Diretivas Antecipadas de vontade no ordenamento jurídico Brasileiro

Resumo: O presente artigo visa investigar e entender as funções de alguns princípios e normas Constitucionais e infraconstitucionais que possam viabilizar a instituição no Brasil, das diretivas antecipadas de vontade. Para tanto, recorreu-se à necessária leitura de doutrinas que abordem este ramo do direito, bem como as Resoluções emitidas pelo Conselho Federal de Medicina sobre o tema. O estudo envolve a contextualização hermenêutica necessária para avaliar e realizar as ponderações pertinentes aos desajustes entre o horizonte normativo da Constituição de 1988 e a conduta dos Poderes legislativo e judiciário, que timidamente iniciam a desmistificação sobre o assunto.

Palavras- chave: Diretivas Antecipadas. Autonomia. Dignidade humana.

Abstract: This article aims to analyze and understand the functions of some Constitutional principles and standards and infra that can enable the institution in Brazil, the advance directives of will. Therefore, we used the required reading doctrines that address this area of law and the resolutions issued by the Federal Council of Medicine on the topic. The study involves the hermeneutic context necessary to evaluate and carry out the relevant weighting the discrepancies between the normative horizon of the 1988 Constitution and the conduct of legislative and judicial powers, timidly begin the demystification about it.

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Keywords: Advance Directives. Autonomy. Human dignity.

Sumário: Introdução. 1. Princípios constitucionais aplicáveis em situações de terminalidade de vida versus direito à vida. 1.1. O principio da autonomia privada. 1.2 O princípio da Dignidade da pessoa humana. 1.3. Direito à vida versus a autonomia do paciente no processo da morte digna. 2. Distinções acerca do conceito de diretivas antecipadas de vontade e temas correlatos. 3. Diretivas antecipadas de vontade no direito comparado. 4. As diretivas antecipadas de vontade e seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro. 4.1. A Resolução n. 1.805 de 2006 do CFM. 4.2. Ação civil pública n° 2007.34.00.014.809-3. 4.3. Resolução do CFM n° 1.931/2009 – o atual código de ética médica. 4.4. Resolução n° 1.995 de 2012 do CFM. 4.5. Ação civil pública n° 103.86.2013.401-3500. 5. As perspectivas legislativas das diretivas antecipadas de vontade no Brasil. Conclusão. Referências.

Introdução

Ao longo dos anos a medicina evoluiu substancialmente, sobretudo no tratamento e cura das diversas enfermidades que nos acometem. A tecnologia atual, não só elevou as possibilidades de cura dos pacientes, como também aumentou a busca médica pela cura a qualquer custo, mesmo que o insucesso do tratamento seja comprovado cientificamente. A vida humana tem sido prolongada para além daquilo que é adequado, contudo, a morte permanece irremediável e por muitas vezes mais dolorosa do que deveria ser. 

Sentir dores descomunais e não ter mais forças para suportá-las, faz com que o indivíduo reflita sobre o que preconiza a atual Constituição Brasileira onde, em hipótese alguma, o ser humano estará obrigado a passar por tratamentos que cominem no desrespeito à sua dignidade. Apesar de a vida ser um direito fundamental, como todo direito ele não é absoluto, por isso é inconcebível que uma pessoa seja obrigada a submeter-se a tratamentos médicos degradantes visando apenas prolongar dolorosamente a sua existência.

Nesse contexto, discute-se hodiernamente a autonomia do paciente e a preservação de sua dignidade no fim da vida, o que pode ocorrer por intermédio das diretivas antecipadas de vontade.

Desse modo, o presente trabalho visa analisar a efetividade das diretivas antecipadas de vontade em nosso ordenamento jurídico e como podem contribuir para a chamada “morte digna”.

Para cumprir essa aspiração, o trabalho foi disposto e desenvolvido com as conseguintes especificações: em primeiro lugar, buscou-se analisar a eficácia da autonomia privada do individuo nas diretivas antecipadas e no gerenciamento de seus tratamentos médicos. A seguir, com a proposta de distinção entre dignidade da pessoa humana e direito a vida, buscou-se estabelecer qual garantia Constitucional deve prevalecer quando ocorrer situações conflitivas, sob a luz da técnica de ponderação de interesses utilizada por alguns autores pátrios.

Em continuidade, trabalhou-se o significado do termo “diretivas antecipadas de vontade”, fazendo algumas distinções com expressões correlatas; seu contexto histórico além de uma breve análise do direito comparado.

Por fim, apontou-se as resoluções do Conselho federal de medicina sobre o tema e debateu-se as perspectivas legislativas das diretivas no Brasil.

Em linhas gerais, com base nas premissas apresentadas neste escrito, é este o contexto que prepara o campo para o estabelecimento da norma que, enfim, dê a passagem livre para serem efetivadas, em território pátrio, as diretivas antecipadas de vontade fundadas em um Estado Democrático de Direito em respeito ao ser humano para que tenha vida digna e alcance consequentemente à morte com dignidade.

1. Princípios constitucionais aplicáveis em situações de terminalidade de vida versus direito à vida

1.1 O princípio da autonomia privada

O conceito de autonomia, por ser historicamente atrelado ao ser humano, evoluiu junto com a sociedade compartilhando com ela seus infortúnios e sucessos. Na esfera jurídica, a autonomia do indivíduo é consagrada por meio de princípios.  Inicialmente temos o princípio da autonomia da vontade, que com o passar do tempo foi sucedido pelo princípio da autonomia privada, sendo que este tem conteúdo diverso daquele. 

Segundo Luciana Dadalto (2009, p.17), o princípio da autonomia da vontade é corolário do Estado liberal, onde este intervinha minimamente nas relações privadas. Essa situação culminou no surgimento da justiça formal, circunstância em que o Estado era inerte diante de possíveis injustiças sociais desde que os atos que as causaram estivessem de acordo com a legislação vigente no momento dos fatos. Aqui, a vontade do indivíduo se sobrepunha à do Estado devido a sua auto-suficiência.

