Resumo: Este artigo tem como objetivo explanar o paradigma de como morrer com dignidade através da exposição do documento chamado de diretivas antecipadas de vontade. Através delas é que poderemos entender como direitos fundamentais constitucionalmente tuteláveis podem dialogar com o propósito de promover a qualidade de vida de todos os envolvidos no processo. A justificativa de tal propósito pode se dar em razão de não possuirmos, ainda, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, entendimento pacífico sobre a matéria. Tal pesquisa, portanto, foi elaborada através de fontes que puderam trazer a dogmática deste presente artigo, ou seja, a verificação de sistemas jurídicos que já lidam com o instituto para, em um segundo momento, aprofundar a análise das diretivas antecipadas de vontade dentro da ordem jurídica vigente. Assim, chega-se a conclusão de que somente uma normatização ordinária restará por disciplinar especificamente a matéria, bem como normatizar seu procedimento jurídico, protegendo o exercício da medicina diante da manifestação de vontade do paciente, zelando, igualmente, o direito natural de morrer.
Palavras-chave: Diretivas antecipadas de vontade. Testamento vital. Morte digna.
Abstract: This article aims to explain the paradigm of how to die with dignity through the exposition of the document called anticipated directives of will. Through them, we can understand how fundamentally constitutional rights can dialogue with the purpose of promoting the quality of life of all those involved in the process. The justification for this purpose can be given because we do not yet have, within the Brazilian legal system, a peaceful understanding of the matter. This research, therefore, was elaborated through sources that could bring the dogmatics of this present article, that is, the verification of legal systems that already deal with the institute, in a second moment, to deepen the analysis of the anticipated directives of will within the current legal order. Thus, it is concluded that only ordinary regulation will be left to discipline the matter specifically, as well as to regulate its legal procedure, protecting the practice of medicine in the face of the patient's manifestation of will, while also ensuring the natural right to die.
Keywords: Advance directives of will. Living will. Worthy death.
Sumário: Introdução. 1. Conceitos e contexto internacional. 2. Diretivas antecipadas de vontade e o ordenamento jurídico brasileiro. 3. Considerações finais. Referências bibliográficas
Introdução
Com os grandes avanços tecnológicos na área da saúde, tem-se cada vez mais debatidos as linhas limítrofes em razão da vida de pacientes que são diagnosticados como terminais. Diante dessa perspectiva, a ciência jurídica vem se perguntado acerca dos direitos desses pacientes e, como via de consequência, a autonomia e a dignidade dessas pessoas. Nesse viés, portanto, aparece o enfoque que a doutrina tende a chamar “o direito de morrer” questionando, assim, um evento tão natural, mas ao mesmo tempo tão impactante como a morte.
É esse evento que nos faz questionar como a interpretamos. Seria, então, um momento de passagem? Uma transição de um mundo para outro? Ou apenas uma condição de existência de nossas vidas?
Diante desse difícil momento da vida, deparou-se com a necessidade de embasar juridicamente o respeito à vontade manifesta dos enfermos, consubstanciado nos seus direitos basilares, quais sejam aqueles constituídos como fundamentais pela nossa Constituição Federal.
A hipótese principal que permeia a presente pesquisa será como um paciente terminal – que em sua capacidade, ou em exercício de autonomia – toma determinada decisão que poderá enfrentar barreiras nas normas jurídicas e nas esferas familiares e morais já constituídas pela sociedade. Assim, propõe-se o enfrentamento de alternativas, nas quais controvérsias podem dialogar conjuntamente.
1. Conceitos e contexto internacional
Antes, porém, de adentrarmos na análise do instituto das diretivas antecipadas de vontade, para que seja possível a clara abordagem do tema alvitrado é fundamental, e indispensável, delimitar a terminologia utilizada em relação à morte com intervenção.
Para tanto, apresenta-se de forma hialina e objetiva alguns dos conceitos essencialmente utilizados nos debates acerca da morte com intervenção; mormente, pois o desconhecimento, bem como a má interpretação de um determinado termo pode resultar na não compreensão do assunto abordado.
Originária do grego euthanatos (eu interpretado como bem ou bom e thanatos significando morte), a eutanásia é traduzida como morte boa, tranquila e sem dor.[1] O termo, proposto pela primeira vez no século XVII pelo filósofo inglês Francis Bacon, em sua obra Tratado da vida e da morte,[2] já recebeu diversas interpretações no Brasil, causando confusões e equívocos no momento de especificar o que é e o que deixa de ser eutanásia.
Bacon definiu eutanásia como sendo o tratamento adequado para doenças incuráveis;[3] assim, em sua origem, no século XVII, a prática da eutanásia tinha o fim de cessar os sofrimentos do enfermo em estado terminal, aplicando-se cuidados paliativos nos pacientes, cabendo, inclusive, a suspenção de tratamentos fúteis, que apenas prolongassem o processo morte.[4]
Entretanto, o conceito de eutanásia é atualmente interpretado no Brasil como sendo o procedimento que antecipa a morte de paciente que, diante de doença incurável e em estado terminal, suporta fortes dores resultando em grande sofrimento físico e psíquico. Assim, para que o ato seja considerado eutanásia, deve, impreterivelmente, ser praticado com exclusivo fim benevolente, tendo em vista que objetiva o encurtamento da vida do enfermo, a fim de que esse deixe de sofrer. De qualquer sorte, tal prática constitui crime de homicídio perante o Código Penal brasileiro, nos termos do artigo 121.
Inversamente proporcional à eutanásia, tem-se a prática da distanásia que, originária dos termos gregos dis (afastamento) e thanatos (morte),[5] pode ser definida como sendo a busca incessante de prolongar artificialmente a vida do paciente que se encontra em fase irreversível e terminal da vida. Tal prolongamento do processo morte resulta em dor e em sofrimento ao enfermo, bem como na angústia dos familiares, que por vezes discordam com a mantença do tratamento fútil.
Os profissionais da área médica, na busca desenfreada pelo afastamento da morte, procuram manter o paciente vivo através da aplicação de técnicas médicas ordinárias e extraordinárias, mesmo quando o paciente se encontra num quadro irreversível e diante de morte iminente. Essa aplicação descometida de tratamentos é também conhecida por obstinação terapêutica.
Luís Roberto Barroso[6] diferencia a obstinação terapêutica e tratamento fútil, assim os definindo:
“A obstinação terapêutica e o tratamento fútil estão associados à distanásia. Alguns autores tratam-nos, inclusive, como sinônimos. A primeira consiste no comportamento médico de combater a morte de todas as formas, como se fosse possível curá-la, em “uma luta desenfreada e (ir)racional”, sem que se tenha em conta os padecimentos e os custos humanos gerados. O segundo se refere ao emprego de técnicas e métodos extraordinários e desproporcionais de tratamento, incapazes de ensejar a melhora ou a cura, mas hábeis a prolongar a vida, ainda que agravando sofrimentos, de forma tal que os benefícios previsíveis são muito inferiores aos danos causados. (Grifo no original)”
De se informar que um dos objetivos da presente pesquisa é demonstrar que a aplicação da obstinação terapêutica e de tratamentos fúteis resta por manter o paciente vivo sem qualquer expectativa de melhora, resultando na relativização da dignidade do enfermo; pois, além de afastar uma vivência digna, afasta, ainda, o direito à morte, bem como impede uma morte digna.
