esfera cível do direito da infância e da juventude: o primeiro, permitindo a adoção de menores de idade brasileiros por estrangeiros, e o segundo, reconhecendo a igualdade de condições entre os filhos havidos dentro e fora do casamento.
Nessa senda, a reponsabilidade dos pais para com os filhos, (havidos dentro ou fora do casamento) resta estabelecida no artigo 229 da Constituição, que diz ser dever dos pais a assistência, a criação e a educação dos filhos menores.
Outrossim, o artigo 227, em §7º, faz referência a outro dispositivo constitucional aplicável aos infantes: o artigo 204, que está inserido no título Da Ordem Social. Por esse dispositivo legal tem-se que o atendimento dos direitos da criança e da juventude está amparado pela assistência social e deve ser prestado independentemente de contribuição à seguridade social.
Importa salientar que com a emenda à Constituição 65/2010[1] a redação de muitos dos parágrafos e incisos do artigo 227, e até mesmo do caput, sofreu alteração. Na verdade, a referida emenda se limitou a incluir o jovem no texto constitucional, alargando a abrangência da lei, que antes protegia a criança e o adolescente apenas.
Não obstante a primeira vista pareça um preciosismo terminológico, tecnicamente a distinção de criança, adolescente e jovem é de elevada importância, como se poderá perceber na sequência ao tratar-se dos conceitos inseridos no ECA. Tal emenda à Constituição implicou em uma nova interpretação do dispositivo legal, a qual se entende bastante positiva, pois instituiu os jovens como parcela da sociedade merecedora da atenção constitucional. Nesse sentido, versa o § 8º da CF:
“§ 8º A lei estabelecerá:
I – o estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens;
II – o plano nacional de juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do poder público para a execução de políticas públicas.”
Cumpre referir, que o oitavo parágrafo do artigo 227 da Constituição Federal foi incluído pela emenda constitucional 65/2010, determinando que a lei estabeleça um Estatuto da Juventude, destinado a regular os direitos dos jovens, e um plano nacional de juventude. No mês de julho de 2013, foi aprovado na Câmara de Deputados o projeto de lei nº. 4.529/04, correspondente ao dito Estatuto, o qual até a data de atualização deste artigo aguarda sanção presidencial.
Necessário dizer que os direitos constitucionais da infância e da juventude não se limitam aos dispositivos acima expostos, pois, na verdade, estes são sujeitos de todos os direitos inerentes ao homem, cabendo-lhes, por exemplo, as garantias e direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição Federal. Ademais, importa mencionar a previsão de inimputabilidade penal, que também é constitucional, estando prevista no artigo 228, sobre o qual se discorrerá oportunamente.
O aqui exposto, portanto, representa um plus oferecido pelo Constituinte ao grupo em estudo, considerando a sua natureza especial de ser em desenvolvimento, bem como sua hipossuficiência presumida. É nesse apanhado de direitos constitucionais que se fundamenta a doutrina da proteção integral, que rege o tratamento dispensado à matéria no direito brasileiro, sobretudo no Estatuto da Criança e do Adolescente.
3. O Estatuto da Criança e do Adolescente: aspectos principiológicos
A lei 8069/1990, conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é a principal regimento jurídico sobre os direitos dos infantes vigente no Brasil. Advindo no ensejo dos dispositivos constitucionais de proteção da infância e da juventude, principalmente do artigo 227, já comentado, o ECA estabeleceu definitivamente a posição desses indivíduos como sujeitos de direito no ordenamento jurídico brasileiro.
Portanto, bem colocado o entendimento de Naves (2004, p. 75):
“se as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos, isto é, têm, a priori, por sua própria condição, direitos inalienáveis, esses direitos podem, por um lado, ser exigidos com base na lei e, por outro, levar aqueles que os violam por desrespeito ou omissão a responderem em juízo por seus atos (sic).”
Nessa senda, o que se depreende do artigo 227 da CF, e o que diz literalmente no Estatuto, é que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, que devem receber cuidados com prioridade absoluta. Por isso, entende-se que o ECA não apenas modificou o tratamento da infância na lei, mas também passou a definir práticas para a efetividade desse novo texto legal, tendo em conta que veio em substituição do já defasado Código de Menores.
Além disso, tem-se que o direito da infância e da juventude brasileiro fundamenta-se na doutrina da proteção integral, surgida a partir da interpretação dos dispositivos constitucionais acerca do tema. Nesse sentido, versa o artigo 1º do ECA: “Esta lei dispõe sobre a proteção integral à infância e ao adolescente”.
Assim, a prioridade absoluta e a proteção integral são as principais regras valorativas que disciplinam esse novo ramo do direito, complementando-se uma a outra, vez que a primeira atua para a efetividade da segunda, e em razão da segunda foi determinada a primeira.