 Assim, esclarece Maíla Mello Campolina Pontes e Maria de Fátima Freire de Sá A expressão autonomia da vontade tem sua memória ligada ao liberalismo. Com a propriedade privada afigurava-se como princípio que regia a concepção de um sistema de direitos negativos perante o Estado e a outros cidadãos, possibilitando, dessa maneira, a cada indivíduo a realização de seus interesses e inclinações individuais sem a intervenção estatal. […] assim, vigia uma noção de autonomia ilimitada. (MELLO, SÁ; 2009 p.43)”

Dadalto (2009, p17), prossegue afirmando que após a Primeira Guerra Mundial, com o aumento do processo de industrialização, a autonomia privada começou a superar a autonomia da vontade, pois neste momento o Estado estava preocupado em garantir a justiça material para todos e para isso, a intervenção nas relações privadas foi um mal necessário. Esse fenômeno recebeu o nome de dirigismo contratual. Nesse sentido Mello e Sá ressaltam[…] a visão da autonomia precisou ser novamente trabalhada e com isso, uma nova concepção que primava pela proteção dos interesses coletivos foi sendo delineada. Foram estabelecidos limites à livre atuação dos indivíduos e da sociedade como um todo por meio da ideia de função social. ((MELLO, SÁ; 2009 p.44)”

Destarte, Dadalto (2009.p.37) completa dizendo que a autonomia privada do indivíduo deve ser entendida como a possibilidade, o poder de perseguir seus interesses individuais sem que isso implique em choque com a autonomia pública, conservando assim, a coexistência de todos os projetos de vida dos cidadãos.

Desse modo, apesar da intervenção estatal, o princípio da autonomia privada se relaciona com a ideia de liberdade e por consectário lógico, com a autodeterminação do indivíduo. Nesse viés, no que tange aos pacientes em estado terminal de vida, este princípio caminha juntamente com o princípio da bioética do respeito à pessoa, uma vez que este trata da capacidade do paciente de decidir sobre o tratamento ou experimento a que será submetido. Consequentemente temos que: O princípio da autonomia requer que o médico respeite a vontade do paciente ou do seu representante, assim como os seus valores morais e crenças. Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida e o respeito à sua intimidade. Limita, portanto, a intromissão dos outros indivíduos no mundo da pessoa que esteja em tratamento (NAVES; REZENDE, 2007 p.97/98)”

Ao lado do supracitado princípio bioético do respeito à pessoa, temos o direito à informação, assegurado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) em seu artigo 5°, inciso XIV, como direito fundamental. Nesse sentido, a verdade é essencial na relação médico paciente de forma a permitir o exercício pleno e inequívoco da autonomia deste.

Por sua vez, Sá (2001, p.64) destaca o direito à informação, unido ao surgimento do então chamado consentimento informado, elemento que resulta de um processo de colaboração entre médico e paciente visando satisfazer os valores e desejos deste. Assim, o Novo código de ética médica, Resolução 1931/2009, em diversos momentos, dispõe acerca do consentimento informado do paciente, sendo vedado ao médico “Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009)”

Recentemente, parte da doutrina tem usado a expressão “consentimento livre” ao invés de “consentimento informado”, sob o argumento de que aquela é mais ampla do que esta, já que visa anuência do paciente despida de qualquer ingerência por parte de terceiros e associada à informação de qualidade. Nesse sentido […] o ato de consentir tem que ser qualificado, ou seja, livre de qualquer ingerência externa capaz de viciar a decisão do paciente. […] Os defensores desse consentimento qualificado entendem que sua validade não se atém à liberdade de escolha frente à informação e exigem que essa informação seja um esclarecimento pleno sobre todas as implicações inerentes ao tratamento. (MATOS, 2007, p. 201).”

Desse modo, diante da livre e inequívoca manifestação de vontade do paciente, precedida de informações claras, objetivas e sem quaisquer condicionantes externos, teremos assegurado o respeito às vontades do indivíduo sobre a administração de seu tratamento médico e sobre o seu direito de morrer dignamente. Portanto, as diretivas antecipadas de vontade constituem o documento apto a concretizar validamente a autodeterminação do indivíduo, já que seu objetivo maior é preservar os interesses daqueles que por motivos clínicos não conseguem expressar os seus desejos acerca dos cuidados médicos que se dispõe ou não a receber.

1.2O princípio da Dignidade da pessoa humana

Dentre os princípios fundamentais que são caracterizados como base axiológica para todo o ordenamento jurídico, temos a Dignidade da pessoa humana, que está localizado entre os pilares do Estado Democrático de Direito, no artigo 1º, inciso III, da CRFB/88 que desse modo dispõe: Art.1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:a soberania;a cidadania;a dignidade da pessoa humana;os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa[…].(BRASIL,1988)”

Rodrigo da Cunha Pereira (2012, p. 116/117) explica que a expressão “dignidade da pessoa humana” surgiu no ano de 1785 na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant. Nela, Kant afirma que o homem jamais deve ser transformado num instrumento para a ação de outrem, isso porque é dotado de consciência moral possuindo um valor que o torna sem preço, que o põe acima da condição de coisa. Kant assevera ainda, que o valor intrínseco que faz do homem um ser superior às coisas é a dignidade, assim, as coisas teriam um preço e o homem dignidade.

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De acordo com Alexandre de Moraes, a dignidade da pessoa humana pode ser considerada como “[…] um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que trás consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo o estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos (MORAES, 2007, p.60)”.