Entre as práticas da eutanásia e da distanásia, tem-se a ortotanásia,[7] termo que fora proposto em 1950 no Primeiro Congresso Internacional de Gerontologia pelo professor Jacques Roskam, da Universidade de Liege, Bélgica. A prática da ortotanásia, que nada se assemelha com os institutos anteriores, é apresentada por Roskam como sendo o meio termo entre antecipar a morte (eutanásia) e prolongá-la (distanásia).[8]
Tendo o claro objetivo de permitir que o processo de morte já evidente desenvolva seu curso natural, a ortotanásia dispensa a aplicação de tratamentos fúteis – medicamentosos e/ou mecânicos -, sendo que tal dispensa ocorre tanto pela sua não aplicação, quanto pela sua suspensão quando já iniciado. Há, todavia, a aplicação de tratamentos paliativos que, podendo ser de qualquer natureza – medicamentoso, psicológico, fisioterápico – são utilizados, tão somente, com o fim de amenizar a angústia, o sofrimento e as dores suportadas pelo enfermo.
Analisando os três institutos abordados, percebe-se que a ortotanásia muito se assemelha com o sentido originário da eutanásia, proposto por Francis Bacon, no século XVII. Ou seja, desde aquela época já fora pensado em conceder aos pacientes terminais uma morte digna e tranquila, entretanto, apenas na década de 70, conforme será abordado, iniciaram as discussões acerca do tema.
No Brasil, a prática da ortotanásia, apesar de criticada por alguns, é permitida aos médicos através da Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina – norma médica que será analisada no decorrer desta pesquisa -, que dispõe acerca das diretivas antecipadas de vontade.
No que diz respeito ao tão utilizado termo “paciente terminal”, entende-se por ser aquele enfermo que, diante de avançado estágio da doença, deixa de responder positivamente aos tratamentos disponíveis, tornando remota a possibilidade de reversão do quadro clínico. Desta forma, o evento morte para o paciente terminal deixa de ser mero evento certo – como para todos -, tornando-se um fato iminente, já que o avanço da patologia não permite que ele retome sua saúde.
Feitos os esclarecimentos necessários acerca da terminologia relacionada ao tema proposto, passa-se à análise da origem do instituto. Os Estados Unidos foram pioneiros em perceber a necessidade de verificar as implicações no ato de abreviar a vida; sendo que alguns países optaram pelo instituto da eutanásia; enquanto que outros adotaram o suicídio assistido, por exemplo.
Todavia, o que se tem que definir é o que levou cada país a optar por esse ou por aquele procedimento; assim como, tem-se que analisar quais foram as causas determinantes para que cada Estado tenha decidido criar um sistema normativo que pacificasse a matéria.
Um dos argumentos utilizados foi o primordial avanço dos direitos humanos após a promulgação da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU[9], realizada em 1948. Agregado a isso, tem-se a necessidade de zelar os direitos fundamentais do sujeito, consoante o entendimento de cada sociedade. Outra análise a ser considerada é a forma como cada país lida com a criminalização do ato que considera punível, ou condenável, social e culturalmente, relativamente à atuação de uma prática que estipula o direito de morrer com dignidade.
A análise do estudo é feita sobre a morte voluntária com maior ou menor liberalidade, encontrando-se diferentes posicionamentos em relação à prática específica da eutanásia. Assim, em alguns países a prática é permitida em situações especiais; em outros é considerada homicídio privilegiado; enquanto que, para um terceiro grupo, é qualificada como crime comum.[10]
O que se pretende abordar é como algumas soberanias lidaram com os problemas advindos dos debates acerca do direito de morrer com qualidade de vida e quais foram suas atitudes para solucioná-los.
Para tanto, propõe-se dividir a problemática em temáticas a fim de melhor elucidar as diretivas antecipadas de vontade, restando assim organizado: i) os Estados Unidos e suas particularidades em relação à criação de um documento que possibilite a discussão “do morrer dignamente” sem que isso se torne tipificável (priorizado o diálogo de um Estado onde a criação de leis é descentralizada[11]); ii) a Europa relativamente ao cenário da idealização da Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina realizada no ano de 1997 na cidade de Oviedo/Espanha e sua efetivação sobre os direitos humanos em relação à concretude do princípio da dignidade da pessoa humana na criação de leis que respeitem a ratificação desse tratado internacional; e, por fim, iii) a América Latina e seu viés conservador, levando a análise de países como o Uruguai e Argentina por possuírem maior concretização legislativa sobre a matéria.
A abordagem dos Estados Unidos se faz relevante quando se analisa o instituto do testamento vital (diretivas antecipadas)[12] no seu contexto histórico e, consequentemente, suas implicações. Assim, observar-se que foi através dos norte-americanos a ampliação do diálogo sobre a formação de um documento que tratasse de cuidados antecipados, pelo qual o indivíduo poderia registrar seu desejo de interromper as invenções médicas de manutenção de vida.[13]
O living will[14], portanto, foi criado a partir da concepção de que o indivíduo deveria demonstrar o consentimento livre e esclarecido. Em 1967, por iniciativa da Sociedade Americana da Eutanásia, foi concebido esse instituto a fim de trazer respostas aos anseios de uma sociedade que não queria se submeter a tratamentos fúteis, caso sua condição se tornasse incurável ou seu corpo ficasse em estado vegetativo.[15] Além disso, essa inovação permitiu que os seguidores da religião Testemunha de Jeová, por exemplo, pudessem se abster a realizar transfusões de sangue.
Dessa forma, em 1976, surgiu a necessidade de estabelecer novas conexões em razão da criação do living will. Nesse ano, sobreveio o primeiro caso judicial de living will, ano que Karen Ann Quinlan, norte americana de 22 anos, entrou em coma com a notícia de irreversibilidade do quadro. Os seus pais, por sua vez, recebendo tal notícia, solicitaram aos médicos a retirada do respirador. Frente à recusa do médico responsável pelo caso, acionaram o Poder Judiciário de New Jersey (Estado no qual a paciente residia), objetivando uma autorização judicial para a suspensão do tratamento paliativo, alegando que a Jovem havia manifestado o desejo de não ser mantida viva por aparelhos, em conversas anteriores ao seu coma.