Cunha, Lépore e Rossato (2010, p. 81) doutrinam de maneira bastante didática que “Devido à sua posição axiológica, e à densidade de conteúdo, essas orientações de proteção e prioridade ocupam uma posição de destaque dentro dos princípios do direito da criança e do adolescente, denominando-se metaprincípios” [grifo dos autores].
Ao lado dos metaprincípios, no entanto, e atuando em prol da efetividade desses, existem outras regras valorativas reconhecidas pelo nosso ordenamento jurídico: os princípios e os postulados. Tais regras ganharam destaque no Estatuto após a reforma trazida pela lei 12.010/2009, popularmente conhecida como lei da adoção, que acabou por indicar os valores que regem o sistema de proteção da infância e da juventude no Brasil (CUNHA; LÉPORE, ROSSATO, 2010).
Os princípios e postulados, assim, receberam enfoque no artigo 100 do ECA, em novo parágrafo inserido pela reforma referida. Ali estão elencados os metaprincípios da proteção integral e da prioridade absoluta, o postulado do interesse superior da criança e do adolescente, e os demais princípios derivados, tais qual a já citada condição dos infantes como sujeitos de direito.
O interesse superior da criança e do adolescente, disposto no artigo 100, parágrafo único, inciso IV do ECA, é o postulado que dita a regra de atendimento prioritário às necessidades das pessoas em desenvolvimento, sendo também denominado na doutrina e nas demais legislações, inclusive internacionais, de maior ou melhor interesse do menor.
Ressalta-se que o interesse superior da criança e do adolescente é interpretado como postulado, e não como princípio, pois determina o sistema de concretização das outras normas, até mesmo dos princípios e dos metaprincípios. Nesse sentido, referem Cunha, Lépore e Rossato (2010, p. 83):
“[…] sempre que for necessário, o postulado normativo do interesse superior da criança será acionado, servindo como norte para a aplicação de todos os princípios e regras referentes ao direito da criança e do adolescente. Ele apresenta-se como um exame de razoabilidade quanto à aplicação de uma ou outra norma jurídica, ou quanto à não aplicação de normas positivas, sempre com o objetivo de garantia do melhor interesse da pessoa em desenvolvimento”.
Quanto aos demais princípios, são estes os dispostos nos incisos do parágrafo único do artigo 100 do ECA: responsabilidade primária e solidária do poder público, privacidade, intervenção precoce, intervenção mínima, proporcionalidade e atualidade, responsabilidade parental, prevalência da família, obrigatoriedade da informação, e oitiva obrigatória e participação.
A responsabilidade primária e solidária do poder público, nos termos do inciso III, do parágrafo único, do artigo 100, significa dizer que as três esferas estatais são responsáveis solidariamente pela plena efetivação dos direitos constitucionais e infraconstitucionais assegurados às crianças e aos adolescentes, sem levar em conta qualquer distribuição de competência efetuada na esfera administrativa do poder público.
Salienta-se que, expressamente, o inciso III determina a responsabilidade do poder público independentemente da municipalização do atendimento, pois não podem os infantes manter-se privados de seu direito em razão de formalidades burocráticas. Principalmente, porque se deve observar o postulado do melhor interesse do menor, garantindo-se, assim, a proteção integral e a prioridade absoluta das pessoas em desenvolvimento.
Verifica-se, exemplificativamente, por meio do inciso III, mencionado acima, que os princípios derivados constantes do artigo 100, bem como as demais regras valorativas que se podem encontrar ao longo do Estatuto, constroem um conjunto de normas que atua em prol da efetividade dos metaprincípios da proteção integral e da prioridade absoluta.
Nesses termos, para que as crianças e os adolescentes sejam integralmente protegidos e tenham prioridade absoluta de tratamento, devem ter sua intimidade e imagem preservadas (inciso V) e devem sofrer intervenção estatal logo que seja conhecida situação de risco (inciso VI), intervenção esta que deve ser executada exclusivamente por autoridade cuja ação seja indispensável (inciso VII), a fim de que recebam o tratamento necessário e adequado à situação em que se encontrem (inciso VIII).
Ademais, a importância da presença dos pais nessa fase de desenvolvimento é ressaltada pelos princípios constantes dos incisos IX e X: a intervenção estatal deve ser efetuada de modo que os pais passem a assumir os seus deveres para com os filhos, devendo-se dar preferência a medidas que mantenham ou reintegrem o infante na sua família natural, somente o colocando em família substituta depois de esgotada tal possibilidade.