Dignidade da pessoa humana é, portanto, um macroprincípio sobre o qual irradiam outros princípios e valores essenciais ao Estado democrático de direito, como a autonomia privada, cidadania e igualdade. Portanto, não é exagero dizer que se trata do respaldo necessário para o exercício dos demais direitos, visto que é inerente a todo e qualquer ser humano devendo, por esse motivo, ser permanentemente protegido.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, ressaltam a concepção de que a dignidade humana é o mais precioso valor do ordenamento jurídico brasileiro ao afirmarem […] o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pela Constituição de 1988 é a dignidade humana, vinculando o conteúdo das regras acerca da personalidade jurídica. Assim, como consectário, impõe reconhecer do ser humano o centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e para a sua realização existencial, devendo garantir um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade. (FARIAS, ROSENVALD,2011, p.136)”.

Por ser um valor intrínseco ao ser humano e precioso para nossa ordem jurídica, a dignidade deve ser respeitada não só pelo Estado, mas por todos, de acordo com as peculiaridades/subjetividade de cada pessoa. Nesse sentido, não só a dignidade da vida, mas também a da morte, ganha contornos particulares que deve alcançar o respeito da sociedade, assim Há a evidente violação à dignidade da pessoa no momento em que se inicia tratamento sabidamente ineficaz face à inevitabilidade da morte e irreversibilidade do processo que a ela conduz. Há certamente postergação da morte com sofrimento e indignidade, mas não haverá prolongamento da vida. A sua vontade – elemento estritamente subjetivo – é ignorada. E finalmente, ao prolongamento artificial de seu processo de morrer, ocorre alienação em relação à sociedade e à sua própria vida, pois nem pode exercer as relações sociais com dignidade, e nem pode “viver” naturalmente, ou seja, terminar de viver naturalmente. (DAYRELL, 2010 p. 23)”.

Conclui-se, portanto, que a dignidade é principio e fim do direito hodierno que deve prevalecer inclusive, nas situações de terminalidade de vida, por isso, diante da ausência legislativa brasileira acerca das diretivas antecipadas de vontade, o principio da dignidade da pessoa humana é alicerce legítimo para assegurar sua validade em nosso país.

1.3Direito à vida versus a autonomia do paciente no processo da morte digna

Encontra guarida no artigo 5°, caput da CRFB/88 o direito à vida como sendo a base para o exercício de todos os outros direitos fundamentais, e por esse motivo, possui como características intrínsecas a inviolabilidade e inalienabilidade.

Diante da consagração constitucional do direito à vida e também dos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, como agir diante do conflito existente entre o direito à vida e a busca da efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana no momento da morte? Como considerar legítima em território pátrio as diretivas antecipadas de vontade se de certo modo elas confrontam com o direito à vida? Como garantir ao paciente terminal uma morte digna?

O ilustre doutrinador Paulo Nader, faz considerações acerca de possíveis conflitos entre princípios e normas constitucionais, onde segundo ele, deve-se sempre tentar assegurar a primazia da dignidade da pessoa humana aplicando-se a chamada técnica de ponderação de interesses utilizada por alguns autores da áreaA fim de assegurar a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, alguns autores sustentam a chamada técnica de ponderação de interesses, aplicável diante de conflito entre princípios garantidos pela Lei Maior.Tendo em vista a Constituição Federal de 1988 dispõe amplamente sobre os interesses da pessoa, da sociedade e do Estado, é possível que, diante de fatos concretos, o aplicador constate antinomia entre os próprios princípios constitucionais. Neste caso, de acordo, com a técnica de ponderação de interesses, preconiza-se a adoção do critério que mais satisfaça à dignidade da pessoa humana. (NADER,2010,p 63)”.

Continuando a linha de raciocínio, a Constituição de 1988, em seu artigo 5° inciso III, garante que ninguém será submetido a tratamento degradante ou desumano. Em complemento, a norma prevista no artigo 15 do Código Civil de 2002 dispõe que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”, em razão também do princípio da liberdade ao próprio corpo.

Desse modo, podemos aliar estes dispositivos legais à técnica de ponderação, que legitima a supremacia do princípio da dignidade da pessoa humana sobre os demais princípios e direitos, e à autonomia privada do paciente terminal, como forma de afastar a lesão ao direito à vida diante da adoção das diretivas antecipadas de vontade.

 Em síntese, Sá esclarece brilhantemente este dilema ao afirmar que “A obstinação em prolongar o mais possível o funcionamento do organismo de pacientes terminais, não deve mais encontrar guarida no Estado de direito, simplesmente, porque o preço dessa obstinação é uma gama indivisível de sofrimentos gratuitos, seja para o enfermo, seja para os familiares deste. O ser humano tem outras dimensões que não somente a biológica, de forma que aceitar o critério da qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da pessoa. O prolongamento da vida somente pode ser justificado se oferecer às pessoas algum beneficio, ainda assim, se esse beneficio não ferir a dignidade do viver e do morrer. (SÁ, 2001, p.59)”.

Assim, por mais preciosa que a vida seja, ela só tem sentido e valor dentro do conceito de dignidade humana, que como já debatido, é de cunho altamente subjetivo. Não faz sentido transformar o direito à vida em dever. A tutela do Estado no que diz respeito ao Direito à vida, deve entender que uma vida ao passo de não mais conseguir ser digna e fugir dos parâmetros de mínimo de qualidade, não deve mais ser mantida forçosamente, o Estado teria a obrigação de assegurar ao enfermo o Direito de morrer dignamente.

2. Distinções acerca do conceito de diretivas antecipadas de vontade e temas correlatos           

As diretivas antecipadas de vontade surgiram no final da década de 1960 como respostas à excessiva e contraproducente intervenção médica nos casos de terminalidade de vida. De acordo com o artigo 1° da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n.1995/2012, tem-se por Diretivas antecipadas de vontade Art. 1º (…) conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2012)”.

Completando tal definição, Dadalto (2009, p.59) determina que em linhas gerais as diretivas antecipadas de vontade podem ser consideradas como um documento escrito por pessoa capaz cujo objetivo é dispor sobre tratamentos médicos aos quais porventura venham a submeter-se, desse modo as diretivas antecipadas são gênero que tem como espécies, o mandato duradouro e o testamento vital.