A autorização foi negada em primeira instância sob o argumento de que a declaração da paciente não possuía respaldo legal. Somente através da segunda instância – a Suprema Corte de New Jersey – que foi designado o Comitê de Ética do Hospital de St. Clair – criado especificamente para o caso – para avaliar a Paciente e o prognóstico de seu estado clínico. O resultado final do julgado foi o reconhecimento do direito de solicitar ao médico o desligamento dos aparelhos que mantinham Karen viva.[16]
Após o caso de Quinlan, movido pela sua grande repercussão, é que o Estado da Califórnia aprovou uma lei que garante o direito de recusar ou de suspender um tratamento médico, protegendo os profissionais da saúde de eventual processo judicial por terem respeitado a vontade manifesta do paciente. O Natural Death Act, como foi chamado, surtiu efeito em algumas associações médicas californianas que fizeram um documento chamado de Guidelines and Directive, contendo orientações para auxiliarem o outorgante a instruir seu médico acerca do uso dos métodos artificiais de prolongamento de vida.[17]
Outros estados norte-americanos também começaram a legislar sobre a temática, chegando a ter a positivação de uma lei federal em 1990 após o caso de Nancy Cruzan[18] ter chegado à Suprema Corte americana.[19] O que se deve ressaltar é que, a partir de então, os Estados Unidos obtiveram um real impacto em sua sociedade tendo como consequência a democratização do direito de morrer, respeitando, principalmente, o consentimento informado e a autonomia.[20] Ademais, segundo Pessoa[21]:
“Os proponentes da mudança argumentaram que, ao declarar o suicídio um direito, a sociedade ampliaria a autonomia e controle de pacientes idosos doentes ao reduzir o poder dos médicos de se intrometer em sua vida com intervenções indesejáveis.”
A descriminalização do suicídio, como Pessoa[22] argumenta, foi a saída que esse País encontrou para a legalização da prática do suicídio medicamente assistido e verificado em cada estado. Assim, averígua-se que a eutanásia é proibida nos Estados Unidos, embora a justiça americana possibilite situações que envolvem o final de vida, como é o caso de interrupção de tratamento que apenas prolongue o processo de morrer e o suicídio assistido, variando a legislação de estado para estado, respeitando, portanto, sua autonomia legislativa.
Exemplo disso tem os Estados da Califórnia (mencionado anteriormente), Massachusetts e Connecticut, que admitirem a possibilidade de condutas médicas restritivas – omissão e suspensão do suporte vital, além de recusa de tratamento pelo paciente – ; o Estado de Oregon, como sendo o primeiro estado a descriminalizar a conduta ao suicídio; e Washington, que em março de 2009 aprovou a legislação ao suicídio medicamente assistido.[23]
Observa-se, portanto, a densidade de discussões em um país marcado por constantes debates sobre a capacidade e a autonomia das pessoas, tentando lidar, ao mesmo tempo, com as diferenças e as individualidades de cada um. O que se conclui, desse modo, é a preocupação estadunidense em trazer novos institutos que viabilizem o debate jurídico ao direito de morrer com qualidade de vida, de forma clara e transparente.
De certo, o que Dadalto[24] estipula é que as Diretivas Antecipadas de Vontade representam um grande avanço pelo direito à autodeterminação do indivíduo; mas, atualmente estão sendo subutilizadas pela população:
“Estudos demonstram que menos de 25% da população norte-americana possui um living will, algo contraditório, pois 75% da população afirma que gostaria de fazer uma DAV. Ou seja, existe um abismo entre o número de indivíduos que desejam manifestar sua vontade e o que realmente o faz.”
O que se tem é que mesmo com a criação de uma lei federal[25], a realidade demonstra, ainda, um recuo quanto ao uso do instituto nos Estados Unidos.
Superada a análise estadunidense, explana-se, um pouco sobre a análise europeia e a aplicabilidade da Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina – também chamada de Convenção de Oviedo -, criada em 1997.
Primeiramente, entrar-se-á na discussão do surgimento do debate dos direitos humanos e sua efetiva proteção na ordem jurídica internacional para, num segundo momento, discutir-se sobre a repercussão da Convenção de Oviedo no continente europeu acerca do morrer com dignidade.
Vê-se que os direitos humanos apresentam uma importante contribuição quando se quer conceituar a noção de igualdade inerente a cada pessoa, bem com a fundamentação da explanação sobre a dignidade da pessoa humana, um dos seus princípios basilares.[26] Por conseguinte, tem-se a formação da universalização de direitos, este considerado comum a todos os indivíduos no que tange ao direito a uma vida digna, por exemplo.[27]
Assim, um dos aspectos fundamentais é a sua internacionalização que, para muitos, foi o que gerou a consciência ética na ordem jurídica externa, debatendo sobre a possibilidade de aproximação dos indivíduos acerca do reconhecimento de ser sujeito de direitos.[28] Ainda, na concepção de Cristiane Alves, há uma transformação dos direitos humanos na ordem internacional:
“[…] aos poucos, emerge a ideia de que o indivíduo é não apenas objeto, mas também sujeito de Direito Internacional. A partir dessa perspectiva, começa a se consolidar a capacidade processual internacional dos indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos não mais se limitam à exclusiva jurisdição doméstica, mas constituem matéria de legítimo interesse internacional […].[29]”
Nesse viés, portanto, o estudo de direitos humanos deve se fazer palpável a todos aqueles que tratarem com direitos fundamentais de uma sociedade democrática de direitos, elegendo, desse modo, princípios, valores e normas que regerão esse sistema.
Outro ponto relevante que pode servir como um exemplo aprofundador da temática é a sua conexão direta com a saúde. Segundo Alves[30] o que estipula essa relação é a elevação da dignidade da pessoa humana como valor fundante da formação social.[31] O direito à saúde se tornou especificamente ligado com a dignidade a partir do momento em que os movimentos pós Segunda Guerra Mundial o consideraram como um direito inerente a cada indivíduo.
A ideia de centralidade de cada indivíduo influencia em todos os cenários humanos (moral, político, religioso, por exemplo), sendo o reflexo da atual prerrogativa de sujeitos de direitos na atual conjuntura internacional. Com isso, vê-se que a magnitude da abordagem dos direitos humanos prioriza o debate e, consequentemente, o discurso político das maiores sociedades democráticas contemporâneas.
Voltando a contemplar o continente europeu, observa-se que com o advento das novas tecnologias, as organizações internacionais europeias – como, por exemplo, o Conselho Europeu -, passam a exprimir uma nova percepção sobre os direitos humanos. Segundo Alves[32], foi através do Conselho da Europa, por meio da Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina realizada em 1997, que se buscou harmonizar o delineamento de reflexões ou de soluções para os questionamentos, ou conflitos, resultantes desse campo.