Evidencia-se que, não obstante os princípio e o postulado aqui tratados estejam listados no artigo 100 do ECA, que versa sobre as medidas de proteção, entende-se que sua aplicação é extensiva a todo ordenamento jurídico que regula o tema. No mesmo sentido, se posicionam Cunha, Lépore e Rossato (2010, p. 87):
“(…) sob a ótica do postulado normativo do interesse superior da criança e do adolescente, pode-se pensar em uma extensão desses princípios a todo o direito da criança e do adolescente, aplicando-os para todas as esferas de alcance das normas que regulam as relações que envolvem as pessoas em desenvolvimento, isso porque, eles revelam um espectro muito amplo de incidência.”
Relacionados os principais valores que determinam o direito da criança e do adolescente, cabe conhecer quem são esses indivíduos, segundo a legislação. Tal conceituação aparece no artigo 2º do Estatuto, conforme segue: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até 12 (doze) anos incompletos, e adolescente aquele entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade”.
Veja-se que o Estatuto, portanto, vai além da Convenção sobre os Direitos da Criança, para a qual toda pessoa com menos de dezoito anos é criança, sem fazer distinção em relação aos adolescentes, o que não significa contrariar a norma de direito internacional. Além disso, a Convenção deixou aberta a possibilidade de os Estados partes considerarem atingida a maioridade antes dos dezoito anos de idade, opção não adotada pelo ordenamento brasileiro. (CUNHA; LÉPORE; ROSSATO, 2010).
Nessa toada, o legislador brasileiro optou por distinguir os menores de idade em razão do nível de desenvolvimento em que se encontram, traçando tratamentos discriminados para as crianças e a para os adolescentes, a fim de dedicar a cada grupo atenção especial concernente à idade. No entanto, ressaltam Murilo Digiácomo e Ildeara Digiácomo (2010, p. 04) que “Trata-se de um conceito legal e estritamente objetivo, sendo certo que outras ciências, como a psicologia e a pedagogia, podem adotar parâmetros etários diversos”.
Um exemplo dessa diferenciação de tratamento entre criança e adolescente pode ser visto na hipótese de colocação desses indivíduos em família substituta, em que a criança pode apenas opinar, enquanto o adolescente deve consentir a medida (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, artigo 28, §§ 1º e 2º).
Outrossim, há outras situações no decorrer do texto legal em que a distinção entre criança e adolescente pode ser observada. No entanto, hipótese que merece destaque é a dos artigos 100, 101 e 112 do ECA, haja vista ser, em parte, concernente a este trabalho. Trata-se da aplicabilidade de medida adequada ao autor de ato infracional, sendo ao adolescente aplicável medida de proteção ou medida socioeducativa, enquanto à criança, apenas medida de proteção.
Cabe referir, ainda, no que tange às disposições do artigo 2º, o previsto no seu parágrafo único: “Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade”.
Segundo Murilo Digiácomo e Ildeara Digiácomo (2010, p. 05), o legislador optou por “contemplar o atendimento de jovens adultos, de modo a evitar que o puro e simples fato de o indivíduo completar 18 (dezoito) anos, acarrete seu ‘desligamento automático’ dos programas de proteção e promoção social”.
Assim, os chamados jovens adultos, entre os quais estão compreendidos os indivíduos com idade entre 18 e 21 anos, quando estiverem cumprindo medida socioeducativa, podem permanecer sob a tutela do Estado, devendo ser liberados compulsoriamente ao completarem a idade limite, nos termos do que prevê o artigo 121, § 5º do ECA.
Cunha, Lépore e Rossato (2010, p. 91) lembram, contudo, de outras duas importantes hipóteses em que a lei nº 8069/90 (o ECA) é aplicável aos jovens adultos: “Procedimento de adoção, desde que o jovem adulto já esteja sob a guarda ou tutela dos adotantes quando do atingimento da maioridade […] e Tutela coletiva dos direitos fundamentais de jovens adultos em cumprimento de medida socioeducativa”.
Em sequência, versa o artigo 3º do ECA:
“A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.”
Como já referido anteriormente, as disposições de lei, constitucionais ou não, que tratam especialmente de crianças, de adolescentes e de jovens representam um acréscimo na atenção dispensada a esses grupos. No entanto, não há prejuízo de que todos os outros direitos fundamentais aplicáveis aos adultos também se apliquem à infância e à juventude no que couberem.
Referem Murilo Digiácomo e Ildeara Digiácomo (2010, p. 05) acerca do artigo 3º do ECA, que “Tal disposição é também reflexo do contido no art. 5º, da CF/88, que ao deferir a todos a igualdade em direitos e deveres individuais e coletivos, logicamente também os estendeu a crianças e adolescentes”.
O artigo 4º do Estatuto, por sua vez, praticamente reproduz a primeira parte do artigo 227 da Constituição Federal, prevendo ser dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar aos infantes direitos, tais como à vida, à saúde, à educação e à convivência familiar, com prioridade absoluta.