Por testamento vital, segundo Dadalto (2009, p. 53) entende-se o documento que se restringe a tão somente declarar os desejos do paciente que se encontra em terminalidade de vida, onde este disporá sobre os tratamentos que deve ou não receber, podendo abrir mão daqueles que considerar extraordinários. Já o mandato duradouro é o documento pelo qual há a nomeação de uma pessoa responsável por tomar decisões em nome do paciente quando este não puder fazê-lo.

Assim, as diretivas antecipadas de vontade, basicamente são o documento resultante da união entre o testamento vital e o mandato duradouro, isso porque não visa tão somente à declaração de vontade do individuo sobre seus tratamentos médicos, como também a sua efetividade através de um procurador que garanta o seu cumprimento.

Através das diretivas, o indivíduo poderá recusar o recebimento dos chamados tratamentos extraordinários. Maria Elisa Villas Bôas assim define e distingue os tratamentos extraordinários dos ordinários […] as medidas ordinárias de manutenção da vida são aquelas habitualmente disponíveis, pouco dispendiosas e menos agressivas, aceitas comumente como cuidados básicos devidos ao doente grave ou terminal, como os são todos os enfermos. Entre elas se situa, por exemplo, para a maioria, a nutrição e a hidratação artificialmente providas àquele que já não pode alimentar-se por via oral. As medidas extraordinárias, por essa classificação, abrangem cuidados específicos, restritos a alguns casos, custosos, limitados, arriscados e, por tudo isso, de uso mais criterioso. (BÔAS, 2005, p. 47)”.

Por paciente em estado terminal de vida, entende-se aquele que está acometido por doença incurável e irreversível, independentemente de receber ou não tratamento médico, onde a morte é fato que se dará de forma imediata ou em curto espaço de tempo. A sociedade espanhola de cuidados paliativos (SECPAL) traça como elementos caracterizadores dessa situação a presença de doença avançada, progressiva e incurável, aliada a falta de possibilidade razoável de resposta a tratamentos específicos, com inúmeros problemas ou sintomas intensos que causem grande impacto emocional no paciente, família e equipe médica e que o prognostico de vida seja inferior a seis meses.[1]

Também relacionados às diretivas antecipadas, estão os conceitos de eutanásia, ortotanásia, distanásia, mistanásia e suicídio assistido, que para melhor compreensão do tema, devem ser aclarados. Vejamos:

Eutanásia, etimologicamente, significa “boa morte”, já que vem do grego eu (boa) thanatos (morte). Para Sá (2001, p. 66/67) é a morte produzida através da ação ou omissão do médico, que emprega, ou omite, meio eficiente para produzir a morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento, diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida.  

Por este conceito, percebe-se que a eutanásia possui duas facetas, uma ativa e outra passiva. Como o próprio nome sugere, a eutanásia ativa é aquela onde um terceiro pratica uma ação intencionalmente, que culmina na morte de outrem, já na passiva, a morte do individuo decorre da omissão, também intencional, por parte de um terceiro. A eutanásia ativa não é tolerada por nosso ordenamento jurídico, sendo considerada como homicídio pelo Código Penal Brasileiro “Art. 121- matar alguém: Pena- reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. § 1°- se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vitima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. (BRASIL 1941).”

Ressalte-se, que os conceitos de eutanásia passiva e ortotanásia não se confundem assim, Dadalto assevera “É imperioso, portanto, salientar que, a despeito do entendido por alguns doutrinadores, a eutanásia passiva não é sinônimo de ortotanásia, pois enquanto na primeira se abstém de realizar os tratamentos ordinários mais conhecidos pela Medicina como cuidados paliativos, na segunda se abstém de realizar tratamentos extraordinários (fúteis), suspendendo os esforços terapêuticos, conceitos que serão melhor tratados posteriormente.(DADALTO,2009,p.35)”.

Na contramão da ortotanásia, temos a distanásia, também conhecida como obstinação terapêutica, situação em que o objetivo é prolongar ao máximo a quantidade de vida humana, tendo a morte como maior inimigo. Aqui, não importa o sofrimento do paciente ou de seus familiares, contanto que a vida humana seja preservada.

Mistanásia, por sua vez, consubstancia-se na morte fora de hora, miserável. Sá e Diogo Luna Moreira consideram-na como eutanásia social, e citam Martin para ressaltar seu caráter perverso “Nada tem de boa, suave ou indolor dentro da categoria de mistanásia pode-se focalizar três situações: primeiro, a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo, os doentes que conseguem ser pacientes, para, em seguida, se tornar vitimas de erro médico e, terceiro, os pacientes que acabam sendo vitimas de má- prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. A mistanásia é uma categoria que nos permite levar a sério o fenômeno da maldade humana. (MARTIN, apud MOREIRA, SÁ, 2012, p.91)”.

Por fim, temos o suicídio assistido. Este resulta da própria ação do paciente que, com ajuda de terceiros, provoca a sua morte. Enquanto na eutanásia a morte é provocada por terceiros, na mistanásia a morte é provocada pelo próprio paciente, não derivando diretamente da ação de um terceiro, e sim da ação do próprio paciente, que agindo sob orientação ou auxilio de outrem, tira sua vida.

Feitas tais considerações, é importante destacar que há relação entre os conceitos de diretivas antecipadas e de ortotanásia com o consentimento livre do paciente. O consentimento livre é um misto entre o princípio da bioética do respeito à pessoa unido com o direito constitucional à informação, que resulta no dever do médico de informar ao paciente sobre todos os aspectos de seu tratamento médico.

Portanto, pode-se dizer que o consentimento livre nada mais é do que a aceitação racional de um tratamento pelo paciente, mediante informações suficientes e de fácil compreensão sendo que este deve encontrar-se livre para decidir de acordo com seus próprios valores, além de possuir capacidade plena para decidir sobre a questão.