O que se comenta é que “[…] a evolução de novas técnicas modificou a percepção e a caminhada humana no âmbito do viver e do morrer […]”; e que, “[…] no cenário europeu, as diretivas antecipadas de vontade têm sido amplamente discutidas e, em alguns países, há legislação específica sobre o tema […]”.[33]
A discussão europeia dentro da perspectiva do Convênio de Oviedo[34] se faz como o ponto central de nossa investigação. Isso porque, conforme se verifica, foi referido documento que democratizou a regularização dos direitos fundamentais de cada Estado signatário do Conselho Europeu, principalmente no que tange às discussões no período de final de vida. Assim é que se tem o disposto no artigo 9o da Convenção, exemplo elucidador que enfatiza a vontade e a autonomia do indivíduo, segundo reza:
“Serão levados em consideração os desejos expressados anteriormente pelo paciente, que dizem respeito à intervenção médica, quando este, no momento da intervenção, não puder expressar sua vontade.[35]”
Destarte, verifica-se que tal instituto ampliou a compreensão a respeito da autonomia da pessoa em estado vulnerável. Em consequência, foi através destas instigações que o Conselho Europeu sentiu a necessidade de criar a Recomendação 11[36] de 2009, que dispõe sobre os princípios relativos à procuração e às diretivas antecipadas de vontade em caso de incapacidade, evidenciando ainda mais a preocupação de lidar com a terminalidade.[37]
Resta claro, portanto, a relevância desse documento, que pontualmente analisou as divergências existentes para tentar dirimir o conceito de vida digna e, como consequência, analisou o viver com qualidade de vida. Fala-se numa concepção em razão do seu caráter jurídico vinculante a todos os países que o subscreveram.[38] O instituto criou a possibilidade de uniformização a nível continental seguindo, dessa forma, as orientações de um órgão representativo em relação à aplicação de políticas públicas em torno do morrer com dignidade.
Exemplo concreto disso são países[39] que, após sua criação, atribuíram o mérito de normas possíveis, poupando cada país a editar leis sem qualquer referência externa.[40] Uns, como a Holanda, que em 2002, antes mesmo da democratização do referido tratado internacional, já possuía lei[41] tornando válida a prática da eutanásia e do suicídio assistido, conforme Pessoa[42]:
“[…] a lei sobre a cessão da vida a pedido e o suicídio assistido veio a regulamentar a prática que já era amplamente praticada na Holanda, embora proibida pelo Código Penal, já que a Suprema Corte holandesa havia decidido, em 1984, que um médico que abrevia a vida de um paciente poderia, em determinadas circunstâncias, invocar a defesa de necessidade para justificar tal ação […]. [Grifo do autor].”
Certifica-se, desse modo, que uma grande consequência na aplicação dessa Lei é a responsabilização dos médicos. Isso porque, eles não serão penalizados perante a Justiça, sendo somente responsáveis perante uma comissão de pares que inclui peritos em leis, em ética e em medicina. A legislação, assim, não fala de um direito ao suicídio e à eutanásia, citando, apenas, o direito dos médicos em se recusar a cooperar.[43]
Já outros países, como Portugal, passaram a regulamentar a prática das diretivas antecipadas de vontade através da criação legislativa no ano de 2012, que definiu, em seu artigo 2o, a aplicabilidade desse instituto:
“Definição e conteúdo do documento: 1 – As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.[44]”
Dessa maneira, observa-se o gigante legado deixado por esse regulamento que pôs fim às discussões internas entre as soberanias europeias de como, por exemplo, guiar diretrizes acerca da terminalidade, bem como tratar com respeito todos os indivíduos que estão passando por esse momento tão delicado. Reconhecer a capacidade europeia de lidar com essa situação de maneira pacífica é um dos aspectos que se evidencia.
A América Latina, por sua vez, demonstra um tratamento mais conservador no que tange à aplicabilidade das diretivas antecipadas e sua pacificação. O único país, segundo Dadalto[45], a possuir legislação de forma clara e concisa sobre o assunto é Porto Rico que, através da Lei no 160[46], reconheceu o direito de toda pessoa maior de idade, em pleno de suas faculdades mentais, a declarar previamente sua vontade sobre os tratamentos médicos caso sofra uma condição de terminalidade ou de estado vegetativo permanente (EVP).
Excetuado Porto Rico, em regra, a América Latina continua sendo o continente que não possui precedentes consideráveis sobre a temática, tratando, em sua maioria, apenas de sua descriminalização ou sua atenuação frente a uma prática que priorize a morte digna, ou apenas estipulando formas de outorgação de poderes a terceiros (caso da Argentina). Enfoca-se, em vista disso, países que repercutem a maior aplicabilidade do instituto como o Uruguai, a Bolívia, a Colômbia, o Peru e, particularmente, a Argentina.
O Uruguai, em 1934, foi um dos primeiros países sul-americanos a propor a retirada da sanção penal à prática de homicídio, criando, nesta acepção, o homicídio piedoso[47] como uma forma de prever e de facultar o perdão judicial para aqueles que, tendo bons antecedentes, agissem mobilizados pela piedade e atendendo a reiteradas súplicas da vítima, mantida, contudo, a ilicitude da conduta.[48] Dessa forma, é facultado ao juiz a exoneração do castigo a quem realizou esse tipo de procedimento.[49]
Já as legislações da Bolívia e da Colômbia possuem previsão de atenuação de pena e, em casos excepcionais, até mesmo o perdão judicial. No Peru, por exemplo, a prática de eutanásia só é tipificada se houver motivação egoística; todavia, a eutanásia que preencher todos os requisitos de boa intenção, de qualificação do ministrante e de meio indolor não são tipificadas.[50] O autor aprofunda a análise quando menciona a experiência da Corte colombiana:
“A corte colombiana decidiu, por seis votos favoráveis a três contrários, a exclusão de penalidade para médicos que cometessem a eutanásia piedosa, permitindo a morte digna. Eutanásia piedosa e morte digna foram dois termos utilizados pelos magistrados no decorrer da sentença que, acrescida aos debates e pedidos de revisão, extrapolou 150 páginas, constituindo-se num dos documentos mais representativos sobre o tema. Por eutanásia piedosa e morte digna, a Corte entendeu o que, tradicionalmente, se denomina eutanásia passiva voluntária, ou seja, a eutanásia praticada por médico, a pedido de pessoa doente, em casos de terapia sem prognóstico, em que a retirada ou o não uso do tratamento implicaria a morte.[51] (Grifo nosso).”
Percebe-se que a Corte optou por excluir a punibilidade nos casos de eutanásia voluntária passiva em que estivesse de acordo com os limites estabelecidos por sentença. Reitera-se, em vista disso, a relatividade da vida tendo como predisposição sua legitimidade frente à coletividade de direitos fundamentais que regem essa sociedade democrática. Salienta-se, assim, que nem sempre o argumento da autonomia individual prevalecerá em um estado igualitário de direitos.[52]
Após serem analisados os países que atenuam a prática, observa-se que foi a Argentina o país que mais estipulou e popularizou o debate sobre as diretivas antecipadas de vontade. Isso porque, conforme se verifica, foi essa nação que democratizou o instituto tanto em nível nacional – pela Lei no 26.529/2009-, quanto em nível provincial (estadual).