Sobre o dispositivo acima referido, asseveram Murilo Digiácomo e Ildeara Digiácomo (2010, p. 06):
“A clareza do dispositivo em determinar que crianças e adolescentes não apenas recebam uma atenção e um tratamento prioritários por parte da família, sociedade e, acima de tudo, do Poder Público, mas que esta prioridade seja absoluta (ou seja, antes e acima de qualquer outra), somada à regra básica de hermenêutica, segundo a qual ‘a lei não contém palavras inúteis’, não dá margem para qualquer dúvida acerca da área que deve ser atendida em primeiríssimo lugar pelas políticas públicas e ações de governo, como aliás expressamente consignou o parágrafo único, do dispositivo sub examine.”
Aliás, o próprio artigo 4º, em seus incisos, direciona o intérprete para as principais áreas em que a criança e adolescente possuem prioridade de atendimento, bem como orienta a execução da previsão legal. Com isso, os ditames dos artigos 4º do ECA e 227 da CF acabaram por ser disseminadas ao longo do Estatuto, refletindo, por exemplo, no artigo 259, parágrafo único, in verbis: “Compete aos estados e municípios promoverem a adaptação de seus órgãos e programas às diretrizes e princípios estabelecidos nesta Lei”.
Nesses termos, tem-se que os serviços públicos (ou relacionados) devem se adequar ao atendimento prioritário às crianças e aos adolescentes, criando estruturas adequadas e com pessoal capacitado, ou organizando as já existentes. É, por isso, que serviços como os do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) devem ser realizados com o máximo de celeridade e por equipe habilitada (DIGIÁCOMO, I.; DIGIÁCOMO, M., 2010).
O artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, da mesma forma, trata-se de desdobramento do disposto no artigo 227, caput, da Constituição Federal, prevendo que “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
No mesmo sentido, por se tratar de regra geral do direito da infância e da juventude, pode-se encontrar ao longo do ECA outros artigos que asseveram a previsão do artigo 5º. É o que se observa do artigo 18, que em evidente desenvolvimento do mencionado dispositivo, dispõe: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
Por fim, cabe referir a disposição do artigo 6º, que discorre acerca da interpretação dos dispositivos legais constantes do ECA. Segundo tal enunciado, o interprete deverá considerados: a) os fins sociais a que se dirige o Estatuto; b) as exigências do bem comum; c) os direitos e deveres individuais e coletivos; e d) a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Rememora-se que o direito da infância e da juventude – que é regido no Brasil, principalmente, pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais tiveram suas disposições preconizadas pelas normas internacionais de Direitos Humanos – se fundamenta nos princípios, metaprincípios e postulados referidos no decorrer deste tópico.
Dessa feita, as diretrizes valorativas, sobre as quais aqui se discorreu, devem ser consideradas pelo intérprete em conjunto com as hipóteses do artigo 6º, a fim de que seja alcançada a intenção do legislador, dando-se efetividade aos direitos das crianças e dos adolescentes.
Conclusão
Expôs-se, brevemente, o histórico do Direito da Infância e da Juventude no Brasil. A partir daí, já se pode observar que a legislação atualmente existente sobre o tema, não é apenas historicamente evoluída dentro do seu ramo, como também é atualizada de forma peculiar em comparação aos demais ramos do direito brasileiro.
A promulgação da Constituição de 1988 trouxe significativas mudanças no trato dos direitos atinentes às crianças e aos adolescentes. Nessa seara, se percebe que a inserção dos direitos dos infantes na Constituição Federal e, a consequente promulgação da lei 8069/90 (o ECA), faz comprovar que em matéria de legislação a infância e a juventude brasileira estão bem amparadas.
A doutrina da proteção integral e todos os princípios a ela relacionados, bem assim os dispositivos legais que a traduzem, armam um aparato jurídico que tem tudo para dar certo ao serem postos em prática.
Portanto, a conclusão a que se pode chegar é que não é por carência de previsão legal que se dão a maioria das problemáticas envolvendo crianças e adolescentes no Brasil. Percebe-se, em uma rasa análise, que as mazelas que assolam a infância e a juventude brasileira (prática infracional, abandono, maus-tratos, etc.) possuem causas mais profundas, as quais se arrisca dizer são de fundo social e político.
Assim, por todo o estudado, entende-se que enquanto medidas que atinjam de forma mais efetiva as causas das questões da infância no Brasil não se consolidam a partir de atividades estatais mais eficientes, deve-se, em âmbito jurídico, procurar interpretar a lei rumo ao aperfeiçoamento do sistema de proteção das crianças e dos adolescentes existente, sempre visando à eficácia da previsão legal.
Informações Sobre o Autor
Valéria Cabreira Cabrera
Bacharela em Direito da Universidade Federal do Rio Grande