Tendo em vista os conceitos acima abordados, pode-se ter uma percepção exata sobre o panorama das diretivas. Elas não visam acelerar a morte do indivíduo, muito ao contrário, sua premissa principal é garantir uma morte natural, indolor e digna a todos que formularem o referido documento, para isso, necessário se faz a conjugação do testamento vital com o mandado duradouro levando em consideração o consentimento livre do paciente. Só assim será assegurado ao indivíduo a realização de suas vontades no processo da morte diante de seu poder de autodeterminação.

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3. Diretivas antecipadas de vontade no direito comparado

Como dito acima, o surgimento das chamadas diretivas antecipadas de vontade se relaciona com a tentativa de inibir os chamados tratamentos extraordinários e abusos médicos na obstinação em curar seus pacientes a qualquer custo, assim, esclarece Dadalto (2009, p.64), no ano de 1967, nos Estados Unidos da America (EUA), a Sociedade Americana para a Eutanásia, propôs a adoção do testamento vital como um documento pelo qual o paciente poderia dispor sobre a interrupção de tratamentos médicos considerados excessivos. Já em 1969, o advogado Louis Kutner, apresentou um modelo de uma declaração prévia de vontade do paciente terminal visando solucionar o impasse entre pacientes, médicos e familiares.

O primeiro diploma legal a reconhecer o testamento vital, nasceu no ano de 1976, no Estado da Califórnia que aprovou o Natural Death Act, fazendo com que, vários países regulamentassem o referido documento. Em 1991, finalmente, é aprovada nos EUA a primeira lei federal, chamada de Patient Self-Determination Act (PSDA), que reconhece o direito à autodeterminação do paciente, servindo de diretriz para a elaboração de outras Leis pelos Estados Federados.

Já no continente europeu, a Espanha é pioneira nesse assunto, legislando efetivamente sobre o tema há mais de 10 anos, apesar de que desde 1986 reconhece a autonomia do paciente, que pode determinar como o seu tratamento médico será administrado. Vale ressaltar que, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, onde o testamento vital nasceu, a Espanha prefere chamar o referido documento de instruções prévias, pois considera a expressão ‘vontades antecipadas’, – que fora importada do direito norte americano – dissociada do mundo da bioética e do direito sanitário.

Destacam-se na Espanha algumas normas jurídicas de extrema importância no mundo da bioética neste país. Primeiro temos a Ley General de sanidad- 14/1986, que dispõe sobre os direitos dos pacientes e o reconhecimento do seu consentimento informado; depois temos a Convenção de Oviedo de 1997 que reconheceu a autonomia do paciente e o seu direito em recusar tratamento médico; a Ley 41/2002 que regulamenta as instruções prévias a nível nacional e, por fim o Real Decreto 124/07, que cria o Registro Nacional de Instrucciones Previas e o correspondente arquivo automatizado de dados.

Sobre as instruções previas espanholas, Dadalto salienta que “Em linhas gerais, as instruções prévias na Espanha devem conter orientações à equipe médica sobre o desejo de que não se prolongue artificialmente a vida, a não utilização dos chamados tratamentos extraordinários, a suspensão do esforço terapêutico e a utilização de medicamentos para diminuir a dor, entre outras. A Lei 41/02, possibilita que no documento de instruções prévias o outorgante nomeie um representante para que, quando aquele estiver impossibilitado de manifestar sua vontade, este terceiro possa fazê-lo em nome do subscritor do documento. Ou seja, a lei espanhola apresenta uma verdadeira diretiva antecipada, com a possibilidade de conter, em um único documento, o testamento vital e o mandato duradouro. (DADALTO, 2013, p108)”.

Ainda no continente europeu, Portugal discute sobre o tema desde 2006, com o projeto de lei de autoria da Associação Portuguesa de Bioética, mas somente em julho de 2012 obteve a promulgação da Lei n° 25/2012, que regulamenta as diretivas antecipadas de vontade, contudo, críticas são feitas a ela “Esta lei contém clara confusão terminológica, vez que iguala o testamento vital às diretivas antecipadas de vontade e trata o mandato duradouro, lá chamado de procurador para cuidados em saúde, como outro instituto jurídico – mas prevê a criação de um registro nacional, o que significa grande avanço na operacionalização deste instituto. (DADALTO, 2013 p108)”.

Na América do sul, temos a Argentina, cuja primeira legislação sobre diretivas antecipadas foi a Lei 4.263, da província de Rio Negro, promulgada em 19 de dezembro de 2007. Em 2009, foi promulgada a lei federal 26.529 20, sobre os direitos do paciente, que no artigo 11 reconhece o direito de o paciente dispor sobre suas vontades por meio de diretivas antecipadas..

4. As diretivas antecipadas de vontade e seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro

4.1. A Resolução n. 1.805 de 2006 do CFM

No dia 28 de novembro de 2006, o Conselho Federal de medicina brasileiro editou a Resolução n. 1.805 que autoriza o médico a suspender ou limitar tratamentos extraordinários que prolonguem a vida do paciente quando este se encontra em fase terminal de vida, posto que acometido por enfermidade grave e incurável.

Na exposição de motivos da Resolução n. 1.805 de 2006, o CFM ressalta a importância da atuação conjunta da sociedade com a classe médica para garantia da dignidade humana no processo da morte ao afirmar que […] torna-se importante que a sociedade tome conhecimento de que certas decisões terapêuticas poderão apenas prolongar o sofrimento do ser humano até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos e familiares, que possuem diferentes interpretações e percepções morais de uma mesma situação, venham a debater sobre a terminalidade humana e sobre o processo do morrer. Torna-se vital que o médico reconheça a importância da necessidade da mudança do enfoque terapêutico diante de um enfermo portador de doença em fase terminal, para o qual a Organização Mundial da Saúde preconiza que sejam adotados os cuidados paliativos, ou seja, uma abordagem voltada para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares frente a problemas associados a doenças que põem em risco a vida. A atuação busca a prevenção e o alívio do sofrimento, através do reconhecimento precoce, de uma avaliação precisa e criteriosa e do tratamento da dor e de outros sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou espiritual. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2006)”.