Em nível estadual, tem-se a Lei Provincial de Rio Negro (Lei no 4.263/2007), que consigna instruções da posologia de medicamentos e demais procedimentos de hidratação e de alimentação ao paciente terminal e possibilita ao outorgante designar um ou mais representantes para atuarem como interlocutores de suas vontades junto à equipe médica, segundo o que trata o art. 1o:
“Toda pessoa capaz tem o direito de expressar seu consentimento a respeito de tratamentos médicos que podem ser indicados a ele no futuro, em razão da perda de capacidade ou não ocorrência de circunstâncias clínicas que o impeçam de expressar sua vontade no momento.[53]”
Já a nível nacional, tem-se, desde 2005, o posicionamento da Suprema Corte de Buenos Aires que considerou positivo o testamento vital (diretivas antecipadas de vontade) em respeito à autodeterminação do paciente.[54] Assim, vê-se que a Argentina conseguiu lidar de forma equânime com as questões da terminalidade, tendo, também, disciplinado a Lei de Exercício da Medicina no 17.132, que, apesar de estar limitada à Capital Federal, estabelece o requerimento do consentimento do paciente para todo e qualquer tratamento e lhe outorga o direito a recusá-los, não apenas se seu estado é terminal, mas em qualquer caso.[55]
Desta feita, os países desse Continente possuem o desafio de desenvolver a tônica com muita amplitude, comparado com a abrangência estadunidense e europeia. Ainda que internacionalmente podem ser considerados como “países em desenvolvimento”, observa-se que há, na América Latina, um imenso potencial para que se democratize o debate de criação de políticas públicas, bem como a institucionalização legislativa para que se amplie a limitação sobre práticas preventivas a favor da morte digna. Consequentemente, resta comprovado que tal continente, ainda que não esteja em evidência no que tange ao tema da terminalidade, possui grande probabilidade de evolução na temática.
2. Diretivas antecipadas de vontade e o ordenamento jurídico brasileiro
Num primeiro momento, o tema objeto da presente pesquisa aparenta não possuir base legal no vigente sistema jurídico brasileiro que o sustente; todavia, pretende-se trazer à tona dispositivos legais, tanto da esfera constitucional, quanto da infraconstitucional – nesse caso, especificamente o Código Civil brasileiro de 2002 -, a fim de demonstrar a existência de normas esparsas que fundamentam uma interpretação no sentido possibilitar a utilização das diretivas antecipadas de vontade.
Ainda, serão analisadas resoluções do Conselho Federal de Medicina, que, apesar de abordarem de forma específica o tema desta pesquisa, não produzem efeito erga omnes, tendo em vista se tratar de normas infralegais.
Cabe salientar, que apesar de acreditar pela existência de normas esparsas no atual ordenamento jurídico Pátrio que possibilitam a elaboração do testamento vital, entende-se pela relevante necessidade de regulamentação ordinária específica acerca do tema, a fim de que seja garantido o respeito, em momento oportuno, às determinações expressadas pelos indivíduos. Assim, analisar-se-ão, também, projetos de leis que preveem a retirada da ilicitude da ortotanásia.
No decorrer de inúmeras mutações, tanto em relação ao conteúdo, quanto em relação à titularidade, à eficácia e à efetivação, os direitos fundamentais restaram por ser classificados em três dimensões (ou gerações),[56] sendo que há quem argumente, inclusive, pela existência de quarta, de quinta[57] e de até sexta dimensões.[58]
Entretanto, tendo em vista que a análise da origem dos direitos fundamentais e suas dimensões não é objeto desta pesquisa, nosso objetivo, aqui, restringir-se-á à análise específica dos direitos fundamentais mais intensamente relacionados com as diretivas antecipadas de vontade, quais sejam o direito i) à vida, ii) à liberdade e iii) à autonomia da vontade, acrescidos do princípio da dignidade humana.
Propõe-se, como ponto de partida, a análise do direito à vida, direito fundamental inerente ao sujeito, logo, pertencente à primeira dimensão; pois, apesar de não estar, nesta abordagem, protegendo exatamente a vida em si – mas sim uma vida com qualidade -, tem-se que é obrigação do Estado se abster frente às decisões do indivíduo (direito a não intervenção estatal), a fim de evitar qualquer afetação na liberdade e na autonomia desse.
Tendo expressa previsão no caput do artigo 5º, da Constituição Federal,[59] o direito a vida tende a ser visto, por muitos, como direito absoluto, sendo o fundamento basilar para argumentos contrários à morte com intervenção.[60] Entretanto, apesar de possuir caráter especial, e, por consequência, exigir extrema cautela diante de qualquer flexibilização, o direito à vida deve ser analisado conjuntamente com o Princípio da Dignidade Humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna.[61]
Num primeiro momento, tem-se o direito à vida como pré-condição, ou instrumento, que permite a própria dignidade, já que sem vida inexiste sujeito passível àquela;[62] entretanto, o caráter absoluto não deve eivar tal direito, pois, consoante Barroso, são em situações extremas inerentes à fase terminal da vida que
“[…] aparecem outros direitos e interesses que competem com o direito à vida, impedindo que ele se transforme em um insuportável dever à vida. Se, em uma infinidade de situações, a dignidade é o fundamento da valoração da vida, na morte com intervenção as motivações se invertem.[63]”
Neste sentido, faz-se necessário, também, interpretar de forma ampla o inciso III, do artigo 5º, da Constituição Federal, que diz “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”; entende-se, salvo melhor juízo, que manter o paciente terminal sob tratamentos contra sua vontade, causando-lhe sofrimento e desgaste, é passível de ser configurado ato de tortura e/ou tratamento desumano, gerando clara violação à norma constitucional supracolacionada.
Outros dois direitos fundamentais aptos a quebrar o caráter absoluto equivocadamente concedido, por alguns, ao direito à vida são os direitos à liberdade e à autonomia da vontade, previstos, sucessivamente, no caput e no inciso II, do artigo 5º, da Carta Magna,[64] que, assim como o direito à vida, pertencem à primeira dimensão dos direitos fundamentais.
Visando a preservação da dignidade humana, o direito à liberdade concede ao sujeito a aptidão “de escolher – de modo completamente autônomo -, expressando os distintos aspectos da sua essência ou de sua natureza.”[65]; assim, pode-se ver o direito à autonomia como complementar àquele, vez que esse confere ao sujeito o direito de gerir sua vida, guiando-se pelos seus próprios princípios, possuindo, assim, livre arbítrio para tomar suas decisões a fim de que busque seu bem estar.[66] Diante disso, hialino é o direito que o sujeito possui para dispor sobre sua vida e suas vontades, inclusive no que diz respeito em situações de moléstia, visando o que lhe é mais conveniente, bem como o que melhor protege os direitos de sua própria personalidade.
Como resultado dos direitos fundamentais acima analisados, entende-se pela existência do direito à morte digna, que seria a simples possibilidade de o sujeito definir, a seu critério, a partir de que momento a vida se torna inviável, optando por se deixar morrer.[67] O direito à morte digna advém do entendimento de que não basta ter direito à vida garantido e intocável se inexiste saúde e dignidade; pois, ressalvada interpretação diversa, entende-se que a mera existência sob dependência de máquinas não confere bem estar e tranquilidade ao enfermo.