Apesar de possuir apenas três artigos, esta Resolução representa um enorme avanço no Brasil no que diz respeito à preservação da autonomia e dignidade do paciente terminal, isso porque ao permitir a suspensão ou limitação de tratamentos extraordinários, ela conduz á uma discussão mais aprofundada sobre a licitude e adoção da ortotanásia. “Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando- lhe o direito da alta hospitalar. Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2006)”.

Importante notar que muito embora seja autorizada a suspensão dos tratamentos médicos, ao doente, de acordo com o artigo 2° da Resolução, é assegurada a continuidade dos cuidados que alivie o seu sofrimento, visando evidentemente, a soberania da dignidade humana base não só da ortotanásia, como também das diretivas antecipadas.

4.2. Ação civil pública n° 2007.34.00.014.809-3 

Muito embora não vincule a comunidade jurídica, a resolução n.1.805 de 2006 foi questionada pelo Ministério Público Federal, que no dia 9 de maio de 2008 promoveu ação civil pública com pedido de antecipação de tutela, autos de processo n. 2007.34.00014809-3, contra o Conselho Federal de Medicina, pleiteando basicamente o reconhecimento da nulidade da referida Resolução sob o argumento de que o CFM não poderia estabelecer como conduta ética uma conduta que é tipificada como crime, ressaltando que o direito à vida é indisponível e só poderia ser restringido por lei em sentido estrito e não por uma Resolução da classe Médica.

A ação em questão tramitou perante a 14ª Vara Federal do Distrito Federal e em sede de apreciação da antecipação de tutela requerida pelo Ministério Público, o Juiz Federal Roberto Luis Luchi Demo, reconheceu que […] a ortotanásia não antecipa o momento da morte, mas permite tão somente a morte em seu tempo natural e sem utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente e sua família. (AÇÃO CIVIL PÚBLICA nº 2007.34.00.014809-3, 2007)”.

Contudo, apesar de perfilhar o entendimento de que a ortotanásia permite tão somente a morte natural do individuo sem ter o condão de antecipá-la, o Douto Magistrado, concedeu a antecipação de tutela requerida, suspendendo os efeitos da Resolução do CFM.

Citado, o Conselho Federal de Medicina contestou a ação asseverando que a ortotanásia, objeto da Resolução, esta ligada à morte como evento certo, iminente e inevitável ao qual deve ser aliada a tratamentos paliativos representando uma morte digna, confortável e menos dolorosa ao paciente como decorrência do princípio da dignidade humana, consubstanciando um direito fundamental de aplicação imediata.

Durante o trâmite da ação, mais precisamente no ano de 2007, o então Procurador Wellington Oliveira foi sucedido por Luciana Loureiro Oliveira, que assumiu o processo em questão causando grande reviravolta no caso. Luciana, com base no artigo 127, caput, e § 1° da CRFB/88, que atribui à procuradoria independência à consciência jurídica, ponderou que no presente caso havia nítida confusão entre ortotanásia e eutanásia o que prejudicava e muito a decisão do magistrado. Desse modo, em suas alegações finais, a Procuradora da República pugnou pela improcedência do pedido feito por seu antecessor nos seguintes termos 1) o CFM tem competência para editar a Resolução nº 1805/2006, que não versa sobre direito penal e, sim, sobre ética médica e consequências disciplinares; 2) a ortotanásia não constitui crime de homicídio, interpretado o Código Penal à luz da Constituição Federal; 3) a edição da Resolução nº 1805/2006 não determinou modificação significativa no dia-a-dia dos médicos que lidam com pacientes terminais, não gerando, portanto, os efeitos danosos propugnados pela inicial; 4) a Resolução nº 1805/2006 deve, ao contrário, incentivar os médicos a descrever exatamente os procedimentos que adotam e os que deixam de adotar, em relação a pacientes terminais, permitindo maior transparência e possibilitando maior controle da atividade médica; 5) os pedidos formulados pelo Ministério Público Federal não devem ser acolhidos, porque não se revelarão úteis as providências pretendidas, em face da argumentação desenvolvida.( (DISTRITO FEDERAL, 2010)”.

A solução do litígio veio no dia 1º de dezembro de 2010, o Ilustre Magistrado que outrora suspendeu a Resolução n.1.805/06, rejeitou os pedidos formulados pelo Ministério Público revogando a antecipação de tutela anteriormente concedida e julgando improcedentes os pedidos da exordial.

4.3. Resolução do CFM n° 1.931/2009 – o atual código de ética médica

No dia 13 de abril de 2010, entrou em vigor no Brasil, após vinte anos de vigência da edição anterior, o “novo” Código de Ética Médica, por meio da Resolução do CFM nº 1.931/2009.  Tal resolução consagra em diversos momentos a importância dos tratamentos paliativos do paciente terminal associado ao abandono da obstinação médica em curar o enfermo a qualquer custo. Destaca-se os seguintes dispositivos do código de ética médica de 2009: “Capítulo I PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS […] XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos, diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.  […] Capítulo V RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES É vedado ao médico: […] Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA 2009)”.

Assim, a resolução deixa claro que não existe obrigação médica em prolongar indefinidamente a vida do paciente terminal, sendo preferível a utilização da medicina paliativa, isso claro, sob o consentimento do doente ou de seu representante legal. Ao médico cabe, portanto, informar ilimitadamente o enfermo e familiares sobre as possibilidades clínicas de tratamento, restando a estes a escolha do que melhor lhes convier.

Entende-se, assim, que a Resolução CFM N° 1.931/2009 valorizou sobremaneira os princípios constitucionais da autonomia privada e dignidade da pessoa humana sem deixar de tutelar os direitos e deveres dos médicos de modo a dar maior amparo normativo, ainda que não seja através de nosso poder legislativo, às Diretivas Antecipadas de Vontade no Brasil.

4.4. Resolução n° 1.995 de 2012 do CFM

Em virtude das discussões constantes sobre o tratamento médico do enfermo em estado terminal de vida, e visando garantir não só a sua vontade, mas também a não responsabilização dos profissionais de saúde, no dia 31 de agosto de 2012 foi publicada no Diário oficial da União a Resolução do CFM n.1995/2012, que estabelece as diretivas antecipadas de vontade no Brasil, resolvendo nos seguintes termosArt. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.  § 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.  § 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.  § 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.  § 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.  Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2012)”.

A Resolução n. 1.995 de 2012 inovou em território brasileiro ao consagrar a prevalência da autonomia da vontade do paciente e a dignidade da pessoa humana no processo de morte através das Diretivas Antecipadas. Com ela, os tratamentos médicos extraordinários e a obstinação da família (muitas vezes insana) em curar o seu ente querido, foram rechaçados visando somente o bem estar e os desejos do enfermo, consolidando novos paradigmas médicos.

Apesar de não esgotar o tema, esta Resolução reflete, sem dúvida alguma, a necessidade de uma norma jurídica sobre as Diretivas Antecipadas, nesse sentido é inegável que as discussões derivadas acerca de sua publicação contribuem e muito não só para impulsionar o nosso Poder Legislativo como também para proporcionar o debate social sobre o assunto.

4.5. Ação civil pública n° 103.86.2013.401-3500

Assim como ocorreu com a Resolução n. 1.805/06, a Resolução do CFM n. 1995 de 2012 também foi questionada através de Ação Civil Pública com pedido de antecipação de tutela (autos n. 103986.2013.4.01.3500) promovida pelo Ministério Público Federal em face do Conselho Federal de Medicina, que está em trâmite na Justiça Federal Seção Judiciária do Estado de Goiás, Primeira Vara.

Para o Ministério Público, a Resolução n. 1995/2012 incidiu em inconstitucionalidade e ilegalidade, pois extrapolou os poderes conferidos ao CFM pela Lei 3.268/57 ao permitir o alijamento da família de decisões que lhe são de direito; a violação da disciplina ética da medicina e o estabelecimento de instrumento inidôneo para o registro de diretivas antecipadas de vontade dos pacientes sem fornecer qualquer segurança jurídica à sociedade.

Por sua vez, o CFM em sede de contestação, arguiu em síntese, que a Resolução serve à concretização da autodeterminação individual e que ela guarda pertinência com a Resolução n° 1.805/2006, cuja validade foi reconhecida, por decisão judicial já transitada em julgado, nos autos da ação civil publica n° 2007.34.00.014809-3, desse modo não há que se falar em sua inconstitucionalidade devendo ser mantida em vigor.

No dia 14 de março de 2013, o Juiz federal Jesus Crisóstomo de Almeira, denegou o pedido liminar sustentando que (…) em análise sumária, entendo que o Conselho Federal de Medicina não extrapolou os poderes normativos outorgados pela Lei n°3.268/57, tendo a Resolução CFM n° 1995/2012 apenas regulamentado a conduta médica ética perante a situação fática de o paciente externar a sua vontade quanto aos cuidados e tratamentos médicos que deseja receber ou não na hipótese de encontrar em estado terminal e irremediável.Igualmente, em exame inicial, entendo que a Resolução é constitucional e se coaduna com o principio da dignidade humana uma vez que assegura ao paciente em estado terminal o recebimento de cuidados paliativos, sem o submeter, contra sua vontade, a tratamentos que prolonguem o seu sofrimento e não ais tragam qualquer beneficio.No mais, a manifestação de vontade do paciente é livre, em consonância com o disposto no art. 107 do Código Civil, que somente exige forma especial quando a lei expressamente estabelecer. É de se observar que a Resolução apenas determina ao médico o registro do prontuário da manifestação de vontade que lhe for diretamente comunicada pelo paciente, não tendo determinado a forma de comunicação.Da mesma forma, para a validade das diretivas Antecipadas de Vontade do paciente devem ser observados os requisitos previstos no art. 104 do Código Civil, não sendo necessário que a Resolução reitere a previsão legal. (GOIÁS, MPF. Ação Civil Pública 1039-86.2013.01.3500)”.

Indubitável é que a supracitada decisão é um marco no direito pátrio no que tange as diretivas, pois é a primeira vez que nosso Poder judiciário reconhece a autodeterminação do paciente em estado terminal de vida, o que reforça a validade e ressalta a importância das Diretivas Antecipadas de vontade como instrumento garantidor da dignidade humana no processo de morte.

A referida Ação Civil Pública ainda está em trâmite aguardando no momento o julgamento do Recurso de Agravo de Instrumento interposto pelo Ministério Público Federal, contra a decisão que indeferiu a concessão liminar, a expectativa é de que a decisão impugnada seja mantida com o conseqüente reconhecimento judicial da constitucionalidade da Resolução.

5. As perspectivas legislativas das diretivas antecipadas de vontade no brasil

Apesar da recente discussão acerca das diretivas antecipadas no Brasil envolvendo a classe médica e jurídica, o referido documento ainda não foi objeto de lei específica no país. Assim, seria possível sua adoção mesmo diante de tal ausência normativa, ou a autodeterminação do paciente não encontra respaldo no direito pátrio? Sob o ponto de vista não só constitucional como também infraconstitucional, é possível encontrar a solução para esse impasse.

No âmbito Constitucional, o consagrado princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) aliado aos princípios da Autonomia privada (implícito no art. 5º); legalidade (art. 5°, II) e à proibição de tratamento desumano (art. 5º, III), por si só autorizam a validade das diretivas antecipadas no Brasil, já que este documento visa o respeito da autodeterminação do individuo quanto a sua submissão ou não a determinados tratamentos médicos.