Nesta esteira, cabe fazer breve abordagem acerca do direito à saúde; primeiramente, há de se mencionar que se trata de direito social, logo pertencente à terceira dimensão dos direitos fundamentais. Por segundo, pertinente se faz a abordagem do entendimento de João Paulo Mendes Neto, que diz que
“[…] no que concerne ao direito social à saúde, existe uma importância além daquela garantida aos direitos sociais como um todo; trata-se dos direitos mais basilares e elementares para caracterização da pessoa humana.”[68] (Grifo nosso)
Aqui é necessário distinguir, dentre os direitos sociais, como a saúde, a dimensão prestacional e a dimensão de defesa relativamente aos efeitos que podem produzir em face das circunstâncias do caso concreto. Para esta pesquisa, a tese defendida não é saúde como prestação devida pelo Estado, mas sim como direito de defesa, intimamente conectado com a liberdade e com a autonomia da vontade do sujeito que, não desejando mais viver submetido a tratamentos permanentes, por exemplo, tem o direito de optar pela cessação dele e não ser afetado (direito a não afetação) em sua esfera privada de autodeterminação individual.[69]
Assim, nota-se que a questão que envolve o tema saúde possui relevante importância na concepção de dignidade, influenciando, por consequência, a idealização acerca do que seria uma vida e/ou uma morte digna.
A definição mais utilizada do termo saúde[70] está prevista no preâmbulo do documento de constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS),[71] e diz que “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”.[72] Diante de tal definição, entende-se ser inviável, salvo entendimento diverso, considerar vida saudável e digna aquela mantida artificialmente através de aparelhagem hospitalar, resultado na repudiável vida vegetativa.
Desta forma, quando da análise da vontade do enfermo em fase terminal, compreende-se pela imperiosidade de considerar a dignidade humana um axioma norteador de todo o ordenamento jurídico brasileiro, concedendo-lhe, assim, precedência interpretativa[73] com o hialino fito de proteger os direitos mais íntimos do paciente, zelando pela sua personalidade e pela sua dignidade e, por consequência, humanizando a situação do paciente terminal.[74]
Subsidiando-se nos argumentos e nos princípios constitucionais apontados, tem-se que, hodiernamente, há que falar não somente em qualidade de vida, mas também em qualidade de morte.
Assim como em âmbito constitucional, no âmbito infraconstitucional existem normas aplicáveis às diretivas antecipadas de vontade, possibilitado sua existência e sua validade. O Código Civil brasileiro de 2002 em sua Parte Geral, mais especificamente no Capítulo II, do Título I, trata dos direitos da personalidade – direitos mais íntimos do ser humano –, claramente aplicáveis ao conteúdo das diretivas antecipadas de vontade. No que diz respeito a sua forma, o mesmo diploma legal apresenta requisitos gerais imprescindíveis à validade de negócios jurídicos que não possuem normatização específica, que, como se analisará abaixo, são igualmente aplicáveis às diretivas antecipadas.
Considerando que os direitos da personalidade são, de regra, intransmissíveis e irrenunciáveis, o sujeito, quando no exercício desses seus direitos, não pode sofrer qualquer limitação.[75] Com base nisso, a Lei Civil diz que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”,[76] possuindo tal disposição infinita e incomensurável relevância ao objeto desta pesquisa.
O artigo 15 do Código Civil brasileiro, acima citado, busca, salvo interpretação diversa, zelar pela dignidade do paciente, respeitando seus direitos fundamentais à autonomia de vontade e à liberdade. Notório é no artigo em comento a constitucionalização da Lei Civil, vez que tal norma aborda implicitamente dispositivos constitucionais.
Garante, ainda, o Código Civil, em seu artigo 12,[77] o direito de se exigir a cessação da ameaça, ou da lesão, aos direitos da personalidade, sendo igualmente tal disposição aplicável às diretivas antecipadas de vontade; pois, a interpretação deve ser no sentido da possibilidade jurídica que autoriza o paciente requerer a não aplicação ou a suspensão de tratamentos de saúde aos quais não queria se submeter. E, reforçando a existência da constitucionalização do Direito Civil pátrio, o artigo 12, assim como o artigo 15, nitidamente tutela os direitos fundamentais do enfermo, salvaguardando sua dignidade.
Cabe, aqui, fazer breve abordagem acerca das formalidades atualmente aplicáveis aos testamentos vitais; tendo em vista que, apesar da aparente lacuna legislativa, as diretivas antecipadas de vontade estão sendo cada vez mais aderidas no Brasil.[78] Desta forma, necessário se faz a análise dos artigos 104 e 107, do Código Civil brasileiro, abaixo colacionados:
“Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III – forma prescrita ou não defesa em lei.
Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”
Percebe-se que o Código Civil prevê requisitos indispensáveis à validade de negócios jurídicos, inclusive aqueles que não possuem regulamentação específica, sendo, assim, claramente aplicáveis às diretivas antecipadas. Entretanto, no que diz respeito à forma, inexiste exigência especial.
Diante da análise dos direitos da personalidade previstos no Código Civil, bem como da análise de requisitos e da forma previstos no mesmo diploma legal, tem-se que o testamento vital não possui óbice a sua formalização; possuindo, a seu favor, normas esparsas, que, todavia, não garantem pleno respeito e eficácia às vontades do declarante, pois se está diante de instituto carente de expressa normatização ordinária.
Seguindo a investigação, analisar-se-á como algumas resoluções do Conselho Federal de Medicina auxiliam o agir da classe médica. Serão analisadas especificamente as resoluções 1.805/06, 1.931/09 e 1.995/12. Tais resoluções obtiveram êxito no que tange ao respeito da vontade do paciente que se encontra em uma situação terminal. Tanto o Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931/2009[79]), como a Resolução 1.995/12, criam expectativas de preservação de autonomia do paciente.
Essas disposições estabelecem o dever do profissional de saúde em levar em consideração aquilo que foi estipulado nas diretivas antecipadas registradas no prontuário; bem como, designa que esse mesmo profissional deverá respeitar o conjunto de desejos, prévios e expressos, no que tange a manutenção e/ou abstenção de cuidados, inclusive sobre as expectativas dos familiares, conforme se depreende da leitura de seus dispositivos:
“Art. 1o Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Art. 2o Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
§ 1o Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.
§ 2o O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
§ 3o As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.
§ 4o O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.
§ 5o Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente. Art. 3o Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.[80]”
Nota-se, assim, a relevância de tal normativa. Isso porque, ela possui o condão de elucidar a vontade do paciente conforme o procedimento da ortotanásia, bem como de estimular a promoção do alívio do sofrimento de um paciente terminal através dos cuidados paliativos. Dessa maneira, o que se observa é a evolução de pensamento da classe médica no que tange a possibilidade de ter regras estipuladas quanto às diretivas antecipadas de vontade. Como assevera Dadalto[81]:
“A Resolução n. 1995/2012 concede ao cidadão a certeza de que, tendo manifestado sua vontade sobre tratamentos médicos, por meio de DAV, esta será cumprida. […] Como já visto, as DAV são expressão máxima da autonomia privada, da vontade individual do sujeito e qualquer alegação de alijamento da família está, em verdade, colocando em xeque o direito constitucional à autodeterminação do indivíduo. […].”
Essa normativa também foi, identicamente, objeto de discussão judicial em 31 de janeiro de 2012, através do ajuizamento de uma Ação Civil Pública pelo Procurador da República de Goiás Ailton Benedito de Souza, com a finalidade de ter declarada, pelo Poder Judiciário, sua inconstitucionalidade. O argumento utilizado pelo Procurador foi de que ela i) extravasa o poder regulamentar do CFM, ii) impõe riscos à segurança jurídica, iii) alija a família de decisões que lhe são de direito e iv) estabelece instrumento inidôneo para o registro de diretivas antecipadas de pacientes.[82]
Tal fundamento, no entanto, cai por terra, posto que precisamente não analisa com profundidade a magnitude do instituto, haja vista que tal normativa não possui o condão de desrespeitar o ordenamento jurídico vigente; mas, apenas trilhar caminhos onde os profissionais da saúde sigam um método respeitando, igualmente, seu Código de Ética. Percebe-se que, mais uma vez, a falta de informação sobre a temática atinge o cenário jurídico brasileiro, já que o objeto das diretivas antecipadas de vontade é dar respostas à liberdade individual, assim como o respeito de sua autonomia.
Ademais, conforme a Dadalto[83], a Resolução 1.805/06 (anterior a 1995/12) também teve papel fundamental no reconhecimento à morte digna. Isso porque, reconhece direitos ao paciente em relação ao prolongamento de tratamentos fúteis. Em seus três artigos, disciplina o poder do médico em limitar ou suspender procedimentos que prolonguem a vida do paciente em estado terminal de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa e/ou seu representante legal. O médico, assim, tem a obrigação de esclarecer ao doente, ou a seu representante legal, as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação, bem como a decisão referida que deve ser fundamentada e registrada no prontuário.[84]
Ato contrário, houve o ajuizamento de uma ação civil pública pelo Ministério Público Federal do Distrito Federal em 2008 criticando tal resolução; pois, conforme se verifica, tal instituição defende que o Conselho Federal de Medicina não teria poder regulamentador para estabelecer como conduta ética uma conduta que é tipificada como crime.[85] Tal alegação restou inexitosa, haja vista o magistrado federal Roberto Luis Luchi Demo considerar que a ortotanásia não antecipa o momento da morte, mas permite tão-somente a morte em seu tempo natural, sem a utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e com angústia para o doente e para sua família.[86]
Constata-se, dessa forma, a amplitude de tal normativa, tendo em vista que trouxe para o diálogo brasileiro a necessidade de discutir as questões concernentes ao final de vida, assim como as atuais consequências de sua abstenção a um debate claro e conciso. Conclui-se, desta feita, que há muito que se dimensionar quando se trata do direito de morrer com dignidade; contudo, destaca-se as principais nuâncias dessas interlocuções.
Continuando a análise da viabilidade de legislação da morte digna no viés brasileiro, Pessoa[87], em seu texto, traz a viabilidade do instituto da ortotanásia em nosso ordenamento jurídico. A Autora trata da possibilidade de sua legalização através da modificação do Código Penal Brasileiro (Decreto no 2.848/40) que, consequentemente, alteraria substancialmente referido Código, criando em seu art. 121 os parágrafos 3o e 4o, senão vejamos:
“[…] No Código Penal brasileiro (Decreto n. 2.848/40) não há referência específica à prática da eutanásia, pois o texto não cuida explicitamente do crime por piedade, situação que não foi modificada nas alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n. 6416/77 e 7.209/84, podendo vir a ser considerado homicídio privilegiado, na forma do que dispõe o art. 121, § 1o – “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço” […].
Eutanásia
§ 3o – Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima, imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave:Pena – Reclusão de três a seis anos
Exclusão de ilicitude
§ 4o – Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.[…].[88]”
Dessarte, observa-se que os Projetos de Leis 116/00 e 6715/09 criados através da Comissão Constitucional, Justiça e Cidadania em 2010, sob autoria do Senador Gerson Camata, são o reflexo da discussão de como conciliar a autonomia da vontade do paciente e seu consentimento informado.
Com isso, a reforma do Código Penal possibilitaria um diálogo com a atual conjuntura, estabelecendo dicotomias e limites a fim de trilhar e reconhecer uma morte digna. Entretanto, atualmente, tais projetos de leis não encontram perspectiva de solução, aguardando sua aprovação na Câmara dos Deputados, tendo, contudo, sido aprovados pelo Senado Federal.[89]
Importante relembrar que é através do instituto da ortotanásia que poderíamos prever possibilidades que facilitam ao enfermo uma passagem mais tranquila entre a vida e a morte, descomplicando, portanto, o procedimento de fim da vida. Tal procedimento, evita o prolongamento do sofrimento do próprio enfermo e de seus familiares e amigos próximos em relação à abstenção, à supressão ou à limitação de todo o tratamento fútil, extraordinário ou desproporcional diante da iminente morte do paciente.[90]
Conclui-se, nessa medida, que há muito a ser feito quando o assunto é a legalização da ortotanásia; mas, ainda assim, pode-se afirmar que é um caminho viável quando se quer retratar as diretivas antecipadas de vontade no viés brasileiro.
3. Considerações finais
Como já mencionado, a tecnologia e a pesquisa têm gerado significativas alterações na biomedicina, de forma a se questionar se as descobertas tidas como magníficas estão de fato melhorando a qualidade de vida dos doentes, em especial, os pacientes terminais. Se antes, com o restrito conhecimento científico médico, eram temidas as doenças e a morte, hoje, com o conhecimento abundante e incessante, teme-se o prolongamento da vida em camas de hospitais cercado do “frio elétrico metálico das máquinas […]”.[91]
Diante disso, busca-se a resposta para a seguinte questão
“Até que ponto se deve prolongar o processo de morrer de forma artificial, quando os tratamentos oferecidos ao paciente terminal demonstram não o beneficiar, apenas proporcionando um breve período de vida que pode lhe ser extremamente penoso?[92]”
Se, para a resposta, for utilizado o entendimento de Kant, que diz que nenhum homem pode dispor de sua vida,[93] inviável seria a interrupção de tratamentos fúteis; entretanto, o quão pertinente tal colocação do século XVIII nos é atualmente? Entende-se que a impossibilidade apresentada pelo Filósofo afasta o sujeito de seu direito à autodeterminação, inviabilizando o exercício de sua autonomia individual, refletindo, por consequência, nos direitos de sua personalidade.