Por outro lado, no âmbito infraconstitucional, temos o art. 15 do Código Civil Brasileiro de 2002 (CCB/02), onde ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica, mais uma vez consagrando a tão aclamada autodeterminação do paciente. Além disso, às resoluções n° 1.805/06, 1.931/09 e 1.995/12 do CFM, constituem fundamento suficiente para a adoção das diretivas no Brasil, desde que seu conteúdo não viole determinação legal, haja vista a supremacia do Estado democrático de direito.

Assim por se tratar de negócio jurídico[2], as diretivas devem obedecer aos requisitos do art. 104 do CCB/02, quais sejam: agente capaz; objeto lícito forma prescrita ou não defesa em lei. O problema reside no fato de que os limites de tais requisitos esculpidos no artigo 104 do CCB/02 ainda ficariam a mercê da legislação que regulamentaria a diretivas antecipadas de vontade, contudo Dadalto destaca brilhantemente e de forma objetiva as premissas essenciais para a constituição de uma Lei sobre Diretivas antecipadas de vontade no Brasil, e o que este documento deverá abarcar. Vejamos “1. A declaração prévia de vontade do paciente terminal deverá ser feita por uma pessoa com discernimento; 2. Este documento deverá ser registrado no Cartório de Notas que será responsável por encaminhar a declaração ao Registro Nacional de Declarações de Vontade dos Pacientes Terminais – registro este que deverá ser criado pelo Ministério da Saúde; 3. A declaração prévia de vontade do paciente terminal deverá estar contida no prontuário médico do paciente, e cabe ao médico deste proceder a esta inclusão; 4. A declaração prévia de vontade do paciente terminal vincula médicos e demais profissionais de saúde, bem como os parentes do declarante; 5. Disposições acerca da interrupção dos cuidados paliativos não serão válidas; 6. Apenas disposições acerca da interrupção de tratamentos fúteis serão válidas; 7. A declaração prévia de vontade do paciente terminal é revogável a qualquer tempo e não possui prazo de validade; 8. O médico tem direito à objeção de consciência médica; 9. Disposições acerca de doação de órgãos não deverão constar no documento; 10. É facultado ao declarante nomear um representante para que expresse a vontade em nome do declarante quando este não puder fazê-lo; 11. Declaração prévia de vontade do paciente terminal não é instrumento para  prática de eutanásia, e sim, garantidor da ortotanásia(DADALTO, 2009,p.113)”.

Portanto, a inexistência de norma específica acerca das diretivas antecipadas de vontade no Brasil, não inviabiliza a adoção das mesmas em território pátrio, sobretudo porque através de uma interpretação conjunta das normas constitucionais e infraconstitucionais temos a base necessária para a defesa de sua validade e eficácia. As diretivas no Brasil devem ser estipuladas de forma clara e objetiva de modo a facilitar sua aplicabilidade, contudo, com ainda não foram regulamentadas no pais, as diretivas tem forma livre, desde que não contrarie disposição legal.

Conclusão

O trabalho desenvolvido encerra-se, sem jamais pretender-se concluído. Todas as idéias, argumentações e fundamentações teóricas não têm a finalidade de resolver definitivamente o complexo problema referente à autodeterminação do paciente, que anseia por seu pleno desenvolvimento, sob o esteio do Estado democrático de Direito e na devida proteção dos direitos humanos fundamentais do homem.

Ficou claro que, todo o ser humano na condição de paciente deve ser respeitado no que concerne a sua decisão perante a escolha de um tratamento médico, baseando-se nos princípios da dignidade da pessoa humana e autonomia privada. A possibilidade de escolha, portanto, não deve ser ferida com imposição de um tratamento não aprovado pelo paciente, já que este tem o direito de ser informado e consentir ou não se irá se submeter a tal procedimento médico.

A vida, nosso maior direito, deve ser encarada com parcimônia diante dos desejos do indivíduo e do sofrimento que as mais diversas enfermidades lhe causam, ou seja, a vida deve ser encarada como um direito e, não como um dever.

A necessidade de norma regulamentadora é latente para evitar controvérsias acerca das especificidades formais e materiais das Diretivas antecipadas e possibilitar sua eficácia, desse modo, espera-se, que num futuro muito breve o Brasil tenha a autodeterminação do paciente acautelada por uma norma que institua as diretivas antecipadas de vontade em nosso país, de forma a permitir, como dito anteriormente, não só a dignidade da vida, mas também a dignidade no processo de morrer, de acordo com as convicções de cada individuo. Assim destaca-se as palavras de Adriano Marteleto Godinho:

“Se a vida, por um lado, não é um bem jurídico disponível, não cabe, por outro lado, impor às pessoas um dever de viver a todo custo, o que significa, assim, que morrer dignamente nada mais é do que uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, resta concluir que o testamento vital (ou DAVs) não somente devem encontrar espaço no ordenamento jurídico brasileiro, como reconhecer sua validade por meio de lei o que consagra o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento medico a que pretenda ou não submeter”(GODINHO, 2010)

A expectativa é que a presente construção desperte a preocupação de outros pesquisadores, com o ser humano não só na condição de paciente, como também na condição de um paciente que possui sentimentos e que é detentor da tão aclamada dignidade; para que suas decisões sejam respeitadas, baseando-se nos princípios fundamentais da autonomia privada e dignidade da pessoa humana.

Referências:
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Notas:
[1] Disponível em :HTTP//:WWW.secpal.com/guiacp/índex.php?acc=dos.acesso em 20 de agosto de 2013.

[2] Sobre o tema ver: CARVALHO, Emanuelle de Castro direito de morrer: o testamento vital com fundamento no negócio jurídico. in Dadalto Luciana. diretivas antecipadas de vontade, ensaios sobre à autodeterminação, Belo Horizonte, Letramento.2013, p. 207-213.


Informações Sobre o Autor

Alessandra Helen Alves Claudino

Pós graduanda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Coautora do livro “Diretivas Antecipadas de Vontade – Ensaios sobre a autodeterminação”; Advogada


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