É preciso levar em conta que, respeitadas as opiniões contrárias, as inovações tecnológicas na área da medicina devem proporcionar não só uma vida digna, mas também garantir uma morte no mesmo patamar de dignidade; assim, “[…] a ênfase que colocamos no ‘morrer com dignidade’ – mostra como é importante que a vida termine propriamente, que a morte seja um reflexo do modo como desejamos ter vivido.”.[94]
Neste sentido, há de se considerar os dizeres de Jack London, que entende que “A verdadeira função do homem é viver, não existir. […]”;[95] de forma que se compreende incompatível o verbo viver com a situação do doente terminal que, por vezes, sequer abre seus olhos, apenas existe de forma dependente – seja de máquinas e/ou medicamentos que o mantém vivo, seja de pessoas que o auxiliam.
Se por um lado, em todas as etapas da evolução da humanidade – tanto na área da tecnologia em saúde, quanto na área jurídica -, primou-se o direito à vida, por outro, parece ter havido lacuna na análise do direito natural à morte, que, por si, é invencível.
Urge na atualidade, que tanto os profissionais da saúde, quanto os do direito perpassem por uma análise às bordas da relativização entre o direito à vida e o direito à morte, ambos sob o olhar do direito natural e do princípio da dignidade humana, já que “[…] não devemos querer conservar a vida a todo o custo, pois o importante não é viver, mas viver bem.”.[96]
O espaço temporal entre a vida e a morte é incomensurável, razão pela qual há que se investir, no decorrer da existência, num viver afortunado de prazeres de acordo com a visão de cada sujeito.
Nesta linha de pensamento, e tendo por base os direitos da pessoa humana analisados anteriormente, entende-se pela necessidade de se relativizar a prevalência do direito à vida – tido como indisponível e inviolável em face da Constituição Federal -, levando-se em conta o bem estar do paciente, sopesando seus desejos, suas necessidades e seus direitos. Isto, pois, o dever de proteger a vida não implica considerar que exista um dever de continuar vivendo frente ao sofrimento e à inexorável proximidade da morte.
Entende-se, então, que ao princípio da qualidade de vida, deve-se inserir a qualidade de morte, já que a vida humana por não ser um valor absoluto, reclama proteção enquanto houver determinado nível de qualidade, aqui entendido como a ausência de sofrimento físico e/ou mental.
Percebe-se, portanto, que o Estado não pode se sobrepor ou mesmo suprimir a vontade do paciente; pois, na medida em que esse é capaz, tem livre escolha para agir e, como regra no direito civil, consciência das eventuais consequências da sua manifestação de vontade, não tendo a unidade estatal legitimidade para interferir, ainda que porventura possa sobrevir o resultado morte.
Faz-se necessário respeitar a autonomia do paciente, tendo ele livre arbítrio no que tange às decisões seja de iniciar, seja de prosseguir, seja de interromper determinado tratamento. O sujeito, de regra, é capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais, e nada é mais pessoal que a própria morte. Neste sentido, Dworkin diz que
“Não podemos compreender o que a morte significa para as pessoas – por que alguns preferem morrer a continuar existindo, permanentemente sedados ou incompetentes; por que outros preferem ‘lutar até o fim’, mesmo quando em meio a sofrimentos terríveis ou quando já perderam a consciência e não têm como saborear a luta.[97]”
Verifica-se, então, que diante de situações peculiares de terminalidade do sujeito, as diretivas antecipadas servem como caminho consciente, seja para (principalmente) evitar dor e sofrimento ao enfermo, seja para evitar discussões entre médicos e familiares acerca de qual seria a vontade do paciente, já que grande parte dos doentes terminais fica incapacitada de se comunicar.[98]
Ainda, é necessário se levar em conta que o testamento vital é utilizado em situações especialíssimas, onde, consoante Sanches, “o indivíduo perdeu sua capacidade de existência racional e autônoma em razão de enfermidade ou grave dano físico incurável […]”[99]; e que o respeito às diretivas antecipadas de vontade do enfermo “ajuda os familiares a se sentirem menos culpados a respeito de suas decisões, uma vez que estarão de fato realizando os desejos da pessoa, em vez de tomar eles mesmos as decisões mais difíceis.”.[100]
Manter um paciente em fase terminal nada mais é do que concedê-lo a existência de uma vida completamente deteriorada; e evitar o prolongamento artificial e desnecessário de uma existência inviável é simplesmente respeitar e atender à vontade do paciente de ter um final de vida sereno, com o alívio da dor e do sofrimento, sem que lhe seja estendido um estado precário e penoso. Assim,
“O que se exige é uma cuidadosa reflexão, liberta das influências pessoais (de ordem religiosa, ética […]), para estabelecer as latitudes do direito à morte digna. Mais do que isso, seja qual for o posicionamento a prevalecer, é imperioso que reconheça que o único ponto indelével (e insubstituível) nessa discussão é o reconhecimento de que a dignidade da pessoa humana também se projeta na morte.[101]”
Desta forma, quando da análise da vontade do enfermo em fase terminal, compreende-se pela imperiosidade de considerar a dignidade humana um axioma norteador de todo o ordenamento jurídico brasileiro, concedendo-lhe, assim, precedência interpretativa com o hialino fito de proteger os direitos mais íntimos do paciente, zelando pela sua personalidade e pela sua dignidade e, por consequência, humanizando a situação do paciente terminal.
Longe de exaurir o tema, entendeu-se pela existência de normas esparsas que subsidiam a eficácia a ser atribuída ao testamento vital. Isto porque, consoante explicitado no corpo da pesquisa, o Princípio da Dignidade Humana e os direitos fundamentais esculpidos na Constituição Federal, em conjunto com as normas do Código Civil brasileiro, acrescidos às normatizações do Conselho Federal de Medicina, dão guarida tanto à elaboração das diretivas antecipadas de vontade, quanto ao seu cumprimento oportuno.
Por outro lado, também se verificou a necessária elaboração de norma ordinária específica a fim de garantir ao paciente que suas vontades serão respeitadas e atendidas na fase terminal de vida; pois, a normatização esparsa não confere ao instituto efeito erga omnes, impossibilitando a garantia ao sujeito do eficaz cumprimento de seus desejos, de forma a fragilizar o respeito aos direitos de sua personalidade, restando vulnerável sua dignidade.
Em verdade, chegou-se a conclusão de que somente uma normatização ordinária restará por disciplinar especificamente a matéria, bem como normatizar seu procedimento jurídico, protegendo o exercício da medicina diante da manifestação de vontade do paciente, zelando, igualmente, o direito natural de morrer.
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Notas
Informações Sobre os Autores
Roberta Martins Bento
Graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público, Pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade IMED, Advogada
Gabriela Roth
Graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público Pós-graduanda em Direito Contratual Resp. Civil e Direito Imobiliário pela PUCRS. Advogada